Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | HOMICÍDIO HOMICÍDIO QUALIFICADO ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE CLÁUSULA GERAL EXEMPLOS-PADRÃO MEDIDA DA PENA | ||
Data do Acordão: | 10/31/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário : | I. O artigo 132.º do Código Penal contém um tipo qualificado do crime de homicídio previsto no artigo 131.º por uma cláusula geral que fixa um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, agravada por virtude da particular censurabilidade ou perversidade relativas ao agente e ao facto, reveladas pelas circunstâncias do caso. Combina-se esta cláusula geral com a enumeração, no n.º 2 do mesmo preceito, de um conjunto de exemplos-padrão, indiciadores de um grau especialmente elevado de culpa que, não sendo de funcionamento automático, determinarão a concretização, na avaliação e valoração do caso concreto, da especial censurabilidade ou perversidade dos factos praticados, por realização da previsão típica de alguma das circunstâncias que integram tais exemplos-padrão ou de outras de idêntico sentido e conteúdo normativo. II. A circunstância da alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º («prática do facto contra vítima especialmente indefesa»), introduzida pela revisão do Código Penal de 1998, visou reforçar a tutela da vítima perante «formas de exercício ilegítimo do poder». III. Tem-se sublinhado o propósito de proteção penal da vítima em situação de “desamparo” e na “exploração” ou “aproveitamento” da situação de “indefesa”, conhecida pelo agente; o exemplo-padrão não se preenche com a simples superioridade em razão da idade, que não vai além de uma agravante de carácter geral. A especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (“aproveitamento”) da situação de desamparo da vítima, por quem, com conhecimento da grave impossibilidade de a vítima se defender ou da completa ausência de possibilidade de defesa, por causa da idade, de deficiência, doença ou gravidez, numa determinada situação de facto, é detentor de alguma forma de poder sobre a vítima. IV. Dos factos provados resulta apenas que o arguido «sabia que a ofendida era pessoa idosa de 80 anos de idade» e que «estava ainda ciente da sua superioridade física sobre aquela». V. Não estando provado que a vítima era uma pessoa impossibilitada de se defender por causa da sua idade avançada, não é fundado concluir que o arguido, para cometer o crime de homicídio, encontrando-se numa situação de superioridade, dolosamente se tenha aproveitado de uma situação de desamparo originada por esse motivo, de modo a daí se poder formular um juízo de agravação da culpa requerida pelo tipo qualificado do crime de homicídio. VI. Sem prejuízo de se reconhecer a elevada censurabilidade da ação do arguido, considerada nos termos do disposto no artigo 71.º do CP, na determinação da medida da pena do crime de homicídio simples (artigo 131.º) – fixada em 13 anos de prisão no quadro de uma moldura abstrata de 8 a 16 anos de prisão, parcialmente coincidente, no seu nível superior, com o nível inferior da pena de 12 a 25 anos correspondente ao crime de homicídio agravado –, não se encontra fundamento que justifique a alteração da qualificação jurídica dos factos constante do acórdão recorrido. VII. Nesta conformidade se conclui pela improcedência do recurso, ficando prejudicada a questão da pretendida alteração da medida da pena. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. O Ministério Público, não se conformando com o decidido, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que condenou o arguido AA pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos de prisão. 2. Discordando da qualificação jurídica dos factos e defendendo que o arguido deveria ser condenado pela autoria de um crime de homicídio qualificado pela circunstância da alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões: «1.ª – Insurge-se o Ministério Público contra a condenação do arguido AA, pela prática de um crime de homicídio simples p. e p. pelo art.º 131.º do C.P. (por afastamento da circunstância qualificativa contemplada na al. c) do n.º 2 do art.º 132.º do mesmo compêndio normativo), na pena de 13 (treze) anos de prisão; 2.ª – Segundo a jurisprudência e a própria letra da lei, “pessoa particularmente indefesa” para efeitos do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 132.º do C.P. será aquela que se mostra incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz em função de qualquer das qualidades ali previstas; 3.ª – Ou seja, a incapacidade da vítima para ensaiar uma defesa minimamente eficaz pode provir autonomamente da idade, de deficiência, de doença ou de gravidez, não exigindo a norma em apreço a verificação cumulativa de mais do que uma destas qualidades; 4.ª – Na verdade, em idades mais precoces e mais avançadas as capacidades de auto-protecção do indivíduo apresentam-se por natureza diminuídas ou sensivelmente diminuídas, mesmo sem o concurso de qualquer particular deficiência ou doença; 5.ª – Não estabelecendo a lei qualquer marco etário acima ou abaixo do qual uma vítima é de considerar “pessoa particularmente indefesa em razão de idade”, é forçoso atender às especificidades de cada caso concreto, entre as quais não poderão deixar de avultar as idades relativas de agente e vítima, os respectivos sexos e o modo da acção criminalmente punível; 6.ª – No caso dos autos, o agente é um homem jovem com 30 anos de idade (que se iniciou na actividade laboral aos 16 anos, executando tarefas na área da construção civil e na área rural e de florestas, sendo ... de loja desde ...), ao passo que a vítima é uma mulher idosa com 80 anos de idade (que vivia com um filho e não costumava sair da sua habitação); 7.