Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
526/19.2T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
DETERIORAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
SOCIEDADE
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
FUNDAMENTOS
ARRENDAMENTO URBANO
SENHORIO
ARRENDATÁRIO
TERCEIRO
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
A sociedade arrendatária é responsável, perante o senhorio, pelos danos que o seu gerente causou no imóvel arrendado. Da interpretação conjugada dos artigos 1043º e 1044º do CC concluiu-se que o arrendatário, ao restituir a coisa locada ao locador, só não será responsável pelas deteriorações “normais”, ou seja, inerentes a uma prudente utilização, ou pelas deteriorações que estão completamente fora do seu âmbito de controlo da coisa locada, ou seja, que resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 526/19.2T8CSC.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA e BB, propuseram a presente ação contra “OS TRÊS ÁS – ACTIVIDADES HOTELEIRAS, Ldª”, pedindo a condenação da ré no pagamento de €77.518,22, a título de indemnização e acrescida de juros vincendos, deste a citação até integral pagamento.

Alegaram, em síntese, que: i) por sentença judicial, foi declarado cessado o contrato de arrendamento comercial que celebraram com a R., reconhecendo-se a esta última o direito de retenção do imóvel objeto desse contrato até que os AA. lhe pagassem a quantia de €64.665,17, a título de benfeitorias; ii) os AA. interpuseram recurso dessa sentença, nesta última parte, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão transitado, reduzido para €2.795,60 a quantia devida à R. a esse título, que oportunamente pagaram; iii) CC, agindo na qualidade de legal representante da R. inconformado com o julgado, provocou deliberadamente danos no imóvel antes de o entregar aos AA; iv) com esta conduta, a R. causou-lhes danos patrimoniais no valor global de €77.518,22, que inclui os custos de reparação do imóvel e o valor que deixaram de auferir por terem ficado impedidos de o voltar a arrendar imediatamente, por causa dos estragos que o seu legal representante intencionalmente nele provocou.

2. A ré, citada, não contestou. Assim, por decisão de 12.11.2019, julgaram-se confessados os factos alegados pelos autores suscetíveis de confissão.

3. Por requerimento de 25.11.2019, os autores reduziram o pedido para €75.491,12, invocando que os gastos com a reparação do imóvel ascenderam a €61.491,12 e a quantia que deixaram de auferir a título de rendas foi de €14.000,00, redução que foi admitida, por despacho de 27.11.2019.

Por despacho de 22.09.2022, foi indeferida a arguição de nulidade deduzida pela Ré, por falta ou nulidade da citação.

4. Julgando a questão de saber se aos autores assistia o direito a receberem da ré a indemnização peticionada, a primeira instância julgou a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.

5. Os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o TRL decidido:

«julgar procedente o recurso e, por consequência, revogando a decisão recorrida, julgar a acção procedente, por provada, condenando a Ré a pagar aos Autores a quantia de €75.491,12 acrescido de juros legais à taxa legal em vigor desde a citação até efetivo e integral pagamento

6. A ré interpôs recurso de revista. Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:

«I. São dois os pressupostos de que depende, nos termos do artº 500º, do CC, a responsabilidade objetiva da R., a saber: i) que recaia sobre o seu legal representante a obrigação de indemnizar os AA; ii) que o facto danoso tenha sido praticado por aquele no exercício da função de gerente da R. ou no exercício dos poderes de legal representação da R.;

II - O legal representante da R., não atuou no exercício da função de gerente da sociedade, tal como cumulativamente estabelece o artº 500º, nº 2, do CC, pois a responsabilidade do comitente (R.) só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe for confiada;

III - Há que determinar qual o grau de conexão necessário, para responsabilizar o comitente e se para a responsabilização do comitente basta que os danos sejam causados no exercício da função ou é necessário que os danos tenham sido causados por causa do exercício da função;

IV- Conforme se retira da redação do nº 1, do artº 500º, do CC, a responsabilidade não depende da culpa do comitente, pelo que só poderão ser atribuídos ao comitente os danos causados pelos comissários, para prosseguimento de interesses próprios;

