Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99/22.9T8EPS.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DESCARACTERIZAÇÃO DA DUPLA CONFORME
VIOLAÇÃO DE LEI
LEI PROCESSUAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Os ónus enunciados no artigo 640.º do Código de Processo Civil pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrente: AA

Recorridos: BB, CC e marido, DD, EE e marido, FF, GG e HH

I. — RELATÓRIO

1. BB, CC e marido, DD, EE e marido, FF, GG e HH, na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de II, intentaram a presente acção declarativa de condenação contra AA pedindo que o Réu seja condenado a

a) Reconhecer o direito de propriedade das autoras sobre o prédio rústico composto de terreno de pastagem, a confrontar de norte com David Gonçalves Caramalho, Sul e Poente C..., e Nascente Caminho, no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito matriz predial rústica sob o artº 2783º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o nº .89/...;

b) Restituir às autoras o prédio referido, livre de pessoas e bens, no estado em que o mesmo se encontrava antes da invasão e das edificações que nele colocaram.

c) Pagar uma indemnização às autoras em quantia não inferior a €100 por cada dia que decorrer entre a citação e a restituição às autoras do prédio referido, no estado em que o mesmo se encontrava antes da invasão do réu;

d) Pagar às autoras a quantia global de €30.000, a título de danos morais, acrescida de juros até integral e efetivo pagamento, e custas.

2. O Réu contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção.

3. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção parcialmente procedente.

4. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância é do seguinte teor:

“V – Decisão:

Nestes termos, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenar o réu, AA, a reconhecer o direito de propriedade das autoras sobre o prédio identificado no artº 1º dos factos provados, isto é, do prédio rústico, composto de “terreno de pastagem”, a confrontar de norte com JJ, Sul e Poente C..., e Nascente Caminho, no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito matriz predial rústica sob o artº 2783º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .89/....

b) Condeno o réu, AA, a restituir às autoras o prédio identificado em a), livre de pessoas e bens, no estado em que o mesmo se encontrava antes da invasão e das edificações que nele colocaram.

c) Condeno o réu, AA, a pagar às autoras uma indemnização de €1.000 (mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros, vencidos desde a citação e vincendos até integral e efetivo pagamento.

d) Absolvo o réu do demais peticionado.

Custas pelas autoras na proporção de 1/3 (um terço) e a cargo do réu na proporção de 2/3 (dois terços), artigo 527º, nº1 e 2, do CPC.

Registe e notifique.”.

5. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação.

6. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I) Com base no depoimento da testemunha KK, nas declarações de parte do Recorrente, tudo conjugado com as fotografias juntas, incluídas, as do Google maps, os documentos da Câmara Municipal, do ICNF, o título aquisitivo do prédio do Recorrente e o documento da APA, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:

“ - Após a aquisição do prédio, o Réu passou a vedar o mesmo.

- O Réu procedeu à desmatação e à limpeza de todo o prédio, tendo efectuado inúmeras queimadas.

- O Réu colocou esteios, vigas, rede e arrames para proceder à vedação do seu prédio.

- O Réu restaurou o talude, que delimita o seu prédio, para a vedação; e abriu uma vala, com 25 metros de comprimento, para a colocação da baixada da luz até ao anexo, e, outra, com 100 metros de comprimento, para a colocação do cabo eléctrico e do tubo da água, do poço até ao anexo.

- O Réu plantou cedros e loureiros, nos limites do seu prédio.

- O Réu procedeu à limpeza dos poços de água, que se encontram no seu prédio, e colocou argolas e tampas.

- O Réu solicitou a legalização desses poços, junto da Agência Portuguesa do Ambiente.

- O Réu colocou uma cancela na entrada do prédio.

- Na sequência da construção do referido anexo, foi levantada ao Réu, pela Câmara Municipal de Esposende, o processo de contra-ordenação n.º 77/2020, por falta de licença para a sua construção;

- E, pelo Instituto da Conservação da Natrureza e das Florestas, o processo de contra-ordenação n.º 2-.85-2020, por ilegalidade da sua construção.

- O Réu foi identificado como proprietário da parcela, onde se encontra implantado o anexo, e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natrureza e das Florestas “.

II) Foram dados como provados os seguintes factos:

“ 3) Há mais de 10, 20, 30, 50 e 70 anos, que as autoras por si, e antepossuidores, usufruem do prédio referido em 1),…

4) ... de forma contínua, ininterrupta e reiterada, como ciência e paciência gerais,…

5) ... em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo de propriedade sobre o mencionado prédio.

6) Ocupando-o, cortando erva e mato, …

7) ... pagando as respetivas contribuições e impostos.

8) ... fazendo-o com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito de propriedade…

9) ... em seu único e exclusivo proveito e interesse.

11) O réu construiu um barracão na zona nordeste do prédio referido em 1) “.

III) Foram dados como não provados os seguintes factos:

“ d) O prédio referido em 17) confronte a norte com II, do sul com LL, do Nascente com MM e do poente com fieiros do mar.

e) O anexo construído pelo réu se situe no prédio referido em 17).

f) O Réu foi identificado como proprietário da parcela onde se encontra implantado o anexo…

g) … e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas “.

