Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
314/22.9JALRA.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
MEIO INSIDIOSO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
PREVENÇÃO ESPECIAL
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/02/2024
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO PARCIAL
Sumário :
I. O recurso tem por objeto um acórdão da Relação proferido em recurso que confirmou a decisão de aplicação de uma pena de 18 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. i) («meio insidioso»), do Código Penal (CP).

II. Os termos em que deficientemente se encontra formulado o recurso perante a Relação face às exigências do artigo 412.º do CPP, levaram a que o acórdão recorrido considerasse a pretensão de impugnação da pena dependente da procedência do recurso no respeitante à alteração da decisão em matéria de facto e, em consequência, a manter a condenação por não terem sido concretamente postos em causa os critérios de determinação da pena.

III. A formulação do recorrente, que pode ser entendida como referindo-se aos «factos provados» no acórdão em 1.ª instância, e a expressa indicação, a final, de pretensa violação do artigo 71.º do CP permitem admitir que tal pretensão se comportava no âmbito do recurso, mesmo em caso de não alteração da matéria de facto, sendo que, tratando-se de matéria de direito, a questão se inscreve nos poderes de conhecimento oficioso do tribunal de recurso; pelo que, não se tratando de questão nova, que levaria à rejeição do recurso, se conhece do acórdão recorrido na parte em que mantém a pena aplicada, aí se considerando incorporada a fundamentação da determinação da pena em 1.ª instância.

IV. Na determinação da pena foram considerados, em particular, as circunstâncias de o crime se ter consumado «através da prática de factos que preenchem uma alínea do art.º 132.º, do Código Penal» e de o arguido ter agido «de uma forma dissimulada, atacando a vítima de surpresa, sem que esta tivesse qualquer hipótese de se defender».

V. Ao proceder à qualificação jurídica dos factos considerou-se, designadamente, que os factos provados preenchem a al. i) do artigo 132.º do CP, isto é, que o arguido usou um «meio insidioso», que «lhe veio a causar a morte», sendo que, no mesmo sentido, deles se extrai que o arguido sabia que «lhe retirava qualquer possibilidade de defesa».

VI. Ao decidir deste modo, seguiu o tribunal a jurisprudência deste STJ que, embora reconhecendo as dificuldades de definição do conceito, que não deve alhear-se das circunstâncias, considera que nele se incluem os casos em que o meio utilizado, podendo aproveitar-se da distração da vítima, se apresenta como enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal, constituindo uma surpresa para a vítima ou colocando-a numa situação de vulnerabilidade ou desproteção em termos de a defesa se tornar difícil, incluindo o ataque súbito e sorrateiro, atingindo-a descuidada, em posição de não resistir.

VII. Tendo sido tidas em conta para efeitos de preenchimento do tipo de crime de homicídio qualificado pela da al. i) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, não podem estas circunstâncias ser de novo consideradas, como foram, para efeitos de determinação da pena, nos termos do artigo 71.º do CP, o que implica que, estando em causa o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração, devam, nesta sede, ser desvalorizadas tais circunstâncias, relevando por via da culpa.

VIII. Donde resulta uma diminuição do limite imposto pela medida da culpa, já agravada pela especial censurabilidade do tipo qualificado de homicídio, que não pode ser excedido por razões de prevenção geral ou especial (artigo 40.º, n.º 2, do CP).

IX. Nesta conformidade, tendo em conta a moldura da pena aplicável, de 12 a 25 anos de prisão, os limites da medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP) e as circunstâncias relevantes por via da prevenção (artigo 71.º, n.º 2, do CP), justifica-se uma intervenção corretiva na determinação da pena, que se fixa em 17 anos de prisão, por, nesta medida, se afigurar mais adequada ao critério de proporcionalidade que preside à sua aplicação.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Por acórdão de 7 de julho de 2023, o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... – ... 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, condenou o arguido AA, com a identificação dos autos, «pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. i), do Código Penal, na pena de prisão por 18 (dezoito) anos».

2. Pelo mesmo acórdão foi também condenado o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão, com suspensão de execução pelo período de um ano, sujeita a regime de prova.

3. Discordando do decidido, recorreu o arguido AA para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão de 13.12.2023, negou provimento ao recurso, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.

4. Em discordância da medida da pena, do acórdão da Relação vem agora interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo mesmo arguido AA, que apresenta motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A) Na determinação da medida da pena, deve ser balizada pelos critérios estabelecidos no n.º 2 do art.º 71.º CPP.

B) Entre os critérios a ter em conta, temos, nomeadamente: os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade; condições pessoais e situação económica do agente; e conduta anterior e posterior ao facto.

C) Na determinação da pena aplicada não foram levados em linha de conta os factores atenuantes, resultantes do ambiente familiar de que o arguido provém, especialmente o ambiente de álcool e violência, do que resulta a ausência de uma “educação para a responsabilidade”.

D) Uma das finalidades das penas é a “reintegração do agente na sociedade” – art.º 40.º do CP.

E) Parece ao recorrente que nos doutos acórdãos anteriormente proferidos em sede dos presentes autos, na avaliação dos factos, se perdeu de vista a reintegração como elemento essencial a ter em conta na aplicação da medida concreta da pena.

F) Não se pode olvidar que a pena deverá ter como baliza a “medida da culpa”, mas também não se pode deixar de ter em vista a reintegração do agente.

