Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 05/28/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | ANULADO O ACÓRDÃO | ||
Sumário : | 1. As Relações, constitucionalmente consideradas como tribunais de 2ª instância, conhecem tanto de questões de direito como de questões de facto. 2. O sistema da oralidade plena, que vigorou até ao Dec-lei 39/95, de 15 de Fevereiro, foi, por este diploma, substituído por um sistema de oralidade mitigada, que consagrou importantes garantias fundamentais judiciárias – o registo electrónico da prova, a motivação das sentenças, de facto e de direito, e o duplo grau de jurisdição destas duas matérias (de facto e de direito) – permitindo um recurso amplo sobre a matéria de facto, possibilidade que foi reforçada pela reforma processual de 95/96 e pelo Dec-lei 183/2000, de 10 de Agosto. 3. Hoje em dia, quando tenha ocorrido gravação da prova, e tenha sido impugnada, nos termos do art. 690º-A do CPC, a decisão da matéria de facto, está garantida à Relação, no julgamento da apelação, a possibilidade de alterar o decidido em 1ª instância, reapreciando as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em conta o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido. 4. Essa reapreciação, que implica que a Relação ouça as gravações dos depoimentos sobre os pontos impugnados, sem prejuízo de, oficiosamente, atender a quaisquer outros elementos de prova que hajam servido de fundamento à decisão sobre esses pontos, tem, quanto aos pontos sobre que incide, a amplitude de um novo julgamento em matéria de facto, podendo a Relação, no uso da sua liberdade de convicção probatória, aderir ou não aos fundamentos e à decisão da 1ª instância: a liberdade de julgamento a que alude o n.º 1 do art. 655º do CPC vale também na reapreciação a fazer na 2ª instância. 5. Nesse seu exercício não está, pois, a Relação limitada ou condicionada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, devendo expressar a sua própria convicção, a partir da análise dos depoimentos e demais elementos de prova aludidos pelo recorrente, (na parte respeitante aos pontos de facto impugnados), e pela ponderação do valor probatório de cada um, com explicitação dos resultados desse escrutínio e afirmação, devidamente justificada, da existência ou inexistência de erro de julgamento da matéria de facto quanto a esses impugnados pontos de facto. | ||
Decisão Texto Integral: | 1. C... – R..., L.da intentou, em 09.12.2005, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Vedras, contra AA acção com processo ordinário, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 26.806,49 acrescida de juros vencidos e vincendos desde a data da propositura da acção. Alegou, para tanto, ter prestado serviços e fornecido produtos ao réu, tudo indicado nas três facturas que juntou, de cujos montantes, de € 54.390,96, € 368,77 e € 3.389,95, respectivamente, o demandado só pagou parte da primeira, estando em débito a quantia de € 23.622,52 e estando vencidos juros, sobre esta quantia, de € 3.183,97. Contestou o réu, impugnando os factos alegados, e sustentando, em síntese e com interesse, que a autora não lhe forneceu os bens nem prestou os serviços que alega, mas sim à sociedade P... C... – C... de P... e A..., U..., L.da. Pediu, assim, que a acção fosse julgada improcedente e a autora condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização. Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou o réu a pagar à autora as quantias de € 19.863,80, de € 368,77 e de € 3.389,95, acrescidas de juros moratórios, à taxa legal, desde 07.11.2002, 26.11.2002 e 03.12.2002, respectivamente e até integral pagamento. O réu recorreu, impugnando a decisão sobre a matéria de facto e a decisão de direito (esta, no pressuposto de que seria alterado o quadro factual apurado). Não logrou, porém, qualquer êxito, pois a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida. Tal decisão assentou em ter a Relação mantido intocada a matéria de facto, desatendendo a impugnação respectiva, e ter considerado que a imutabilidade do acervo factual apurado na 1ª instância implicava que se devesse ter por prejudicado o conhecimento da decisão de direito, na medida em que esse conhecimento estava dependente da modificação fáctica pretendida pelo apelante. Continuando inconformado, o réu recorre agora para este Supremo Tribunal, pedindo revista do acórdão da Relação. Nas suas alegações, o recorrente formula conclusões, que se podem assim sintetizar: 1ª - O presente recurso versa sobre matéria de direito, por violação da lei