IV) No entanto, terão que ser dados como não provados os primeiros e como provados os segundos, face a toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento e aos elementos constantes do processo.

V) O depoimento da testemunha NN, não merece qualquer credibilidade, estando, inclusive, de forma descarada e despudorada, a adulterar a verdade dos factos; a testemunha OO não tem conhecimento directo dos factos dados como provados; e a testemunha PP localiza o caminho junto do talude, e nada sabe sobre os actos materiais de posse, por parte dos Recorridos, sobre o prédio em discussão.

VI) Esses depoimentos são contrariados pelo documento da Ecovia, pelas fotografias, pela inspecção ao local, e pelos documentos da Câmara Municipal e do ICNF.

VII) A certidão junta deverá ser admitida, uma vez que prova um facto posterior ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, nos termos do n.º 3, do artigo 423º do CPC.

VIII) Em qualquer caso, uma vez que ninguém referiu actos materiais de posse sobre o prédio aqui em discussão, excepto a testemunha, PP, mas em termos tão vago, sem concretizar, a duração, o período, a qualidade, e sem efectiva localização do prédio em questão, nunca poderia essa matéria ser dada como provada.

IX) Com a alteração da matéria de facto, aqui sugerida, deverá o Recorrente ser absolvido de todos os pedidos.

X) Em qualquer caso, sempre haveria duplicação dos registos sobre o mesmo prédio, e nesse caso, não poderia valer, nem para os Recorridos, nem para o recorrente, a presunção emergente do registo.

XI) Não havendo prova bastante, uma vez que sempre haveria dúvidas, nessa matéria, acerca da prática de qualquer acto material de posse, por parte dos recorridos, sobre o prédio, sempre teria que improceder esta acção.

XII) A douta decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no artigo 414º do Código Processo Civil.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência ser revogada a douta sentença e substituída por outra que absolva o Recorrente de todos os pedidos, com as legais consequências.

FAZENDO ASSIM V. EX.AS J U S T I Ç A.”.

7. As Autoras contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso AA.

8. O Tribunal da Relação:

I. — rejeitou a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

II. — e, em consequência, julgou a apelação totalmente improcedente.

9. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

Perante o exposto, acordam as Juízes da 3ª Secção deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.

Custas do recurso pelo réu/recorrente.

10. Inconformado, o Réu interpôs recurso de revista.

11. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I) “ Apesar da coincidência quanto ao sentido condenatório, a revista é admissível contra o alegado não uso dos poderes da Relação sobre a matéria de facto no julgamento da apelação “.

II) “ Essa é uma questão que emerge apenas do acórdão recorrido e que é imputada à Relação, no âmbito do exercício dos seus poderes próprios e privativos, pelo que não pode se pode falar de uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões sucessivas conformes “.

III) “ Apesar da coincidência quanto ao sentido condenatório, a revista é admissível contra o alegado não uso dos poderes da Relação sobre a matéria de facto no julgamento da apelação “.

IV) O Acórdão recorrido, salvo melhor opinião, não julgou correctamente ao rejeitar a impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente.

V) O recorrente pediu que fossem dados como provados os seguintes factos:

“ - Após a aquisição do prédio, o Réu passou a vedar o mesmo.

- O Réu procedeu à desmatação e à limpeza de todo o prédio, tendo efectuado inúmeras queimadas.

- O Réu colocou esteios, vigas, rede e arrames para proceder à vedação do seu prédio.

- O Réu restaurou o talude, que delimita o seu prédio, para a vedação; e abriu uma vala, com 25 metros de comprimento, para a colocação da baixada da luz até ao anexo, e, outra, com 100 metros de comprimento, para a colocação do cabo eléctrico e do tubo da água, do poço até ao anexo.

- O Réu plantou cedros e loureiros, nos limites do seu prédio.

- O Réu procedeu à limpeza dos poços de água, que se encontram no seu prédio, e colocou argolas e tampas.

- O Réu solicitou a legalização desses poços, junto da Agência Portuguesa do Ambiente.

- O Réu colocou uma cancela na entrada do prédio.

- Na sequência da construção do referido anexo, foi levantada ao Réu, pela Câmara Municipal de ..., o processo de contra-ordenação n.º 77/2020, por falta de licença para a sua construção;

- E, pelo Instituto da Conservação da Natrureza e das Florestas, o processo de contra-ordenação n.º 2-.85-2020, por ilegalidade da sua construção.

- O Réu foi identificado como proprietário da parcela, onde se encontra implantado o anexo, e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natrureza e das Florestas “.

Tal não foi atendido pelo Acórdão recorrido.

VI) É possível, salvo melhor opinião, descortinar, sem grande esforço, relativamente a estes factos, em relação a cada um deles os meios de prova que foram deficientemente valorados,

VII) O recorrente pediu que fossem dados como não provados os seguintes factos: “ há mais de 10, 20, 30, 50 e 70 anos, que as autoras por si, e antepossuidores, usufruem do prédio referido em 1),...; “ ... de forma contínua, ininterrupta e reiterada, como ciência e paciência gerais,... “; “ ... em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo de propriedade sobre o mencionado prédio “; “ ocupando-o, cortando erva e mato, ... “; “ ... pagando as respetivas contribuições e impostos “; “ … fazendo-o com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito de propriedade... “; “ ... em seu único e exclusivo proveito e interesse “ e “ o réu construiu um barracão na zona nordeste do prédio referido em 1) “.