ª–A morte da vítima ficou a dever-se a lesões cerebrais provocadas por pancadas que o arguido lhe desferiu na cabeça com recurso a um ferro com 1,33 metros de comprimento e 2,50 centímetros de largura, que lhe retirou das mãos, no interior da sua residência, para onde a empurrou, e onde apenas se encontravam ambos e a mãe do arguido (igualmente acusada nos presentes autos, mas absolvida); 8.ª – À luz dos factos julgados provados, impunha-se concluir que a vítima, pela sua idade e naquelas concretas circunstâncias, era incapaz – como foi – de ensaiar uma defesa minimamente eficaz, o que equivale a dizer que era uma pessoa não apenas indefesa mas “particularmente indefesa” em razão desse factor; 9.ª – As circunstâncias de a vítima ser reputada como pessoa “conflituosa e quezilenta” (ou sê-lo de facto), designadamente no relacionamento com os vizinhos, de ter sido ela própria a abordar o arguido nas escadas do prédio onde ambos viviam munida do ferro mencionado em 7.ª, com o qual bateu no chão e no corrimão metálico, envolvendo-se ambos em discussão, não a tornam fisicamente mais apta ou capaz, relevando apenas para o afastamento da circunstância qualificativa do “motivo fútil” prevista na al. e) do n.º 2 do art.º 132.º do C.P.; 10.ª – Por conseguinte, deveria o tribunal a quo ter considerado verificada a circunstância qualificativa do crime de homicídio contemplada na al. c) do n.º 2 do art.º 132º do C.P. – que, no caso, se afigura reveladora de especial censurabilidade (nº 1 do preceito apontado); 11.ª – Ao decidir diversamente o tribunal violou, por erro de interpretação e aplicação ao caso concreto, as normas constantes dos arts. 131.º e 132.º n.º 2 al. c) do C.P.; 12.ª – Para a determinação da medida concreta da pena de prisão – a balizar, assim, entre os doze e os vinte e cinco anos – são de ponderar, com pendor agravante de carácter geral, a actuação com dolo directo e intenso (o arguido atingiu a vítima por diversas vezes em várias partes do corpo, designadamente na cabeça), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (mesmo não sendo assimiláveis ao conceito legal de “motivo fútil”, nunca poderá ser desconsiderada a flagrante desproporção entre a conduta empreendida e as razões subjectivas que lhe deram causa), a conduta anterior do arguido (reflectida em prévia condenação em pena de prisão suspensa na execução, com sujeição a deveres, pela prática de ilícito contra bens de natureza pessoal – crime de violência doméstica) e a sua conduta posterior (abandonou a vítima na sua residência, sozinha, a sangrar abundantemente e, em julgamento, negou qualquer responsabilidade directa na sua morte, não deixando transparecer qualquer empatia para com ela, nem compaixão pelo seu trágico destino); 13.ª – São consabidamente elevadíssimas as exigências de prevenção geral do crime de homicídio (atenta a forte premência da protecção do bem jurídico mais valioso do nosso ordenamento jurídico-penal) e as necessidades de prevenção especial também apresentam particular acuidade (perante o passado criminal do arguido, a dificuldade de controlo dos impulsos que os factos revelam e a ausência de expressão de arrependimento ou auto-censura em julgamento); 14.ª – A favor do arguido milita apenas a sua inserção familiar e laboral – atributo que, todavia, não é incomum em agentes de crimes desta natureza e reveste muito modesto valor atenuativo; 15.ª – Pelo que ficou dito, entende-se como adequada e justa a condenação do arguido em pena não inferior a 17 (dezassete) anos de prisão. Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, condenando-se o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º n.º 1 e n.º 2 al. c) do C.P., em pena não inferior a 17 (dezassete) anos de prisão.» 3. Respondeu o arguido, defendendo que não está preenchida a circunstância qualificativa do homicídio da alínea c) do n.º 2 artigo 132.º do CP, devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º do CP ou, assim não sendo, manter-se a condenação pela prática do crime de homicídio simples da previsão do artigo 131.º do CP. Convoca, em defesa da sua posição, o acórdão de 15.01.2019, proferido no processo 4123/16.6JAPRT.G1.S1, em que se analisou a circunstância qualificativa da alínea e) («motivo torpe ou fútil») do mesmo preceito. E alega, em síntese, a seu favor, as suas condições pessoais, nomeadamente a sua personalidade – «na medida em que, e segundo o relatório social, é pessoa equilibrada, trabalhadora, está bem integrado profissional, familiar e social, na medida que, estudou até ao 6º ano, iniciou a sua atividade laboral, aos 16, anos, na área da construção civil, na área rural e de floresta», exercendo presentemente «a atividade como ... de loja desde ... de ... de 2020, com vínculo laboral de contrato sem termo na loja ... de ...», onde «é um colaborador assíduo, pontual, respeitador e com um adequado relacionamento com os superiores hierárquicos e restantes colegas de trabalho», e tem «um filho menor de 5 anos de idade» – e que o facto praticado «foi um ato momentâneo e em contexto de pico de raiva de impulso», «não se controlou», sublinhando «que foi sem intenção, não chegou a pensar a possibilidade da consequência da sua conduta.» 4. Foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste tribunal emitido parecer de concordância com a condenação, dizendo em síntese que a pretensão de condenação pela prática de crime de homicídio negligente não deve ser atendida e, quanto ao recurso do Ministério Público, que: «Não pode deixar de se referir que a motivação do recurso se mostra efetuada, a nosso ver, em muito bom nível, sendo que a Senhora magistrada que a subscreve conseguiu, de modo muito bem fundamentado, suscitar a dúvida quanto à bondade da decisão, ao lembrar que para se poder utilizar a qualificativa da alínea c) não existe qualquer marco etário estabelecido pela lei, pelo que terá de incluir idades elevadas como no caso, fazendo o confronto entre a idade da vítima e a do arguido (jovem que poderia ser neto da vítima) daí concluindo pela assimetria ou desproporção do vigor físico de ambos e lembrando que o facto de ter sido a vítima a abordar o arguido não pode levar, ao contrário do que parece ter sido entendido na decisão recorrida, a concluir ter existido algum incentivo consciente e voluntário por parte da vítima, um ‘acicatar’ do arguido para confronto físico, nem podendo o facto e a vítima estar a usar um ferro (com o qual batia no corrimão) levar a concluir que, por isso, estaria atenuada a aparente inferioridade física existente entre agressor e agredida. Nas palavras do recorrente MºPº «à luz dos factos julgados provados, parece-nos imperativo concluir que a vítima, pela sua idade e naquelas concretas circunstâncias, era incapaz – como foi – de ensaiar uma defesa minimamente eficaz. O que equivale a dizer que era uma pessoa não apenas indefesa mas “particularmente indefesa” em razão desse factor», afastando a relevância, para o caso, do que o coletivo entendeu ter ficado provado, ou seja, que a vítima tivesse alguma limitação física ou psíquica que a tornasse dependente de terceiros ou, por alguma forma, carecesse de auxílio na satisfação de qualquer necessidade. Sempre salvo o devido respeito por opinião contrária – nomeadamente a da Senhora magistrada autora da muito correta motivação de recurso – entendemos que a decisão de não qualificação do crime se mostra correta e que, por isso, não deverá ser julgado procedente o recurso. E isso, não porque não possa ter-se verificado efetivamente o preenchimento da circunstância qualificativa em questão – a da alínea c) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal – quando ali exemplificativamente se indica como índice de especial censurabilidade ou perversidade do agente o ter praticado o ato contra pessoa particularmente indefesa, mas sim porque inexistem elementos de facto que tenham sido provados e que nesse sentido conduzam sem margem para dúvidas. Com efeito: Sem necessidade de entrar aqui em referências quanto ao visado pelo preceito do art.º 132.º do Código Penal, quanto ao que deve entender-se como especial censurabilidade ou perversidade, qual a natureza das várias alíneas, etc. (acerca do que existe abundante doutrina e jurisprudência publicadas), uma coisa entendemos como necessariamente certa – os elementos que conduzam a entender pela especial perversidade ou censurabilidade têm de estar provados ou resultarem claros, sem margem para dúvidas, da matéria de facto dada como provada. Ora, parece-nos que isto não sucede no caso. O que aqui ‘falta’ para poder concluir no sentido da verificação da especial perversidade ou censurabilidade (através do preenchimento do exemplo contido na referenciada alínea c)) é a existência de factos capazes de levar à conclusão de que a vítima era, efetivamente, pessoa «particularmente indefesa», no caso, em razão da idade (e, note-se, não apenas ‘indefesa’, mas sim ‘particularmente’ indefesa). Precisávamos de factos que nesse sentido apontassem, factos que não vemos provados na decisão sob recurso, não estando igualmente vertidos na acusação que esteve na base do julgamento. Cumpriria, a nosso ver, que elementos factuais ali tivessem sido vertidos e, depois, que tivessem ficado provados, para se poder concluir no sentido pretendido. Elementos que poderiam ter passado pela referência a caraterísticas fenotípicas evidenciadas no idoso, tais como: pouca energia, locomoção lentificada, reduzida atividade física, reduzida força manual e a perda de peso não intencional. (vd. “A síndrome da fragilidade nos idosos”1, publicado na Biblioteca Digital do Instituto Politécnico de Bragança). Certo que se pode suspeitar que uma mulher de 80 anos sofresse de uma qualquer destas patologias, mas isso teria de ficar referido em sede factual, o que não se verificou. É que, como referido pelo Tribunal da Relação do Porto (acórdão datado de 14.07.2021, no processo 158/20.2GDSTS.P1 – Relator - Francisco Mota Ribeiro), numa situação de violência doméstica: I - Pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade”, “é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.” II - Seja em função da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, o que importa determinar para efeitos do preenchimento da norma penal, e para desse modo se respeitar o princípio da legalidade e da tipicidade, é, antes de mais, que a vítima se encontrava, face aos factos concretamente dados como provados, numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender, não bastando demonstrar que a vítima tinha idade avançada, porquanto é sabido que nem sempre as pessoas idosas, só por o serem, se encontram numa situação de especial incapacidade de se defenderem ou em estado de desamparo.» Ora, como se disse já, não se verificou o preenchimento factual da circunstância. Antes o coletivo a afastou, com a introdução do facto não provado «Que BB tivesse alguma limitação física ou psíquica que a tornasse dependente de terceiros ou, por alguma forma, carecesse de auxílio na satisfação de qualquer necessidade», matéria que não foi contestada em sede de recurso. Assim, estamos em situação similar à que foi objeto de apreciação por este STJ no acórdão de 02.02.2023, no processo 22/22.0JAPRT.S1 (Relator – António Latas), acessível em ‘Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça’, em que se entendeu: «I - Imputada ao arguido a de prática de facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade (al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CP), provando-se apenas que a vítima tinha 79 anos de idade e o arguido 42, e nada se apurando sobre o estado de saúde da vítima à data dos factos ou sobre eventual aproveitamento, por parte do arguido, de especiais fragilidades que a afetassem, não pode afirmar-se, com a certeza exigível face aos princípios da culpa e da presunção de inocência, que a circunstância de o agressor, ora arguido, ter menos 37 anos que a vítima o coloca, necessariamente, em posição de se aproveitar de eventual fragilidade daquela em razão da idade, dada a diversidade de situações que se verificam na realidade prática, quer relativamente a pessoas com a idade da vítima, quer no que respeita a eventuais efeitos da diferença de idades entre a vítima e o arguido. Assim, impõe-se concluir em face da factualidade provada que não se mostra preenchido o exemplo padrão previsto na al. c) do n.