Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
511/20.1T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
DESPEDIMENTO COLETIVO
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL
Sumário : I. A relevância jurídica prevista no art. 672.º, nº 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros.
II. Para efeitos do disposto no art. 672º, nº 1, c), do CPC, há contradição entre acórdãos que – no domínio da mesma legislação e reportando-se a situações de facto que no essencial sejam idênticas – dão respostas diametralmente opostas quanto à mesma questão fundamental de direito.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 511/20.1T8FAR.E1.S2 (revista excecional)

MBM/JES/JG

Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.

1. AA e outros, patrocinados pelo Ministério Público, intentaram ação especial de impugnação de despedimento coletivo contra Crewlink Ireland, Ltd., e R...Company (Ryanair Limited), sendo que foi admitida a intervenção de outros trabalhadores abrangidos pelo despedimento.

2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1ª Instância, tendo sido decidido, na parte que ora releva: i) declarar a ilicitude do despedimento dos AA. BB, CC e DD, efetuado pela R. Crewlink Ireland. Ltd; ii) condenar esta R. a pagar-lhes as correspondentes indemnizações.

3. Interposto recurso de apelação pela mesma R., o Tribunal da Relação de Évora (TRE) confirmou o assim decidido.

4. A Ré Crewlink Ireland, Ltd, veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a), b) e c), do CPC1.

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.

7. Está em causa determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido no tocante às seguintes questões:

a. Se, inexistindo comissão de trabalhadores, comissão intersindical ou comissões sindicais da empresa representativas dos trabalhadores, na comunicação da intenção de proceder a um despedimento coletivo a cada um dos trabalhadores que possam ser abrangidos a entidade empregadora tem de fazer constar todos os elementos mencionados no n.º 2 do art. 360.º, do Código do Trabalho (CT).

b. Se a falta de envio aos trabalhadores abrangidos pelo despedimento, com a comunicação da intenção de proceder a um despedimento coletivo, do quadro de pessoal, discriminado por sectores organizacionais da empresa, implica a ilicitude do despedimento, nos termos do art. 383.º, alíneas a) e c), do mesmo diploma.

c. Se o envio do mapa de pessoal à Comissão ad hoc deveria ter incluído os trabalhadores das bases estrangeiras da empresa e, em caso afirmativo, se esta omissão implica a ilicitude do despedimento.

d. Se a interpretação que o Tribunal da Relação efetuou do artigo 360.º, n.º 3, do CT, é inconstitucional, por violação do art. 61.º, da Constituição da República.

Decidindo.


II.

8. Com relevância para a decisão, há a considerar os seguintes factos:

“(…)

AA) No dia 4 de outubro de 2019, a R. Crewlink enviou aos AA. as comunicações da intenção de proceder ao despedimento coletivo, com as seguintes indicações: - Descrição dos motivos invocados para o despedimento coletivo; - Critérios para seleção dos trabalhadores a despedir; - Número de trabalhadores a despedir e das categorias profissionais abrangidas; - Período de tempo no decurso do qual se pretende efetuar o despedimento; - Método de cálculo de qualquer eventual compensação genérica a conceder aos trabalhadores a despedir, para além da indemnização referida no artigo 366.º do Código do Trabalho;

BB) Em tal comunicação consta da Descrição dos motivos invocados para o despedimento coletivo o seguinte: “O motivos para o despedimento colectivo são os que se encontram descritos no Anexo I. Conforme aí se expõe, o presente despedimento colectivo assenta em motivos estruturais, concretizados na reestruturação da organização produtiva, nomeadamente o encerramento total das operações desta Empresa na base de Faro – Portugal”;