substantiva, por erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 722º/1.b) do CPC); 2ª - O Tribunal da Relação deve reapreciar as provas indicadas pelas partes o que, no caso de gravação dos depoimentos, passa sempre pela atenta audição destes, o que não sucedeu no caso em apreço; 3ª - O Tribunal da Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar limitado pela convicção que serviu de base à decisão recorrida; 4ª - O mecanismo legal que permite a reapreciação da prova pela 2ª instância implica necessariamente que a Relação, a partir da análise crítica das provas, crie a sua própria convicção (que pode ou não ser coincidente com a formada pelo julgador da 1ª instância), sob pena de não se mostrar viável qualquer controle da decisão proferida sobre a matéria de facto, e de se converter o 2º grau de jurisdição sobre matéria de facto numa garantia meramente virtual; 5ª - O recorrente impugnou, na apelação, a decisão da 1ª instância, na parte em que considerou provados os factos dos artigos 1º a 4º da base instrutória e não provados os dos arts. 5º a 9º, por entender que os depoimentos produzidos em audiência, conjugados com os documentos disponíveis, imporiam respostas diferentes; 6ª - A Relação entendeu não se justificar a pretendida alteração, mantendo intocada a decisão de facto, mas fê-lo com total omissão do mecanismo legal que permite a reapreciação da prova, deixando bem explícito o entendimento de que não lhe competia fazer a reapreciação da prova em toda a sua amplitude; 7ª - Compete ao Tribunal da Relação apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados; mas o acórdão recorrido limitou-se a concordar com a sentença da 1ª instância, interpretando restritivamente o duplo grau de jurisdição, desvalorizando ou desconsiderando todas as testemunhas arroladas pelo recorrente; 8ª - A testemunha BB, casado com a sócia-gerente da recorrida e arguido em processo penal em que o recorrente é assistente, fez um depoimento com inúmeras contradições e hesitações, que, não obstante, foi considerado credível e isento de mácula, ao que parece por ser processualmente admissível e por estar sujeito à livre apreciação do julgador da 1ª instância; 9ª - O acórdão recorrido não aprecia criticamente nem valora todos os factos e provas disponíveis, limitando-se a concordar com a convicção do julgador da matéria de facto em 1ª instância; 10ª - Não tendo procedido à requerida reapreciação da prova gravada, o acórdão recorrido violou o disposto no art. 690º-A do CPC, pelo que deverá ser revogado, ordenando-se a baixa do processo para que a Relação reaprecie a prova produzida em relação aos pontos de facto impugnados e julgue, de novo, a apelação. Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos legais, cumpre conhecer e decidir do mérito do recurso. 2. São os seguintes os factos provados: 1) A autora dedica-se ao comércio, aluguer e reparação de peças automóveis (al. A. dos factos assentes); 2) O réu foi sócio da autora, mas cedeu a sua quota em 2003 (al. B. dos factos assentes); 3) Por escritura pública de 26.11.2002, celebrada no Cartório Notarial do Centro de Formalidades de Empresas de Lisboa, o réu declarou constituir a sociedade “P... C... – C.... de P... e A..., U..., L.da, da qual era sócio-gerente (al. C. dos factos assentes); 4) No exercício da sua actividade, a autora forneceu e prestou ao réu os produtos e os serviços descriminados nas facturas n.º 3000387, 3000389 e 2000353, respectivamente datadas de 07.11.2002, 26.11.2002 e 03.12.2002, juntas a fls. 4/8, 9 e 10, no valor de € 54.390,96, € 368,77 e € 3.389,95 (art. 1º da b.i.); 5) As facturas referidas em 1) deveriam ser pagas a pronto pagamento (art. 2º da b.i.); 6) O réu liquidou, por conta da factura n.º ...., a quantia de € 34.527,16 (art. 3º da b.i.). 3. Como flui das conclusões da alegação do recorrente, apenas uma questão vem colocada à apreciação deste Supremo Tribunal. Trata-se de saber se a Relação, ao apreciar a impugnação, deduzida pelo recorrente no recurso de apelação, da decisão sobre a matéria de facto, deu adequado cumprimento aos preceitos legais aplicáveis, se actuou em rigorosa observância dos poderes cognitivos que lhe são conferidos pelos arts. 690º-A e 712º do CPC. 3.1. Deve, desde já, referir-se que os termos em que o recorrente teoriza sobre os poderes da Relação, na matéria em causa, merecem, no essencial, a nossa concordância. É questão sobre a qual já, por mais de uma vez, esta conferência – com este relator e estes Adjuntos – teve oportunidade de reflectir (1), pelo que irá reafirmar-se