Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDO BAPTISTA | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA COISA ALHEIA VENDA DE BENS ALHEIOS INEFICÁCIA DO NEGÓCIO CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA BOA FÉ DOLO INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO INTERPRETAÇÃO DA VONTADE RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO MORA DO DEVEDOR PERDA DE INTERESSE DO CREDOR INCUMPRIMENTO DEFINITIVO INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA SINAL | ||
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Data do Acordão: | 05/28/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. No que respeita ao verdadeiro titular do bem, a venda de coisa alheia é ineficaz, verdadeira res inter alios; já a promessa de venda de bem alheio é válida, não estando ferida com a sanção da nulidade que a lei prevê para a venda de coisa alheia (nulidade esta, atípica, dado que não pode ser oposta pelo vendedor ao comprador de boa-fé, nem pode o comprador doloso pode opô-la ao vendedor de boa-fé, ut cit. artº 892º CC). É que o contrato promessa não produz efeitos translativos, mas apenas a obrigação (obrigação de prestação de facto) de celebrar o contrato definitivo. II. Se na caracterização de um contrato não importa decisivamente o nome que foi dado pelos contraentes – podendo a denominação dada pelas partes, quando muito, servir como elemento, entre outros, a ter em consideração para determinar o sentido das declarações de vontade dos interessados, no esforço interpretativo que deve proceder o qualificativo – , o mesmo vale para a caracterização/qualificação jurídica da terminologia utilizada pelas partes na relação contratual. III. Perante uma demora manifestamente excessiva, segundo os padrões dominantes e as exigências de razoabilidade e da boa-fé, na realização das obrigações a cargo do promitente-vendedor (os RR) – que não pode deixar de ser valorada substancialmente, agravada pela conduta anterior dos Réus ao vender a terceiro a fracção prometida vender à Autora –, claramente reveladora de uma actuação não colaborante, demonstrativa de manifesta desconsideração pela confiança e pelos interesses legítimos da contraparte, a perda de interesse da Autora na celebração do negócio revela-se legalmente admissível e, como tal, fundadora da declaração por esta efectuada no sentido de que o contrato se encontrava incumprido. IV. Nessa situação, porque o devedor toma atitudes ou comportamentos que revelem, inequivocamente, a intenção de não cumprir a prestação a que se obrigou (porque não quer ou não pode), o credor não tem de esperar pelo vencimento da obrigação (se ainda não ocorreu), não tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação do devedor, nem tem de o interpelar admonitoriamente, para ter por não cumprida a obrigação. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível I – RELATÓRIO Olifontes – Imobiliária, S.A., instaurou acção declarativa de condenação contra AA e mulher, BB, pedindo: a) Se declare a resolução do contrato-promessa celebrado entre as partes; e, consequentemente, b) Sejam os Réus condenados a pagar à Autora o dobro do sinal prestado, na quantia de € 174.600,00, acrescido dos juros de mora legais até efetivo e integral pagamento; Subsidiariamente, pedem c) Se condenem os Réus a pagar à Autora o valor do sinal em singelo, na quantia de € 87.300,00, acrescido dos juros de mora legais até efectivo e integral pagamento. Alegou, para o efeito, em suma: Que celebrou com os Réus contrato-promessa de compra e venda pelo qual estes prometeram vender-lhe e ela comprar-lhes uma fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal. Apesar de a Autora ter pago a totalidade do preço, os Réus não celebraram o contrato prometido, contrariando o que haviam assumido, vindo a Autora, entretanto, a apurar que o imóvel se encontra registado a favor de terceiro, pelo que a escritura pública de compra e venda não podia, nem poderá, jamais, vir a ser celebrada. Na sequência de interpelação dirigida pela Autora para os Réus procederem à restituição do valor pago a título de sinal, estes declinaram a sua responsabilidade. * Contestaram os Réus, defendendo-se por excepção e por impugnação. Excepcionaram que: - o Réu marido, no decurso das negociações mantidas com o legal representante da Autora antes da celebração do contrato-promessa de compra e venda, deu conhecimento à Autora que, por receio de que o irmão do Réu promovesse o arresto do imóvel, este se encontrava registado em nome de terceiro e, por isso, só poderia celebrar a escritura com a Autora logo que as referidas fracções voltassem a estar em seu nome; - a Autora incumpriu definitivamente o contrato-promessa ao celebrar, com terceiro, outro contrato-promessa de compra e venda tendo por objecto o mesmo imóvel. - O contrato-promessa celebrado não prevê prazo para a celebração da escritura definitiva, pelo que não há incumprimento contratual do mesmo pelos Réus. Deduziram reconvenção, pedindo se declare a resolução do contrato-promessa celebrado entre A. e RR., por incumprimento grave e definitivo imputável à Autora e, em consequência, se declarem perdidas a favor dos RR. as quantias por aquela entregues, entre 19.06.2009 e 06.08.2011, no valor total de € 87.300,00. * A Autora replicou. Impugnou o alegado conhecimento de que a fracção objecto da promessa de compra e venda não pertencia aos Réus, sustentado que só quando realizou o último pagamento estes a informaram que havia um “problema judicial” que carecia de resolução prévia à realização da escritura. Manteve que os Réus, durante mais de dez anos contados desde a celebração do contrato-promessa, nunca criaram as condições para que a outorga da escritura fosse feita, comportamento (omissivo) culposo que constitui incumprimento definitivo da obrigação por eles assumida, tanto mais que por sentença transitada em julgado, proferida a 1 de Novembro de 2016, no processo n.º 429/15.0... do J4 da 2ª secção Cível da Instância Central da ..., reproduzida no documento 4 da p.i., a F..., Lda obteve o reconhecimento judicial da sua qualidade de proprietária da fracção em apreço. * Admitido o pedido reconvencional, foi proferido despacho-saneador. Após a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção, com a consequente absolvição dos Réus e da reconvinda, respectivamente. Inconformada, Autora interpôs recurso de apelação, vindo a Relação de Guimarães, em acórdão, a: “Julgar a apelação procedente e em consequência alteram a sentença da seguinte forma: Declaram resolvido o contrato-promessa celebrado entre autora e réus e condenam os réus a pagarem à autora a quantia de € 87.300,00 acrescida de juros de mora à taxa legal até integral pagamento. No mais, mantém-se a sentença recorrida.”. ** Por sua vez inconformados, vêm os Réus AA e mulher, BB, interpor recurso de revista, apresentando alegações que rematam com as seguintes CONCLUSÕES A- No entender dos recorrentes, a modificação da matéria de facto efetuada pelo Tribunal da Relação de Guimarães não tem a virtualidade de alterar a douta sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância, a qual ponderou toda prova produzida, aplicando cabalmente o Direito respetivo à matéria de facto dada como provada. B- O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães limitou-se na reapreciação da matéria de facto dada como provada a alterar a data em que a recorrida tomou conhecimento que a fração autónoma prometida vender pelos recorrentes não se encontrava registada a seu favor, reportando tal conhecimento a 6 de Agosto de 2011, correspondente á data do último pagamento efetuado pela recorrida aos recorrentes, conforme resulta de documento junto com a sua petição inicial. C-Resulta de forma manifesta da prova produzida e dada como provada que nem anteriormente, nem posteriormente á celebração do contrato promessa de compra e venda foi acordado entre os recorrentes e a recorrida o momento em que se celebraria o contrato definitivo de compra e venda. D- Também resulta claramente da prova produzida nas instâncias que em nenhum momento a ora recorrida interpelou os recorrentes para celebrarem a escritura de compra e venda relativa ao contrato promessa, representando a missiva enviada pela