VIII) Estes factos correspondem a uma mesma realidade factual, pelo que podem ser agrupados.

IX) O recorrente indicou os meios de prova que foram indevidamente valorados, em relação a este conjunto de factos, que são os mesmos para todos, ou seja, a falta de credibilidade da testemunha NN; a falta de conhecimento directo da testemunha OO; a falta de credibilidade da testemunha PP, e a falta de valoração do documento da Ecovia, das fotografias, da inspecção ao local, dos documentos da Câmara Municipal de ... do ICNF.

X) O recorrente pediu que fossem dados como provados os seguintes factos: “ o prédio referido em 17) confronte a norte com II, do sul com LL, do Nascente com MM e do poente com fieiros do mar “; e “ o anexo construído pelo réu se situe no prédio referido em 17) “.

XI) É possível, salvo melhor opinião, descortinar, relativamente a estes factos, os meios de prova que não foram devidamente valorados, ou seja, o documento da Ecovia, as fotografias, a inspecção ao local, os documentos da Câmara Municipal de ... e do ICNF, e que impunham outra decisão.

XII) No caso de não se entender assim, o que não se concede, então, pelo menos em relação a um dos factos impugnados, o facto 6), “ ocupando-o (o prédio em discussão), cortando erva e mato “, que esta vertida na conclusão VIII, terá o Tribunal recorrido que se pronunciar.

XIII) Não há qualquer dúvida que esse segmento se refere ao referido facto 6), que esta englobado no segundo bloco de factos impugnados.

XIV) O recorrente indicou que não foi feita qualquer prova, nessa matéria, para além do depoimento da testemunha PP e indicou no corpo da alegações a prova deficientemente valorada (concretizada no exerto do depoimento da referida testemunha).

XV) Desta forma, pelo menos em relação a este facto, o recorrente cumpriu integralmente o ónus de impugnação, que lhe era exigido.

XVI) O douto Acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no n.º 1, do artigo 662º do Código Processo Civil.

Nestes termos, e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente e, em consequência deve ser revogado o Acórdão recorrido, e remetidos estes autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, para ser apreciada a impugnação da matéria de facto.

FAZENDO V. EX.AS J U S T I Ç A.

12. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.ª 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir in casu é tão-só a seguinte: — se o Réu AA observou os ónus previstos no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil na impugnação da matéria de facto perante o Tribunal da Relação.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

13. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

1) A aquisição da propriedade, por compra, do prédio rústico, composto de “terreno de pastagem”, a confrontar de norte com JJ, Sul e Poente C..., e Nascente Caminho, no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito matriz predial rústica sob o artº 2783º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .89/..., mostra-se registada a favor de II, pela Ap. 14 de 29/3/1995, conforme documento junto aos autos a fls. 11, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

2) Os sujeitos passivos do registo referido em 1) são QQ e mulher, RR, conforme documento junto aos autos a fls. 11, cujo teor aqui se dá por fie e integralmente reproduzido.

3) Há mais de 10, 20, 30, 50 e 70 anos, que as autoras por si, e antepossuidores, usufruem do prédio referido em 1),...

4) ... de forma contínua, ininterrupta e reiterada, como ciência e paciência gerais,...

5) ... em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo de propriedade sobre o mencionado prédio.

6) Ocupando-o, cortando erva e mato, ...

7) ... pagando as respetivas contribuições e impostos.

8) ... fazendo-o com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito de propriedade...

9) ... em seu único e exclusivo proveito e interesse.

10) Em 2020, os vizinhos do prédio referido em 1) informaram os herdeiros da Herança autora, que o réu estava a vedar o prédio referido em 1).

11) O réu construiu um barracão na zona nordeste do prédio referido em 1).

12) Por carta escrita, datada de 29 de Janeiro de 2021, a herdeira e autora HH, declarou ao réu “aguardo que no prazo máximo de 15 dias retire todas as vedações e construções aí edificadas, ...”, conforme documento junto aos autos a fls. 12 e 13, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

13) Por carta escrita, datada de 23 de Dezembro de 2021, as autoras declararam “notificar V. Exª que deve, no prazo de oito dias, repor no estado em que o mesmo se encontrava... “, conforme documento junto aos autos a fls. 14, cujo teor aqui se dá or fiel e integralmente reproduzido.

14) O réu respondeu, por carta datada de 7 de Janeiro de 2022, declarando “Recebi sua carta, com surpresa, uma vez que, como já comuniquei à sua cliente, tudo tenho direito”, conforme documento junto aos autos a fls. 15, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

15) O comportamento do réu tem causado incómodo e sofrimento a todos os herdeiros.

16) Como consequência da atuação do réu, as autoras sentiram-se, e sentem-se, nervosas, incomodadas, vexadas, tristes.