o entendimento então expresso. As Relações, constitucionalmente consideradas como tribunais de 2ª instância (art. 210º/4 da CRP), conhecem tanto de questões de direito como de questões de facto. Todavia, até há pouco tempo (até ao Dec-lei 39/95, de 15 de Fevereiro), o regime processual em vigor não consentia intervenção significativa da Relação no conhecimento de questões de facto: os princípios da oralidade plena (ou pura) e da imediação logravam afirmação plena, não se operando a redução a escrito ou o registo, por qualquer outra forma, das provas produzidas na audiência de julgamento, em 1ª instância, pelo que a Relação não podia controlar o modo como o juiz singular ou o Colectivo haviam apreciado essas provas – o julgamento da matéria de facto era praticamente imodificável. Este sistema de oralidade plena – que, no fundo, reconduzia o recurso de apelação a pouco mais do que um recurso de apreciação das questões de direito, e era alvo de críticas severas de muitos processualistas, designadamente do Prof. PESSOA VAZ (2) , que via nele um instrumento castrador das garantias judiciárias fundamentais do cidadão – veio a ser substituído, com o aludido Dec-lei 39/95, pelo sistema da oralidade mitigada, preconizado pelo emérito processualista austríaco Franz Klein, que veio consagrar as mais importantes das aludidas garantias fundamentais judiciárias, até aí claramente postergadas: o registo electrónico da prova, a motivação das sentenças de direito e de facto e o duplo grau de jurisdição destas duas matérias (de facto e de direito). Ao prescrever a possibilidade de registo ou documentação da prova, este diploma veio permitir um recurso amplo sobre a matéria de facto, possibilidade que foi reforçada pela reforma de 1995/96, operada pelos Dec-lei 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro, e ainda pelo Dec-lei 183/2000, de 10 de Agosto. E assim, temos agora um regime em que «as audiências finais e os depoimentos, informações e esclarecimentos nelas prestados são gravados sempre que alguma das partes o requeira, por não prescindir da documentação da prova nelas produzida, quando o tribunal oficiosamente determinar a gravação e nos casos especialmente previstos na lei» (art. 522º-B do CPC(3).). Prevê-se ainda que o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento deva ser registado na acta da audiência de julgamento (art. 522º-C), o que – como se lê no preâmbulo do Dec-lei 182/2000, diploma que introduziu este preceito – visou possibilitar às partes o recurso da matéria de facto com base na simples referência ao assinalado na acta, devendo o tribunal de recurso proceder à audição e visualização do registo áudio e vídeo, respectivamente, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal. Por outro lado, a decisão proferida sobre a matéria de facto «declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador» (art. 653º/2), sendo que o julgador da matéria de facto «aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto» (art. 655º/1). Cumpre, aliás, salientar que o dever de motivação, expresso no citado art. 653º/2, tem consagração constitucional – o princípio, acolhido na revisão constitucional de 1982, tem hoje assento no art. 205º/1 da Constituição. E trata-se de uma garantia judiciária fundamental do cidadão num Estado de Direito democrático – garantia do princípio da “legalidade”, garantia do exercício do “segundo grau de jurisdição” (ou garantia da impugnação) em matéria de facto, garantia da independência e da imparcialidade do juiz, e garantia do exercício do direito de defesa das partes (4).. Assim assegurada a documentação da prova e a fundamentação da convicção do julgador, estão, pois, criadas as condições para o funcionamento eficaz do segundo grau de jurisdição em matéria de facto. E é assim que, hoje em dia, no julgamento da apelação, está garantida à Relação, quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tenha sido impugnada, nos termos do art. 690º-A (5) aplicação no caso em apreço. , a decisão (relativa à matéria de facto) com base neles proferida, a possibilidade de alterar o decidido em 1ª instância, reapreciando as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em conta o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, para o que procederá, nos termos sobreditos, à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o relator considerar necessária a sua transcrição, que será realizada por entidades externas, contratadas pelo tribunal (arts. 712º, n.os 1.a), 2ª parte, e 2. e 690º-A/5). Pode mesmo a Relação, para proferir a sua decisão, «oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados» (art. 712º/2, 2ª parte). E, como assinala AMÂNCIO FERREIRA, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu, pois que a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância (6). (sublinhado de nossa autoria). Ou seja: quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, a Relação vai, na sua veste de tribunal de apelação, reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, para tal atendendo aos elementos acima enunciados (7).. E a alusão aos «pontos da matéria de facto», contida no n.