CC) No Anexo I consta da descrição mais detalhada dos motivos o seguinte: “(…) A Crewlink é uma agência de trabalho temporário com presença em diversos mercados internacionais. A Crewlink é parte em contrato de prestação de serviços de cedência de trabalhadores temporários à R..., Ltd. (…) Assim, em Portugal, a Crewlink presta o serviço de disponibilização de trabalho temporário sob um contrato de prestação de serviços que permite à R... preencher postos de trabalho disponíveis, nas condições legalmente admissíveis para este tipo contratual, sendo, por sua vez, esta a única cliente do grupo Crewlink no mercado Português. Neste âmbito, a empresa presta serviços de cedência de trabalhadores temporários à R... nas seguintes bases aéreas: Lisboa – Aeroporto Humberto Delgado; Porto – Aeroporto Francisco Sá Carneiro; Faro – aeroporto Internacional de Faro; e Ponta Delgada – Aeroporto de Ponta Delgada João Paulo II. Ocorre que a R... informou que: - tem vindo a sofrer uma redução acentuada de resultados, tendo emitido já dois profit warnings, devido a redução do preço dos bilhetes e ao atraso na entrega dos aviões Boeing Max que resultou numa escassez de aeronaves disponíveis para a R... e que a leva a reduzir a sua presença em ou a encerrar diversas bases durante o inverno; e em acréscimo, a R... – única cliente da empresa, tem registado grandes aumentos de custos devido ao aumento do preço dos combustíveis e custos com pessoal, que se somam à incerteza criada pelo Brexit. Em resultado desta motivação, a Cliente comunicou à Crewlink a cessação do contrato de prestação de serviços com a Crewlink relativo à cedência de trabalhadores na sua base de Faro - Portugal. A perda da prestação de serviços para a cedência de trabalhadores com o seu único cliente em Faro e, na verdade, em Portugal, a empresa não tem a possibilidade de manter qualquer dos contratos de trabalho neste local, não tendo cientes aos quais alocar os seus trabalhadores da base de Faro. (…) Em face do exposto no capítulo anterior, a Crewlink deixará de ter qualquer operação destinada a ceder trabalhadores em Faro, sendo que não tem quaisquer vagas disponíveis nas demais bases em Portugal, que se encontram também a reduzir os postos de trabalho. Nenhum dos contratos de trabalho temporário que a empresa tem em vigor para o exercício de trabalho temporário em faro se manterá em vigor após a conclusão do processo de reestruturação que motiva este procedimento de despedimento colectivo. Segundo as informações prestadas pelo cliente R..., as necessidades de execução do trabalho temporário contratado cessarão cumulativamente, prevendo-se a cessação de toda a prestação de serviço de cedência de trabalhadores temporários, entre 15 de novembro de 2019 e 08 de janeiro de 2020. Em função do exposto: os contratos de trabalho temporário a termo existentes na base de Faro, que caducam até 08 de janeiro de 2020, não serão renovados. Cessarão desta forma 15 contratos de trabalho; os restantes 80 contratos de trabalho temporário existentes alocados à prestação de trabalho a partir da base de Faro, são abrangidos pelo presente despedimento colectivo e cessarão expectavelmente em 08 de janeiro de 2020. (…)”;

DD) Na mesma data, 4 de outubro de 2019, a R. Crewlink enviou à DGERT cópias das comunicações da intenção de proceder ao despedimento coletivo enviadas aos trabalhadores, bem como o mapa de pessoal da empresa relativo às bases portuguesas - Faro, Lisboa, Porto e Açores;

EE) No dia 11 de outubro de 2019, os trabalhadores informaram a R. que tinham designado uma comissão representativa;

FF) No dia 14 de outubro de 2019, a R. Crewlink enviou à comissão representativa dos trabalhadores cópias das comunicações da intenção de despedimento, bem como o mapa de pessoal da empresa relativo às bases portuguesas de Faro, Lisboa, Porto e Açores, anteriormente enviado à DGERT;

GG) No dia 24 de outubro de 2019, foi realizada a reunião de informações e negociação, na qual esteve presente um funcionário da DGERT, e da qual foi elaborada a respetiva ata;

HH) A Ré Crewlink iniciou o procedimento de abertura de uma representação permanente em Portugal – a Crewlink Portugal Lda. e enviou uma carta a todos os seus trabalhadores a informar que a partir de 01 de Fevereiro de 2019 todos seriam cedidos à referida empresa;

II) A R... tem outras 3 bases em Portugal (Ponta Delgada, Porto e Lisboa) e todas as bases funcionam, em grande parte, com trabalhadores da Ré Crewlink;

(…)”


III.

a. Primeira e segunda questões:

9. Para efeitos do disposto no art. 672º, nº 1, c), há contradição entre acórdãos que – reportando-se a situações de facto essencialmente idênticas – dão respostas diametralmente opostas quanto à mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação.

