Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
Relator: | JOSÉ DOMINGOS MORAIS | ||
Descritores: | AMNISTIA SANÇÃO DISCIPLINAR INFRAÇÃO DISCIPLINAR SETOR PRIVADO | ||
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Data do Acordão: | 05/28/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | As infracções disciplinares laborais privadas e as sanções disciplinares laborais aplicadas por entidades de direito privado, não são subsumíveis ao conteúdo do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 994/23.8T8FIG.C1.S1 Recurso revista Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. – Relatório AA intentou acção com processo comum contra APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, pedindo: “A) Ser anulada a sanção disciplinar decidida e aplicada pela R. à A. de suspensão do trabalho com perda de remuneração e antiguidade pelo período de 20 dias e consequentemente ser a R. condenada a restituir à A. a retribuição descontada a esse título (perda de salário) no montante total de € 579,00 e a antiguidade respetiva e bem assim ser anulada do registo disciplinar a sanção; B) A R. ser condenada a pagar ao A. juros à taxa legal sobre as importâncias peticionadas desde a data do respetivo vencimento e até efetivo e integral pagamento.”. 2. - A Ré contestou, concluindo pela total improcedência da acção e absolvição do pedido. 3. - Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 2.º, alínea b) e artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, declaro amnistiada a sanção disciplinar objecto dos presentes autos de 20 (vinte) dias de suspensão do contrato de trabalho com perda de retribuição e antiguidade, determinando a extinção da presente instância, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), aplicável “ex vi” artigo1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, e, em consequência, ordena-se a devolução pela Ré “APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental” à Autora AA da quantia descontada à Autora a esse título, bem como, as demais consequências daí decorrentes.”. 4. - Por acórdão 25 de outubro de 2024, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu: “(A)corda-se em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais. As custas seriam devidas pelo apelado, se não beneficiasse de isenção das mesmas.”. 5. - A Autora interpôs recurso de revista, concluindo: a) as infrações laborais de direito privado encontram-se abrangidas pela amnistia prevista no artigo 6.º da lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto; b) a decisão recorrida ao excluir a aplicação ao caso em discussão nos presentes autos o artigo 6.º da lei n.º 38-a/2023 de 2 de agosto, conforme havia sido feito em primeira instância pelo tribunal, incorre em violação de lei e erro de interpretação e aplicação de lei. 6. - A Ré apresentou contra-alegações. 7. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido de “que o presente recurso de revista deverá ser considerado improcedente, mantendo-se o douto acórdão recorrido.”. 8. - As partes não responderam ao parecer do Ministério Público. 9. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), cumpre apreciar e decidir. II. - Fundamentação de facto. 1. - A matéria de facto com interesse para a apreciação do recurso de revista é a que consta do Relatório que antecede, em particular: - A APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental é uma Instituição Particular de Solidariedade Social. - No âmbito do contrato de trabalho celebrado com a Autora, aplicou-lhe a sanção disciplinar de suspensão do trabalho por 20 dias, com perda de retribuição e antiguidade. III. - Fundamentação de direito. 1. - O objecto do recurso de revista consiste em saber se a sanção disciplinar aplicada pela Ré, à Autora, se encontra abrangida pela amnistia prevista no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto. 2. - No histórico das Leis das Amnistias, pós 25 de abril de 1974, pode verificar-se: 2.1. - O artigo 3.º, alínea f), da Lei 17/82, de 2 de Julho, previa: “São igualmente amnistiados: (…). As infracções disciplinares de natureza militar, com excepção das que consistem na violação dos deveres referidos nos n.ºs 10, 12, 13, 14, 15, 31 e 32 do artigo 4.º do Regulamento de Disciplina Militar.”. 2.2. - O artigo 1.º, alínea ii), da Lei n.º 23/91, de 04 de Julho - Amnistia 1991 - estabelecia: “Desde que praticados até 25 de Abril de 1991, inclusive, são amnistiados: (…). gg) As infracções disciplinares puníveis pelo Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto n.