º 1 e 2 do art. 132.º do CP.». É, como se referiu, uma situação em tudo similar à que está em causa no presente processo. E não se vê que esta deva merecer tratamento diferente. Pelo que é nosso parecer que deverá ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida no sentido da condenação do arguido AA pela prática de um crime de homicídio simples na pena de 13 (treze) anos de prisão.» 5. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse. 6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação 7. A decisão de facto encontra-se fundamentada nos seguintes termos: 7.1. Factos provados «1. O arguido AA é filho da arguida CC, residindo ambos, há cerca de 20 (vinte) anos no ...6, da Rua ..., em ..., com exceção de um período de 5 (cinco) anos em que o arguido viveu noutro local. 2. BB, nasceu no dia ... de ... de 1942 e vivia há pelo menos, 8 (oito) anos na Rua ..., em ..., de onde não costumava sair, sendo vizinha dos arguidos. 3. No âmbito dessa relação de vizinhança, após os primeiros meses da vítima ter passado ali a residir, passou a haver frequentes quezílias entre BB e os arguidos e outros vizinhos, em que esta se queixava do barulho proveniente das várias habitações do prédio, incluindo a dos arguidos, sem que alguma vez tenha havido notícia de qualquer agressão entre os envolvidos. 4. No dia ... de ... de 2022, cerca das 20H30m, o arguido AA subiu as escadas do prédio que dá acesso à sua residência, tendo sido abordado por BB, no 1.º andar do prédio, junto ao patamar de acesso ao apartamento daquela, que empunhava um ferro com 1,33 metros de comprimento e 2,5 centímetros de largura, batendo com o mesmo no chão e no corrimão metálico. 5. O arguido AA e BB envolveram-se em discussão dirigindo um ao outro expressões não concretamente apuradas, mas em que por três vezes o arguido voltou as costas à sua opositora subindo as escadas em direção à sua residência e, porque BB voltou a bater com o ferro no corrimão, regressou para junto da mesma dizendo “se queres bater-me, bate-me já”. 6. À terceira vez, o arguido ao regressar para junto de BB proferiu a seguinte expressão “vou-te matar”. 7. De imediato, o arguido AA aproximou-se de BB e empurrou-a para o interior da residência desta. 8. Já no interior da residência, o arguido logrou retirar o ferro das mãos de BB e, fazendo uso do mesmo, desferiu um número não concretamente apurado de pancadas na cabeça e no antebraço esquerdo, deixando a vítima a sangrar abundantemente. 9. Após, abandonou a residência da vítima, não acionando qualquer ajuda médica, deixando-a a sangrar, sozinha na habitação. 10. Pelas 21H07m, o filho de BB, DD, ao chegar a casa e deparar-se com os ferimentos que esta ostentava, chamou os Bombeiros Mistos de ..., que compareceram no local minutos depois, prestando assistência à ofendida, transportando-a para o Hospital .... 11. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu as seguintes lesões: hábito externo: a) cabeça – ferida contusa com 5 centímetros de comprimento na região frontoparietal esquerda; b) membro superior direito – ferida superficial na face interna da falange proximal do 1.º dedo, com 2,5 centímetros de comprimento e com equimose vermelho-azulado peri-focal; c) membro superior esquerdo – escoriação na face póstero-interna do punho, com 8 centímetros e 2 centímetros de maiores dimensões e com equimose vermelho-azulado peri-focal; d) membro inferior esquerdo – hematoma na face anterior do terço superior da coxa; - hábito interno e) partes moles – infiltração sanguínea e solução de continuidade dos tecidos moles na região frontoparietal esquerda; f) ossos da cabeça – fratura do osso occipital à esquerda, linear sem desvios; g) meninges – hemorragia subdural, com hematoma organizado na base e hemorragia subaracnoídea difuso; h) encéfalo – hematoma organizado no lobo esquerdo do cerebelo, com destruição total do mesmo e desvio da estrutura para a direita; ventrículos com sangue e coágulos e focos de contusão e infiltração sanguíneas do tronco cerebral, Sendo as lesões cerebrais descritas nas alíneas e) a h) que determinaram a morte de BB, às 05H50m do dia ... de ... de 2022, no Hospital .... 12. O arguido sabia que a ofendida era pessoa idosa de 80 anos de idade. 13. O arguido estava ainda ciente da sua superioridade física sobre aquela. 14. O arguido desferiu os golpes na cabeça de BB com um ferro, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de tirar-lhe a vida. 15. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, podia determinar-se em sentido contrário de acordo com essa avaliação que efetivamente fez e, ainda assim, não se absteve de a praticar. Mais se provou: 16. Na mesma circunstância de tempo e de lugar da factualidade descrita em 7, a arguida que se encontrava em casa, apercebeu-se da discussão entre o arguido e a vítima e, desceu as escadas, tendo entrado no interior da residência da vítima atrás desta e do seu filho, gritando de aflição expressões não concretamente apuradas. 