Relativamente às duas primeiras questões [supra nº 7, a) e b)], é manifesta a contradição invocada pela recorrente, como, aliás, expressamente reconhece o acórdão recorrido, que se demarca de “alguma doutrina e jurisprudência”, citando, precisamente, o Ac. do STJ de 19.12.2012, Proc. n.º 1222/10.1TTVNG-A.P1.S1, indicado como acórdão-fundamento.

Com efeito, enquanto este aresto julgou que, “na ausência das estruturas representativas dos trabalhadores a que se refere o n.º 1 do artigo 360.º do Código do Trabalho de 2009 e não sendo designada a comissão ad hoc representativa dos trabalhadores abrangidos pelo despedimento coletivo, aludida no n.º 3 do mesmo artigo, o empregador não é obrigado a promover a fase de informações e negociação tal como se acha desenhada no artigo 361.º seguinte”, o acórdão recorrido entendeu, diferentemente, que:

– A circunstância de a redação do art. 360.º do Código do Trabalho não ser a mais feliz, não pode permitir interpretações que consagrem a possibilidade de se proceder a um despedimento coletivo, quando não haja comissão de trabalhadores, comissão intersindical, comissões sindicais ou comissões ad hoc, sem possibilitar aos trabalhadores potencialmente despedidos o mínimo de informação sobre o motivo pelo qual se encontram selecionados para o despedimento e sem lhes possibilitar uma fase prévia instrutória, por mais breve que seja.

– Nos termos do n.º 3 do art. 360.º do Código do Trabalho, a entidade empregadora está obrigada a comunicar aos trabalhadores potencialmente abrangidos pelo despedimento coletivo, quando inexista comissão de trabalhadores, comissão intersindical ou comissões sindicais da empresa representativas dos trabalhadores a abranger, todos os elementos previstos no n.º 2 desse mesmo artigo.

– A não comunicação de todos os elementos mencionados no n.º 2 do art. 360.º aos trabalhadores potencialmente abrangidos pelo despedimento coletivo, quando inexista comissão de trabalhadores, comissão intersindical ou comissões sindicais da empresa representativas dos trabalhadores a abranger; ou a não comunicação de todos esses elementos à comissão representativa ad hoc, determina a ilicitude do despedimento coletivo, nos termos dos arts. 381.º, al. c) e 383.º, al. a), do Código do Trabalho.

b. Terceira e quarta questões:

10. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

“Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).

– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).

– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).

“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).

– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).

“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

11. A terceira e quarta questões [supra nº 7, c) e d)] integram, no fundo, o mesmo bloco problemático constituído pelas duas primeiras, relativamente às quais, como vimos, se verificam divergências jurisprudências relevantes e, também, doutrinárias.

Para além de certa complexidade, esta matéria assume indiscutível relevância dogmática e prática, tanto mais que no plano dos despedimentos coletivos, envolvendo com frequência elevado número de trabalhadores, é especialmente pertinente a estabilização dos critérios jurisprudenciais e a dimensão paradigmática da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Preenchido que está o condicionalismo previsto no art. 672.º, nº. 1, a), justifica-se, pois, também nesta parte, a admissão excecional da revista.

12. A admissão excecional da revista, com base nos fundamentos já expostos, prejudica a apreciação do mais invocado pela recorrente.


IV.

13. Nestes termos, acorda-se em admitir o recurso de revista excecional em apreço.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 11.09.2024

Mário Belo Morgado - Relator

José Eduardo Sapateiro

Julio Manuel Vieira Gomes

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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