V- O dano causado pelo comissário que reveste consequência imprevisível, de acordo com as regras de experiência comum, do exercício de funções que lhe foram confiadas, por não haver conexão causal entre o dano e o exercício das funções de comissário, não se poderá concluir pela responsabilidade objetiva do comitente, pela verificação do dano;

VI - Estando em causa, como no caso concreto, danos imprevisíveis, deixa de ter importância, como causa justificativa da responsabilidade objetiva do comitente, a relação de dependência que o comissário tem para com o comitente, cuja relação se estabelece no âmbito de uma atividade e com o propósito de atingir um determinado fim;

VII - Os gerentes devem praticar os atos que foram necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pela deliberação dos sócios, conforme estabelece o artº 259º, do CSC;

VIII - Acresce que, decorre do artº 260º, do CSC, que apenas os atos praticados pelos legais representantes de uma sociedade comercial que tenham ligação com a atividade social desenvolvida pela Sociedade são aptos a produzir efeitos na esfera jurídica da sociedade; pelo que,

IX- No caso dos autos, não se poderá concluir pela existência de qualquer ligação causal, entre a conduta do legal representante e as funções de gerente da R., que tem como objeto social o ramo hoteleiro, restaurante e churrasqueira, o que sai fora dos poderes de gestão e representação que a lei confere;

X- Os atos praticados pelo gerente da R., não revestem relevância, para demonstrar que agiu no exercício das funções de gerente, para os termos do disposto no art.500º do CC, uma vez que não são aptos a produzir quaisquer efeitos jurídicos na esfera jurídica da ora Recorrente.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, absolvendo-se a R. do pedido, conforme inicialmente fixado pela sentença do Tribunal de Primeira Instância, desta forma fazendo V.Exas, Venerandos Conselheiros, a costumada Justiça.»

7. Os autores recorridos apresentaram resposta, concluindo nos seguintes termos:

«1. O Tribunal de 1.ª Instância proferiu decisão por aplicação exclusiva do art.º 500.º do Código Civil, entendendo não estarem reunidos todos os requisitos desta norma legal, e em consequência absolveu a Ré, ora Recorrente, do pedido.

2. Os AA, aqui Recorridos, interpuseram Recurso de Apelação para o TRL por entenderem ter sido feita uma errada interpretação do art.º 500.º do CC, defendendo que todos os seus requisitos se encontravam preenchidos no caso concreto, para além de que deveriam ter sido aplicadas outras normas jurídicas, mas que não foram, como o art.º 483; 562.º e 564.º, todos do CC, por força do incumprimento pela Ré do contrato de arrendamento celebrado.

3. Veio o douto Tribunal da Relação de Lisboa a dar provimento ao recurso interposto pelos então Recorrentes, ora Recorridos, entendendo que se encontram preenchidos todos os requisitos do art.º 500.º do CC, como entendendo pela aplicabilidade das normas jurídicas conexas com o fundamento e enquadramento jurídico elaborado pelos Recorrentes, ora Recorridos, concluindo que, quer por uma via quer pela outra, resulta a inequívoca responsabilidade da Ré, aqui Recorrente, condenando-a ao pagamento da indemnização e juros peticionados pelos AA, aqui Recorridos.

4. Em conformidade, o douto acórdão proferido pelo TRL, tendo feito uma correta análise do caso concreto e uma correta aplicação da lei, não merece qualquer reparo, devendo ser mantido integralmente.

5. A Recorrente, nas suas alegações e conclusões, apenas manifesta discordância quanto á aplicabilidade do art.º 500.º do CC, por, segundo defende, não se encontrar reunido um dos requisitos exigidos por esta norma jurídica.

6. No demais, a Recorrente não manifesta qualquer reparo, o que consubstancia uma aceitação quanto às demais fundamentações, enquadramentos jurídicos e/ou seus pressupostos, o que resulta, por essa via, na aceitação da sua responsabilização contratual por incumprimento do contrato de arrendamento celebrado com os aqui Recorridos, e, por conseguinte, na aceitação da obrigação de indemnizar os ora Recorridos no valor por estes peticionado.