G) Sabe-se que penas muito longas em nada favorecem a reintegração do agente, pois que, com o tempo, o recluso vai perdendo contacto com a realidade social e os laços familiares vão-se diluindo.

H) Ou seja, quanto maior a pena, maior a dificuldade do agente na sua reintegração social, assim se negando uma das vertentes pretendidas pela pena – a reintegração.

I. O comportamento do recorrente após o crime, nomeadamente no seio do sistema prisional, é de molde a conferir-nos uma prognose favorável quanto à expectativa de não cometimento futuro de novos crimes.

J) O douto acórdão em apreço não levou em linha de conta, pelo que não sopesou, aqueles factores na graduação da pena.

K) O arguido adaptou-se ao sistema prisional, tendo bom comportamento e estando a ter acompanhamento para se livrar de comportamentos aditivos.

L) Encontra-se a frequentar a escola, tendo como objectivo obter, pelo menos, o 9º ano de escolaridade, o que patenteia a interiorização de que a valorização escolar representa uma mais-valia, querendo aproveitar a oportunidade que o sistema prisional lhe proporciona.

M) Se tivessem sido levados em devida conta os aspectos mencionados na determinação da medida da pena, bem como a reintegração como sua finalidade, não deveria o arguido ser condenado em pena superior a 14 anos de prisão.

N) Ao ter-se decidido pela aplicação da pena de prisão de 18 anos, foram violadas, entre outras, as normas ínsitas nos artºs 40.º, 70.º e 71.º do CPP.

Termos em que (…) deve o presente recurso ser aceite, por tempestivo e legal, e o douto acórdão em apreço ser substituído por outro, decidindo-se pela aplicação ao arguido de uma pena não superior a 14 anos de prisão.»

5. Respondeu o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, dizendo, no sentido da improcedência do recurso, que (transcrição parcial):

«A actividade judicial de determinação da medida concreta da pena, é, consabidamente, uma das mais árduas e ingentes tarefas do julgador, sendo que a sua complexidade e singularidade reside sobretudo na dificuldade que sempre existe quando se pretende traduzir ou fazer corresponder determinadas condutas, ou determinadas características de acção e comportamento numa certa quantidade de pena.

Indiscutível é que, sendo esta concreta tarefa judicial, por isso mesmo, uma actividade largamente discricionária, ela é, ao mesmo tempo juridicamente vinculada, na medida em que o julgador se encontra sujeito e balizado por princípios e valores previamente plasmados na lei (constitucional e ordinária)1.

Nesta matéria, determina desde logo art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (nº 1), e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2).

E o art. 71.º, do Código Penal, por sua vez, consigna que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção»

Estão assim, e desde logo, traçadas as linhas determinantes que hão-de guiar o julgador no espinhoso caminho da determinação da pena concreta.

E daqui decorre, também, que são essencialmente dois os critérios que hão-de presidir à determinação da pena concreta: o da culpa, e o da prevenção (geral e especial).

O que quer dizer que, à face do direito penal vigente, concretamente as normas penais já referidas (as quais, por sua vez, recolhem substrato constitucional por via fundamentalmente dos arts. 1.º, 13.º, n.º 1, e, sobretudo, 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), à culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, sendo em função de considerações de prevenção – geral de integração e especial de socialização – que deve ser determinada, abaixo daquele limite máximo, a medida final da pena.

Residindo as finalidades da aplicação de uma pena primordialmente na “protecção dos bens jurídicos” (art. 40.º, n.º 1, do C. P.), a medida da pena há-de ser fundamentalmente dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados face ao caso concreto.

“A protecção dos bens jurídicos assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida.”2

É a esta ideia de prevenção – de prevenção geral positiva ou prevenção de integração – que iniludivelmente decorre do princípio político-criminal básico da necessidade da pena que o art. 18º, nº 1, da CRP consagra, conjugada com o critério da culpa do agente, a que já se aludiu, que se há-de lançar mão para a fixação do quantum de pena num ponto que permita dar satisfação às expectativas da comunidade na manutenção e reforço da vigência da norma violada.

Definidos assim os limites dentro dos quais se há-de mover o julgador para a determinação da pena concreta, resta acrescentar que,nesta tarefa, deve aquele ter sobretudo em conta os concretos factores de medida da pena que, de forma não exaustiva, se encontram descritos no art. 71º, nº 2, do Código Penal.

Estes podem dividir-se em: a) factores relativos à execução do facto; b) factores relativos à personalidade do agente, e c) factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Tendo em conta o que se vem dizendo, e analisando a realidade que importa valorar, tal qual ela ficou plasmada no quadro fáctico assente como provado, vejamos então se a pena julgada adequada pelo tribunal de 1ª instância, e confirmada neste Tribunal da Relação, deve merecer crítica ou respaldo.

Está em causa um crime de gravidade evidente, punível com pena de 12 a 25 anos de prisão, praticado com dolo directo.

Releva ainda, para o efeito, o carácter inusitado do ataque, realizado sem que nada o fizesse prever, tendo o arguido atacado a vítima por trás, de forma imprevista e traiçoeira, sem permitir que esta pudesse esboçar qualquer defesa. Este é um elemento que não pode deixar de ser levado em conta na apreciação da personalidade do arguido, e para efeito da concretização da medida da culpa.

