Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA ADMISSIBILIDADE DA REVISTA VALOR DA CAUSA CASO JULGADO FORMAL | ||
Data do Acordão: | 06/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO | ||
Sumário : | I. O artigo 14º, 1, do CIRE estabelece um regime atípico e restrito de revista para o STJ, que, na apreciação da respectiva admissibilidade, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade das decisões judiciais, desde logo o que respeita ao valor da causa em face da alçada da Relação (arts. 629º, 1, CPC, 17º, 1, CIRE); não sendo superior à alçada da Relação (como tribunal recorrido) o valor fixado no despacho saneador e na sentença de 1.ª instância, com fundamento no art. 301º do CIRE, tal decisão incidental constitui caso julgado formal (art. 620º, 1, CPC) por falta de impugnação tempestiva em recurso próprio (art. 644º, 1, a), CPC), implicando que não pode ser manifestamente admitida e conhecida a revista, avaliação esta feita à luz do valor que transitou e vale de acordo com os termos do art. 296º, 1 e 2, do CPC. II. A faculdade recursiva oferecida pelo art. 42º, 1, do CPC, proferido acórdão da Relação em sede de impugnação da sentença declaratória de insolvência, está submetida ao regime do recurso de revista para o STJ estabelecido no art. 14º, 1, do CIRE. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 2648/23.6T8VFX.L1-A.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. A sociedade «NORTETOS, Lda.» instaurou acção declarativa com requerimento de insolvência contra a sociedade «PAVIANA – Construções Lda.» 2. Citada, a Requerida apresentou Contestação. 3. Foi proferido despacho saneador, no qual: i. se fixou o valor da causa nos seguintes termos – “Na ausência de indicação do valor do ativo, o valor da ação correspondente a € 30.000 (trinta mil euros), cfr. artigo 301.º, primeira parte, do CIRE, sem prejuízo do disposto no artigo 15.º do aludido diploma.”; ii. se julgou improcedente a excepção de erro na forma de processo; iii. se julgou improcedente a excepção da falta de interesse em agir; iv. se julgou procedente a excepção dilatória da nulidade do processo por erro na forma aplicável, e, em consequência, indeferir liminarmente o requerimento incidental, formulado na contestação, de condenação da Requerente em indemnização; v. se fixou como objecto do litígio a “declaração de insolvência da Requerida, com fundamento na impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas”. Não houve impugnação do despacho incidental sobre o valor da causa. 4. Após realização de audiência final, o Juiz ... do Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira proferiu sentença, julgando totalmente improcedente por não provada a acção e absolvendo a Requerida do pedido. Mais se fixou novamente o valor da causa no valor “já fixado, € 30.000”. 5. Inconformada, a Autora e Requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão que julgou procedente o recurso e revogou a sentença recorrida, decretando a insolvência da sociedade Requerida e o prosseguimento dos autos. 6. Sem se resignar, a Requerida interpôs recurso de revista com fundamento no art. 14º, 1, do CIRE, invocando oposição jurisprudencial com os Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6/10/2011, e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 8/5/2012, juntando cópias da respectiva publicação na base de dados www.dgsi.pt. A Requerente apresentou contra-alegações, suscitando a inadmissibilidade da revista à luz do art. 629º, 1, do CPC. A Requerida apresentou pronúncia quanto a esta inadmissibilidade, sustentando, nomeadamente, a não aplicação desse art. 629º, 1, do CPC, quando se convoca a norma especial do art. 14º, 1, do CIRE. 7. Subidos os autos, foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, e 17º, 1, do CIRE, atenta a questão da apontada inadmissibilidade do recurso e salvaguardado o cumprimento do ónus de apresentação de um só acórdão fundamento idóneo para a oposição jurisprudencial. Tal mereceu pronúncia da Requerida e Recorrente, que reiterou a não submissão do regime recursivo do art. 14º, 1, do CIRE à disciplina do art. 629º, 1, do CPC, por ser regime especial; invocou a admissão do recurso pelo tribunal recorrido; alegou a previsão do art. 42º do CIRE independentemente do valor da causa; considerou que o valor da acção não se encontra definido para efeitos processuais. ∗ Foram colhidos os vistos nos termos legais. Cumpre apreciar e decidir em conferência, enfrentando como questão prévia a admissibilidade do recurso. II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS Questão prévia da admissibilidade do recurso1 8. A decisão proferida em 1.