17. Momentos depois da factualidade descrita nos pontos 8 e 9 dos factos provados, o arguido ao se aproximar da porta da sua residência e ao visualizar o progenitor EE, proferiu a seguinte expressão: “Foda-se, caralho, já me passei!” 18. Vendo a chegada da emergência médica ao local, na circunstância de tempo descrita em 10, a arguida CC, ligou para a Guarda Nacional Republicana, informando que uma vizinha teria agredido o seu filho, mas que não pretendia apresentar queixa-crime, desejando apenas que ficasse registado, pois era normal a vizinha ter comportamentos agressivos. 19. Os arguidos e a ofendida tinham frequentes discussões com a arguida. Factualidade atinente às condições pessoais e económicas do arguido 20. O arguido ingressou no ensino escolar em idade regular, tendo completado o sexto ano de escolaridade. 21. Iniciou-se no mundo laboral aos 16 anos, executando tarefas na área da construção civil e na área rural e de floresta. 22. Atualmente desenvolve atividade como ... de loja desde ... de ... de 2020, com vínculo laboral de contrato sem termo na loja ... de .... 23. É tido como um colaborador assíduo, pontual, respeitador e com um adequado relacionamento com os superiores hierárquicos e restantes colegas de trabalho. 24. O arguido aufere um vencimento de 825,00€ que lhe permite dentro agregado familiar dos progenitores, fazer face às necessidades básicas de sobrevivência. 25. O arguido tem um filho menor de 5 anos de idade fruto de relacionamento anterior com FF com quem teve conflitos no âmbito da regulação das responsabilidades parentais. 26. O arguido atualmente mantém contacto regular com o filho com quem tem relação de afeto, mantendo relacionamento mais próximo e cordial com a progenitora da criança. Antecedentes criminais 27. Por sentença transitada em julgado no dia 3 de maio de 2019, foi o arguido AA condenado pela prática no dia 15 de maio de 2015 contra FF de um crime de violência doméstica na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita ao cumprimento de deveres. (…) 7.2. Factos Não Provados «a) Que a arguida tenha em comunhão de esforços com o arguido agido com o propósito de tirar a vida a BB. b) Que BB tivesse alguma limitação física ou psíquica que a tornasse dependente de terceiros ou, por alguma forma, carecesse de auxílio na satisfação de qualquer necessidade.» 8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos e limita-se ao reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (artigos 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não vêm invocados. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, define-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que não se verificam. 9. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e não se evidenciando vício ou nulidade de que cumpra conhecer, as questões a apreciar e decidir dizem respeito à qualificação jurídica dos factos e, em caso de procedência, à medida da pena que lhes corresponde. 10. A decisão recorrida encontra-se assim fundamentada, em matéria de direito: «Aos arguidos está imputada a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º n.º 1 e 2 alíneas c) e e) do Código Penal, praticado contra a pessoa de .... Dispõem o seguinte os artigos 131.º e 132.º do Código Penal, na parte relevante: Artigo 131.º: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 08 a 16 anos.” Artigo 132.º n.º 1 e 2 alíneas c) e e) “1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem, especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 – É suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez; (…) e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.” (…) ” Para a conduta dos arguidos ser enquadrável no tipo de crime de homicídio qualificado é preciso antes de mais que se enquadre igualmente no tipo base de homicídio simples. O bem jurídico protegido pela incriminação é naturalmente a vida humana, tratando-se o crime de homicídio de um crime de dano contra esse bem jurídico e de resultado quanto ao objeto da ação, pois que a morte tem de resultar direta e necessariamente da conduta do arguido, só assim se preenchendo o elemento objetivo deste tipo de crime. (…) No que concerne ao arguido (…) é manifesto que o mesmo preencheu com a sua conduta o elemento objetivo do tipo de crime de homicídio simples, pois que matou BB, desferindo-lhe vários golpes com um ferro na cabeça. O elemento subjetivo deste tipo de crime admite qualquer uma das modalidades do dolo. O dolo é comumente descrito como sendo constituído por dois elementos, designadamente o elemento cognitivo e o elemento volitivo. O elemento cognitivo, também apelidado de intelectual, prende-se com o conhecimento do tipo legal de crime em moldes exigíveis ao cidadão comum, não sendo necessário um conhecimento especialmente técnico, próprio de um jurista. No fundo trata-se do conhecimento genérico e empírico que determinada conduta é censurável. Já o elemento volitivo ou emocional exige a vontade do agente em praticar determinada conduta após ter representado a sua censurabilidade e a prática efetiva da conduta censurável motivada por essa vontade, num contexto físico e psíquico que lhe permitisse não o fazer, controlando o impulso. Nos presentes autos encontram-se preenchidos todos os elementos do tipo de crime, pois que o arguido decidindo no momento matar a vítima, agiu voluntariamente praticando todos os atos necessários até consumar o seu objetivo, tendo inclusivamente verbalizado o que ia fazer ao proferir a expressão “vou-te matar!” que concretizou desferindo fortes pancadas na cabeça da vítima com um ferro, quando poderia e deveria ter-se abstido de o fazer. Vejamos agora se se verificam os pressupostos da qualificação do tipo. A acusação pugna em primeiro lugar pela verificação da alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º na medida em que a conduta foi praticada contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade. A vítima tinha 80 anos, mas tal constatação não serve para, de forma automática, dar como verificada esta qualificativa agravante do crime de homicídio. A vulnerabilidade da pessoa pela sua incapacidade de se defender tem de ser verificada em grau relevante e caso a caso. Diz-se grau relevante porque se o não for, então a vítima não será verdadeiramente indefesa e, efetivamente é o que se passa neste caso em concreto. É preciso não esquecer que foi a vítima quem abordou o arguido levando um ferro nas mãos que brandia em direção ao chão e ao corrimão das escadas do prédio com vigor suficientemente audível em todo o prédio. Acresce que por três vezes o arguido logrou acalmar-se e, abdicando do confronto, virou costas à luta, apenas regressando atrás porque a vítima, voltava a desafiá-lo e a enfrentá-lo batendo em termos provocatórios com o ferro no corrimão, fazendo estrondo por todo o prédio. A vítima agiu com postura desafiante, em moldes que permitem presumir uma confiança na sua capacidade de manejar o ferro que empunhava que atenuaria a aparente inferioridade física, quer corporal, quer em função da avançada idade. Acresce que a vítima era conhecida quer no prédio onde residia, quer nos serviços municipais de solidariedade social que lhe terão atribuído a casa, como pessoa conflituosa e quezilenta. Características e modo de agir impeditivos do enquadramento jurídico da vítima no conceito de pessoa particularmente indefesa. A idade enquanto elemento integrador do conceito não é de aplicação automática, nem se encontra estipulada pela legis artis uma idade concreta a partir da qual a pessoa no papel de vítima se considere sempre particularmente indefesa. É necessário avaliar as especificidades do caso concreto para daí inferir pela integração ou não desde conceito jurídico. No caso em concreto, é de afastar o entendimento de que BB fosse considerada ou sequer que devesse sê-lo, como pessoa particularmente indefesa. Veja-se em sentido semelhante o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 26 de novembro de 2015, processo 119/14.0JAPRT.P1.S1, Conselheiro Manuel Braz, consultável no sítio www.dgsi.pt que sintetiza da seguinte forma no sumário do acórdão: «IV - Pessoa particularmente indefesa, no contexto da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CPP, é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa. V - Não preenche a circunstância da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CP, a vítima de homicídio que apesar de possuir 75 anos de idade e sofrer de diabetes (tendo tido nesse âmbito uma crise grave cerca de meio ano antes), vivia sozinha, era autónoma e até ofereceu resistência ao arguido, com quem lutou denodadamente, acabando por ser vencida, porque o agressor revelou ser mais forte, certamente pela vantagem que a sua juventude lhe dava no confronto com a idade avançada da vítima. VI - O exemplo-padrão em discussão não se preenche com a simples superioridade em razão da idade, que não vai além de uma agravante de carácter geral. A especial maior culpa subjacente a esta circunstância qualificativa exige uma atitude bem mais distanciada dos valores.» Por fim, temos a qualificativa referente à avidez, prazer de matar ou causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil. Apenas será defensável, como o fez o Ministério Público em alegações orais, eventual enquadramento no motivo fútil. Com efeito, descontextualizando a ação, o motivo é efetivamente fútil, pois que se tratou de discussão por questões de vizinhança relacionadas com barulho no prédio, não sendo de todo admissível que por esse motivo se tire uma vida. Sem prejuízo não se tratou de uma discussão pontual, mas o culminar de anos, pelo menos oito, de discussões com o arguido, com a arguida sua mãe, com o seu progenitor, os seus filhos e vizinhos. O próprio facto do arguido por três vezes ter virado costas à discussão e subido as escadas em direção a casa e ter regressado sempre para junto da vítima, após esta voltar a bater com o ferro no corrimão em desafio e se dirigir em tom provocador ao arguido chamando-o para a contenda, evidencia algum esforço de contenção do arguido e três tentativas, ainda que pouco empenhadas, de pôr termo ao conflito de forma pacífica. Não afastam o cariz altamente desvalioso da conduta, mas impedem a verificação da qualificativa prevista pela alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Veja-se em sentido muito semelhante o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 15 de janeiro de 2019, processo 4123/16.6JAPRT.G1.S1, Conselheiro Lopes da Mota, consultável no sítio www.dgsi.pt onde, na parte que releva se sumariou da seguinte forma: “(…) «2. A determinação da verificação da circunstância de o agente ser determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” (al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do CP) requer a ponderação de elementos de contextualização sociocultural da acção do arguido, para se poder concluir se esta foi determinada por um motivo gratuito, insignificante, sem qualquer importância, desprezível ou repugnante. 