Relativamente ao comportamento do arguido, ressalta o facto de este ter um passado “condicionado pelos consumos de substâncias, nomeadamente álcool, haxixe, heroína e cocaína, que determinaram a sua vinculação a grupos de pares conotados com comportamentos desviantes, a experiência de consumo de drogas e álcool e a vivências de rua durante alguns anos”. E que regista oito condenações anteriores, é certo que respeitantes a crimes de média/baixa intensidade, mas que revelam uma personalidade anti-jurídica, sem grande apreço pelas normas por que se rege a sociedade.

E, quanto à conduta posterior ao facto, importa também realçar, como se menciona na decisão recorrida, que não se mostra que o arguido “tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou, pelo que, também por aí, o mesmo não demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade das suas condutas”.

Como atrás se referiu, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que à culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, e a determinação concreta da medida final da pena, ser efectivada em função das necessidades de prevenção – geral e especial – que o caso suscita.

Ora em termos de prevenção geral de integração, deveremos aqui relembrar que, residindo as finalidades da aplicação de uma pena primordialmente na “protecção dos bens jurídicos” (art. 40º, nº 1, do C. P.), a medida da pena há-de ser fundamentalmente dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados.

E o bem jurídico em causa – a vida – está situado no topo dos bens a proteger, sendo o direito à vida muito justamente aquele que se encontra à cabeça do elenco de direitos fundamentais que a nossa Constituição reconhece, e cuja defesa impõe (art. 24º, da Constituição da República Portuguesa).

Percebe-se assim, que no caso concreto, “as expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida” são bastante elevadas.

Uma devida avaliação de todos os elementos de facto dados como provados e uma judiciosa ponderação de todos os interesses em jogo – do arguido, da vítima, e da própria comunidade – leva-nos a concluir que a medida da pena encontrada se mostra correcta, no sentido em que responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária e proporcional, e não pode considerar-se que exceda o limite da culpa do arguido.

Foram, portanto, correctamente observados os critérios legais atinentes à determinação da medida da pena, designadamente os enunciados no art. 71º, do Código Penal, não resultando que a decisão recorrida tenha violado qualquer norma jurídica, designadamente as indicadas pelo recorrente.

Pelo que é nosso parecer que a mesma deve ser integralmente confirmada, julgando-se o recurso improcedente.»

6. No mesmo sentido se pronunciam as assistentes, nas suas respostas, dizendo, em conclusões:

6.1. A assistente CC, por si e em representação de sua filha menor, DD (na parte que agora interessa, respeitante ao acórdão da Relação e à medida da pena aplicada):

«(…)

12 - Ora ao analisarmos o douto Acórdão recorrido proferido pelo Venerando Tribunal da Relação, verificamos que também este ao analisar o recurso interposto pelo Arguido / Recorrente teve em consideração todos os elementos de prova constantes dos autos, tanto a prova produzida em audiência de julgamento como as que foram juntas aos autos.

13 - Logo, também neste douto acórdão, foram analisados os critérios legais para a determinação da pena.

14 - Ora, se o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra decidiu não alterar qualquer ponto da matéria de facto dada por provada, seja a que título for, conforme tinha sido requerido do douto recurso do Arguido / Recorrente, foi com certeza porque entendeu que o colectivo de juízes do tribunal da 1ªInstância fez uma correcta interpretação e valoração de toda a prova produzida.

15 - Entendendo ainda que na aplicação da medida da pena de 18 anos de prisão foram tidos em conta todos os factores, quer os que agravam como os que atenuam o dolo do Arguido / Recorrente.

16 - Também os outros pressupostos mencionados no artigo 71.º do C. Penal foram tidos em conta, já que dos factos dados por provados no douto Acórdão da 1ª Instância e confirmados pelo Venerando Tribunal da Relação, verificamos que foram dados por provados os factos mencionados pelo Arguido / Recorrente.

17 - Factos estes que foram todos tidos em conta na determinação da medida da pena aplicada ao Arguido / Recorrente, tendo o colectivo de juízes da 1ª Instância, após ponderação de todos os factos, entendido que era adequado aplicar a pena de 18 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado. Decisão essa que, foi analisada e confirmada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, através do douto acórdão ora recorrido.

18 - Pelo que, salvo melhor opinião, encontram-se preenchidos todos os requisitos do artigo 71º do C. Penal, não tendo havido qualquer violação do referido artigo. Logo não assiste qualquer razão no que é alegado pelo Arguido / Recorrente.

19 - Finalmente, não se pode esquecer, que ficou provado que o Arguido / Recorrente agiu com dolo directo, bem sabendo que a sua conduta, neste caso munir-se de uma faca e abeira-se da vítima por trás e espetá-la no peito desta, o que fez utilizando o meio insidioso, iria provocar a morte da vítima. E, conformou-se com esse resultado. Além de não ter demonstrado qualquer arrependimento pelo que fez.

20 - Pelo que, salvo melhor opinião, é entendimento da Assistente / Recorrida que o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra decidiu da forma correcta, não merecendo o mesmo qualquerreparo, nem padece de erro de prova como o Arguido / Recorrente alega, e por isso deverá manter-se nos precisos termos em que foi proferido.»

6.2. E a assistente EE:

«1º- Vem o arguido AA apresentar o Recurso a que se responde, dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça,

2º- Recurso esse restrito a matéria de Direito, concretamente à medida da pena aplicada ao recorrente.

3º- Tal Recurso não pode deixar de ser julgado totalmente improcedente, uma vez que carece, em absoluto, de qualquer fundamento válido.

