Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10972/10.1TBVNG.P2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
DISPENSA DE PAGAMENTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 06/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I. O pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do art. 6º, 7, do RCP, uma vez requerido no STJ a propósito do recurso de revista para o apurado em todas as instâncias decisórias, faz cessar a competência do STJ, exclusiva e restrita à actividade e tramitação processual correspondente ao recurso de revista, não o podendo conhecer nem decidir quanto aos recursos de apelação e às decisões de 1.ª instância (arts. 1º, 2, 6º, 1 e 2, 12º, 2, RCP; 527º, 1, CPC).

II. O requerido para todas as instâncias tem que ser absorvido na decisão de liquidação do julgado em sede do procedimento da “conta de custas”, que compete à 1.ª instância (arts. 29º, 1 e 4, 30º, 1 e 2, 6º, 7, RCP).

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 10972/10.1TBVNG.P2.S1


Reclamação para a Conferência (art. 652º, 3, 679º, CPC)


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) TRAMITAÇÃO


1. Os Autores e Recorrentes de revista nesta instância, onde se proferiu acórdão em 11/7/2023, assim como acórdão do Tribunal Constitucional em 29/2/2024 (processo n.º 1074/2023), vieram atravessar nos autos requerimento (15/1/2024) que finalizava com o pedido de dispensa (isenção ou redução) do pagamento do remanescente da taxa de justiça em todas as acções e recursos tramitados, ao abrigo do art. 6º, 7, do RCP (DL 34/2008, de 26/2), para as causas de valor superior a € 275.000.


O requerido não mereceu pronúncia das demais partes Rés e Recorrentes.


2. Foi proferido despacho pelo aqui Relator, nos termos da al. f) do art. 652º, 1, do CPC, decidindo, “mostrando-se transitado o acórdão proferido nesta instância”, ordenar a “devolução dos autos à 1.ª instância, onde será apreciado no exercício de competência própria os requisitos e o mérito do requerido pelos aqui Requerentes neste incidente” (11/4/2024).


3. Inconformados, os Requerentes deduziram Reclamação para a Conferência, nos termos do art. 652º, 3, ex vi art. 679º, do CPC, pugnando pela revogação do despacho precedente e consequente decisão nesta instância do pedido de dispensa relativamente a todos os graus de jurisdição.





Foram dispensados os vistos nos termos legais.


Cumpre apreciar e decidir em colectivo.


II) FUNDAMENTAÇÃO


4. A decisão singular agora reclamada repousou nos seguintes fundamentos:

i. O pedido tem como objecto tal dispensa ou redução relativamente ao apurado em todas as instâncias decisórias neste processo.

ii. Tal objecto do requerido faz cessar a competência deste STJ, exclusiva e restrita neste âmbito à actividade e tramitação processual correspondente ao recurso tramitado nesta instância, não o podendo conhecer nem decidir no que concerne aos recursos de apelação e às decisões de 1.ª instância, assumindo-se a autonomia das acções e dos recursos para efeitos de taxa de justiça e a conexão entre o decidido nessas espécies processuais e a questão da dispensa ou não do remanescente daquela taxa (arts. 1º, 2, 6º, 1 e 2, 12º, 2, do RCP; 527º, 1, CPC).

iii. Assim, o requerido tem que ser absorvido na decisão de liquidação do julgado em sede do procedimento da “conta de custas”, que compete à 1.ª instância, quando solicitado na sua globalidade processual, em aplicação dos arts. 29º, 1 e 4, 30º, 1 e 2, em conjugação com o art. 6º, 7 («considerado na conta a final»), do RCP.


5. Quanto ao fundamento sob (ii), acrescente-se.


O n.º 7 do art. 6º do RCP permite, nas causas de valor superior a € 275.000, que se pondere, para dispensa (isenção ou redução) do pagamento do remanescente da taxa de justiça (o acréscimo de taxa de justiça que resulta do facto de o valor da causa ser fixado acima daquele montante, em função do qual se calcula a taxa de justiça inicialmente devida, considerado na conta final).