recorrida aos recorrentes em 24.09.2021 uma mera comunicação que celebrou um novo contrato promessa sobre a fração autónoma. E-Jamais a recorrida interpelou os recorrentes intimando-os a cumprir com o prometido no contrato promessa e/ ou adverti-os que essa eventual falta os faria incorrer em incumprimento definitivo do contrato promessa, com a consequente resolução contratual. F- A recorrida desde a data da celebração do contrato promessa com os recorrentes-19.06.2009 encontra-se na posse pública e pacifica da fração autónoma prometida vender, sem que os recorrentes ou outrem alguma vez que fosse se opusessem a essa fruição levada a cabo pela recorrida, que envolveram obras de remodelação, transformando uma fração destinada a arrumos em habitação, sita no último andar, com vistas diretas de mar. G-A recorrida só em 24 de Setembro de 2021, mais de 12 anos após a celebração da promessa de compra e venda, comunicou aos recorrentes que tomou por sua livre iniciativa a decisão de celebrar um novo contrato promessa relativo á fração autónoma prometida comprar com o titular inscrito no registo predial, sem que nessa missiva tenha aventado sequer a designação de data para a celebração da escritura de compra e venda com os recorrentes. H- Os recorrentes entendem que a recorrida não devia ter celebrado novo contrato promessa quanto á fração autónoma dos autos, sem que antes, intimassem/interpelassem os recorrentes para, em prazo razoável, celebrarem a escritura de compra e venda. J - Os recorrentes entendem que não houve até ao presente incumprimento definitivo justificativo da resolução do contrato promessa, dado que a perda do interesse da recorrida teria que resultar necessariamente da mora no cumprimento, o que manifestamente a recorrida não observou. K— Acresce ainda que a titularidade da fração autónoma continua a ser decidida no âmbito do processo judicial a correr os seus termos sob o nº 710/23.4... no Tribunal da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da ...-J5,no qual os recorrentes peticionam, entre outros pedidos, que seja reconhecida á recorrida o direito de propriedade sobre a fração autónoma prometida vender, criando assim os recorrentes as condições para honrar com a recorrida o cumprimento do contrato promessa. L-Violou o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães o disposto nos art.º 801 e 808, ambos do Código Civil, dado que a mora só se converteria em incumprimento definitivo se o recorrido, em consequência da mora perder objetivamente o interesse que tinha na prestação (o que não sucedeu) ou se esta não for realizada pelos recorrentes, dentro do prazo que razoavelmente fosse fixado pela recorrente, com advertência expressa de se considerar a obrigação definitivamente incumprida, o que manifestamente a recorrida não observou em nenhum momento. Termos em que devem Vossas Excelências Juízes Conselheiros julgar totalmente procedente o presente recurso, revogando o douto Acórdão da Relação, mantendo na íntegra a douta sentença proferida na 1-ª Instância. Respondeu a Autora pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do acórdão recorrido. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. ** II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Nada obsta à apreciação do mérito da revista. Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC). ** Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir consiste em saber: • Se assiste, ou não, à Autora o direito a resolver o contrato, por incumprimento definitivo dos RR (com as legais consequências). ** III – FUNDAMENTAÇÃO III. 1. FACTOS PROVADOS É a seguinte a matéria de facto provada (fixada na Relação, após impugnação em recurso): 1. Pela Ap. 27 de 2005/11/23, foi registada a favor da F..., Lda”, a aquisição, por compra a CC, casada com DD, e EE casada com FF, da fracção autónoma descrita sob o número ..96/......05 – AI da freguesia da ..., na Conservatória do Registo Predial da mesma cidade (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 5 da p.i, fls. 21 v.º e ss, dos autos). 2. Pela Ap. 5 de 2006/03/08, foi registada a favor da “F..., Lda”, a aquisição, por compra a AA e mulher, BB, do usufruto da fracção autónoma descrita sob o número ..96/......05 – AI da freguesia da ..., na Conservatória do Registo Predial da mesma cidade (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 5 da p.i, fls. 21 v.º e ss, dos autos). 3. Entre o Réu, na qualidade de primeiro outorgante, e a Autora, na qualidade de segunda outorgante, foi celebrado o escrito datado de 19.06.2009, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, assinado pelo legal representante da Autora e pelos Réus, reproduzido no documento número 1 da p.i., junto a fls. 6 v.º e ss. dos autos, no qual o primeiro outorgante prometeu vender à segunda outorgante que, por sua vez, prometeu comprar, “…a fracção autónoma designada pela letra “AI”, três divisões para arrumos (…), sita no prédio da Avenida..., 856 e 858, Freguesia e Concelho da ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o número treze mil duzentos e setenta e três, omisso à matriz respectiva inscrito à matriz respectiva (…)”, pelo valor de € 87.300,00 (oitenta e sete mil e trezentos euros), de que seriam pagos € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros) na data da celebração do contrato-promessa e os restantes € 78.800,00 (setenta e oito mil e oitocentos euros) no acto da celebração da escritura pública de compra e venda (ponto i. da matéria assente). 4. Na data da celebração do contrato aludido no facto provado número 3, os Réus entregaram à Autora as chaves do imóvel objecto do contrato (ponto ii. da matéria assente). 5. Depois de celebrado o contrato mencionado no facto provado número 3, as partes outorgantes acordaram que a Autora viria a reforçar o valor do sinal, através do pagamento fracionado dos € 78.800,00 (setenta e oito mil e oitocentos euros) (artigo 6º da p.i.). 6. A Autora entregou aos Réus o montante de € 87.300,00 por conta do contrato aludido no facto provado número 3 (ponto iii. da matéria assente). 7. eliminado pela Relação 8. Correu termos o processo n.º 429/15.0... do J4 da 2ª Secção Cível da Instância Central da ..., proposto por CC contra EE, AA e BB e “F..., Lda”, pedindo fosse (a) declarada nula e de nenhum efeito, por simulação absoluta, a escritura pública de compra e venda celebrada a 6 de Março de 2006, a folhas 72 a 74 do livro 24 –A do Cartório Notarial de ..., com as demais consequências legais e (b) ordenado o cancelamento das ap. 27 de 2005/11/23 e 4 e 5 de 2006/03/08 bem como de qualquer outra que posteriormente possa vir a ser efectuada e que delas dependa com todas as demais consequências legais (cfr. certidão judicial junta com o requerimento de 26.11.2022 – referência ......65). 9. No processo referido no facto provado anterior, a Ré F..., Lda” contestou, impugnando a matéria alegada pela autora e deduzindo pedido reconvencional, de que se declare que é dona e legítima proprietária das fracções identificadas no artigo 1, 2 e 3 da petição inicial; e, subsidiariamente, em caso de procedência da acção, que a Autora e os Réus EE, AA e esposa BB sejam condenados solidariamente a restituir à Ré F..., Lda” o montante de € 228.500,00 euros, que receberam como pagamento do preço pela aquisição das fracções (cfr. certidão judicial junta com o requerimento de 26.11.2022 – referência ......65). 10. Admitido apenas o pedido reconvencional principal, foi proferida no processo referido no facto provado número 8, sentença datada de 1 de Novembro de 2016, transitada em julgado a 23.11.2017, na qual se absolveram os Réus dos pedidos e se declarou a Ré F..., Lda” …dona e legítima proprietária das fracções autónomas designadas pelas letras “G”, “H”, “AG” e “AI” que fazem parte do prédio urbano composto por edifício de cave, rés-do-chão e seis andares sito na Avenida ... com os nºs 856 e 858 da cidade da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da... sob o n.º 1396 e inscritas na matriz urbana respectiva sob os arts. 8386º do prédio em regime de propriedade horizontal. (cfr. certidão judicial junta com o requerimento de 26.11.2022 – referência ......65). 