17) A aquisição da propriedade, por adjudicação em processo de execução fiscal, do prédio rústico, composto de mato, situado no sítio do ..., lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número .77/..., e inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo 3063º, mostra-se registada a favor do autor, pela Ap. ..04 de 3/7/2019, conforme documento junto aos autos a fl. 36, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.”.

14. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:

“a) As autoras hajam cortado cortando arbustos e pinheiros do prédio referido em 1).

b) As autoras passem noites sem dormir, devido à revolta e à humilhação por que estão a passar, por verem o réu a invadir o seu prédio, e tentar apossar-se daquilo que é das autoras.

c) O estado de saúde das autoras ficou abalado em virtude da conduta do réu.

d) O prédio referido em 17) confronte a norte com II, do sul com LL, do Nascente com MM e do poente com fieiros do mar.

e) O anexo construído pelo réu se situe no prédio referido em 17).

f) O Réu foi identificado como proprietário da parcela onde se encontra implantado o anexo…

g) … e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

15. O Tribunal da Relação rejeitou a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto deduzida pelo Réu

O DIREITO

16. A questão da admissibilidade do recurso é uma questão prévia.

17. O artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil determina que:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

18. Embora o acórdão da Relação tenha confirmado, por unanimidade, a decisão proferida na 1.ª instância, o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que

I - A dupla conformidade, como requisito negativo geral da revista excepcional, supõe duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito, ambas determinantes para a decisão, sendo a segunda confirmatória da primeira.

II - Quando o tribunal da Relação é chamado a intervir para reapreciação das provas e da matéria de facto, nos termos dos arts. 640.º e do NCPC (2013), move-se no campo de poderes, próprios e privativos, com o conteúdo e limites definidos por este último preceito, que não encontram correspondência na decisão da 1.ª instância sobre a mesma matéria.

III - Embora haja urna decisão sobre a matéria de facto da 1.ª instância e, uma outra, da Relação, que reaprecia o julgamento da matéria de facto, não poderá afirmar-se que, quando se questiona o respeito pelas normas processuais dos arts. 640.º e 662.º pela Relação, existe uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões conformes” 1 2.

19. O ponto foi reiterado, p. ex., no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2019 — processo n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1 —:

[d]e acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, a rejeição da impugnação da matéria de facto pela Relação, com fundamento em incumprimento do ónus do art. 640.º do Código de Processo Civil, pode, se tal rejeição for injustificada, configurar uma violação da lei processual que, por ser imputada à Relação, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias enquanto obstáculo à admissibilidade da revista”.

20. Face à jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, deve distinguir-se:

I. — a violação de lei, adjectiva ou substantiva, imputada em primeira linha ao Tribunal da Relação descaracteriza a dupla conforme;

II. — a violação da lei substantiva imputada em primeira linha ao Tribunal da 1.ª instância, ainda que confirmada pelo Tribunal da Relação, não descaracteriza a dupla conforme, como obstáculo à admissibilidade do recurso de revista.

21. Ora a Ré, agora Recorrente, invoca a violação de lei adjectiva (processual), em concreto do artigo 640.º do Código de Processo Civil, e a violação da lei adjectiva (processual) é imputada pela Recorrente ao Tribunal da Relação — daí que a violação da lei processual, imputada pela Recorrente ao Tribunal da Relação, descaracterize a dupla conforme.

22. Esclarecida a questão prévia da admissibilidade do recurso, deve apreciar-se e decidir-se a questão principal.

23. O Tribunal da Relação fundamentou a decisão de não admitir a impugnação da decisão sobre a matéria de facto em três argumentos:

— em primeiro lugar, na circunstância de o Réu, agora Recorrente, ter impugnado blocos ou conjuntos de factos dados como provados e como não provados;

— em segundo lugar, na circunstância de os factos de cada bloco ou de cada conjunto não estarem ligados en si, em termos de se referirem a uma única realidade;

— em terceiro lugar, e em consequência, na circunstância de o Réu, agora Recorrente, não ter relacionado cada um dos concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados com cada um dos meios de prova.

24. Em primeiro lugar, na circunstância de o Réu, agora Recorrente, ter impugnado blocos ou conjuntos de factos dados como provados e como não provados:

“No caso dos autos, verifica-se que, pese embora o apelante indique quais os factos que pretende impugnar e a redacção que entende deve ser dada aos mesmos, o facto é que não especifica os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um desses factos, não indicando com detalhe, quanto a cada um desses factos os meios de prova deficientemente valorados, posto que os agrupa em blocos”.

25. Em segundo lugar, na circunstância de os factos de cada bloco ou de cada conjunto não estarem ligados em si, em termos de se referirem a uma única realidade:

“para além de a impugnação ser feita em bloco, não se verifica que os factos impugnados em cada um desses dois blocos estejam interligados entre si.