Esta dispensa tem natureza excepcional, que vai para além da magnitude do valor da causa, e a sua função correctiva pressupõe, em especial, uma menor complexidade técnico-jurídica da causa, aferida pela simplificação da tramitação processual e da especificidade da situação substantiva e adjectiva em face da utilidade económica dos pedidos, assim como um comportamento das partes sem censura.


Para aferir da complexidade da causa, deve ser convocado o art. 530º, 7, do CPC.


Para ter em conta a conduta processual das partes, devem ser aplicados ao caso os arts. 7º, 1, e 8º do CPC.1


Sem prejuízo.


O STJ (em rigor, o colectivo de juízes deste tribunal superior), aquando do recurso de revista e suas vicissitudes, tem competência para apreciar a questão da dispensa ou não de pagamento do remanescente da taxa de justiça, em aplicação dos arts. 607º, 6, 663º, 2, e 679º, do CPC.


Mas esta competência, em alternativa à da competência global e final da 1.ª instância, para ser assumida como tal ainda em sede de custas processuais (em sentido amplo: art. 529º, 1, CPC), é exclusiva e restrita à actividade e tramitação processual correspondente ao recurso tramitado nesta instância, não a podendo conhecer nem decidir no que concerne aos recursos de apelação e às decisões de 1.ª instância (salvo em via de recurso). Esta é a solução que – sabendo-se que não é consensual – se compatibiliza com “a autonomia das ações e dos recursos para efeitos de taxa de justiça, e com a conexão entre o decidido nessas espécies processuais e a questão da dispensa ou não do remanescente daquela taxa”, o que decorre sem mais do art. 1º, 2, do RCP («Para efeitos do presente Regulamento, considera-se como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.»), em conjugação com os arts. 6º, 1 e 2, e 12º, 2, do RCP e, em geral, do art. 527º, 1, do CPC2.


Em face desta autonomia, poderia ser aplicado o art. 6º, 7, do RCP ao recurso de revista interposto, tendo em conta o estatuído pelo art. 27º, 1, do DL 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o RCP vigente («processos iniciados a partir da entrada em vigor do presente decreto-lei, respectivos incidentes, recursos e apensos»), uma vez que a revista foi interposta em 2/2/2023 e autuada no STJ em 31/3/2023.


Mas tal autonomia implica que a competência do STJ cesse quando o pedido abranja toda a actividade processual e decisões das três instâncias envolvidas, não podendo decidir globalmente em referência às precedentes instâncias judiciais.


Na verdade, diferente posição, como sustenta SALVADOR DA COSTA, “não tem fundamento legal, porque a lei de custas em geral, incluindo a de processo cível, não prevê ou possibilita o diferimento da apreciação da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça pelo tribunal da 1.ª instância para o tribunal da Relação, ou pelo Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça. Na realidade, o Supremo Tribunal de Justiça só tem competência para apreciar e decidir a questão da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça relativamente aos recursos de revista, tal como o tribunal da Relação só a tem no atinente aos recursos de apelação, salvo em via de recurso. Em suma, o Supremo Tribunal de Justiça (…) não pode conhecer da referida dispensa no que concerne aos recursos de apelação e às sentenças dos juízes dos tribunais da 1.ª instância (…)”;


concluindo:


“O conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça do mérito do recurso de revista é insuscetível de lhe atribuir competência para decidir os pedidos de dispensa ou de redução do remanescente da taxa de justiça relativos aos recursos de apelação ou sentenças do tribunal da 1.ª instância. / Tudo Isso é logicamente conforme com a autonomia das ações e dos recursos para efeitos de taxa de justiça, e com a conexão entre o decidido nessas espécies processuais e a questão da dispensa ou não do remanescente daquela taxa.”3