11. A Autora celebrou com a F..., Lda” contrato-promessa de compra e venda datado de 27 de Maio de 2021, tendo por objecto, entre outras, a fracção descrita no contrato referido em i. supra, reproduzido no documento 2 junto com o requerimento de 26.11.2022 – referência 43888165 (ponto vi. da matéria assente - artigos 17º da contestação / reconvenção e 32º da réplica). 12. Pela Ap. 180 de 2021/08/24, foi registada provisória por natureza, a favor da “Olifontes - Imobiliária, S.A.”, a aquisição, por compra a “F..., Lda”, da fracção autónoma descrita sob o número ..96/......05 – AI da freguesia da ..., na Conservatória do Registo Predial da mesma cidade (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 5 da p.i, fls. 21 v.º e ss, dos autos). 13. A Autora enviou ao Réu a carta registada com aviso de receção, datada de 24.09.2021, reproduzida no documento número 6 da p.i., fls. 23 v.º e ss. dos autos, contendo, entre outro, o seguinte teor: Assunto: Interpelação para pagamento Exmos. Senhores, No dia 19 de Junho de 2009, celebrámos um contrato-promessa de compra e venda referente à fração “AI” do prédio sito na Avenida ..., 856 e 858, Freguesia e Concelho de ..., pelo valor de € 87.300,00 (oitenta e sete mil e trezentos euros). Desse total, acordamos que € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros) seriam pagos à data de celebração do contrato-promessa e os restantes € 78.800,00 (setenta e oito mil e oitocentos euros) seriam pagos ulteriormente em diferentes prestações, findas as quais seria celebrada a escritura do contrato. Não obstante esse valor ter sido pago na íntegra, e contrariamente àquilo que havíamos acordado, a escritura nunca chegou a ser celebrada. Consideramos, por isso, que o contrato-promessa não foi cumprido por V. Exa. Acrescente-se, ainda, que após celebração do contrato-promessa viemos a ter conhecimento de que a fração “AI”, objeto do contrato, havia sido transferida, três anos antes, para o património de um terceiro, como garantia de pagamento de uma dívida. Apesar de nos ter sido assegurado por V. Exa., no momento em que tivemos conhecimento desse facto, que o proprietário, assim que fosse pago, transferiria o imóvel, novamente, para os promitentes vendedores, ou quem eles indicassem, tal não se verificou na prática. Consequentemente, acabamos a celebrar, no passado dia 27 de Maio de 2021, novo contrato-promessa de compra e venda relativo à fração “AI”, desta vez, com o seu verdadeiro proprietário. Tal significa que, a fração em causa, que habitamos desde a celebração do contrato-promessa de 19 de Junho de 2009, e na qual realizamos diversas obras, foi por nós paga em duplicado, em virtude de um erro quanto ao sujeito proprietário do imóvel. Assim, em virtude do incumprimento do contrato-promessa por parte de V. Exa., e na sequência de anteriores interpelações para pagamento, vimos, por este meio e pela última vez, exigir que nos seja devolvido, no prazo máximo de 30 dias, o montante de € 87.300,00 (oitenta e sete mil e trezentos euros), acrescido de juros à taxa legal. Findo o referido prazo sem que tenha sido estabelecido qualquer contacto para regularização dos montantes em divida, informo, desde já, que se recorrerá, de imediato, à via judicial. Sem outro assunto de momento, Com os melhores cumprimentos. (ponto v. da matéria assente). 14. O Réu enviou à Autora a carta registada, datada de 22.10.2021, reproduzida no documento número 7 da p.i., fls. 34 v.º dos autos, contendo, entre outro, o seguinte teor: Exmos. Srs., Acuso a receção da vossa missiva datada de 24 de setembro de 2021 a qual estranho o conteúdo uma vez que V. Exa., faz declarações que não correspondem à verdade e são do vosso conhecimento. Pois como é sabido o prédio em questão não estava em meu nome apenas temporariamente por situação criada com a empresa F..., Lda, atentos os laços familiares e relação de confiança que existiam. Porém e assim que o prédio voltasse à minha propriedade, conforme acordado com a empresa F..., Lda, celebrar-se-ia o negócio de compra e venda definitivo. Condição que nunca me opus. Bem sabem v. Exas que a culpa de não se celebrar o negócio é da empresa F..., Lda Sendo que todos os intervenientes bem sabem que os prédios são minha propriedade. Tendo-se aproveitado da m/ fragilidade para, sem qualquer consideração, apoderarem-se do meu património. No entanto quando me for entregue o que me pertence, cumprirei com a minha palavra como sempre fiz e faço até aos dias de hoje. Sem outro assunto de momento, Subscreve atentamente, (ponto v. da matéria assente). 15 . A Autora só teve conhecimento de que os Réus não eram proprietários da fracção prometida vender quando efectuou o último dos pagamentos acordados com os Réus e lhes comunicou a sua intenção de celebrar a escritura pública de compra e venda (artigo 19º da réplica)1. ** III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO DA LICITUDE OU ILICITUDE DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA Em causa está, como dito, saber se a resolução do contrato promessa de compra e venda levada a cabo pela Autora (promitente-compradora), em 19.6.2009, foi lícita e respectivas consequências. Temos como assente, designadamente, que: - Entre a Autora – na qualidade de promitente compradora – e os réus – na qualidade de promitentes vendedores – foi celebrado, em 19.06.2009, um contrato promessa de compra e venda, pelo qual os réus prometeram vender à Autora, que lhes prometeu comprar, “…a fracção autónoma designada pela letra “AI”, três divisões para arrumos (…), sita no prédio da Avenida ..., 856 e 858, Freguesia e Concelho da ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o número treze mil duzentos e setenta e três, omisso à matriz respectiva inscrito à matriz respectiva (…)”, pelo valor de € 87.300,00 (oitenta e sete mil e trezentos euros), de que seriam pagos € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros) na data da celebração do contrato-promessa e os restantes € 78.800,00 (setenta e oito mil e oitocentos euros) no acto da celebração da escritura pública de compra e venda. - Na data da celebração do contrato aludido no facto provado número 3, os Réus entregaram à Autora as chaves do imóvel objecto do contrato. - A Autora já entregou aos Réus o montante de € 87.300,00 por conta do contrato aludido no facto provado número 3 (ponto iii. da matéria assente). 1. Pela Ap. 27 de 2005/11/23, foi registada a favor da “F..., Lda”, a aquisição, por compra a CC, casada com DD, e EE casada com FF, da fracção autónoma descrita sob o número ..96/......05 – AI da freguesia da ..., na Conservatória do Registo Predial da mesma cidade (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 5 da p.i, fls. 21 v.º e ss, dos autos). - Pela Ap. 5 de 2006/03/08, foi registada a favor da “F..., Lda”, a aquisição do usufruto dessa fracção, por compra aos Réus. - E pela Ap. 27 de 2005/11/23, foi registada a favor da F..., Lda”, a aquisição, por compra a CC, casada com DD, e EE casada com FF, da mesma fracção. - Na acção que correu termos sob o n.º 429/15.0... do J4 da 2ª Secção Cível da Instância Central da ..., instaurada por CC contra EE, AA e BB e “F..., Lda, foi proferida sentença datada de 1 de Novembro de 2016, transitada em julgado a 23.11.2017, na qual se declarou a Ré F..., Lda” …dona e legítima proprietária das fracções autónomas designadas pelas letras “G”, “H”, “AG” e “AI” que fazem parte do prédio urbano composto por edifício de cave, rés-do-chão e seis andares sito na Avenida ... com os nºs 856 e 858 da cidade da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 1396 e inscritas na matriz urbana respectiva sob os arts. 8386º do prédio em regime de propriedade horizontal. (cfr. certidão judicial junta com o requerimento de 26.11.2022 – referência ......65). - A Autora celebrou com a F..., Lda” contrato-promessa de compra e venda datado de 27 de Maio de 2021, tendo por objecto, entre outras, a fracção descrita no contrato promessa referido supra (de 19.06.2009) - Pela Ap. 180 de 2021/08/24, foi registada provisória por natureza, a favor da “Olifontes - Imobiliária, S.A.”, a aquisição, por compra a “F..., Lda”, da mesma fracção autónoma. - A Autora só teve conhecimento de que os Réus não eram proprietários da fracção prometida vender quando efectuou o último dos pagamentos acordados com os