4º-. Efectivamente, todos os elementos constantes dos autos levam a concluir que foram correctamente observados todos os critérios legais atinentes à determinação da medida da pena ora posta em crise,

5º- Não resultando, por nenhuma forma, que a decisão em análise tenha violado qualquer norma jurídica – designadamente, as invocadas pelo arguido.

6º- Assim, deve a decisão recorrida manter-se, na íntegra (…).»

7. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer de concordância com a condenação e com o Ministério Público na Relação, nos seguintes termos:

«Por razões de economia expositiva damos por integralmente reproduzida a factualidade em que assenta a condenação.

Acompanhamos e subscrevemos a argumentação desenvolvida pelo Sr. procurador-geral-adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra.

Em seu reforço acrescentaremos apenas que o arguido cometeu um crime que a lei classifica de especialmente violento (art. 1.º, al. l), do Código de Processo Penal) e cuja repressão o legislador erigiu como um dos objetivos específicos da política criminal (v. o art. 3.º, al. a), da Lei n.º 55/2020, de 27 de agosto, que definiu os objetivos, prioridades e orientações da política criminal para o biénio de 2020-2022, e o art. 3.º, al. a), da Lei n.º 51/2023, de 28 de agosto, que define os objetivos, prioridades e orientações da polí-tica criminal para o biénio de 2023-2025).

O grau de culpa, aferido pelo dolo direto com que agiu e pela ligeireza dos motivos que o levaram a acometer a vítima (factos provados 1, 5 e 6) (1), ambos redundando num maior juízo de censura ético-jurídico (2), situa-se num patamar elevado.

As necessidades de prevenção geral, em atenção ao bem jurídico violado (a vida humana) e à perturbação social que provoca, são elevadíssimas.

As exigências de prevenção especial, à vista do desregrado e disfuncional processo de crescimento, do insuficiente suporte familiar e da situação pessoal do arguido (factos provados 15 a 21), da sua exígua escolaridade (facto provado 22), da inatividade e instabilidade laborais (factos provados 23 a 25), dos consumos de substâncias psicotrópicas e de álcool que, em liberdade, foi incapaz de abandonar (factos provados 26 e 27), dos antecedentes criminais (facto provado 32) e da personalidade violenta revelada na co-missão do crime, são igualmente bastante impressivas.

O invocado bom comportamento prisional, com adesão ao acompanhamento terapêutico de desintoxicação e frequência de aulas em ordem à conclusão do 9.º ano de escolarida-de (factos provados 28 e 30) é o mínimo que se pode exigir de um recluso toxicodependente e com baixa escolaridade.

Tudo somado, temos por certo que a pena de 18 anos de prisão adequa-se equilibradamente aos fatores estabelecidos nos arts. 40.º e 71.º do Código Penal e que, por conseguinte, não existe fundamento para a sua redução.»

8. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

9. Não tendo sido requerida audiência, seguiu o recurso para a conferência – artigo 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.

Apreciando e decidindo.

II. Fundamentação

Dos factos

10. Mostram-se estabelecidos os seguintes factos, dados como provados no acórdão da 1.ª instância, que o tribunal da Relação manteve inalterados:

«A- Factos Provados:

Da acusação:

1- No dia .../.../2022, cerca das 18h e 55m, encontravam-se no parque de estacionamento de veículos automóveis situado junto ao Centro Comercial ..., sito na Rua..., na cidade das ..., BB, o arguido AA e FF, os quais se encontravam todos a “arrumar” carros

2- O arguido BB, após uma breve troca de palavras abeirou-se de FF e, desferiu-lhe diversos murros, em diversas zonas do corpo.

3- Por via dessas agressões, resultaram para FF, múltiplas escoriações e equimoses em vários segmentos anatómicos que, de forma directa, adequada e necessária provocaram-lhe dores e mau estar físico e psicológico, bem como, sem consequências ou lesões de carácter permanente, que provocassem alterações funcionais ou efeitos desfigurantes.

4- O arguido AA detinha na sua posse uma faca com 19,5cm de comprimento total, sendo 9 cm correspondentes à lâmina, a qual tinha serrilha no respectivo gume, e 10 cm de cabo, em plástico e de cor preta.

5- Então, o BB iniciou discussão com FF, motivada por dissenso acerca do estacionamento de veículos automóveis no referido parque de estacionamento, na sequência da qual se empurraram mutuamente.

6- A dada altura, o arguido AA, irmão do arguido BB, apercebeu-se da referida discussão, empunhou a faca acima descrita que trazia consigo e, de seguida, abeirou-se de FF pelas costas do mesmo e, passando o seu braço para a frente, espetou-lhe a referida faca no peito.

7- Na sequência dos factos acima descritos FF caiu ao chão e os arguidos abandonaram o local apeados, tendo o arguido AA levado a supra mencionada faca consigo, a qual foi esconder atrás de um bastidor de telecomunicações, instalado na Rua ..., sita na cidade das ..., a cerca de 91,67 metros do local onde sucederam os factos acima descritos.

8- FF foi transportado para o CHO- ... pelos Bombeiros Voluntários ..., apresentando pupilas em midríase, não reactivas, encontrava-se pálido, com livores da região cervical e extremidades e ferida penetrante na região pré-cordial, com cerca de 1 cm de comprimento.

9- FF veio a falecer pelas 19h e 50m do dia .../.../2022, em virtude das lesões acima descritas e que lhe foram todas provocadas pelo arguido AA, tendo a sua morte sido causada pela lesão traumática com atingimento cardíaco, com consequente hemotórax esquerdo e hemopericárdio, consequente do uso da faca pelo arguido AA.