º 2 do art. 712º, visa tão só «acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do n.º 1 do art. 690º-A: na verdade, o alegado “erro de julgamento” normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo “facto”, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente» (8). Vale, pois, concluir – como o fez este Supremo Tribunal, v.g., no seu acórdão de 19.10.2004 (9) – que, após a entrada em vigor do Dec-lei 183/2000, a reapreciação das provas em que assentou a parte impugnada da decisão implica que a Relação ouça as gravações dos depoimentos sobre os pontos impugnados, sem prejuízo de, oficiosamente, atender a quaisquer outros elementos de prova que hajam servido de fundamento à decisão sobre esses pontos. E, assim, essa reapreciação tem, quanto aos pontos sobre que incide – relativamente aos quais o recorrente deverá fundamentar, de modo inequívoco, as razões por que discorda da decisão da 1ª instância, e apontar com precisão os elementos ou meios probatórios que, a seu ver, impõem decisão diversa – a amplitude de um novo julgamento em matéria de facto, como bem acentua AMÂNCIO FERREIRA, podendo a Relação, no uso da sua liberdade de convicção probatória, aderir ou não aos fundamentos e à decisão da 1ª instância: a liberdade de julgamento a que alude o n.º 1 do art. 655º vale também na reapreciação a fazer pela Relação. Isso mesmo se extrai igualmente do acórdão deste Supremo Tribunal, de 07.06.2005 (10), na parte que ora se transcreve: À Relação impõe-se declarar se os pontos de facto impugnados foram bem ou mal julgados e, em conformidade com esse julgamento, manter ou alterar a decisão proferida sobre os mesmos. Nessa medida, poderemos mesmo dizer que o tribunal de recurso actua como tribunal de substituição relativamente ao tribunal recorrido, regime que se revela aceitável como decorrência do concurso dos pressupostos a que alude o n.º 1 do artigo 712º, a colocar a 2ª instância de posse dos mesmos elementos probatórios de que dispunha a 1ª instância. Quer seja na 1ª instância, quer seja na Relação, a questão é sempre de valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação. Vigoram, em ambos os casos, para os julgadores desses tribunais, as mesmas regras e os mesmos princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (...) consagrado no artigo 655º, n.º 1, do CPC. Significa isto que a prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formulação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação. (...) Assim, em recurso que tenha por objecto a impugnação da matéria de facto, o que, efectivamente, interessa é averiguar se as respostas em causa se mostram conformes à aplicação dos princípios e das regras de valoração a que se fez alusão, sendo que é também à luz deles que os julgadores da Relação terão de decidir se a decisão merece a alteração proposta pelo recorrente. Este é também o entendimento de ABRANTES GERALDES, claramente revelado nesta passagem: (...) se, no âmbito de recurso de impugnação da decisão da matéria de facto devidamente instruído e fundamentado, a Relação, procedendo à reapreciação dos mesmos meios de prova que foram ponderados pelo tribunal a quo, consegue formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição(11). É que, em boa verdade, só assim se assegura um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, só assim se vai além de um mero controlo formal da motivação da decisão da 1ª instância em matéria de facto. 