7. Ou seja, por esta via e enquadramento jurídico, conclui-se que a Recorrente aceita a decisão proferida pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa.

8. Sendo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, fica totalmente prejudicada a necessidade de apreciação da questão se estão ou não reunidos todos os requisitos do art.º 500.º do CC.

Porém, e continuando sem prescindir, se dirá:

9. Para aplicação do art.º 500.º do CC é necessário encontrarem-se reunidos três pressupostos i) vínculo entre comitente e comissário, ii) que recaia sobre o comissário a obrigação de indemnizar, e, iii) a prática do facto ilícito ocorra no exercício da função que lhe foi confiada.

10. Atentas as alegações e conclusões de recurso da Recorrente, a única questão que contraria é a interpretação do art.º 500.º do CC no que concerne a um dos seus requisitos, concretamente em determinar qual o grau de conexão necessário para responsabilizar o comitente, se para a responsabilização deste basta que os danos sejam causados no exercício da função ou se é necessário que os danos tenham sido causados por causa do exercício da função.

11. Vem a Recorrente defender que o seu gerente, ao praticar os actos ilícitos, não agiu no exercício das funções de gerente, e que em virtude disso, não se encontra preenchido o terceiro requisito do art.º 500.º do CC.

12. Dispõe o n.º 2 do art.º 500.º do CC que, “A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ..., no exercício da função que lhe foi confiada.”

13. Toda e qualquer norma jurídica deve ser interpretada à luz do ordenamento jurídico como um todo, isto é, em harmonia com as demais normas jurídicas existentes.

14. Ora, como bem interpreta e explana o TRL no seu couto acórdão, “... deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos actos de que foi incumbido, quer dos instrumentos ou objetos que lhe foram confiados, ele se encontra numa posição especialmente adequada à prática de tal facto.”

15. Isto é, será de responsabilizar o comitente pelos factos ilícitos do comissário que tenham com as funções deste uma conexão adequada.

16. No caso em apreço é manifesta a adequada conexão entre os factos ilícitos praticados por CC e as suas funções de gerente da sociedade Recorrente.

17. Dispõe o n.º 1 do art.º 252.º do Código das Sociedades Comerciais, que: “Os gerentes de uma sociedade comercial por quotas (como é o caso em apreço) têm o poder de gerir ou administrar a sociedade e o poder de a representar, na relação com terceiros.”

18. Cabe nas funções de gerente, zelar pelo cumprimento das obrigações decorrentes dos negócios jurídicos que celebre em representação da sociedade sua representada.

19. A Recorrente celebrou com os Recorridos, um contrato de arrendamento ficando obrigada a cumpri-lo nos seus precisos termos.

20. Decorre da clausula nona do contrato de arrendamento que, aquando da entrega do locado, o mesmo teria de ser entregue em perfeito estado de conservação.

21. Foi CC, enquanto gerente da Recorrente, quem outorgou o contrato de arrendamento em representação da sociedade Recorrente.

22. Assim como foi CC, enquanto gerente da Sociedade Recorrente, quem ocupou o locado no âmbito do contrato de arrendamento celebrado.

23. Foi precisamente na qualidade de gerente e por causa das funções de gerente nas quais se encontrava investido, que o gerente da sociedade Recorrente, praticou os atos ilícitos sobre o locado, quando, em sequência de longo e árduo litígio viu a sua representada obrigada a entregar o imóvel aos ora Recorridos, não se conformando com tal facto.

24. Em sequência de tais ilícitos deliberadamente praticados pelo gerente (conforme pontos 7 e 8 dos factos provados), no exercício das suas funções e por causa delas, resultou o incumprimento da ora Recorrente, porquanto, ao invés do que lhe cabia fazer que era assegurar, garantir e zelar pela entrega do locado em perfeito estado de conservação, procedeu à entrega do mesmo completamente destruído, tendo sido inclusive o próprio a destruí-lo.