10- Cerca das 02h e 30m o arguido AA foi interceptado pelos inspectores da Polícia Judiciária, tendo sido detido por aquela Polícia.

11- Ao actuar da forma acima descrita o arguido AA quis e conseguiu munir-se da faca acima descrita e cujas características bem conhecia e com a mesma desferir um golpe no peito de FF, actuando pelas costas deste, bem sabendo que lhe retirava qualquer possibilidade de defesa e que poderia atingir os seus órgãos vitais, como se veio a verificar, tendo actuado sempre com intenção de tirar a vida a FF, o que conseguiu, tendo agido nas costas da vítima, assim actuando com indiferença e desrespeito pela vida humana.

12- O arguido AA agiu sempre de modo livre voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida pela Lei.

13- Agiu deliberadamente o arguido BB, com intenção de ferir, magoar, provocar dor e molestar fisicamente FF, desferindo vários murros no corpo deste.

14- O arguido BB agiu sempre de modo livre voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida pela Lei.

Pessoais do arguido AA:

15- À data dos factos pelos quais está acusado nos presentes autos, o arguido vivia numa situação de sem abrigo nas ..., na sequência da incompatibilização com o padrasto, entretanto falecido, situação que mantinha desde 2020, e partilhava com o irmão BB um espaço devoluto onde antes funcionava uma fábrica; pontualmente contactava com a família, nomeadamente a mãe, então residente em ....

16- O pai residia em ..., mas os contactos com ele eram ocasionais.

17- AA é o terceiro de 5 irmãos germanos., tendo sido o relacionamento intrafamiliar marcado pelos comportamentos violentos do pai, com problemática alcoólica, para com a mãe; os pais estão separados há cerca de 15 anos.

18- A mãe liderou a prestação de cuidados e a educação dos filhos, num contexto de dificuldades económicas, sendo o padrão educacional marcado pela permissividade e pela aquisição precoce por parte do arguido de uma autonomia disfuncional.

19- No final de novembro de 2022, a mãe mudou-se para ..., mas mantém com o arguido uma relação de proximidade, visitando-o ao filho, comunicando entre si por telefone e sempre que possível realizando carregamentos para telefone e cantina, sempre que a situação económica o permite.

20- O arguido AA tem uma filha, actualmente com 6 anos de idade, fruto de uma relação iniciada na adolescência.

21- A deterioração daquela relação está relacionada com os consumos de drogas, culminando na separação há cerca de 3 ou 4 anos.

22- AA está habilitado com o 6º ano de escolaridade, num percurso de desinteresse, fraca motivação e absentismo.

23- Trabalhava indiferenciadamente consoante as ofertas que ia recebendo, essencialmente no ramo agrícola e, por cada dia de trabalho recebia entre 25 a 30 euros e trabalhava em média dois dias por semana.

24- Nos dias em que não recebia ofertas de trabalho, dedicava-se a arrumar carros na cidade de ... e foi beneficiário do rendimento social de inserção, mas a prestação foi cessada porque o arguido não apresentou baixa médica.

25- Antes, desenvolveu actividades em diversas áreas de trabalho, nomeadamente construção civil, mariscador, apanha de algas (limo) e apanha de fruta, numa perspectiva de assegurar apenas a sua sobrevivência.

26- O dia-a-dia de AA era condicionado pelos consumos de substâncias, nomeadamente álcool, haxixe, heroína e cocaína, que determinaram a sua vinculação a grupos de pares conotados com comportamentos desviantes, a experiência de consumo de drogas e álcool e a vivências de rua durante alguns anos.

27-Era acompanhado no CRI..., onde nem sempre comparecia às consultas, chegando mesmo a recusar encaminhamento para comunidade terapêutica.

28- No Estabelecimento Prisional de ... continua a beneficiar do acompanhamento terapêutico do CRI, integrando o programa de metadona, ao qual tem aderido e adere à intervenção clínica, frequentando as consultas de psiquiatria, com apoio medicamentoso, e de psicologia.

29- Em prisão preventiva desde 28 de março de 2022 à ordem dos presentes autos, a actual situação processual é vivida pelo arguido com apreensão e tristeza, mostrando-se tendencialmente abatido, mas na interacção pessoal é educado e respeitador.

30- Frequenta diariamente o ensino, com o objectivo de obter o 9º ano de escolaridade, para o qual se mostra motivado.

31- É acompanhado pela DGRSP, no âmbito da suspensão de execução da pena de prisão determinada no processo 263/20.5...

32- Já foi condenado nos Proc:

a) 23/10.1..., do Tribunal judicial de ..., por decisão de 13/06/11, transitada em julgado em 13/07/11, pela prática, em 31/01/10, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 8 meses de prisão, substituída por 240 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €.

b) 203/09.2..., do Tribunal Judicial de ..., por decisão de 30/09/11, transitada em julgado em 13/07/11, pela prática, em 12/03/12, de um crime de posse ilegal de arma, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, depois substituída por 150 horas de trabalho, cumprindo depois a prisão subsidiária.

c) 8/12.3..., do Tribunal judicial de ..., por decisão de 10/05/13, transitada em julgado em 7/06/13, pela prática, em 12/01/12, de um crime de consumo, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €.

d) 6/18.3..., do Juízo Local Criminal de ..., por decisão de 4/04/18, transitada em julgado em 4/05/18, pela prática, em 26/02/18, de um crime de dano contra a natureza, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa por igual período.