Réus e lhes comunicou a sua intenção de celebrar a escritura pública de compra e venda. É assertivo, perante esta factualidade, defender-se a licitude da resolução levada a cabo pela Autora por via da missiva que remeteu aos Réus em 24.9.2021? DA PROMESSA DE VENDA DE COISA ALHEIA Como é referido nas instâncias, o contrato promessa celebrado entre a Autora e os Réus (em 19.6.2009) é um contrato promessa de coisa alheia. Com efeito, o Réu prometeu vender, em 19.06.2009, a fracção autónoma supra descrita que já lhe não pertencia, dado que a propriedade sobre a mesma se encontrava, aquando do contrato promessa (pelas Apresentações 27 de 2005/11/23 e 2026/03/08), registada a favor de terceiro (F..., Lda Por força do registo, esse terceiro (a F..., Lda”) gozava já, então, da presunção de propriedade do imóvel (ut artº 7º do Cód. do Registo Predial - que corresponde integralmente ao artigo 8º do Cód. de 1867 e exprime o conceito de presunção “iuris tantum“ que decorre dos arts. 349º e segs. do Cód. Civil). E “quem tem a seu favor uma presunção legal”, “escusa de provar o facto a que ela conduz, cabendo ao opositor ilidi-la mediante prova do contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir“2 – presunção que não foi ilidida. Ou seja, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Trata-se de uma presunção registral que actua relevantemente em relação ao facto inscrito e aos sujeitos e objecto da relação jurídica dele emergente. Objetar-se-á que Réus não venderam à Autora a “coisa alheia”, apenas (e só) prometeram vender coisa alheia. É verdade que se trata de realidades jurídicas diferentes e com efeitos e/ou consequências jurídicas também diferentes. A venda de coisa alheia vem tratada nos arts.º 892.º a 904.º do Código Civil. E nos termos do art. 892.º do CC “é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar (…).”. O Código Civil não contém uma definição de “venda de bens alheios”. Podemos, no entanto, considerar como venda de bem alheio o contrato pelo qual alguém aliene, como própria, uma coisa cuja titularidade pertence a um terceiro, sempre que o vendedor careça de legitimidade para efectuar a venda (cfr. arts. 892.º e 904.º CC). Sendo que a nulidade aludida naquele artº 892º tem efeito retroactivo, em face das disposições concertadas dos artigos 289.º e 291.º do Código Civil. Constitui entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência portuguesa que a nulidade prevista no artigo 892.º do Código Civil foi estabelecida a favor do comprador e do vendedor e não do dono da coisa vendida. Com efeito, o citado artigo 892.º, ao cominar com a nulidade a venda de coisas alheias, estabelece uma sanção que apenas se refere à relação entre vendedor e comprador. No que respeita ao verdadeiro titular do bem, a venda é, simplesmente…, ineficaz, verdadeira res inter alios3. Ou seja, relativamente à F..., Lda”, uma eventual venda da fracção à Autora ser-lhe-ia, simplesmente, ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos quanto a ela. Se assim é quanto à venda, muito mais estando, como está, em causa uma simples promessa de venda (pelos réus à Autora como). Esta em nada bule com a propriedade presumida da F..., Lda” – direito de propriedade esse, porém, que veio a ser reconhecido por sentença transitada lavrada no processo que correu termos na 2ª Secção Cível da Instância Central da ..., sob o nº 429/15.0..., ali se vindo a declarar a Ré F..., Lda” como “dona e legítima proprietária”, entre outras fracções, da fracção objecto do contrato promessa dos autos. Assim, portanto, tendo o objecto do contrato dos autos sido, não uma venda, mas uma simples promessa de venda de bem alheio, ao contrário do que ocorre com venda de coisa alheia (que, como visto, a lei comina com a sanção da nulidade (embora uma nulidade atípica, dado que não pode ser oposta pelo vendedor ao comprador de boa-fé, nem pode o comprador doloso pode opô-la ao vendedor de boa-fé, ut cit. artº 892º CC), a simples promessa de venda de bem alheio a que não se conferiu eficácia real (cfr. artigo 413º do Código Civil), não está ferida com aquela sanção da nulidade. Ao invés, a promessa é perfeitamente válida. Ou seja, é inaplicável ao contrato-promessa a proibição de venda de coisa alheia, isto é, as disposições que declaram nula a alienação de coisa alheia (artº 892º do Código Civil)4. É que o contrato promessa “não produz … efeitos translativos, mas apenas a obrigação (obrigação de prestação de facto) de celebrar o contrato definitivo”5. Está-se aqui no âmbito do segmento do nº 1 do artigo 410º do Código Civil que consagra as excepções ao princípio da equiparação, em particular a que se refere às normas relativas ao contrato prometido “que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”. Efectivamente, o promitente vendedor mais não faz do que assumir uma obrigação de alienar o bem ao promitente comprador. E sendo certo que se obriga a vender um bem que (ainda) lhe não pertence – como tal, havendo uma impossibilidade subjectiva aquando da outorga do contrato promessa – , não é menos verdade que não há impossibilidade objectiva relativamente ao objecto dessa promessa, pois o promitente vendedor, até à data em que se obrigou a celebrar o contrato definitivo (a venda do bem prometido) pode sempre adquirir o bem e dessa forma cumprir a promessa que assumira6. O problema surge se a promessa não for (definitivamente) cumprida, nos acordados termos. Então – sem que seja beliscada a validade dessa promessa. Então, dado que a promessa tem apenas eficácia obrigacional, fica o promitente vendedor obrigado a indemnizar o promitente comprador nos termos previstos pelo regime do contrato-promessa, nomeadamente no artigo 442º do Código Civil7. * O exposto serve para dizer que a promessa de compra e venda, apesar da presunção registral do bem a favor de terceiro (a F..., Lda), é válida. Podendo sempre os réus promitente vendedores adquirir o bem e, dessa forma, honrar o seu compromisso para com a Autora ** DO INCUMPRIMENTO DO CONTRATO-PROMESSA Pergunta-se: quem incumpriu (se é que alguém incumpriu) o contrato-promessa? Entendem os RR que foi a Autora, na medida em que após a promessa de venda à Autora (isto é, em 27 de Maio de 2021) celebrou com a F..., Lda” um contrato-promessa de compra e venda da fracção objecto do contrato promessa que, em 19.6.2009, celebrara com os RR. Daí concluírem os RR que, com essa actuação, a Autora manifestou absoluto e definitivo desinteresse na celebração com os RR do contrato prometido de 2009. Vejamos. * Como dito, a venda, pelo RR a terceiro, da fracção prometida vender à Autora não inutiliza ou torna inválida a posterior promessa de venda dos RR à Autora. Como simples promessa que é. Certo é, porém, que, perante essa venda da fracção ao terceiro - e, outrossim, o ulterior reconhecimento judicial da propriedade da F..., Lda sobre essa mesma fracção – , deparamos com uma impossibilidade subjectiva (não objectiva), dos RR, de cumprimento, para com a Autora, do contrato prometido, na medida em que só readquirindo (agora, à F..., Lda) a propriedade da fracção ficariam em condições de poder cumprir essa promessa de venda. No entanto, se é certo que caso os RR adquirissem a fracção ao terceiro proprietário (a F..., Lda) ficariam em condições de poder honrar o contrato promessa feito com a Autora, a verdade é que desde a data desse contrato promessa (Junho de 2009) e a data do envio da missiva interpelativa da Autora ao réu (24.9.2021), já decorreram doze (12) anos e três (3) meses. E durante todo esse período temporal os Réus nada fizeram para (re)adquirir a fracção e, dessa forma, poder honrar a promessa, concretizando o contrato prometido. Assim sendo, o decurso desse (longo) período temporal sem que aos réus tivessem feito o que quer que fosse para se colocar na posição de titulares do direito que prometeram transmitir às Autora (sendo que já desde 2017 que se verifica o caso julgado constituído pela decisão do referido processo n.