6. Neste caso – que é o caso do requerido –, o pedido tem que ser absorvido na competência própria e exclusiva da 1.ª instância, em aplicação dos arts. 29º, 1 («A conta de custas é elaborada pela secretaria do tribunal que funcionou em 1.ª instância no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão final, após a comunicação pelo agente de execução da verificação de facto que determine a liquidação da responsabilidade do executado, após o encerramento da liquidação no processo de insolvência, ou quando o juiz o determine (…).») e 4 («Quando tenha dúvidas sobre a conta deve o funcionário expô-las e emitir o seu parecer, fazendo logo o processo com vista ao Ministério Público, após o que o juiz decidirá.»), 30º, 1 e 2 (1 – A conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da acção, dos incidentes, dos procedimentos e dos recursos. / 2 – Deve elaborar-se uma só conta por cada sujeito processual responsável pelas custas, multas, e outras penalidades, que abranja o processo principal e os apensos.»), em articulação com a parte final do art. 6º, 7, sempre do RCP («considerado na conta a final»).


Neste particular, acentua o mesmo SALVADOR DA COSTA:


“Resulta essencialmente das referidas normas, por um lado, em regra, que a conta de custas é elaborada pela secretaria do tribunal que funcionou em 1.ª instância, no decêndio posterior ao trânsito em julgado da decisão final, de harmonia com o julgado em última instância, e, por outro, que a conta, por cada uma das partes responsáveis pelo pagamento das custas, abrange as da ação, dos incidentes, dos procedimentos e dos recursos, bem como as multas e outras penalidades, objeto do processo principal e dos seus apensos. Não se vislumbra que o facto de o tribunal superior – o Supremo Tribunal de Justiça ou a Relação – apreciar a questão da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, quanto ao recurso de revista, ao recurso de apelação e à ação, conforme os casos, melhor se concilie lógica e juridicamente com alguma norma atinente ao ato de contagem. Com efeito, o facto de o juiz da 1.ª instância apreciar e decidir sobre a referida dispensa quanto às ações, e de a Relação assim proceder quanto aos recursos de apelação, ou de o Supremo Tribunal de Justiça assim decidir no que concerne aos recursos de revista, conforma-se lógica e juridicamente com o regime de elaboração da conta, cujo pressuposto essencial é o trânsito em julgado da decisão final da causa”; mais, conclui: outra solução “seria juridicamente irrelevante, por virtude de a lei de custas a não a prever”.4


7. Os Reclamantes acrescentam agora que o pedido se harmoniza com o regime da taxa de justiça remanescente constante do artigo 14º, 9, do RCP («Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta a final.».


Ora, neste ponto, louvamo-nos ainda na doutrina especializada de SALVADOR DA COSTA:


“Decorre daquele preceito que, para as situações em que deva ser pago o remanescente da taxa de justiça, nos termos do nº 7 do artigo 6.º do RCP, se o responsável pelo impulso processual não for condenado a final, fica dispensado do referido pagamento, e que o mesmo é imputado à parte vencida e incluído na conta final de custas. Assim, não tendo as partes beneficiado da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do n.º 7 do artigo 6.º do RCP, deve ser registado a débito, na respetiva conta de custas, conforme o disposto no artigo 30.º, n.º 3, alínea a), ambos do RCP. Mas se a parte responsável pelo impulso processual não for condenada, ou seja, se for declarada integralmente vencedora na causa, fica automaticamente dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça que a onerava, incumbindo à secretaria registá-lo na conta de custas da parte vencida, nos termos do disposto na referida alínea a) do n.º 3 do artigo 30.º do RCP. O segmento normativo “o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta final”, constante da parte final do n.º 9 do artigo 14.º do RCP, significa que a parte integralmente vencida é responsável pelo pagamento do remanescente da taxa de justiça, que era da responsabilidade da parte vencedora. Conforma-se com o princípio da justiça gratuita para o vencedor, na medida em que evita à parte integralmente vencedora, conforme o resultado da decisão final de mérito, o risco de impossibilidade de cobrança do valor pago a título de remanescente de taxa de justiça e com base no regime das custas de parte.