e) 4/18.7..., do Juízo Local Criminal de ..., por decisão de 27/11/18, transitada em julgado em 9/01/19, pela prática, em 2/02/18, de um crime de dano contra a natureza, na pena de 4 meses de prisão, suspensa por 1 ano.

f) 1559/21.4..., do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ..., por decisão de 30/11/21, transitada em julgado em 9/01/23, pela prática, em 14/11/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €.

g) 309/18.7..., do Juízo Local Criminal de ..., por decisão de 28/10/19, transitada em julgado em 27/11/19, pela prática, em 26/08/18, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 1 ano.

h) 263/20.5..., do Juízo Local Criminal de ..., por decisão de 22/03/22, transitada em julgado em 20/05/22, pela prática, em 14/09/20, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 14 meses de prisão, suspensa por igual período.

(…)»

Do objeto e âmbito do recurso

11. O recurso, circunscrito a matéria de direito (artigo 434.º do CPP), tem, pois, por objeto um acórdão da Relação proferido em recurso, que confirmou a decisão de aplicação de uma pena superior a 8 anos de prisão, recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP].

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

12. Como tem sido repetidamente afirmado (por todos, o acórdão de 21.02.2024, Proc. 424/21.0PLSNT.S1.L1.S1, remetendo para o acórdão de 02-10-2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, com abundante citação de jurisprudência), o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não é um segundo recurso do acórdão da 1.ª instância, mas um recurso do acórdão da Relação que conheceu daquele recurso.

Os recursos não servem para conhecer de novo da causa; constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, acórdãos de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, e jurisprudência e doutrina neles citada, em www.dgsi.pt).

Os argumentos do recorrente entender-se-ão, assim, como dirigidos ao acórdão da Relação.

13. Tendo em conta as conclusões da motivação, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir se o acórdão da Relação, ao confirmar a condenação na pena de 18 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, violou o regime de determinação da medida da pena, em desrespeito pelos critérios de adequação e proporcionalidade que lhe presidem e se, na afirmativa, como pretende, a pena deve ser reduzida para medida que o arguido considera dever fixar-se em 14 anos de prisão.

14. A discordância do recorrente, na convocação do regime aplicável (artigos 40.º e 71.º do CP), funda-se na alegação de circunstâncias relevantes por via da prevenção, em particular de que «não foram levados em linha de conta os factores atenuantes, resultantes do ambiente familiar de que o arguido provém, especialmente o ambiente de álcool e violência, do que resulta a ausência de uma “educação para a responsabilidade”, «se perdeu de vista a reintegração como elemento essencial a ter em conta na aplicação da medida concreta da pena», e «não levou em linha de conta, pelo que não sopesou» «o comportamento do recorrente após o crime, nomeadamente no seio do sistema prisional, [que] é de molde a conferir-nos uma prognose favorável quanto à expectativa de não cometimento futuro de novos crimes», nomeadamente a sua adaptação e o bom comportamento em meio prisional, o acompanhamento «para se livrar de meios aditivos», o facto de se encontrar a frequentar a escola «tendo como objectivo obter, pelo menos, o 9º ano de escolaridade, o que patenteia a interiorização de que a valorização escolar representa uma mais-valia, querendo aproveitar a oportunidade que o sistema prisional lhe proporciona.»

15. A decisão do Tribunal da Relação que aprecia a aplicação da pena, centrando-se no dolo, que, com outros, constitui apenas um dos fatores a considerar na graduação da culpa (infra, 17), encontra-se sinteticamente fundamentada nos seguintes termos:

«Ao propender que o arguido não cometeu o crime por que vem acusado e que a pena que lhe foi aplicada se revela excessiva, alega o recorrente no corpo da motivação do recurso, que:

“V. O dolo

É o arguido condenado por dolo directo – logo, actuando com manifesta intenção de causar a morte da vítima (cfr. ponto 2.1. – al. b), do douto acórdão)

No entanto, se havia de facto intenção do arguido em causar a morte de FF, não deixa, mais uma vez, e nos termos já anteriormente referidos, de se ‘estranhar’ o modo de actuação daquele.

Conforme alegado supra, a tese sufragada no douto acórdão de o arguido ter passado o braço para a frente da vítima não faz qualquer sentido, segundo as regras da experiência comum, pelo que faz mais sentido a versão apresentada pelo arguido, de que ele e a vítima se “enrolaram” e esta caiu sobre a faca.

Dos autos nenhum elemento consta que nos possa levar a concluir que houve intenção de matar, premeditação ou outro facto que nos possa levar a concluir pelo dolo, muito menos pelo dolo directo.

O próprio arguido, ao indicar a localização da faca, está a assumir as suas responsabilidades, não sendo tal postura (muito) compatível com quem actua com dolo.

O ocorrido não passou de um acidente com um fim trágico; mas tal fim não transforma os acontecimentos em homicídio doloso.

VI. A medida concreta da pena

Atentos os factos apurados, conforme supra referido, não pode a pena arbitrada ao arguido simplesmente manter-se, uma vez que não há elementos que possam subsumir os factos apurados à categoria de dolo directo, ou sequer de dolo em qualquer das suas modalidades.

Os factos apurados levar-nos-ão, quanto muito, à conclusão de actuação por negligência.

Tal conclusão obrigará à reponderação da pena concretamente apurada ao arguido, a qual terá de ser num grau bastante reduzido comparativamente à arbitrada no douto acórdão em análise.”