3. Estando provado que o arguido e a vítima mantinham um diferendo, com cerca de 20 anos, a propósito de umas obras realizadas pelo primeiro numa casa desta, pelas quais reclamava o pagamento da parte do preço não paga, invocando a vítima que as obras não foram concluídas, recusando o pagamento; que o arguido, cerca de uma ou duas semanas antes, foi a casa da vítima pedir-lhe o pagamento, tendo esta “fechado a porta na sua cara”, ficando o arguido na rua a resmungar sozinho, o que, não sendo meramente descritivo, contém uma conotação de desconsideração ou mesmo de ofensa; que, por vingança, que, por definição, se associa a uma atitude de desforra ou retaliação de quem se sente ofendido, o arguido tomou a resolução de matar, e que o arguido, oriundo de uma família humilde, seguiu um processo de socialização segundo regras e referências de valores tradicionais e característicos do meio rural, não se considera verificada aquela circunstância.» Termos em que não se verificando nenhuma causa de exclusão da ilicitude nem da culpa, mas não sendo enquadrável a conduta do arguido em nenhuma das qualificativas imputadas, deverá AA ser condenado pela prática no dia ... de ... de 2022 contra a pessoa de BB, de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal.» 11. O crime de homicídio por que o recorrente vem condenado encontra a sua definição típica fundamental no artigo 131.º do Código Penal («CP»), segundo o qual quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. Porém, se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos, como estabelece o n.º 1 do artigo 132.º do mesmo diploma. Contém este preceito um tipo qualificado do crime de homicídio previsto no artigo anterior, através de uma cláusula geral fixando um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, agravada por virtude da particular censurabilidade ou perversidade relativas ao agente e ao facto, reveladas pelas circunstâncias do caso. Combina-se esta cláusula geral com a enumeração não exaustiva, no n.º 2 do mesmo preceito, de um conjunto de exemplos-padrão, indiciadores de um grau especialmente elevado de culpa que, não sendo de funcionamento automático, determinarão a concretização, na avaliação e valoração do caso concreto, da especial censurabilidade ou perversidade dos factos praticados, por realização da previsão típica de alguma das circunstâncias que integram tais exemplos-padrão ou de outras de idêntico sentido e conteúdo normativo. A economia da decisão convoca apenas a alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – não se questiona no recurso o afastamento da circunstância de agravação prevista na alínea e) («motivo fútil») do mesmo preceito –, o qual dispõe que é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1, entre outras, a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade. 12. Como tem sido salientado (acórdão de 18.9.2018, Proc. n.º 359/16.8JAFAR.S1, em www.dgsi.pt, que se segue), o homicídio qualificado é, tal como o homicídio simples (tipo fundamental do artigo 131.º), um tipo punível a título de dolo sob qualquer das suas formas previstas no artigo 14.º do Código Penal – dolo direto, necessário ou eventual. O dolo tem de referir-se aos exemplos-padrão, como, citando Jescheck e Wessels, sublinha Teresa Serra: “A existência do dolo fundamenta, nestas circunstâncias, a atitude particularmente censurável do agente, uma atitude desumana e desapiedada, susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, p. 78). 13. Consiste a circunstância da alínea c) em o agente “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”. Esta circunstância foi introduzida no artigo 132.º pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, que teve origem na Proposta de Lei 160/VII, em cuja exposição de motivos se pode ler (DAR II-A, n.º 27, de 29.1.1998, p. 527): “No âmbito dos crimes contra a vida, as alterações respeitam aos crimes de homicídio (artigo 132.º) e de exploração ou abandono (artigo 138.º). Na previsão do homicídio qualificado são acrescentadas três novas circunstâncias, contemplando as hipóteses de o crime ser cometido contra vítima especialmente indefesa, por funcionário com grave abuso de autoridade ou através de meio particularmente perigoso. O acrescentamento de novas circunstâncias referentes a pessoas especialmente indefesas e a graves abusos de autoridade visa reforçar a tutela da vítima perante formas de exercício ilegítimo de poder”. Esta proposta, como nota o Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, §21, p. 60) reproduz, no essencial, a que havia sido apresentada na sequência do requerimento de ratificação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que aprovou o Código Penal (Ratificação 138/VI, DAR II-B, 26, de 8.4.1995, p. 126), rejeitada pela Assembleia da República (DAR II-B, 34, de 14.6.1995, p. 199), da autoria do Prof. Sousa e Brito (sobre isto, cfr. Teresa Serra, Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, CEJ, 1998, p. 151ss), embora se deva notar a adição de uma especificidade de sentido traduzida na ligação da ação a “formas de exercício ilegítimo de poder”. 14. Nem a doutrina nem a jurisprudência conhecidas têm, porém, dado particular ênfase a este elemento de interpretação proveniente dos trabalhos preparatórios, “de grande valia para definir a opção do legislador” (Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2012, p. 185), antes se centrando em sublinhar, no essencial, o propósito de proteção da vítima em situação de “desamparo” e na “exploração” ou “aproveitamento” da situação da vítima “indefesa”, conhecida pelo agente (assim, Prof. Figueiredo Dias, loc. cit. e autores cit. infra, bem como, por exemplo, os acórdãos deste Tribunal de 18.6.2008, Proc. 1414/08, Sumários Anuais, Criminal, 2008, www.stj.pt, e de 26.11.2015, Proc. 119/14.0JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt). Lê-se neste último acórdão, citado, em sumário, na decisão recorrida: “Pessoa particularmente indefesa neste contexto é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. De situação de desamparo fala Figueiredo Dias (Comentário, Tomo I, página 31). Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão. Certamente não por acaso Figueiredo Dias, no mesmo local, referindo uma situação susceptível de preencher este exemplo-padrão, fala de “uma ausência total de defesa”. E, na verdade, se pessoa indefesa é aquela que não se pode defender, pessoa particularmente indefesa, fazendo justiça ao sentido das palavras, será aquela que se encontra numa situação de completa ausência de defesa. O exemplo-padrão em discussão não se preenche com a simples superioridade em razão da idade, que não vai além de uma agravante de carácter geral. A especial maior culpa subjacente a esta circunstância qualificativa exige uma atitude bem mais distanciada dos valores”. A devida consideração da “ratio juris” extraída do elemento histórico, de particular relevo na construção do “pensamento tipológico”, próprio do procedimento de determinação da incriminação, em que a interpretação teleológica desempenha papel de relevo (cfr. Artur Kaufmann, Filosofia do Direito, 5.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 187ss), conduz, assim, a que a especial vulnerabilidade ou fragilidade da vítima, protegida pela alínea c) do artigo 132.º do Código Penal, deva ser analisada por referência a uma relação de poder (superioridade) do agente sobre a vítima, de modo a estabelecer-se a exigida correspondência da concreta situação de facto a este elemento do tipo de culpa. Assim se poderá afirmar que “a especial censurabilidade é determinada pelo abuso, aproveitamento ou exploração dessa situação de desamparo” (citando Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, anotação ao artigo 132.º, Almedina, 2014, p. 506; em idêntico sentido, Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 511, onde refere: “A especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (“aproveitamento”) da situação de desamparo da vítima”), por quem, com conhecimento da grave impossibilidade de a vítima se defender ou da completa ausência de possibilidade de defesa, por causa da idade, de deficiência, doença ou gravidez, numa determinada situação de facto, é detentor de alguma forma de poder sobre a vítima. 15. Para concluir pelo afastamento do especial grau de perversidade e censurabilidade, por via da intermediação desta circunstância – que a vítima seja pessoa «particularmente indefesa, em razão da idade» –, considerou o tribunal a quo (como se viu, supra, 10) que a «vítima tinha 80 anos, mas tal constatação não serve para, de forma automática, dar como verificada esta qualificativa agravante do crime de homicídio» pois que a «vulnerabilidade da pessoa pela sua incapacidade de se defender tem de ser verificada em grau relevante e caso a caso», convocando, neste sentido as circunstâncias do facto, nomeadamente o facto de ter sido a vítima quem abordou o arguido, levando um ferro nas mãos que brandia com vigor, de o arguido ter «abdicado» do confronto, logrando acalmar-se, virando as costas à vítima, apenas voltando atrás porque esta voltava a desafia-lo e a enfrentá-lo, com o ferro que empunhava, em termos provocatórios, «com postura desafiante, em moldes que permitem presumir uma confiança na sua capacidade de manejar o ferro que empunhava que atenuaria a aparente inferioridade física, quer corporal, quer em função da avançada idade», acrescentando que a vítima, vizinha do arguido há cerca de oito anos, era conhecida como «pessoa conflituosa e quezilenta». Como salienta o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, apesar de o recorrente equacionar devidamente a relevância e o funcionamento da circunstância de agravação, com base nos elementos de facto provados, abstraindo de caraterísticas de personalidade da vítima manifestada nos factos, e nas idades do arguido e da vítima, com natural e inerente fragilidade própria dos seus 80 anos – qualidade notoriamente associada a idade avançada, em resultado de limitações inerentes ao normal processo de envelhecimento, o que careceria de outros elementos caracterizadores, não concretizados (sobre a insuficiência da simples superioridade em razão da idade, isoladamente considerada cfr. supra, 15, o acórdão deste Tribunal de 26.11.2015, convocado na decisão recorrida) –, não é possível afirmar-se que a vítima, nas circunstâncias do caso, se encontrava “particularmente indefesa” para efeitos de especial agravação da culpa nos termos do artigo 132.º. No que respeita à idade da vítima, dos factos provados resulta apenas que o arguido «sabia que a ofendida era pessoa idosa de 80 anos de idade» e que «estava ainda ciente da sua superioridade física sobre aquela» (pontos 12 e 13 dos factos provados). Não estando provado que a vítima era uma pessoa impossibilitada de se defender por causa da sua idade avançada, não é fundado concluir que o arguido, para cometer o crime de homicídio, encontrando-se numa situação de superioridade, dolosamente se tenha aproveitado de uma situação de desamparo da vítima originada por esse motivo, de modo a daí se poder formular um juízo de agravação da culpa – especial perversidade ou censurabilidade – requerida pelo tipo qualificado do crime de homicídio da previsão do artigo 132.º do Código Penal. 16. Em conclusão, sem prejuízo de se reconhecer a elevada censurabilidade (grau de culpa) da ação do arguido, considerada no acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal, na determinação da medida da pena do crime de homicídio simples (artigo 131.º) – fixada em 13 anos de prisão no quadro de uma moldura abstrata de 8 a 16 anos de prisão, parcialmente coincidente, no seu nível superior, com nível inferior da pena de 12 a 25 anos correspondente ao crime de homicídio agravado –, não se encontra fundamento que justifique a alteração da qualificação jurídica dos factos constante do acórdão recorrido. Nesta conformidade se conclui pela improcedência do recurso, ficando prejudicada a questão da pretendida alteração da medida da pena. III. Decisão 17. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão recorrida. Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 31 de outubro de 2024. José Luís Lopes da Mota (relator) Antero Luís Maria do Carmo Silva Dias |