25. Por conseguinte, encontram-se reunidos todos os requisitos do art.º 500.º do Código Civil, pelo que, também por força da sua aplicação resulta a responsabilidade da sociedade Recorrente e a correspondente obrigação de indemnizar os Recorridos dos prejuízos que lhe foram causados.

26. Os custos de reparação dos danos provocados no imóvel por CC ascendem a €61.491,12.

27. Por força dos danos causados no imóvel, os então AA., aqui recorridos, ficaram impedidos de voltar a arrendar imediatamente o imóvel, o que teriam conseguido fazer, e por isso, deixando de auferir a quantia de €14.000,00.

28. Em conformidade, conclui-se que o douto Tribunal da Relação de Lisboa fez uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto, tendo proferido uma decisão irrepreensível, razão pela qual, tal douta decisão deverá ser mantida na íntegra.

Termos em que, deverá ser negado provimento ao presente recurso e confirmado o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com a consequente condenação da Recorrente a pagar à Recorrida uma indemnização no valor total de € 75.491,12 (setenta e cinco mil, quatrocentos e noventa e um euros e doze cêntimos) acrescido de juros legais à taxa legal em vigor desde a citação até efetivo e integral pagamento.»

8. Redistribuídos os autos no STJ, em 09.10.2024, cabe ao presente coletivo julgar a revista.


*


II. ADMISSIBILIDADE E FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto da revista

Tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, e encontrando-se preenchidos os pressupostos gerais de recorribilidade (art.º 629º, n.º 1 do CPC) o recurso é admissível com base no artigo 671º, n.º 1 do CPC.

O objeto da revista é o de saber se o acórdão recorrido decidiu bem ao condenar a ré a pagar a indemnização peticionada pelos autores, não estando o tribunal limitado, na aplicação do direito, pelos enquadramentos normativos sustentados pelas partes.

2. Factualidade provada:

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«1. Por escritura pública outorgada em 03/07/2000, os AA. celebraram com a R. um acordo com a designação «arrendamento e fiança», no âmbito do qual os primeiros, na qualidade de donos e legítimos proprietários, declararam dar de arrendamento a esta última o prédio urbano sito em Quinta ..., para comércio de restaurante e churrasqueira, pelo prazo de 13 (treze) anos, mediante o pagamento mensal da quantia de $250.000,00 (€1.246,99).

2. Por sentença de 23/01/2014, proferida no processo n.º 2489/13.9... que os ora AA. intentaram contra a ora R., o ....º Juízo Cível do então Tribunal Judicial da Comarca de ... decidiu declarar cessado em 30/06/2013 o contrato acima referido e reconhecer à R. o direito de retenção do imóvel até que os AA. lhe pagassem a quantia de €64.665,17, a título de indemnização por benfeitorias no locado.

3. Os ora AA., inconformados, apelaram da sentença, nesta última parte, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 25/09/2014, julgado procedente o recurso e, alterando a decisão recorrida, na parte impugnada, reconheceu à R. o direito de retenção do imóvel até lhes ser paga pelos AA. a quantia de €2.795,60, a título de indemnização por benfeitorias no locado.

4. A ora R., não se conformando com esta última decisão, dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por Acórdão de 05/03/2015, transitado, negou a revista e confirmou o Acórdão recorrido.

5. Os AA. pagaram à R. a quantia referida no ponto 3. supra.

6. Em 27/04/2015, a R. remeteu aos AA. as chaves do imóvel.

7. No dia 28/04/2015, os AA., ao entrarem no imóvel, verificaram que o mesmo estava totalmente destruído, designadamente, o pavimento em ladrilhos cerâmicos estava arrancado, os azulejos estavam partidos e picados, de forma a ficarem totalmente inaproveitáveis, a chaminé estava arrancada, os fios elétricos estavam arrancados, a porta do contador elétrico estava arrancada (sem sequer se encontrar no local), o teto falso estava arrancado, os aparelhos de ar condicionado estavam completamente danificados e as canalizações estavas entupidas e igualmente danificadas.