Com efeito, no primeiro desses blocos (os factos que o apelante pretende que sejam aditados) está em causa factualidade muito diversa, como todos actos que o réu terá praticado no prédio - desde a vedação, desmatação, limpeza, queimadas, colocação de esteios e vigas, restauração de um talude, abertura de uma vala e suas medidas, plantações efectuadas, limpeza de poços, colocação de argolas e tampas, colocação de uma cancela –; a solicitação de legalização desses poços, junto da Agência Portuguesa do Ambiente; o levantamento ao réu, na sequência da construção do referido anexo, pela Câmara Municipal de ..., do processo de contra-ordenação n.º 77/2020, por falta de licença para a sua construção; o levantamento ao réu pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, do processo de contra-ordenação n.º 2-.85-2020, por ilegalidade da sua construção e a identificação do réu como proprietário da parcela, onde se encontra implantado o anexo, e autuação, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

O mesmo se diga do segundo desses blocos, que engloba quer os factos provados que o apelante entende deverem ser dados como não provados, quer os factos não provados que o apelante entende deverem se dados como provados. Também aqui está em causa factualidade diversa, como os actos de posse das autoras sobre o prédio em discussão; a construção do barracão nesse prédio ou noutro; as confrontações do prédio que o réu invoca ser seu, a identificação do réu como proprietário do prédio onde se encontra implantado o anexo e a sua autuação nessa qualidade tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

Para qualquer um desses blocos de factos, o apelante indicou prova documental e testemunhal e ainda as suas declarações de parte, sem concretizar em que medida tais meios de prova poderiam contribuir para a alteração de cada um dos factos que impugnou.

Ora, é nosso entendimento que em situações como a dos autos, a possibilidade de impugnação da matéria de facto por blocos de factos e blocos de meios de prova apenas deverá ser admitida quando o recorrente alegue ou seja manifesto que esse conjunto de factos (v.g. pelo seu número e natureza) e de meios de prova correspondem a uma mesma realidade factual que deverá ser julgada com os mesmos meios de prova (os mesmos segmentos sinalizados dos depoimentos das várias testemunhas e os mesmos documentos)”.

26. Em terceiro lugar, e em consequência, na circunstância de o Réu, agora Recorrente, não ter relacionado cada um dos concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados com cada um dos meios de prova.

“O apelante não distingue qual a prova que entende ser relevante e que deveria ter sido considerada quanto a cada um dos factos dados como não provados, que entende deveriam ser dados como provados, quanto a cada um dos factos dados como provados que entende deveriam ser dados como não provados ou quanto a cada um dos factos que pretende ver aditados, visto que discorreu sobre a prova documental e testemunhal prestada e ainda sobre as suas declarações de parte, para concluir, sem qualquer distinção entre factos, que da mesma resulta aquilo que pretende. […]

limitou-se a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação ou separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um dos factos impugnados, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não fazendo corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto os segmentos dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundaram as mesmas, tornando inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.

Ou seja, não cumpriu o ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. b) do CPC que exige que os recorrentes especifiquem os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira Instância para cada um dos factos que pretendem impugnar, para o que não é suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova, isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos factos sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso (cfr. Ac. desta Relação de Guimarães de 22.10.2020, disponível in www,dgsi.pt)”

“No caso dos autos, analisando o corpo das alegações e as conclusões da apelação atrás transcritas, verificamos que, no que se refere à prova que o apelante indica para fundar as alterações que defende, relativamente ao conjunto de factos que pretende impugnar, este efectivamente não concretiza, por referência a cada facto impugnado, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª instância, antes se limitando a proceder a uma indicação genérica e em bloco, para aquele conjunto de factos, sendo que os mesmos não estão interligados, por se referirem a questões de facto díspares.

[…] o apelante não indicou os concretos meios de prova (as passagens dos depoimentos que transcreve e a prova documental) e que, no seu entendimento, imporiam a pretendida alteração, por referência a cada um dos factos concretos cuja decisão pretende impugnar.

27. O artigo 640.º do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

1. — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. — O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º 3.

28. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que “não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento4— e, excluído o despacho de aperfeiçoamento, a alternativa está na admissão ou na rejeição do recurso.

29. Esclarecido que a alternativa está na admissão ou na rejeição do recurso, deve averiguar-se:

I. — se a Ré, agora Recorrente, observou ou não o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil;

II. — se a Ré, agora Recorrente, observou ou não o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.

30. O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2.

31. O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:

Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” 5. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” 6. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” 7.

32. O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no artigo 640.º do Código de Processo Civil — logo, da observância ou inobservância do ónus primário de delimitação do objecto — há-de ser um critério adequado à função 8, conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade 9 10.

33. O requisito de que o critério seja adequado à função coloca em evidência que os ónus enunciados no artigo 640.º pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso 11 e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido 12. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pronunciam-se sobre a relação entre a gravidade do comportamento processual do recorrente — inobservância dos ónus do artigo 640.º, n.ºs 1 e 2 — e a gravidade das consequências do seu comportamento processual: a gravidade do consequência prevista no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2 — rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso — há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável para a gravidade da falha do recorrente 13.

34. Entre os corolários dos requisitos de que o critério seja adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade está o de que “a decisão de rejeição do recurso […] não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal […] face ao grau de dificuldade que [a inobservância dos ónus do artigo 640.º] acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso” 14.