º 429/15.0..., que declarou a F..., Lda” dona e legítima proprietária das fracções autónomas designadas pelas letras “G”, “H”, “AG” e “AI” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 1396) não pode, a nosso ver, deixar de, ao abrigo do princípio da boa fé contratual, conferir à Autora o direito a resolver o contrato, por incumprimento definitivo dos Réus. * E não se objecte com a posterior promessa de compra e venda entre a Autora e o terceiro proprietário da fracção. Ou seja, não se vislumbra como seria possível concluir-se que o contrato definitivo não foi celebrado, ou que tal venda se tenha tornado impossível, por virtude do (subsequente) contrato-promessa celebrado entre a Autora e a F..., Lda. Primeiro, nada se provou nesse sentido. Segundo, como bem observa a sentença, é necessário ter presente que o contrato-promessa não opera, ipso facto, a transmissão da propriedade do bem, da promitente-vendedora para a promitente-compradora. Para tal, sempre se mostrará necessária a celebração do contrato de compra e venda através de título formal válido (cfr. artigos 874º, 875º e 879º todos do Código Civil). Nem a atribuição de efeitos reais à promessa, como ocorre no contrato-promessa celebrado entre Autora e F..., Lda”, confere à Autora o direito de propriedade sobre o bem, significando apenas que a Autora tem o direito potestativo de aquisição em relação, não apenas à F..., Lda”, como a qualquer terceiro. Ora, o exercício deste direito potestativo está dependente da respectiva manifestação de vontade por parte da Autora e só opera a transmissão da propriedade depois de formalizado o negócio prometido. Deste modo, a celebração do (ulterior) contrato-promessa de compra e venda entre a Autora e a F..., Lda não impossibilita, juridicamente, o cumprimento do objecto do (anterior) contrato-promessa celebrado entre os Réus e a Autora. Ponto é que os Réus se coloquem na condição de proprietários do bem a vender, o que pressupõe a apresentação à F..., Lda” de uma proposta de aquisição que seja por esta aceite, o que até à presente data não ocorreu. Enquanto legítima titular do direito de propriedade do fracção “AI”, é à F..., Lda” que, em primeira instância, compete decidir se, em função do que lhe possa ser proposto, tem interesse em transmitir o bem aos Réus. E só no caso de tal interesse da F..., Lda” se verificar, pode colocar-se a questão da posição da Autora como promitente-compradora no contrato celebrado com a F..., Lda”. Só num tal cenário, que não aconteceu e não se vislumbra como possa ocorrer, a Autora teria, por força do contrato-promessa com eficácia real que celebrou em Maio de 2021, uma palavra a dizer sobre o negócio, podendo a sua conduta ser, ou não, obstativa da sua concretização. Como tal, afastada está qualquer tentativa de imputação à Autora do incumprimento definitivo do contrato. * Incumprimento definitivo esse que, como acima deixámos dito, só aos réus pode ser imputado. É certo, reitera-se, que podiam estes ainda vir a comprar o imóvel à F..., Lda. Mas não apenas o não compraram, como nada fizeram nesse sentido ao longo dos doze anos decorridos desde a promessa de compra e venda outorgada com a Autora até ao envio por esta ao réu da missiva interpelativa (em 24.9.2021). Como tal, nessa medida, razão tem o ac. recorrido quando refere que “tendo em consideração que o contrato foi celebrado em 2009 e que a sentença que declarou que a F..., Lda é dona da referida fracção é de 1 de Novembro de 2016, com trânsito em julgado a 23 de Novembro de 2017, e até à data da propositura da acção nunca os réus fizeram o que fosse para adquirir para si a referida fracção, concluímos que toda a sua atitude passiva corresponde ao incumprimento culposo e definitivo da obrigação que haviam assumido (801º do CC), pelo que a resolução do contrato deve ser reconhecida e declarada” (destaque nosso. É certo, por outro lado, que se é verdade que a carta dirigida pela Autora ao Réu em 24.9.2021 não fala/utiliza expressamente o termo resolução do contrato promessa, não pode, a nosso ver, deixar de consubstanciar uma verdadeira resolução contratual. De facto, se, como ensina Galvão Telles 8, para caracterização de um contrato não importa decisivamente o nome que foi dado pelos contraentes – o qual pode não estar de acordo com o efectivamente estipulado, sendo que a real natureza desse acordo sobrepõe‑se à falsa denominação que lhe tenha sido atribuída9, podendo a denominação dada pelas partes, quando muito, servir como elemento, entre outros, a ter em consideração para determinar o sentido das declarações de vontade dos interessados, no esforço interpretativo que deve proceder o qualificativo – , o mesmo se aplica à terminologia utilizada pelas partes, entre si, na relação contratual. Por outro lado, a interpretação das declarações negociais deve, de acordo com as teorias da impressão do declaratário e da manifestação, procurar captar o sentido que um declaratário normal colocado na posição dos contraentes possa deduzir do comportamento daqueles, salvo se eles não pudessem razoavelmente contar com ele (art. 236.º, n.º 1, do Código Civil) e desde que tenha o mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (art. 238.º, n.º 1, do CC). “A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime‑se não só na capacidade para entender o texto ou o conteúdo da declaração, mas também na diligência de recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante” 10. A subsunção normativista reclama a verificação do facto, ou seja, a interpretação do consenso negocial a que se chegou, no contexto fixado, nos efeitos previstos e previsíveis pelas partes, ao tempo da formulação. E, entre os elementos a tomar em conta, destacam‑se os posteriores ao negócio, nomeadamente “os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído” 11. Ora, não apenas se não vê que outro sentido tenha a expressão ínsita na referida missiva da Ré (“Consideramos, por isso, que o contrato-promessa não foi cumprido por V. Exª…..Assim, em virtude do incumprimento do contrato-promessa por parte de V. Exa., e na sequência de anteriores interpelações para pagamento, vimos, por este meio e pela última vez, exigir que nos seja devolvido, no prazo máximo de 30 dias, o montante de € 87.300,00 (oitenta e sete mil e trezentos euros), acrescido de juros à taxa legal.) que não uma declaração resolutiva do contrato promessa, como também se não vislumbra que qualquer declaratário normal colocado na posição da Ré pudesse fazer outra leitura de tal missiva que não fosse a pretensão, pela Autora, de extinção da relação contratual firmada com os RR no contrato promessa de 2009. A resolução opera por meio de declaração à parte contrária (cfr., art. 436.º, n.º 1, do Código Civil). É o acto de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, em plena vigência deste, e que tende a colocar as partes na situação que teriam se o contrato não se houvesse celebrado. Consiste numa destruição do negócio, mas funda‑se na verificação de um facto posterior à sua celebração e que é causa de resolução. É comum aos contratos de prestações instantâneas e aos contratos duradouros. Essa faculdade deriva da lei ou de convenção das partes (art. 432.º, n.º 1)12. Trata-se, como é sabido, de um direito potestativo, normalmente exercido por simples declaração receptícia dirigida à contraparte. Como direito potestativo que é, o direito de resolução nasce na esfera jurídica do seu titular logo que ocorram os factos previstos na norma legal ou contratual que o consagra (ut arts. 432.º e 801.º, n.º 2, do Código Civil). Ou seja, sem que tenham ocorrido os factos previstos na norma para o surgimento deste direito, não nasce ele na esfera jurídica do seu putativo titular. Tais factos, negativos ou positivos, são, pois, constitutivos do direito de resolução: assim o explica a teoria das normas, acolhida pelo nosso direito processual civil13. Sendo um direito potestativo extintivo e dependente de um fundamento, precisa de se verificar um facto que crie esse direito — melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo14. Ou seja, podendo ser legal ou convencional — art. 432.º, n.