8. Os actos de destruição do imóvel, designadamente os acima descritos, foram deliberadamente praticados por CC, gerente da R. - cfr. Ap. 8 de 1997/06/20 e Ap. 101 de 2010/11/09 e Av. 1 de 2016/09/26 da certidão do registo comercial junta aos autos.

9. Os custos de reparação dos danos provocados no imóvel por CC ascendem a €61.491,12.

10. Por força dos factos referidos no ponto 7. supra, os AA. ficaram impedidos de voltar a arrendar imediatamente o imóvel, o que teriam conseguido fazer, tendo, por isso, deixado de auferir a quantia de €14.000,00.

11. Em 19/10/2015, os AA. apresentaram queixa crime contra a R. e CC, na qualidade de seu «único gerente de facto», pela prática dos actos de destruição referidos no ponto 7., imputando-lhes a prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelas normas conjugadas dos artigos 202.º, alínea b), e 213.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.

12. Por despacho de 18/10/2017, proferido no processo n.º 3139/15.4... - que teve origem na referida queixa-crime -, o Ministério Público decidiu, além do mais, arquivar o procedimento criminal, em relação à sociedade ora R., por não serem as pessoas colectivas susceptíveis de responsabilidade penal quanto ao crime de dano, por força do disposto no artigo 11.º, nºs. 1 e 2, do Código Penal.»

3. O direito aplicável

3.1. Pela factualidade provada conclui-se que, entre 03.07.2000 e 30.06.2013, vigorou entre os autores e a ré um contrato de arrendamento urbano (para fins não habitacionais) e que a ré manteve ainda a detenção do imóvel até 27.04.2015, invocando o direito de retenção como garantia do recebimento do valor das benfeitorias que lhe havia sido judicialmente reconhecido.

Emerge também da factualidade provada, no que especificamente releva para a decisão do caso concreto, que quando a ré devolveu as chaves do imóvel aos autores, em 27.04.2015, e estes (no dia seguinte) entraram nesse imóvel constataram a existência de diversos danos (os descritos no ponto n.º 7 dos factos provados). Danos esses intencionalmente praticados pelo gerente da sociedade arrendatária, ré nos presentes autos (facto provado n.º 8), e quantificados pelos autores nos montantes que se encontram assentes nos números 9 e 10 da factualidade provada.

Neste quadro, a questão a decidir é a de saber se a sociedade arrendatária é responsável pelo pagamento aos autores dos danos por estes sofridos.

3.2. O acórdão recorrido, para sustentar a decisão de condenar a ré (arrendatária) a indemnizar os autores (senhorios), socorreu-se de uma fundamentação normativa localizada, essencialmente, nos quadros da responsabilidade civil extracontratual, apesar de ter existido entre as partes um contrato de arrendamento, em cujo regime legal se encontram normas específicas sobre a questão sub judice.

Cada instância tem inteira autonomia na indagação e aplicação das normas legais, procedendo livremente à qualificação da factualidade provada, não estando condicionada pelas teses qualificativas sustentadas pelas partes (ou, eventualmente, pela instância anterior).

Efetivamente, nos termos do artigo 5º, n.º 3 do CPC, não está o tribunal sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

A primeira instância qualificou a factualidade provada como potencialmente enquadrável na responsabilidade do comitente (art. 500º do CC), acabando por concluir que os pressupostos normativos desta figura jurídica não se verificavam, e decidiu absolver a ré do pedido. Por sua vez, a segunda instância, percorrendo o mesmo caminho de qualificação normativa que a primeira instância havia seguido, veio a concluir em sentido diverso, concluindo pela condenação da ré (enquanto comitente, responsável pelos atos praticados pelo seu comissário).

Apesar de os autores apelantes terem clamado, nas suas alegações da apelação, que também haveria violação do contrato de arrendamento e, portanto, responsabilidade contratual, e de a ré apelada ter tido a oportunidade processual para se pronunciar sobre essa qualificação dos factos provados, o acórdão recorrido não seguiu tal qualificação, seguindo, antes, uma indagação do direito no âmbito da responsabilidade da ré enquanto comitente face ao sujeito (seu gerente) que praticou os danos.