34. O Réu, agora Recorrente, cumpriu o ónus de delimitação do objecto do recurso.

35. O teor das conclusões I-IV do recurso de apelação é suficiente para que se conclua que o Autor pretendia:

I. — que fossem dados como provados os seguintes factos:

“ - Após a aquisição do prédio, o Réu passou a vedar o mesmo.

- O Réu procedeu à desmatação e à limpeza de todo o prédio, tendo efectuado inúmeras queimadas.

- O Réu colocou esteios, vigas, rede e arrames para proceder à vedação do seu prédio.

- O Réu restaurou o talude, que delimita o seu prédio, para a vedação; e abriu uma vala, com 25 metros de comprimento, para a colocação da baixada da luz até ao anexo, e, outra, com 100 metros de comprimento, para a colocação do cabo eléctrico e do tubo da água, do poço até ao anexo.

- O Réu plantou cedros e loureiros, nos limites do seu prédio.

- O Réu procedeu à limpeza dos poços de água, que se encontram no seu prédio, e colocou argolas e tampas.

- O Réu solicitou a legalização desses poços, junto da Agência Portuguesa do Ambiente.

- O Réu colocou uma cancela na entrada do prédio.

- Na sequência da construção do referido anexo, foi levantada ao Réu, pela Câmara Municipal de ..., o processo de contra-ordenação n.º 77/2020, por falta de licença para a sua construção;

- E, pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, o processo de contra-ordenação n.º 2-.85-2020, por ilegalidade da sua construção.

- O Réu foi identificado como proprietário da parcela, onde se encontra implantado o anexo, e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas “.

II. — que fossem dados como provados os seguintes factos:

“ d) O prédio referido em 17) confronte a norte com II, do sul com LL, do Nascente com MM e do poente com fieiros do mar.

e) O anexo construído pelo réu se situe no prédio referido em 17).

f) O Réu foi identificado como proprietário da parcela onde se encontra implantado o anexo…

g) … e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas “.

III. — que fossem dados como não provados os seguintes factos:

“ 3) Há mais de 10, 20, 30, 50 e 70 anos, que as autoras por si, e antepossuidores, usufruem do prédio referido em 1),…

4) ... de forma contínua, ininterrupta e reiterada, como ciência e paciência gerais,…

5) ... em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo de propriedade sobre o mencionado prédio.

6) Ocupando-o, cortando erva e mato, …

7) ... pagando as respetivas contribuições e impostos.

8) ... fazendo-o com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito de propriedade…

9) ... em seu único e exclusivo proveito e interesse.

11) O réu construiu um barracão na zona nordeste do prédio referido em 1) “.

36. Embora tenha observado o ónus de delimitação do objecto do recurso, indicando os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, o Réu, agora Recorrente, não observou o ónus de fundamentação concludente da impugnação.

37. O artigo 640.º, na alínea b) do seu n.º 1 e na alínea a) do seu n.º 2, exige que o recorrente relacione cada um dos concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados com cada um dos meios de prova, com cada uma passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados.

38. Em primeiro lugar, o Réu, agora Recorrente, afirma nas conclusões V e VI do recurso de revista que, em relação aos factos que considera que deviam ter sido dados como provados, era possível determinar, “sem grande esforço”, os meios de prova que foram deficientemente valorados.

39. Explica, na sua alegação, que

a) Relativamente ao facto: “ o Réu solicitou a legalização desses poços, junto da Agência Portuguesa do Ambiente “, é evidente, que esta em causa o documento da APA (Doc. nº 12), que não foi devidamente valorado, e que impunha outra decisão.

b) Relativamente ao facto: “ na sequência da construção do referido anexo, foi levantada ao Réu, pela Câmara Municipal de ..., o processo de contra-ordenação n.º 77/2020, por falta de licença para a sua construção “; é manifesto, que esta em causa o documento da Câmara Municipal de ... (Doc. nº 15), que não foi devidamente valorado, e que impunha outra decisão.

c) Relativamente ao facto: “ pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, o processo de contra-ordenação n.º 2-.85-2020, por ilegalidade da sua construção “, é manifesto, que esta em causa o documento do ICNF (Doc. nº 16), que não foi devidamente valorado, e que impunha outra decisão.

d) Relativamente ao facto: “ o Réu foi identificado como proprietário da parcela, onde se encontra implantado o anexo, e autuado, nessa qualidade, tanto, pela Câmara Municipal de ..., como pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas “, que, esta interligado com os 2 factos antecedentes, é, também, manifesto que estão em causa os documentos da Câmara Municipal de ... (Doc. nº 15) e do ICNF (Doc. nº 16), que não foram devidamente valorados, e que impunham outra decisão