º 24/84, de 16 de Janeiro [Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local], directamente ou por remissão, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão, e, bem assim, as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes com estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto; hh) Os ilícitos disciplinares militares quando punidos com pena não superior a oito dias de detenção ou que lhe seja equiparada, desde que a pena haja sido efectivamente cumprida; ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada; jj) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, (…)”. 2.3. - O artigo 7.º, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio – Amnistia 1999, dispunha: “Desde que praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, e não constituam ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral são amnistiadas as seguintes infracções: a) (…); b) (…); c) As infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão ou prisão disciplinar; d) (…).”. (sublinhados e negritos nossos) 3. - O artigo 6.º - Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares - da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, dispõe: “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”. 4. - O artigo 9.º do Código Civil estatui: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” Como escreveu Manuel de Andrade, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das leis, págs. 21 e 26, interpretar a lei consiste em fixar, de entre os sentidos possíveis, o seu sentido e alcance decisivos. Para alcançar tal desiderato, o ponto de partida consiste na sua interpretação literal, isto é, na apreensão do sentido gramatical ou textual da lei (“letra da lei”). Este elemento tem, desde logo, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. O elemento gramatical ou textual tem sempre que ser utilizado em conjunto com o elemento lógico (que por sua vez se subdivide em três: o elemento racional ou teleológico, o elemento sistemático e o elemento histórico). Não pode haver uma interpretação gramatical e outra lógica. O elemento sistemático (“a unidade do sistema jurídico”) compreende a consideração das outras disposições legais que formam o quadro legislativo em que se insere a norma em causa, bem como as disposições que regulam situações paralelas. O elemento racional ou teleológico (“o pensamento legislativo”), consiste na “ratio legis”, no fim prosseguido pelo legislador ao elaborar a norma, a sua razão de ser. Por último, o elemento histórico (“as circunstâncias em que a lei foi elaborada”) compreende o contexto em que foi elaborada, a evolução histórica do preceito, as suas fontes. [Cfr. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, págs. 175 e ss.]. 5. - Do histórico das Leis das Amnistias, pós 25 de abril de 1974, não só foram excluídos os “ilícitos laborais”, no citado artigo 7.º, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, como em nenhuma outra é feita expressa referência a infrações disciplinares laborais privadas e a sanções disciplinares laborais aplicadas por entidades de direito privado, como é o caso da Ré, APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, uma Instituição Particular de Solidariedade Social. Ao contrário, é feita expressa menção a infracções disciplinares aplicadas no sector público, cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos ou associações públicas. 6. - Assim, numa interpretação histórico-teleológica é de afirmar que as infracções disciplinares laborais privadas e as sanções disciplinares laborais aplicadas por entidades de direito privado, não são subsumíveis ao conteúdo do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto. 7. - Tal interpretação é reforçada pelo acórdão n.º 834/2024 do Tribunal Constitucional, de 4 de dezembro de 2024, processo n.º 21/2024, 1.ª Secção, que decidiu: “a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da liberdade de iniciativa privada e da liberdade de empresa decorrente dos artigos 61.º, n.º 1, 80.º, alínea c), e 86.º da Constituição da República Portuguesa, a norma resultante das disposições conjugadas da alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º e do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2.08, segundo as quais são amnistiadas as infrações disciplinares praticadas até às 00h00 de 19.06.2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão disciplinar, quando interpretada no sentido de abranger as infrações disciplinares laborais privadas e as sanções disciplinares laborais aplicadas por entidades de direito privado;”. 8. - Improcedendo, nesta parte, o recurso de revista da Autora, está prejudicada a apreciação da questão da restituição, à Autora, das quantias retidas pela Ré. IV. - Decisão Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social, julgar improcedente o recurso de revista da Autora. Custas a cargo da Autora. Lisboa, 28 de maio de 2025 Domingos José de Morais (Relator) Paula Leal de Carvalho Júlio Manuel Vieira Gomes |