3.2. Aqui chegados, cabe perguntar se foi o procedimento descrito o seguido, no caso em apreço, pela Relação. A este respeito, impõe-se, desde logo, reconhecer que as considerações teóricas que, sobre os poderes da Relação em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, são avançadas no acórdão recorrido, não se mostram conformes com tudo aquilo que acima se deixou referido. O que vale dizer que tais considerações não são de sufragar, por não representarem, a nosso ver, uma correcta leitura dos textos legais que deixámos indicados, não expressando, com rigor, o modo como o legislador, sobretudo a partir do Dec-lei 183/2000, configurou e concretizou o sistema do duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Começa, na verdade, o acórdão recorrido por referir a posição – que diz ser dominante na jurisprudência (?) – que aponta no sentido de a reapreciação pela Relação “não poder subverter o princípio da livre apreciação das provas consagrado no art. 655º do CPC”. Entende, assim, abonando-se no discurso de dois outros arestos (de tribunais de 2ª instância), que só nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão da 1ª instância, nos concretos pontos questionados, pode a Relação usar dos poderes de alteração dessa decisão, porque a prova testemunhal é notoriamente mais falível que qualquer outra, sendo inquestionável que, na avaliação da respectiva credibilidade, o tribunal a quo está em posição privilegiada relativamente ao tribunal de 2ª instância; e, desse modo, se a decisão do julgador da 1ª instância, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, porque proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. E continua o acórdão sob apreciação: Nesta consonância, se estivermos perante uma situação em que se verifique uma contradição de depoimentos, mas em que se fundamente devidamente a opção por um deles, não haverá que falar na aludida flagrante desconformidade, porquanto aí, deverá prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, pois estamos no domínio da livre convicção e da liberdade de julgamento, não competindo ao tribunal ad quem sindicá-la. Mais adiante, e incisivamente, acrescenta: Reafirma-se: o tribunal de 2ª instância não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas antes averiguar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (conjugada com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Pois bem! A corrente jurisprudencial em que o acórdão recorrido enfileira foi alvo de críticas acerbas, dela chegando a dizer-se ser a revelação de um certo inconformismo, por parte dos magistrados seus seguidores, face à regra da dupla jurisdição em matéria de facto introduzida pela reforma de 1995/96 e à “especialização funcional” da Relação como “verdadeira 2ª instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1ª instância” – inconformismo que exprimiriam “abatendo mecanicamente os recursos com invocações genéricas dos princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, com a afirmação sistemática do carácter muito excepcional e restrito do seu poder de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, com a conversão do efectivo reexame das provas em que assentou a parte impugnada em mera verificação formal de que o Sr. Juiz a quo indicou os fundamentos em que baseou as suas respostas aos pontos da matéria de facto e concordância automática com tais fundamentos ...”; e acrescentou-se mesmo, ainda visando essa corrente, que ela “está a caminho de levar a cabo o genocídio de uma categoria de recursos, o recurso sobre a matéria de facto, e de exonerar os Tribunais da Relação, por acto de vontade própria, de uma função essencial que lhes é cometida por lei, a de “verdadeira 2ª instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1ª instância”, constituindo “um retrocesso das garantias de processo civil violentador da intenção legislativa de 1995” (12) Descontando algum exagero da apreciação e a injúria que vai envolvida na imputação de pré-juízos ou de intenções pré-concebidas aos magistrados que se revêem nesta posição jurisprudencial, não há dúvida que se trata de uma tese restritiva relativamente aos poderes conferidos à Relação e que não merece acolhimento, como o demonstra, com a argúcia habitual, o Desembargador ABRANTES GERALDES, no estudo de que já fizemos menção(13). São dele as seguintes considerações: Por certo que as circunstâncias que rodeiam a reapreciação dos meios de prova na 2ª instância não são totalmente idênticas às que estiveram presentes aquando da prolação da primitiva decisão. Mas tal não autoriza que, a pretexto das referidas diferenças e das correspondentes dificuldades de proceder à reponderação dos meios de prova, se parta para uma elaboração puramente teórica, deixando de actuar o princípio da livre apreciação das provas e frustrando os objectivos do legislador. A constatação das diferentes circunstâncias em que actua um e outro dos tribunais não deve servir de alibi para, com base em puras justificações lógico-formais, que não tenham subjacente sequer a audição dos depoimentos ou uma efectiva e séria