Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | RECONHECIMENTO DA DÍVIDA TÍTULO EXECUTIVO CAUSA DO NEGÓCIO ÓNUS DE ALEGAÇÃO REQUERIMENTO EXECUTIVO INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL CAUSA DE PEDIR PRESUNÇÃO INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA AÇÃO EXECUTIVA | ||
Data do Acordão: | 07/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Sumário : |
I. A declaração de dívida, com assinatura reconhecida por notário, constitui título executivo, nos termos do art.º 703.º n.º 1 al. b) do CPC. II. A declaração de dívida faz presumir a existência da dívida, invertendo o respetivo ónus da prova, mas não exonera o credor da alegação da fonte constitutiva da obrigação. III. Se na declaração não constar a indicação da fonte constitutiva da obrigação, deve ela ser indicada no requerimento executivo, sob pena de ineptidão por omissão de indicação de causa de pedir. IV. Não ocorre ineptidão do requerimento executivo, por falta de indicação da causa de pedir, se nas declarações de dívida dadas à execução consta que “a aludida dívida refere-se a quantia de igual montante mutuada pelo referido AA [primitivo credor] ao declarante”. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que lhes movem BB, CC, DD e EE contra FF, GG, HH, II, JJ, vieram as executadas GG e FF deduzir separadamente oposição por embargos. Alega a embargante GG: - Ocorreu caso julgado no processo de inventário sob o número 2114/12.5..., no Tribunal Judicial da Comarca ..., instância local cível, J.... - O subscritor das declarações de reconhecimento de dívida dadas à execução tinha 80 anos de idade à data da assinatura, sendo do senso comum que neste estágio da vida humana, a compreensão e o discernimento são normalmente afetados. Acresce que era pessoa com vasto património e não lhe eram conhecidas dívidas, que originassem a necessidade de tão avultada quantia de dinheiro. Assim como desconhece que o originário credor, AA, seu irmão, dispusesse de tal montante monetário. Era habitual ser o seu pai, II (originário devedor) a conceder àquele, diversas quantias monetárias. A real intenção seria o de beneficiar aquele filho (o credor AA) na partilha da herança que viessem a ter lugar após a morte do declarante. A executada FF alega, paralelamente e no essencial, que tais declarações não correspondem à verdade, tratando-se de uma simulação. O que sucedeu foi que o pai da oponente e do falecido AA pretendia beneficiar estes dois filhos nas partilhas por sua morte, para além da quota disponível. Mais, o beneficiário das declarações de dívida agora dadas à execução, AA levou o pai a assiná-las sem este saber/perceber o que assinava, ou à semelhança das anteriores, ou seja, as declarações sem correspondência com a realidade. Nunca existiram os mútuos referidos nas confissões de dívida, não ocorreram por isso as entregas de dinheiro por parte do AA ao pai. Quem conhecia a vivência quer do pai, II, quer do filho AA, sabe que era impossível o pai ter pedido empréstimos ao filho, por um lado o pai não precisava, tinha vários prédios, não tinha créditos para pagar e recebia duas reformas, a sua e da falecida mulher, que era suficiente para os seus gastos. Por outro lado, o filho AA não possuía rendimentos que lhe permitisse ter tais montantes para emprestar, quase 100.000,00 euros no total. Pelo contrário, sucedeu, não raras vezes, que o pai da oponente dava dinheiro ao filho AA, pois este passava por dificuldades. Concluem pedindo que a respetiva oposição seja julgada procedente e provada e, em consequência, extinta a execução. 2. Notificados, os exequentes contestaram, no essencial dizendo que as embargantes sempre tiveram conhecimento que o originário devedor, II, e o originário credor, AA, eram "sócios" na venda de peixe, embora sem firma formalmente constituída, e que, apesar de "sócios", quem liderava/geria a "sociedade" era o seu pai (originário devedor) II, sendo este quem guardava o dinheiro do negócio no seu cofre, gerindo-o como bem entendia, inclusivamente para adquirir património, fazer face a despesas de manutenção e conservação dos seus imóveis, e até para o sustento da família, inclusivamente da embargante/executada FF à qual nunca foi conhecida qualquer atividade profissional, muitas vezes à custa da quota-parte dos lucros que caberiam ao seu filho e "sócio" (originário credor) AA. Concluem pela improcedência da oposição à execução. 3. Foi proferido despacho saneador e julgada improcedente a exceção de caso julgado, prosseguindo com a identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova. 4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu julgar a oposição à execução totalmente improcedente, por não provada, determinando, em consequência a prossecução da execução. 5. A embargante/executada FF apelou da sentença e em 14.3.2023 a Relação do Porto julgou a apelação procedente e, consequentemente, declarou a nulidade de todo o processo, absolvendo as executadas da instância executiva. 6. A exequente BB interpôs revista do aludido acórdão, formulando as seguintes conclusões: “A – A Recorrente limitou-se a recorrer da matéria de direito e não de facto, assim, cumpre-nos concluir por assente toda a matéria de facto dada como provada e não provada. C – No tocante ao direito, a Recorrente alega quer a inversão do ónus da prova, quer a ineptidão do requerimento executivo, e neste sentido decidiu também o Tribunal da Relação. D- Ora, no nosso modesto ponto de vista não lhe assiste razão, porquanto os documentos apresentados à execução são três confissões de divida realizadas no dia 05.06.2002, por II, à data viúvo, em que reconheceu ser devedor a AA, seu filho, aí devidamente identificado, das quantias de 18.704,92 € em cada uma delas, perfazendo na sua totalidade o valor de 56.114,76€ (cinquenta e seis mil cento e catorze euros e setenta e seis cêntimos). E - Declarações essas que referem expressamente e passo a transcrever: “a aludida divida refere-se a quantia de igual montante mutuada pelo referido AA ao declarante.” (negrito e sublinhado nosso), nas quais foi igualmente reconhecida notarialmente a sua assinatura, conforme se atesta por documentos juntos com o requerimento executivo. F - As declarações de dívida são consideradas títulos executivos nos termos do artigo 46.