3.3. Pode, desde já, afirmar-se que o sentido decisório do acórdão recorrido, ao condenar a ré a indemnizar os autores, é o correto. Todavia, a fundamentação que sustenta essa decisão poderia ter sido tecnicamente diferente.

Na data em que termina um contrato de arrendamento, senhorio e arrendatário não se tornam, automaticamente, dois estranhos entre si. O fundamento extintivo desse contrato (resolução, denúncia, caducidade, oposição à renovação ou revogação) produz a cessação dos deveres principais, mas não de todos os deveres laterias (ou até de alguns deveres secundários), quer baseados na boa-fé, quer na própria lei.

Determina o artigo 1038º, alínea i), do Código Civil que é obrigação do locatário: “restituir a coisa locada findo o contrato”. Trata-se, portanto, de um dever pós-contratual, de origem legal, que pressupõe precisamente a extinção do contrato e só pode ser cumprido, obviamente, após essa extinção.

Assim, não haverá necessidade de procurar nos quadros da responsabilidade extracontratual (nomeadamente no art.º 500º do CC, como entenderam as instâncias no caso concreto) a solução para os danos que a coisa locada tiver sofrido antes de ser restituída ao locador.

O conteúdo da obrigação de restituição da coisa locada encontra-se legalmente traçado por normas próprias do regime da locação, nomeadamente pelo disposto nos artigos 1043º e 1044º do CC.

Dispõe o artigo 1043º (Dever de manutenção e restituição da coisa):

«1. Na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.

2. Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega

E determina o artigo 1044º (Perda ou deterioração da coisa):

«O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela

Como consta do facto provado n.º 8:

«Os actos de destruição do imóvel, designadamente os acima descritos, foram deliberadamente praticados por CC, gerente da R. - cfr. Ap. 8 de 1997/06/20 e Ap. 101 de 2010/11/09 e Av. 1 de 2016/09/26 da certidão do registo comercial junta aos autos

Como decorre do artigo 1044º, o locatário (seja pessoa singular ou coletiva) assume a responsabilidade contratual perante o locador pelas deteriorações que o imóvel arrendado sofra, ainda que imputáveis a terceiro a quem tenha permitido a utilização desse imóvel. A qualidade do terceiro que causou os danos (gerente da arrendatária, subarrendatário, comodatário, etc.) não assume qualquer relevo normativo específico para efeitos do regime legal de responsabilização do locatário pela deterioração da coisa locada.

Não há, portanto, necessidade de convocar a regra geral do artigo 165º do CC sobre responsabilidade civil das pessoas coletivas (que faz a remissão para as regras sobre a relação de comissão), porque se está no âmbito de um contrato de arrendamento, cujo regime legal fornece soluções específicas para o problema a decidir.

Aliás, estando em causa o cumprimento de deveres que emergem do regime do contrato de locação, a regra geral que se harmoniza com este regime específico é a do artigo 800º do CC.

Dispõe o n.º 1 deste artigo: «O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor».

Da interpretação conjugada dos artigos 1043º e 1044º do CC concluiu-se que o arrendatário, ao restituir a coisa locada ao locador, só não será responsável pelas deteriorações “normais”, ou seja, inerentes a uma prudente utilização, ou pelas deteriorações que estão completamente fora do seu âmbito de controlo da coisa locada, ou seja, que resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela. Assim acontece se a deterioração (ou destruição) da coisa locada ocorre por força de um incêndio ou de atos de vandalismo causados por desconhecidos.

3.3. Em síntese, apurando-se inequivocamente, nos termos referidos, a responsabilidade da ré arrendatária pela deterioração do imóvel arrendado, é esta responsável pela indemnização dos danos que se encontram provados, nos termos do artigo 562º e seguintes do CC.

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido ainda que com fundamentação diferente.

Custas: pela recorrente.

Lisboa, 12.11.2024

Maria Olinda Garcia (Relator)

Cristina Coelho

Teresa Albuquerque