reapreciação e valoração dos depoimentos e demais meios de prova, recusar pura e simplesmente a modificação da decisão. E mais adiante – reconhecendo embora que a gravação dos depoimentos por registo áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pode ser observado no tribunal da 1ª instância, designadamente o modo como são prestadas as declarações, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, e que há aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percebidos e apreendidos por quem os presencia e que não podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, e que, portanto, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância, a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo” – conclui assim: Todavia, cumpridos os ónus por parte do recorrente, de modo algum a Relação pode ser dispensada da reapreciação dos meios de prova, sob o pretexto formal da inexistência das mesmas condições que estiveram presentes na 1ª instância, sob pena de não se dar seguimento ao desígnio do legislador que, ciente da diversidade de circunstâncias, admitiu, apesar disso, a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação. 3.3. Mas ter-se-á a Relação limitado, no caso concreto, a afeiçoar a prática – isto é, a análise e decisão concreta da questão que lhe foi submetida – à teoria que desenvolveu a propósito dos poderes que, em abstracto, cabem à 2ª instância em sede de reapreciação da decisão de facto? Ou terá ido mais longe, e acabado por fazer, quanto aos pontos de facto impugnados, a reapreciação da prova nos termos que, enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição, lhe estão cometidos? Refere-se no texto do acórdão que a Relação procedeu à audição da prova gravada, apreciou os documentos juntos aos autos e verificou o teor da fundamentação apresentada pelo julgador da 1ª instância. E, como dele também se retira, foi a partir daí que a Relação concluiu não ver razões para alterar a matéria de facto no sentido pretendido pelo recorrente. Constatou a existência de “duas versões distintas e contraditórias que, por isso mesmo, levam a que a aceitação duma implique a exclusão da outra”. E, parecendo, de seguida, quedar-se pela aceitação acrítica da fundamentação da decisão da 1ª instância, baseada apenas em que “ouvindo-se toda a prova e conjugando-se a mesma com os documentos existentes nos autos, verifica-se que a posição assumida, face às provas existentes, é efectivamente bastante sustentável”, vai, todavia, um pouco mais longe, afirmando que as reservas do recorrente quanto ao testemunho de BB (que, na fundamentação da decisão da 1ª instância surge como particularmente relevante na formação da convicção do julgador, e que o recorrente sustenta, invocando razões várias, não merecer credibilidade) “não passam disso mesmo, não tendo o mesmo utilizado o mecanismo processual que permitiria desacreditar aquele (a contradita), não sendo bastante levantar a desconfiança sobre determinada pessoa baseada no facto de ser casada com a sócia-gerente da sociedade A. e de ser arguido em processo penal em que o réu terá sido participante”, pois que “(e)sses factos terão sido por certo sopesados pelo Senhor Juiz, mas não terão sido bastantes para pôr em causa o seu testemunho, tanto mais que o mesmo foi corroborado, em grande medida, por aquilo que disseram J... F..., A... E..., A... A... e mesmo, em parte, J... O..., para além da prova documental apresentada e exibida a alguma das testemunhas (...). Imediatamente a seguir, e para justificação dessa sua afirmação, o acórdão refere algumas das afirmações destas quatro testemunhas, para rematar da forma seguinte: De tudo o que se deixa dito resulta que a forma como se respondeu à matéria de facto se mostra a mais consentânea com a versão que foi dada por provada, (...). Não se registando, como vimos, qualquer grande desconformidade entre a prova produzida e a resposta dada à matéria de facto, há que concluir pela improcedência da questão suscitada. Perante o que vem de ser referido, cabe dar a resposta à interrogação que acima ficou expressa. O que está em causa, nos artigos 1º a 4º da base instrutória, por um lado, e 5º a 9º, por outro, é saber se os bens e serviços prestados pela autora o foram ao réu ou à sociedade unipessoal P... C..., L.da. A essa matéria foram inquiridas as cinco testemunhas acima nomeadas. No recurso de apelação, o réu recorrente alegou, a propósito, que o J... F... e o A... A... não tinham conhecimento directo dos factos essenciais dos autos, e que só o BB e o J... O... tinham esse conhecimento, não