e) Finalmente, os restantes factos: “ após a aquisição do prédio, o Réu passou a vedar o mesmo “; “ o Réu procedeu à desmatação e à limpeza de todo o prédio, tendo efectuado inúmeras queimadas “; “ o Réu colocou esteios, vigas, rede e arrames para proceder à vedação do seu prédio “; “ o Réu restaurou o talude, que delimita o seu prédio, para a vedação; e abriu uma vala, com 25 metros de comprimento, para a colocação da baixada da luz até ao anexo, e, outra, com 100 metros de comprimento, para a colocação do cabo eléctrico e do tubo da água, do poço até ao anexo “; “ o Réu plantou cedros e loureiros, nos limites do seu prédio “; “ o Réu procedeu à limpeza dos poços de água, que se encontram no seu prédio, e colocou argolas e tampas “; e “ o Réu colocou uma cancela na entrada do prédio “; correspondem a uma mesma realidade factual, as obras e limpezas efectuadas no prédio, pelo que podem ser agrupados. Há uma ligação factual, lógica e racional entre eles. Os meios de prova deficientemente valorados, em relação a este conjunto de factos, são os mesmos para todos, ou seja, os depoimentos da testemunha KK, as declarações de parte do recorrente, conjugados com as fotografias juntas, e que impunham outra decisão. Seria uma perda de tempo, e actos inúteis, repetir para cada um deles a mesma coisa.

40. O caso está em que a relação de cada um dos factos com cada um dos meios de prova que o Réu, agora Recorrente, faz no corpo das suas alegações do recurso de revista devia ter sido feita nas suas alegações do recurso de apelação — e não foi.

41. Em vez de um acto inútil, descrito pelo Réu, agora Recorrente, como uma perda de tempo, estava em causa um acto útil e, em rigor, necessário para o cumprimento de um ónus processual.

42. Em segundo lugar, o Réu, agora Recorrente, afirma nas conclusões VII a IX do recurso de revista que, em relação aos factos que considera que deviam ter sido dados como não provados, indicou os meios de prova que foram deficientemente valorados.

43. As conclusões VII a IX do recurso de revista são do seguinte teor:

VII) O recorrente pediu que fossem dados como não provados os seguintes factos: “ há mais de 10, 20, 30, 50 e 70 anos, que as autoras por si, e antepossuidores, usufruem do prédio referido em 1),...; “ ... de forma contínua, ininterrupta e reiterada, como ciência e paciência gerais,... “; “ ... em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo de propriedade sobre o mencionado prédio “; “ ocupando-o, cortando erva e mato, ... “; “ ... pagando as respetivas contribuições e impostos “; “ … fazendo-o com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito de propriedade... “; “ ... em seu único e exclusivo proveito e interesse “ e “ o réu construiu um barracão na zona nordeste do prédio referido em 1) “.

VIII) Estes factos correspondem a uma mesma realidade factual, pelo que podem ser agrupados.

IX) O recorrente indicou os meios de prova que foram indevidamente valorados, em relação a este conjunto de factos, que são os mesmos para todos, ou seja, a falta de credibilidade da testemunha NN; a falta de conhecimento directo da testemunha OO; a falta de credibilidade da testemunha PP, e a falta de valoração do documento da Ecovia, das fotografias, da inspecção ao local, dos documentos da Câmara Municipal de ... do ICNF.

X) O recorrente pediu que fossem dados como provados os seguintes factos: “ o prédio referido em 17) confronte a norte com II, do sul com LL, do Nascente com MM e do poente com fieiros do mar “; e “ o anexo construído pelo réu se situe no prédio referido em 17) “.

XI) É possível, salvo melhor opinião, descortinar, relativamente a estes factos, os meios de prova que não foram devidamente valorados, ou seja, o documento da Ecovia, as fotografias, a inspecção ao local, os documentos da Câmara Municipal de ... e do ICNF, e que impunham outra decisão.

44. Em primeiro lugar, não pode afirmar-se, como faz o Réu, agora Recorrente, que factos tão heterogéneos como “há mais de 10, 20, 30, 50 e 70 anos, que as autoras por si, e antepossuidores, usufruem do prédio referido em 1),...; “ ... de forma contínua, ininterrupta e reiterada, como ciência e paciência gerais,... “; “ ... em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo de propriedade sobre o mencionado prédio “; “ ocupando-o, cortando erva e mato, ... “; “ ... pagando as respetivas contribuições e impostos “; “ … fazendo-o com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito de propriedade... “; “ ... em seu único e exclusivo proveito e interesse “ e “ o réu construiu um barracão na zona nordeste do prédio referido em 1)” correspondam a uma e à mesma realidade factual.

45. Em segundo lugar, ainda que pudesse afirmar-se que factos tão heterogéneos correspondiam à mesma realidade factual, nunca poderia considerar-se suficiente a indicação de que foram deficientemente valorados “a falta de credibilidade da testemunha NN; a falta de conhecimento directo da testemunha OO; a falta de credibilidade da testemunha PP, e a falta de valoração do documento da Ecovia, das fotografias, da inspecção ao local, dos documentos da Câmara Municipal de ... do ICNF.”

46. Finalmente, as conclusões XII a XV do recurso de revista são do seguinte teor:

XII) No caso de não se entender assim, o que não se concede, então, pelo menos em relação a um dos factos impugnados, o facto 6), “ ocupando-o (o prédio em discussão), cortando erva e mato “, que esta vertida na conclusão VIII, terá o Tribunal recorrido que se pronunciar.

XIII) Não há qualquer dúvida que esse segmento se refere ao referido facto 6), que esta englobado no segundo bloco de factos impugnados.