ª instância e reapreciada pela Relação, sendo tramitada endogenamente nos próprios autos do processo regulado nos arts. 18º e ss do CIRE, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE (segmento tirado no AUJ n.º 13/2023, de 17/10/20232), tal como configurado pela Recorrente, que configura uma revista atípica e restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade, em termos exclusivos e esgotantes, de revista para o STJ do acórdão recorrido. Exclusivos e esgotantes por afastar, em geral, o regime de revista normal, assim como os regimes especiais de revista excepcional assente em “dupla conformidade decisória” e de revista extraordinária baseada nas situações gerais previstas no art. 629º, 2, do CPC («é sempre admissível recurso»). Assim, a admissibilidade desta revista depende, em especial, de ser invocada, como ónus processual do recorrente, e assente uma oposição de julgados com um (e um só) outro acórdão do STJ ou das Relações, com vista a inscrever tal conflito jurisprudencial como condição de acesso ao STJ («No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.»). 9. Sem prejuízo, e antes de sequer de se convidar a parte recorrente a indicar um só dos acórdãos considerados como fundamento da oposição e comprovar por certidão o respectivo trânsito em julgado, a revista atípica prevista no art. 14º, 1, do CIRE não prescinde, de todo o modo (como é consensual julgar-se nesta Secção do STJ, com competência especializada para estas acções nos termos do art. 128º da LOSJ, em inúmeras decisões tornadas públicas), na avaliação da sua admissibilidade, do preenchimento dos requisitos gerais estatuídos no art. 629º, 1, do CPC, demandado pela remissão feita pelo art. 17º, 1, do CIRE: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)». Este preceito impõe que, enquanto condição geral de recorribilidade das decisões judiciais, a admissibilidade do recurso ordinário esteja dependente da verificação cumulativa desses dois pressupostos jurídico-processuais: (i) o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; (ii) a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna. Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 (art. 44º, 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto), anotando-se que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3 desse art. 44º). 10. O art. 306º, 1 e 2, do CPC estatui que «[c]ompete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes», sendo esse valor fixado, por regra, no despacho saneador ou na sentença. Com este exercício a lei visa evitar a manipulação do valor da causa (atribuído pelo Autor/Requerente ou aceite, expressa ou tacitamente, pelas partes: arts. 552º, 1, f), 583º, 2, 305º CPC)) – apresentando várias implicações processuais: desde logo, no art. 296º, 2, do CPC – em função de interesses particulares, entregando ao juiz a tarefa de zelar pelo cumprimento dos critérios legais. Em suma: “independentemente das posições assumidas pelas partes, o juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas”3. 11. Em concreto, o valor da presente causa foi fixado no despacho saneador e reiterado na sentença no valor de € 30.000,00, valor equivalente (não superior) ao valor da alçada do Tribunal da Relação, decisão incidental sem impugnação em ambos os momentos processuais, logo transitada e constituindo caso julgado formal nos termos do art. 620º, 1, do CPC. Tal significa que a decisão, sempre que proferida, legítima e tempestivamente no arco de aplicação do at. 306º do CPC, sendo susceptível de recurso (art. 644º, 1, a), CPC, para “incidente autónomo”4), se torna definitiva por força da constituição de caso julgado formal, a que, portanto, os tribunais superiores se encontram vinculados no momento de aferição da admissibilidade dos recursos correspondentes5 – como é o caso dos autos. Tal fixação do valor da causa nos termos atribuídos pelo art. 306º, 1 e 2, do CPC, sendo “decisão de pendor incidental”6, uma vez transitada em julgado, não admite depois qualquer alteração do consolidado endoprocessualmente, a não ser que se verifiquem, a título excepcional, circunstâncias legais de correcção (nos termos do art. 299º, 4, do CPC) e seja proferido novo despacho (com consequências possíveis, entre outras, na admissibilidade de recurso ordinário7). Neste contexto, na ausência do exercício desse poder-dever de correcção – inclusivamente, através de “despacho judicial autónomo de acertamento do valor da causa”8 –, terá sempre o recurso para tribunal superior que ser avaliado na sua admissibilidade à luz do valor da causa que transitou e vale nesse momento, de acordo com os termos do art. 296º, 1 e 2, do CPC. Tal significa que não é esta a sede, como pretende a Recorrente, por ser extemporânea e sem adequação processual no âmbito da resposta ao despacho proferido nos termos do art. 655º do CPC, para sindicar a bondade do critério que serviu de base à decisão incidental sobre o valor da causa ou promover a correcção do valor da causa atribuído legitimamente aquando da prolação do despacho saneador e da sentença proferida em 1.