(…)


O artigo 14.º, n.º 9, do RCP não se refere às custas em sentido estrito, mas apenas ao remanescente da taxa de justiça, diferindo a favor das partes a exigibilidade do remanescente da taxa de justiça para o momento do trânsito em julgado da decisão final sobre o mérito da causa. Não faz sentido dizer-se que a condenação em custas de cada uma das partes em cada uma das instâncias assume sempre natureza transitória, pela simples razão de que a responsabilidade pelo pagamento do remanescente da taxa de justiça não depende de condenação.


(…)


O que pode afirmar-se quanto ao disposto no mencionado normativo é que a responsabilidade da parte pelo pagamento do remanescente da taxa de justiça é sob condição de a final não ser declarada integralmente vencedora na causa.”5


8. Não vemos, pois, razões para sufragar o pedido dos Requerentes, o que, aliás, em nada os prejudica, pois o requerido será apreciado e decidido pela 1.ª instância, sede própria para o efeito globalmente pretendido, e sede própria para a tutela do que legitimamente se requer.


Falecendo a sua impugnação, recai sobre o despacho reclamado o presente acórdão, que o confirma, reiterando o anteriormente disposto e ordenado.


III) DECISÃO


Em conformidade, julga-se improcedente a Reclamação, confirmando-se o despacho proferido em 11/4/2024.


Custas pelos Reclamantes, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 0,5 UCs.


STJ/Lisboa, 11 de Junho de 2024


Ricardo Costa (Relator)


António Barateiro Martins


Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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1. V. SALVADOR DA COSTA, As custas processuais, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 140-141.↩︎

2. Seguimos a posição de SALVADOR DA COSTA, “A apreciação pelo STJ da dispensa (ou redução) do remanescente da taxa de justiça (Acórdão do STJ de 30 de maio de 2023)”, 7/2023, págs. 4-5 e 9, ID., “Apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da dispensa ou redução do remanescente da taxa de justiça – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2023”, 10/2023, págs. 4-5, 7-8, 9, sempre in Blog do IPPC, ; sublinhado nosso.

Na jurisprudência do STJ, v. os Acs. de 31/1/2019, processo n.º 478/08, Rel. TOMÉ GOMES (aparentemente), 30/6/2020, processo n.º 2142/15, Rel. ANTÓNIO MAGALHÃES, 14/1/2021, processo n.º 6024/17, Rel. ROSA TCHING, 2/3/2021, processo n.º 1939/15, Rel. JOSÉ RAINHO (“Ao tribunal da causa é que compete decidir, ou oficiosamente ou a requerimento das partes, sobre a dispensa do pagamento do remanescente das taxas de justiça. Competirá, por isso, à 1.ª instância apreciar o requerimento aqui em questão, carecendo este Supremo de competência para o efeito.”), 18/1/2022, processo n.º 155/07, Rel. JORGE DIAS, 15/3/2022, processo n.º 7167/13, Rel. JOSÉ RAINHO, e de 19/12/2023, processo n.º 12927/94, Rel. RICARDO COSTA (com este Colectivo; cfr. ponto V. do Sumário), sempre in www.dgsi.pt. V. ainda a fundamentação, em sentido compatível, do AUJ n.º 1/2022, processo n.º 1118/16.3T8VRL-B.G1.S1-A, publicado in DR, 1.ª Série, de 3/1/2022, em referência às págs. 42 e ss.↩︎

3. “Apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da dispensa ou redução do remanescente da taxa de justiça – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2023”, loc. cit., págs. 8-9.↩︎

4. “A apreciação pelo STJ da dispensa (ou redução) do remanescente da taxa de justiça (Acórdão do STJ de 30 de maio de 2023)”, loc. cit., págs. 5-6.↩︎

5. Últ. est. e loc. cits., págs. 6-7.↩︎