merecendo, porém, o depoimento do BB qualquer credibilidade – porque este é casado com a gerente e única sócia da autora, está de relações cortadas com o réu e é arguido em processo-crime por emissão de cheque sem provisão, instaurado por queixa do mesmo réu, além de que o seu depoimento enferma de contradições – e que o depoimento do J... O... era de sentido oposto ao do BB, dele resultando que deveriam ter sido dados como provados os factos dos artigos 5º a 9º e como não provados os dos artigos 1º a 4º. Neste quadro, e tendo o apelante dado cumprimento – como o reconhece o acórdão recorrido – aos requisitos formais exigidos pelo art. 690º-A, cumpria à Relação reapreciar as provas indicadas pelo recorrente e, a partir da análise crítica destas, formar a sua própria convicção, no pleno exercício do princípio da livre apreciação da prova, que também, nessa reapreciação, logra inteira aplicação, como já se deixou salientado. A Relação, nesse seu exercício, não estava limitada ou condicionada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, não devendo ficar-se – como é seu entendimento – por apurar se aquela convicção (do tribunal recorrido) tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (conjugada com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Porém, como, a nosso ver, resulta do que se deixou exposto, designadamente das transcrições que traduzem o seu pensamento, a Relação não fez uma efectiva, aturada e completa reponderação da prova, não expressando, como devia, a sua própria convicção, que teria de passar pela análise de todos os depoimentos e demais elementos de prova aludidos pelo recorrente, e pela ponderação, no caso, do valor probatório de cada um, com explicitação clara dos resultados desse escrutínio e afirmação, devidamente justificada, da existência ou inexistência de erro de julgamento da matéria de facto. Quedou-se àquem do que lhe era exigido enquanto tribunal de instância garante de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, interpretando restritivamente essa sua função, e não dando adequado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 712º. Este Supremo Tribunal vem entendendo que, não podendo sindicar o uso feito, pela Relação, dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei (nos n.os 1 e 2 do art. 712º) para os exercer. E, verificado o incumprimento, pelo tribunal de 2ª instância, desses poderes-deveres legais de actuação, deve o processo ser-lhe remetido, para suprimento dessa falta, anulando-se, para tanto, o acórdão proferido. É o que, aqui e agora, se impõe determinar. 4. Pelo exposto, na procedência do recurso, anula-se o acórdão recorrido e determina-se que os autos baixem à Relação para que aí, se possível pelos mesmos Juízes, se proceda à reapreciação da impugnada matéria de facto, nos termos acima indicados, e se profira nova decisão. Custas pelo vencido a final. Lisboa, 28 de Maio de 2009 Santos Bernardino (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva __________ (1)Tal aconteceu, v.g., nos acórdãos de 12.03.2009 e 19.03.2009, proferidos nos processos 08B3684 e 08B3745, respectivamente, e disponíveis em www.dgsi.pt. (2)Críticas alargadamente explanadas na sua obra “Direito Processual Civil – Do antigo ao novo Código”, 2ª ed., Liv. Almedina, 2002, maxime a fls. 157 e seguintes. (3) A este Código pertencem as normas citadas na exposição precedente sem indicação do diploma em que se acham inseridas. (4) PESSOA VAZ, ob. cit., págs. 236, e 247 e ss., seguindo o pensamento de Michel Taruffo, no estudo Notas sobre a Garantia Constitucional da Motivação. (5) Situamo-nos no quadro normativo anterior à reforma do Dec-lei 303/2007, de 24 de Agosto, pois as alterações introduzidas por este diploma não têm (6)Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 228. (7) Cfr. LEBRE DE FREITAS/A. RIBEIRO MENDES, Cód. de Proc. Civil anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª ed., págs. 123/124. (8) LOPES DO REGO, Comentários ao Cód. de Proc. Civil, vol. I, pág. 608. (9)Publicado na Col. Jur. (Acs. do STJ), ano XII, tomo III/2004, pág. 72. (10) Proc. n.º 3811/05, da 1ª Secção. (11) Reforma dos recursos em processo civil, na revista JULGAR - n.º 4 – 2008, pág. 75. (12) Cfr. o Relatório apresentado pelo Dr. Rui Macedo, em anexo ao Parecer 01/06, do Gabinete de Estudos da OA sobre o Anteprojecto da Revisão do Sistema de Recursos em Processo Civil, publicado no Boletim da Ordem dos Advogados n.º 41 (Mar.Abr.2006), págs. 78/79. (13) Cfr., quanto às citações e considerações que seguem, págs. 73/74. |