º 1, do Código Civil — , a resolução não apenas é uma declaração receptícia, como carece de ser motivada, destruindo retroactivamente os efeitos do contrato, regressando os contraentes ao status quo ante15. Ora, a comunicação resolutiva ínsita no facto provado nº 14. está conforme a determinação legal: consubstancia um acto de um dos contraentes (a aqui Autora) dirigido à parte contrária (o aqui Réu), visando a dissolução do vínculo contratual, em plena vigência deste, ali se indicando o respectivo fundamento (a motivação). Portanto, com tal missiva, pretendeu a Autora pôr termo ao contrato promessa, independentemente da vontade dos réus. ** Objecta, o acórdão recorrido que “durante todos estes anos a Autora não interpelou … os réus para a realização da escritura”, para além de que foram celebrar um segundo contrato promessa, agora com a F..., Lda, em Maio de 2021. No que respeita a este segundo contrato promessa, já acima se concluiu que, dadas as apontadas circunstâncias, tal promessa de compra e venda não é de molde a que se possa concluir pela imputação à Autora do incumprimento definitivo do contrato promessa de 2009. Já no que tange à interpelação, pode, é certo, questionar-se se a missiva da Autora aos Réus em 24.9.2021 consubstancia uma verdadeira interpelação admonitória. Na verdade, “A interpelação admonitória é uma declaração receptícia que contém três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se não ocorrer o adimplemento dentro desse prazo” 16. Não cremos, porém, também neste segmento, que assista razão à Relação. É certo que no início dessa missiva se refere como seu “Assunto” uma “Interpelação para pagamento”. Como também é verdade que na mesma carta a Autora concede novo prazo ao réu (de 30 dias), sim, “para pagamento” dos €87.300,00 e juros de mora, advertindo-o que decorrido esse prazo se “recorrerá, de imediato, à via judicial”. Ou seja: não se diz, é verdade, expressamente, na carta que a mesma constitui uma interpelação para cumprimento do contrato promessa (ou seja, para a realização da escritura definitiva) em x prazo sob pena de se considerar o mesmo resolvido por incumprimento definitivo da Ré. Se bem que com algumas dúvidas, dada o teor de tal missiva, cremos poder considerar essa carta como uma interpelação admonitória. Com efeito, veja-se que na mesma é expressamente referido que é enviada “na sequência de anteriores interpelações” infrutíferas à Ré. Dando-se ali novo prazo de 30 dias para cumprimento – prazo que nem era necessário face à ausência de qualquer resultado dessas “anteriores interpelações” – , decorrido o qual se considera, definitivamente, “que o contrato não foi cumprido” pela Ré. E note-se, ainda, que o pagamento de que a Autora fala e exige dos Réus – “findo o referido prazo” (que aos mesmos ali é concedido) –, corresponde, exactamente, ao valor do sinal prestado17. * Sem embargo, porém, sempre se dirá que mesmo que se considere que a Autora não fez uso de uma (verdadeira) interpelação admonitória aos Réus (mantendo-se, apenas, em mora – e, como é sabido, apenas o incumprimento definitivo do contrato constitui pressuposto do direito à obtenção da resolução do contrato-promessa, já não a simples mora (ut art. 804.º, n.º 1 CC). A simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor. E como a mora não dá origem à resolução do contrato18, o devedor continua vinculado à prestação devida, apesar da mora), face ao que acima ficou dito – a permitir concluir pelo incumprimento definitivo dos Réus – , a interpelação admonitória da Autora sempre se tornara desnecessária (como tal, se discordando da Relação ao concluir que “tanto do lado dos promitentes vendedores, como também do lado da promitente compradora se verifica um incumprimento definitivo do contrato-promessa”, com a restituição das partes ao status quo ante, sem que funcionem as regras do incumprimento ligadas ao mecanismo do sinal que tenha sido passado). Houve, de facto, a nosso ver, incumprimento definitivo, mas apenas dos RR. A dispensar qualquer interpelação admonitória. Com efeito, a conduta dos réus – deixando decorrer mais de 12 anos sem “mexer uma palha” no sentido de procurar readquirir a fracção para, dessa forma, cumprir o contrato prometido com a Autora – não pode deixar de se ter como demonstrativa de um claro desinteresse dos mesmos na celebração do contrato prometido, de um comportamento claramente concludente no sentido do incumprimento definitivo do contrato. O que tudo justifica a resolução pela Autora – percute-se, mesmo sem necessidade de qualquer interpelação admonitória. Assim, portanto, entendemos que não apenas nos deparamos com uma actuação da Ré causadora da (sua) impossibilidade (subjectiva), até aos dias de hoje, da celebração do contrato definitivo (a fracção não lhe pertence, mas sim à F..., Lda), como nos encontramos perante uma demora claramente excessiva, segundo critérios de normalidade social, emergentes do princípio da boa-fé, na realização das obrigações a cargo do promitente-vendedor (os RR), que não pode deixar de ser valorada substancialmente. E perante esta demora manifestamente excessiva no cumprimento do contrato, segundo os padrões dominantes e as exigências de razoabilidade e da boa-fé – claramente reveladora de uma actuação não colaborante, demonstrativa de manifesta desconsideração pela confiança e pelos interesses legítimos da contraparte – , conclui-se que a perda de interesse da Autora na celebração do negócio com os RR (que nada tem a ver com a sua relação com a F..., Lda, emergente do posterior contrato promessa que com esta veio a celebrar) se revela legalmente admissível e, como tal, fundadora da declaração por esta efectuada no sentido de que o contrato se encontrava incumprido, com direito à restituição pelos Réus do valor peticionado. Existiu, a nosso ver, in casu, uma verdadeira quebra da confiança na capacidade e vontade dos Réus para concluir o negócio, tornando-se muito difícil à Autora manter interesse na celebração do contrato, mostrando-se, assim, legítimo o acto de resolução do contrato promessa, operado através de declaração de 24.9.2021, como consequência da substancial e reiterada inércia dos réus. A conduta dos Réus traduz, afinal, uma recusa absoluta, inequívoca e clara do cumprimento a que se comprometeram. Ainda que assim não se entendesse, a verdade é que a violação dos deveres de diligência e boa-fé que sobre os RR impendiam e a lesão irremediável da confiança contratual da contraparte que despoletaram, sempre permitiam que se considerasse definitivamente incumprido o contrato-promessa, por perda objectiva do interesse na prestação – radicando (nessa hipótese), deste modo, na violação grave e culposa dos princípios da boa fé e da confiança a consequente existência de justa causa para a resolução do negócio19. * É certo que não foi fixado prazo essencial para a outorga da escritura pública, ou seja, um prazo cujo incumprimento implicava automaticamente o incumprimento definitivo do contrato. Mas isso não significa que as partes – em particular a Autora – tivessem aceitado que a realização da escritura fosse remetida para as calendas. Por isso – porque decorridos cerca de 12 anos e o contrato definitivo não se realizou – , a Autora remeteu aos Réus a carta de 21.9.2021 que, como dito, consubstancia (se bem, aceita-se, com alguma falta de clareza) uma declaração resolutiva do contrato. Como referimos, a resolução pressupõe o incumprimento definitivo de uma das partes contratantes, não sendo bastante a simples mora20. O incumprimento definitivo pode resultar de uma das seguintes situações: • Verificada a mora do devedor, o credor, tendo interesse legítimo em pôr termo ao vínculo contratual (ut n.º 1 do art.º 808.º do CC), fixar ao devedor um prazo para este satisfazer a prestação em falta, sob pena de considerar definitivamente não cumprida a obrigação. É a chamada interpelação ou intimação admonitória21; • Por via da mora do devedor e por força das circunstâncias, objectivamente consideradas, o credor perdeu interesse na satisfação da prestação pela contraparte (ut n.ºs 1 e 2 do art.º 808.º do CC)22; • No próprio contrato, as partes estabeleceram um termo certo “essencial” – estabeleceram que o contrato deveria ser cumprido num determinado prazo, sob pena de, não o sendo, o contrato ter-se por definitivamente não cumprido, porque violada a essencialidade do termo; • Há uma impossibilidade de cumprimento da prestação, seja ela objectiva - por facto não imputável ao credor (art.º 790.º, n.º 1 do Código Civil) – , ou subjectiva – por facto relativo à pessoa do devedor (art.º 791.