Sintetizando tal argumentação recursiva nas Conclusões G) a J).

Como se vê da argumentação que está subjacente a tais pretensões recursivas, a razão da discordância que, através das mesmas, se assaca ao acórdão recorrido, esteia-se, unicamente, na almejada, mas não conseguida, alteração de decisão da matéria de facto que subjaz ao enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido e ora recorrente no tipo legal do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. i), do Código Penal, por força do qual foi o mesmo condenado na pena de 18 (dezoito) anos de prisão.

Permanecendo inalterada, conforme já por nós apreciado, a factualidade provada decidida no acórdão recorrido, não nos merecendo qualquer censura a ponderação do respectivo enquadramento jurídico-penal feita no mesmo, sendo, por isso, de sufragar a condenação do arguido pela prática do referido e imputado crime; e, tendo sido dentro da moldura abstracta a este correspondente – prisão de 12 a 25 anos – fixada a pena concreta de 18 anos de prisão, sem que os critérios levados em conta quanto à respectiva fixação venham, por qualquer forma, postos em causa em sede recursiva, é, pois, de manter a condenação do arguido nos exactos termos decididos no acórdão recorrido.

Face ao que, se julga totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido.»

16. Os termos em que, como reconhece o tribunal a quo, deficientemente se encontra formulado o recurso perante a Relação face às exigências de especificação impostas pelo artigo 412.º do CPP, quer em matéria de facto quer em matéria de direito, levaram, pois, a que o acórdão recorrido considerasse a pretensão de impugnação da pena dependente da procedência do recurso no respeitante à alteração da decisão em matéria de facto e, em consequência, a manter a condenação por não terem sido concretamente postos em causa os critérios de determinação da pena.

A formulação do recorrente – alega que “Atentos os factos apurados, conforme supra referido, não pode a pena arbitrada ao arguido simplesmente manter-se, uma vez que não há elementos que possam subsumir os factos apurados à categoria de dolo directo, ou sequer de dolo em qualquer das suas modalidades», que pode ser entendida como referindo-se aos «factos provados» no acórdão em 1.ª instância ou aos factos que o recorrente entende deverem considerar-se provados e a expressa indicação, a final, de pretensa violação do artigo 71.º do Código Penal permitem admitir que tal pretensão se comportava no âmbito do recurso, mesmo em caso de não alteração da matéria de facto (como sucedeu), sendo que, tratando-se de matéria de direito, a questão se inscreve nos poderes de conhecimento oficioso do tribunal de recurso.

Assim, não se tratando de questão nova posta no recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, passa a conhecer-se do acórdão recorrido na parte em que mantém a pena aplicada, aí se considerando incorporada a fundamentação da determinação da pena.

17. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito (sobre estes pontos, que seguidamente se desenvolvem, na determinação do sentido e alcance do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, como habitualmente, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357 – cfr., de entre muitos outros, o acórdão de 15.1.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, e, de entre os mais recentes, o acórdão de 25.9.2024, Proc. 3808/21.0JAPRT.S1, em www.dgsi.pt).

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)].

O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na consideração destes fatores, determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), que devem pautar a sua aplicação (assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.). Não se podendo fundar em considerações preventivas de ordem geral pressupostas na definição dos crimes e das molduras abstratas das penas em vista da adequada proteção dos bens jurídicos postos em causa, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado há de comportar-se no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), tendo em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização (salientando este ponto, entre muitos outros, o acórdão de 29.4.2020, Proc. 16/05.0GGVNG.S1, em www.dgsi.pt).

18. Na determinação da pena foram considerados, em particular:

(a) quanto ao grau de ilicitude do facto, ao modo de execução deste e à gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente: a circunstância de o crime se ter consumado «através da prática de factos que preenchem uma alínea do art. 132.º, do Código Penal, como melhor descrito supra»

(b) quanto à intensidade do dolo: tratar-se de dolo direto, de maior intensidade;

(c) quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins ou motivos que o determinaram: o facto de o arguido ter agido «de uma forma dissimulada, atacando a vítima de surpresa, sem que este tivesse qualquer hipótese de se defender»;

(d) quanto à condição pessoal do arguido: o constante dos factos provados 15 a 31, «dos quais se pode concluir que o arguido, após um período em que esteve emigrado, a trabalhar, encontrava-se praticamente sem ocupação, fazendo ocasionalmente alguns biscates e arrumando carros, entregando-se ao consumo de estupefacientes. Vivia em situação de quase sem abrigo, embora mantivesse um contacto com a ex-companheira e a filha menor de ambos. Dotado de fracas habilitações escolares, parece estar a aproveitar a sua reclusão para melhorar a sua formação»;

(e) quanto à conduta anterior e posterior aos factos, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime: que «há que realçar que o arguido tem diversas condenações averbadas no seu CRC, por crimes diversos, desde ofensa à integridade física, arma proibida, condução sem habilitação legal, danos contra a natureza, mantendo porém comportamento adequado no EP», que «em audiência de julgamento, o arguido admitiu os factos imputados, mas procurando dar uma versão dos factos mais compatível com uma situação de legítima defesa, que não se mostrou credível em confronto com os demais meios de prova, como supra se referiu. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial.»

Considerou ainda o tribunal que «Por fim, nada traduz nos autos que o arguido tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou, pelo que, também por aí, o mesmo não demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade das suas condutas.»