ª instância. Ademais. 12. Nos termos inequívocos do art. 641º, 5, do CPC, «[a] decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior nem pode ser impugnada pelas partes (…).» – o que dá azo à susceptibilidade de decisão sobre o conhecimento do objecto do recurso nesta instância. 13. A Recorrente veio invocar em sua defesa a faculdade recursiva contemplada no art. 42º do CIRE, que permitiria ao devedor sempre interpor recurso sem ter em conta o valor da causa. O art. 42º do CIRE apenas prevê a cumulativa ou alternativa impugnação recursiva da sentença de declaração de insolvência – através da competente apelação (art. 644º, 1, CPC) – em relação ao mecanismo da «oposição de embargos» (art. 40º e ss do CIRE). Porém, como destaca a doutrina, tal faculdade não deixa de implicar que “o acórdão do tribunal da relação proferido no recurso interposto da sentença declaratória só é recorrível nas apertadas condições previstas no n.º 1 do art. 14.º”9. Logo, se assim é, como deve ser, a submissão ao regime do art. 14º, 1, do CIRE não pode deixar de exigir as condições gerais de recorribilidade do art. 629º, 1, do CPC. Seja como for, no caso, em 1.º grau de jurisdição, proferiu-se sentença de não declaração de insolvência, o que sempre afastaria a mobilização e aproveitamento do art. 42º do CIRE, destinado à dupla reacção em face de uma sentença de resultado oposto. 14. O valor da presente causa foi fixado expressamente e com fundamento legal na decisão recorrida, no valor de € 30.000,00, decisão essa com trânsito em julgado (art. 620º, 1, CPC), enquanto seja o valor equivalente ao valor da alçada do Tribunal da Relação, resultante, de acordo com o entendimento do despacho proferido no saneador, reiterado na sentença, da aplicação do critério do art. 301º do CIRE. É um valor fixado legitimamente pelo ... no processo e tendo por fundamento um critério exposto na lei. Se a fixação do valor processual da causa merece o inconformismo da parte, como mereceu na resposta dada ao despacho proferido no âmbito do art. 655º do CPC, restava-lhe o competente recurso, em tempo, da decisão proferida sobre o valor da causa, sob pena de se confrontar no processo com um valor processual imutável porque transitado. Não tendo havido recurso, sibi imputet à parte mais tarde insatisfeita com tal decisão. Sendo, por isso, tal valor o que está consolidado e vigente para se aferir do preenchimento do art. 629º, 1, do CPC, que, assim sendo, não se verifica – o valor da causa não é superior à alçada da Relação e, portanto e desde logo, a revista não pode ser admitida e conhecida. III) DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso, atenta a sua manifesta inadmissibilidade. Custas pela Recorrente. STJ/Lisboa, 11 de Junho de 2024 Ricardo Costa (Relator) Leonel Serôdio Maria Olinda Garcia (após redistribuição) SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC). ______________________________________ 1. Seguiremos, no essencial, mais recentemente, os Acs. do STJ, proferidos nesta Secção, em 2/3/2021, processo n.º 1198/19, 12/7/2022, processo n.º 4332/21, 13/12/2022, processo n.º 846/21, e de 28/6/2023, processo n.º 147/21, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎ 2. “A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência” (publicado in DR, 1.ª Série, n.º 225, de 21/11/2023, págs. 11 e ss).↩︎ 3. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 305º, pág. 356.↩︎ 4. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 644º, pág. 204.↩︎ 5. Ex professo, SALVADOR DA COSTA, Os incidentes da instância, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 61.↩︎ 6. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 629º, pág. 43.↩︎ 7. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I cit., sub art. 299º, págs. 348 (e 347).↩︎ 8. Neste sentido, SALVADOR DA COSTA, Os incidentes da instância cit., pág. 38.↩︎ 9. LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2013, “Artigo 42º”, pág. 297, com sublinhado nosso.↩︎ |