º do Código Civil); • Recusa peremptória do devedor em cumprir o contrato ou declaração sua de que não o pode cumprir. Trata-se daquelas situações em que o inadimplemento do contrato não afasta a possibilidade do seu cumprimento, por não se verificar qualquer uma das situações acima referidas, mas em que o devedor adopta um comportamento do qual se depreende claramente que não o quer cumprir ou que entende que não o pode fazer23. Ora, os factos apurados permitem validar a resolução: i) seja porque a Autora/credora, por via da mora dos Réus e das circunstâncias supra descritas, perdeu o interesse na satisfação da prestação (ut n.ºs 1 e 2 do art.º 808.º do CC); ii) seja por impossibilidade subjectiva (por facto relativo à pessoa dos Réus - art.º 791.º do Código Civil) de cumprimento da prestação); iii) seja, até – cremos poder dizê-lo – , por recusa dos réus/”devedor” em cumprir o contrato, ou (pelo menos) por comportamento seu (emergente de factos concludentes) revelador de que não o querem cumprir, atento o decurso desse longo período temporal sem nada terem feito para readquirir a fracção . O que (em conclusão) tudo justifica a licitude da resolução operada pela Autora, por incumprimento definitivo dos Réus. Sumariou-se, a propósito, no Acórdão do STJ de 06.10.2011 (relator: Lopes do Rego)24: “2. A omissão de estipulação de um termo certo para a celebração do contrato prometido não significa que fique no total arbítrio do promitente vendedor a realização das condições de que depende a celebração de tal negócio (…), por decorrer do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos que o devedor está obrigado a usar o grau de eficácia e diligência normalmente exigíveis, providenciando para que se não verifiquem dilações ou hiatos temporais no processo de construção que, segundo os padrões ou critérios sociais correntes, se possam configurar como absolutamente excessivos e injustificados. 3. É susceptível de determinar a perda objectiva do interesse na prestação a lesão grave e justificada da confiança do promitente-comprador na capacidade e vontade séria da contraparte na realização das prestações a seu cargo, resultante de demora claramente excessiva, segundo os padrões dominantes e as exigências de razoabilidade e da boa fé, (…) , agravada pela assunção pelo promitente vendedor de comportamentos evasivos, contrários às exigências da boa fé (…), reveladores de uma actuação não colaborante, demonstrativa de manifesta desconsideração pela confiança e pelos interesses legítimos da contraparte” – destaques nossos. Cabia aos Réus, obviamente, usar do grau adequado de diligência na remoção dos previsíveis obstáculos que pudessem surgir para a realização da escritura de compra e venda da fracção, providenciando para que se não verifiquem dilações ou hiatos temporais em todo este processo que, segundo os padrões ou critérios sociais correntes, se possam configurar como absolutamente excessivos e injustificados. Mas não foi isso que fizeram, antes deixaram passar os anos – e foram doze (12) – sem fazer o que quer que fosse, de forma a readquirir a propriedade da fracção e dessa forma poder honrar o compromisso que assumiram para com a Autora no contrato promessa firmado em 2009. Apesar das anteriores interpelações da Autora aos Réus, estes ignoraram-nas, nada fazendo para que o contrato prometido pudesse ser concretizado. Como tal, não pode deixar de se entender que se operou a transformação da mora da Autora em incumprimento definitivo, nos termos do ínsitos no nº 1 do art.º 808º do CCivil. Para além da verificação da já apontada situação de impossibilidade (subjectiva) de cumprimento da prestação exclusivamente imputável aos Réus (“devedor”), consubstanciadora (também) dum incumprimento definitivo do contrato, com perda do interesse da Autora na sua realização. ** Ainda sobre a interpelação: Como é sabido, não sendo caso de perda do interesse (apreciada objectivamente) – situação que, como vimos (também) ocorre no caso sub judice – , de impossibilidade de conclusão do negócio – situação que, como vimos, igualmente se verifica no presente caso (impossibilidade subjectiva) – , de um atraso do outro promitente, ou um provisório incumprimento, ou recusa de cumprimento da promessa, o promitente não faltoso pode optar por fixar um prazo razoável dentro do qual o devedor poderá ainda cumprir25, sob cominação de a mora se converter em incumprimento definitivo com a consequente resolução do contrato (é a designada interpelação admonitória26). Se a obrigação não for realizada dentro deste prazo, considera‑se para todos os efeitos não cumprida. Numa destas hipóteses, a simples mora converte‑se em incumprimento definitivo, dando ao promitente não faltoso o direito de resolução do contrato. Ora, como acima deixámos dito, considera-se, não apenas, que tal interpelação teve lugar, como, até, mesmo que assim se não entendesse, que a mesma seria desnecessária. Os Réus não ligaram às interpelações da Autora, como nada fizeram para resolver o problema da propriedade da fracção – que haviam cedido à F..., Lda. Assim incorrendo em incumprimento definitivo do contrato, dessa forma se prescindindo de interpelação admonitória – sendo que no que tange à recusa de cumprimento (in casu, dos RR), temos como certo que na mesma se inclui não só a declaração de não querer cumprir, como, em geral, todo o comportamento do devedor susceptível de indiciar que não quer ou não pode cumprir, podendo a vontade de não cumprir resultar de uma declaração tácita, dedutível de factos concludentes (ut art. 217º do CC). Concludência essa que os 12 anos de inação dos RR bem ilustra. No sentido exposto, pode ver-se, ainda, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.201227-28, em cujo sumário se escreveu: I – (…). II - Quando o devedor toma atitudes ou comportamentos que revelem, inequivocamente, a intenção de não cumprir a prestação a que se obrigou, porque não quer ou não pode, o credor não tem de esperar pelo vencimento da obrigação (se ainda não ocorreu), não tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação do devedor, nem o tem de interpelar admonitoriamente, para ter por não cumprida a obrigação. ** Uma nota final A sanção para o incumprimento do contrato promessa imputável ao promitente vendedor é a restituição em dobro ao promitente comprador do sinal por este prestado (nº2 do artº 442º do Código Civil). Acontece, porém, que, sendo certo que a Autora peticionou isso mesmo – a declaração de resolução do contrato com a condenação dos réus a restituir-lhe o dobro do sinal prestado e juros moratórios – , o certo é, também, que a Relação condenou os RR apenas na restituição do sinal em singelo e juros de mora, por considerar que a não celebração do contrato prometido foi imputável a ambas as partes e “em igual medida”, dessa forma enveredando pela restituição das partes ao status quo ante (ut artsº 433º e 434º, nº2 do CC), já que entendeu que neste caso não funcionam as regras do incumprimento ligadas ao mecanismo do sinal que tenha sido prestado. Ora, sem embargo de não concordarmos com a Relação no que tange à imputação a ambas as partes da não celebração do contrato prometido – pois consideramos que o seu incumprimento (definitivo) apenas aos Réus é imputável – , o certo é que apenas os réus recorreram, pedindo fosse “mantida na íntegra a douta sentença proferida na 1ª Instância”, sentença essa que julgou “improcedente o pedido formulado pela Autora” e que a Relação revogou. Assim, não tendo a Autora interposto recurso – mesmo que subordinado – a discordar da condenação operada pela Relação (pedindo a condenação dos RR a devolver-lhe o dobro do sinal prestado), antes concordando com a Relação no que tange à dimensão da condenação dos RR (no montante equivalente ao sinal prestado e juros de mora), não pode, agora, em revista, condenar-se em montante superior ao decidido pela Relação. Consequentemente, a decisão condenatória da Relação – de considerar “resolvido o contrato promessa celebrado entre autora e réus” e condenação destes a pagar àquela “a quantia de €87.300,00, a crescida de juros de mora à taxa legal” – não poderá deixar de ser confirmada, embora com diferente fundamentação (no que tange à imputação do incumprimento do contrato promessa). ** IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se (embora com fundamentação não coincidente) o Acórdão recorrido. Custas pelos Réus/recorrentes. Lisboa, em 28 de Maio de 2004. Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator) Isabel Salgado (Juíza Conselheira 1º adjunto) Maria da Graça Trigo (Juíza Conselheira 2º Adjunto) _____