Concluindo: «Em suma, as considerações de prevenção geral são elevadas, uma vez que o crime em causa (homicídio) constitui o mais grave dos crimes previstos no nosso ordenamento jurídico-penal. Quanto à prevenção especial, as penas a aplicar têm de fazer sentir convenientemente ao arguido a reprovabilidade das suas condutas, condição essencial para o arguido não tornar a delinquir. A culpa situa-se em níveis altos, sendo que era exigível ao arguido que não praticasse os actos que praticou.»

Pelo que «Nestes termos, tudo ponderado, afigura-se-nos adequada a pena de: 18 (dezoito) anos de prisão, pela prática do crime de homicídio qualificado.»

19. Ao proceder à qualificação jurídica dos factos, confirmada no acórdão recorrido, considerou-se, designadamente, que os factos provados preenchem a al. i) do artigo 132.º do CP, isto é, que o arguido usou um «meio insidioso» porque «aproveitando-se da distracção da vítima, envolvido com o arguido BB, aproximou-se por detrás, de forma imprevista, empunhando a faca, que espetou no peito da vítima - o que lhe veio a causar a morte», referindo-se ao ponto 6 da matéria de facto provada, sendo que, no mesmo sentido, se extrai do ponto 11 que o arguido sabia que «lhe retirava qualquer possibilidade de defesa».

Ao decidir deste modo, em termos que não vêm questionados nem se mostram controvertidos, seguiu o tribunal a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que, embora reconhecendo as dificuldades de definição do conceito, que não deve alhear-se das circunstâncias, considera que nele se incluem os casos em que o meio utilizado, podendo aproveitar-se da distração da vítima, se apresenta como enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para com a vítima, constituindo para ela uma surpresa ou colocando-a numa situação de vulnerabilidade ou desproteção em termos de a defesa se tornar difícil, incluindo o ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada, em posição de não resistir (por todos, o acórdão de 15.1.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, cit., com abundante citação de doutrina e jurisprudência).

O que significa que, tendo sido tidas em conta para efeitos de preenchimento do tipo de crime de homicídio qualificado pela circunstância da al. i) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, não podem estas circunstâncias ser de novo consideradas, como foram, para efeitos de determinação da pena, nos termos do artigo 71.º do CP.

E implica que, estando em causa o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração, devam, nesta sede, ser desvalorizadas as duas circunstâncias indicadas nas alíneas a) e c) do ponto 18 (supra), respeitantes ao grau de ilicitude do facto, ao modo de execução deste, à gravidade das suas consequências, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins ou motivos que o determinaram [als. a) e c) do n.º 2 do artigo 71.º do CP], relevando por via da culpa.

Donde resulta uma diminuição do limite imposto pela medida da culpa, já agravada pela especial censurabilidade do tipo qualificado de homicídio, que não pode ser excedido por razões de prevenção geral ou especial [artigo 40.º, n.º 2, do CP – supra, 17].

20. Devendo a pena preventiva situar-se nos limites da culpa, para cuja agravação, dentro daquele limite, contribui a «ligeireza do motivo» que levou o arguido a praticar o homicídio, relevam agora decididamente para a sua fixação, a ter em conta no momento da condenação, os fatores a considerar por via da prevenção que os factos provados identificam, em particular (a) as condições pessoais, económicas, socais e familiares do arguido, que refletem um quadro negativo de grande fragilidade, dominado pela toxicodependência, não favorável à ressocialização, e (b) o comportamento anterior e posterior ao crime, que projetam indicações desvaliosas de personalidade com falta de preparação para manter uma conduta lícita, apesar da evolução positiva iniciada no estabelecimento prisional, que deve ser considerada, com o afastamento do consumo de drogas ilícitas, a adesão a programas de tratamento e apoio e o investimento na formação.

Evidencia-se, nesta dimensão, uma situação reveladora de elevadas necessidades de prevenção especial, embora, pelas razões anteriormente expostas, não se possam subscrever integralmente as considerações finais das instâncias a este propósito.

21. Nesta conformidade, tendo em conta a moldura da pena aplicável, de 12 a 25 anos de prisão, na ponderação das circunstâncias indicadas, nos termos do artigo 71.º do CP, e os limites da medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP), justifica-se uma intervenção corretiva na determinação da pena, que se fixa em 17 anos de prisão, por, nesta medida, se afigurar mais adequada ao critério de proporcionalidade que preside à sua aplicação, em vista da realização das finalidades de proteção do bem jurídico ofendido e de integração do arguido na sociedade.

Termos em que, embora com fundamentos diversos dos convocados pelo recorrente, se concede parcial provimento ao recurso.

Quanto a custas

22. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O que não é o caso.

III. Decisão

23. Pelo exposto, acorda-se em conferência da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, alterando-se a decisão recorrida e fixando-se em 17 anos a pena de prisão aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado por que vem condenado.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de outubro de 2024

José Luís Lopes da Mota (relator)

António Augusto Manso

José Carreto

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1. “O juiz penal dispõe de uma larga margem de poder discricionário que, todavia, não é ilimitado nem incontrolável, sendo o seu uso susceptível de apreciação em via de recurso pelos tribunais superiores (...), a cujos poderes de censura apenas escapam certos componentes individuais do julgador, não inteiramente controláveis de um modo racional.” – Ac. do STJ, de 24/02/1988: BMJ 374, pp. 229 e sgs.

2. Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, p. 302.