XIV) O recorrente indicou que não foi feita qualquer prova, nessa matéria, para além do depoimento da testemunha PP e indicou no corpo da alegações a prova deficientemente valorada (concretizada no exerto do depoimento da referida testemunha).

XV) Desta forma, pelo menos em relação a este facto, o recorrente cumpriu integralmente o ónus de impugnação, que lhe era exigido.

47. Explica, na sua alegação, que

na citada conclusão VIII refere-se que “ em qualquer caso, uma vez que ninguém referiu actos materiais de posse sobre o prédio aqui em discussão, excepto a testemunha, PP, mas em termos tão vago, sem concretizar, a duração, o período, a qualidade, e sem efectiva localização do prédio em questão, nunca poderia essa matéria ser dada como provada “. Ora, apesar de não se concretizar o facto em questão, cotejando a matéria de facto impugnada, não há qualquer dúvida que esse segmento se refere ao referido facto 6), que esta englobado no segundo bloco de factos impugnados.

Apesar disso, esse facto acaba por estar devidamente autonomizado na referida conclusão.

Para além disso, foi referido que não foi feita qualquer prova, nessa matéria, para além do depoimento da testemunha PP e indicado no corpo das alegações a prova deficientemente valorada (concretizada no exerto do depoimento da referida testemunha).

Desta forma, pelo menos em relação a este facto, o recorrente cumpriu integralmente o ónus de impugnação, que lhe era exigido.

48. Ora, ainda que o Réu, agora Recorrente, tivesse feito implicitamente referência a um determinado facto, a alegação de que o facto foi dado como provado com base no depoimento de uma única testemunha e que o depoimento da testemunha em causa foi “vago, sem concretizar, a duração, o período, a qualidade, e sem efectiva localização do prédio em questão” não é suficiente para que se possa considerar que a impugnação cumpre os requisitos do artigo 640.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

49. O facto de o Réu, agora Recorrente, ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, sem os relacionar com cada um dos meios de prova prejudica a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, prejudica a possibilidade de um contraditório esclarecido 15.

50. Em concreto, e em consequência da inobservância do ónus de fundamentação concludente da impugnação, a interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade determina a rejeição do recurso 16.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Réu AA

Lisboa, 4 de Julho de 2022

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Maria de Deus Correia

__________

1. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2015 — processo n.° 29/12.6TBFAF.G1.S1.

2. Em termos em tudo semelhantes, vide, p. ex., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2016 — processo n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1 —, de 3 de Novembro de 2016 — processo n.º 3081/13.3TBBRG.G1.S1 —, de 24 de Novembro de 2016 — processo n.º 296/14.0TJVNF.G1.S1 —, de 17 de Maio de 2017 — processo n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1 —, de 18 de Janeiro de 2018 — processo n.º 668/15.3T8FAR.E1.S2 —, de 8 de Novembro de 2018 — processo n.º 48/15.0T8VNC.G1.S1 —, de 30 de Maio de 2019 — processo n.º 156/16.0T8BCL.G1.S1 — ou de 17 de Outubro de 2019 — processo n.º 617/14.6YIPRT.L1.S1.

3. Sobre a interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil, vide António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.`ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 162-178; Rui Pinto, anotação ao artigo 640.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 546.º-1085.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 280-288; António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao artigo 640.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs, 769-771; e José Lebre de Freitas / Armindo Ribeiro Mendes / Isabel Alexandre, anotação ao artigo 640.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. III — Artigos 627.º-877.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2022, págs. 92-100.

4. Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 167.

5. Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 165.

6. Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 165.

7. Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, cit., in: Recursos no novo Código de Processo Civil, pág. 166.

8. Vide, p. ex., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2016 — processo n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1 —, de 2 de Junho de 2016 — processo n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1 — e de 14 de Dezembro de 2017 — processo n.º 2190/03.1TBPTM.E2.S1.

9. Vide, p. ex., na jurisprudência das Secções Cíveis, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2016 — processo n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1 —, de 8 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1 —, de 11 de Julho de 2019 — processo n.º 121/06.6TBOBR.P1.S1 —ou de 3 de Outubro de 2019 — processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 — e, na jurisprudência da Secção Social, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Setembro de 2019 — processo n.º 42/18.0T8SRQ.L1.S1 — ou de 6 de Novembro de 2019 — processo n.º 1092/08.0TTBRG.G1.S1.

10. Como sintetiza António dos Santos Abrantes Geraldes, “… o Supremo tem realçado a necessidade de extrair do texto legal soluções capazes de integrar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência aos aspectos de ordem material” (anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 174).

11. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 2018 — processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1 —, em que se diz que “os requisitos formais de admissibilidade da impugnação da decisão de facto, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e alcance teleológico da pretensão recursória”.

12. Expressão dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1 — e de 22 de Março de 2018 — processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1.

13. Vide, p. ex., António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao artigo 640.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 770.

14. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1.

15. Em termos em tudo semelhantes, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2021 — processo n.º 618/18.5T8BJA.E1.S1.

16. Como diz António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 167. “… pretendendo o recorrente a modificação da decisão de um tribunal de 1.ª instância e dirigindo essa pretensão a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção de prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas”.