1. Não se provou que: 1. Os respectivos outorgantes acordaram, depois de celebrado o contrato mencionado no facto provado número 3, que assim que a totalidade do preço fosse paga, ficariam obrigados a celebrar a escritura pública de compra e venda (artigo 7º da p.i.). 2. No decurso das negociações mantidas entre o Réu marido e o legal representante da Autora, realizadas antes da celebração do contrato aludido no facto provado número 3, aquele deu a este conhecimento que as suas fracções do prédio sito na Av.ª ... n.º 857-858, na ..., por receio de arresto de bens a promover contra os Réus por irmão do Réu, deixaram de estar em seu nome na Conservatória do Registo Predial da ... desde 2005, tendo simuladamente declarado doá-lo às suas duas únicas filhas, CC e EE e, meses após, simuladamente declarado vender o usufruto e a raiz das mesmas à F..., Ldaª (artigo 2º da contestação). 3. No decurso das negociações mantidas entre o Réu marido e o legal representante da Autora, realizadas antes da celebração do contrato aludido no facto provado número 3, aquele deu a este conhecimento que só poderia celebrar a escritura com a Autora logo que as referidas fracções voltassem a estar em seu nome (artigo 2º da contestação). - Desde a celebração do contrato aludido no facto provado número 3 que a Autora sabia que a fracção objecto do mesmo contrato não estava registada em nome dos Réus (artigo 18º da contestação). 2. Ver o artº 344º do CC. Anda o Ac. S.T.J., de 18/01/79, in Proc. nº 67459. 3. Cfr. neste sentido e entre muitos outros, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., revista, Coimbra, 1997, pp. 184 e 185, Rev. de Leg. e de Jur. ano 116.º, p. 16, e ano 122.º, pp. 243 e ss., Manuel Carneiro da Frada, Perturbações típicas do contrato de compra e venda, in Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 3.º vol. (Contratos em Especial), Lisboa, 1990, p. 48, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. IV, Lisboa, 1995, p. 8 e, com citação de abundante jurisprudência. 4. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p. 328; e, entre muitos, Ac. STJ de 2/6/1977, in RLJ, ano 111º, pp. 88 ss., com anotação de VAZ SERRA. 5. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 378. 6. Cfr., designadamente, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, in Direito das Obrigações, 7ª edição, págs. 124 e 125 e VAZ SERRA, in Contrato-Promessa, BMJ n.º 76, págs. 62 e ss..↩︎ 7. Estando-lhe, por isso, como se diz no ac. recorrido, vedado exercer o direito de execução específica – quer por o proprietário do bem prometido vender não ser parte no contrato e nele co-obrigado, quer porque uma tal execução específica, accionada contra o promitente vendedor, se traduziria numa venda de bem alheio, proibida pelo artigo 892º do Código Civil Neste sentido, v.g,., ANA PRATA: “a execução específica de uma promessa de venda de bem alheio é juridicamente impossível, como, aliás, o é o seu cumprimento voluntário, pelo que nunca se forçaria tribunal algum a emitir uma sentença insusceptível de produzir efeitos” – in O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2001, p. 446). 8. In Manual dos Contratos em Geral, 4.ª Edição, p. 255. 9. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/12/99, CJ, Ano XXIV, Tomo V, p. 129. 10. Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 223. 11. Rui Alarcão, BMJ, n.º 84, p. 334. 12. Cfr. Mário J. Almeida Costa, in Direito das obrigações, 6.º ed., Almedina, p. 259. 13. Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. 111, 1982, p. 354; cfr., ainda, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Março de 2004, publicado em http://www.dgsi.pt, no processo 1741/2004‑6. 14. Cfr. J. Baptista Machado In Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, vol. I, pp. 130 e 131. 15. Ver: Das Obrigações em Geral, vol. 2˚, pp. 242 e ss., 3.ª ed., Antunes Varela; Das Doações, pp. 108 e ss. de Manuel Baptista Lopes; Galvão Telles, Dos Contratos em Geral, edição actualizada. 16. "Estudos de Direito Civil e Processo Civil", de Calvão da Silva, p. 159. 17. Se não pediu o sobro do sinal, sibi imputet (com reflexos, como abaixo se verá, na decisão final). 18. Cfr. Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, p. 115, Serra in B.M.J., 76, 56 e 57, e R.L.J. 110.ª, 327, e Almeida Costa in R.L.J. 117.º, 21 e 57. 19. Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06/10/2011, com o n.º de processo 2434/08.3TBSTS.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.. 20. Para além do já supra citado, pode ver-se, neste sentido, ainda, v.g.,: na doutrina, ANA PRATA, “Contrato-promessa e o seu regime civil”, 2001, p. 780 e seguintes, CALVÃO DA SILVA, “Sinal e contrato-promessa”, p. 85 e seguintes) e MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, p. 240; na jurisprudência, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2011, de 20-05-2010, de 22-03-2011, de 20-12-2006 e de 27-10-2009, todos referenciados no acórdão do STJ de 10-01-2012 (disponível em www.dgsi.pt).↩︎ 21. Com a qual, se concede “ao devedor uma derradeira possibilidade de manter o contrato (e de não ter, além do mais, que restituir a contraprestação que eventualmente tenha já recebido)”, mediante a fixação de “uma dilação razoável, em vista dessa finalidade”, no que se afirma “um ónus imposto ao credor que pretenda converter a mora em não cumprimento definitivo” – ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Coimbra, 1992, p. 123 e 124.↩︎ 22. Não basta, como diz ANTUNES VARELA, “uma perda subjetiva de interesse na prestação”. Do n.º 2 do art.º 808.º do CC resulta que “essa perda de interesse transpareça numa apreciação objectiva da situação” – in Das Obrigações em Geral, Vol. II, Coimbra, 1992, p. 122. Ou seja, “o credor não deve rejeitar a prestação a seu bel-prazer, mas apenas com fundamento em interesses ou motivos dignos de tutela”, BAPTISTA MACHADO, in Obra Dispersa, I, p. 151, apud Acórdão do STJ de 20-05-2015, disponível in www.dgsi.pt. 23. Aqui, o credor não tem de esperar pelo vencimento da obrigação (se ainda não ocorreu), não tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação do devedor, nem o tem de interpelar admonitoriamente, para ter por não cumprida a obrigação. O comportamento do devedor basta para que se considere o contrato definitivamente não cumprido, estando então aberta a porta para que, além do mais, o credor possa pôr termo ao contrato, também ele, por resolução. 24. Proc. 2434/08.3TBSTS.P1.S1. 26. Para transformar a mora em incumprimento pode ser, com efeito, necessária a fixação de um prazo suplementar cominatório (cf. Prof. GALVÃO TELES, in “O Direito”, 120 — 587) sendo que essa interpelação admonitória é, na expressão do Prof. ANTUNES (R.L.J 128.º, 138) “uma ponte obrigatória de passagem para o não cumprimento (definitivo) da obrigação.”. E esse prazo suplementar “tem de ser uma dilação razoável” (Prof. A. VARELA, in “Das obrigações em geral” II, 119). Só se decorrido o novo prazo para o devedor não cumprir, é que o credor pode resolver o contrato (Ac. do STJ de 11/12/03 — 03A3363, e de 7/2/06 — 05A 3670). 27. Proc. 25/2009, publicado em www.datajuris.pt (Martins de Sousa). 28. Referências: • Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág(s) 297 ss, 316 ss • Galvão Telles, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, pág(s) 301 • Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pág(s) 128 ss • Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, ano 1994, vol. 2, pág(s) 457 • Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos - Estudos, pág(s) 302 • Menezes Cordeiro, Estudos de Direito Civil, I, pág(s) 85 • Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, pág(s) 642, 1513 • Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in Estudos de Homenagem ao Prof. J.J. Teixeira Ribeiro, Jurídica, II, pág(s) 348 • Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, pág(s) 379, 380 |