º, n.º 1, alínea c) do anterior CPC, como documentos particulares assinados pelo devedor que importavam a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as suas cláusulas, o que in casu se verifica G - A força probatória da declaração confessória é a fixada pelo art. 358.º, n.º 2, do Código Civil (CC). H - Considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta (força probatória formal); e, tendo sido feita à parte contrária, reveste-se de força probatória plena contra o confitente (força probatória material). I - Decorre do art. 359.º, n.ºs 1 e 2, do CC, que o confitente (devedor originário) – ou a quem é conferida legalmente legitimidade para tal - não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando, simplesmente, que o facto confessado não é verdadeiro. J - O documento particular cuja assinatura seja reconhecida “faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor” e “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” (art. 376.º, nºs 1 e 2, do Código Civil). L - Nas situações, como esta, enquadráveis no art. 458.º do CC não há verdadeiramente a confissão dum facto desfavorável ao autor da declaração, mas uma mera confissão de dívida. M - Confissões de dívida essas, dadas à execução, em que o devedor originário II, através de simples declarações unilaterais, reconhece as suas dívidas – mútuo - para com o seu filho AA (credor originário), protegendo-as através da autenticação notarial da sua assinatura. N - Quer isto dizer, em termos práticos, que não se pode contrariar o conteúdo do documento, designadamente que foi assumida a dívida pelo devedor originário, nem o seu conteúdo ou teor. O - Pois, para destruir a força probatória dessas declarações teria que ser alegado e provado o erro ou outro vício de que o confitente tenha sido vítima, direito que, a ter existido, o que por mera hipótese académica se admite, não se fez prova – ponto 2 dos factos não provados. P - Ora, neste caso, a Recorrente, para além de não provar qualquer erro ou vício da vontade do devedor originário, por inexistente, também não logrou apresentar/ provar qualquer facto de que nenhuma relação negocial existia na base das declarações de reconhecimento de dívidas emitidas. Q - Mais, e ao contrário do que nos quer fazer crer a Recorrente, o art. 458.º do CC, fala-nos dos negócios unilaterais – que é o titulo executivo nos presentes autos - confissão/declaração de dívida – o que não apaga a regra/princípio de, quem se dirige ao tribunal, invocando um direito de crédito e exigindo o cumprimento da correlativa obrigação, ter que expor a fonte de tal crédito/obrigação, não podendo limitar-se a dizer, em termos abstractos, genéricos e indefinidos, a dizer que é credor num concreto montante e pedir que o Executado seja condenado a pagar-lhe tal concreto montante. R - Regra esta que foi devidamente cumprida pelos Exequentes/ Recorrida, a qual refere ab initio a fonte do crédito/obrigação incorporada no documento, exarado pelo notário e que serve de título à execução – um mútuo da quantia de € 18.704,92. S - Tanto assim o é que nos embargos deduzidos e nos temas da prova constava explicitamente essa fonte da obrigação: “ii) se o falecido AA nunca emprestou ao seu pai II, também falecido, os montantes refletidos em cada uma das três declarações de divida dadas à execução. (negrito e sublinhado nosso) U - Ou seja, os exequentes, ora Recorrentes alegaram a fonte/causa de tal crédito, cumprindo o preceituado no art. 724.º, n.º 1, al. e) do CPC. V - Pois decorre do disposto no artigo 458.º, n. º1 do Código Civil, que se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, e constando de tal declaração, como é o caso, de uma declaração de divida advinda de um mútuo com reconhecimento notarial, constitui esta título executivo. X - Ocorrendo assim a inversão do ónus da prova, isto é, compete ao devedor ilidir a presunção que o mesmo consagra, a qual não obstante constar dos temas da prova este não conseguiu ilidir. Z - Como já se referiu, os Exequentes/ Embargantes dirigiram-se ao tribunal de 1.ª Instância a exigir o cumprimento dum direito de crédito, expondo a fonte/causa de tal crédito e os negócios unilaterais, quer logo no requerimento executivo, quer a posteriori, na contestação aos embargos. AA - Princípio este de que o art. 458.º do CC não se desvia, isto é, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida nele previstos não constituem a fonte autónoma duma obrigação, criam a presunção de existência duma relação negocial, sendo esta a verdadeira fonte da obrigação, razão por que se inverte o ónus da prova, mas apenas o ónus da prova, ou seja, o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto. AB - Significa isto que, por via da dispensa de prova, contida no art. 458.º do CC, os Embargados estejam dispensados de provar tal factualidade, cumprindo ao demandado demonstrar que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos (se o demandado/declarante provar que tal relação não existe, a obrigação “dissipa-se”, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida). AC - Ora, tal alegação vê-se verdadeiramente reflectida quer no requerimento executivo, quer na contestação dos embargos: os exequentes/embargados alegam a relação causal, anteriormente existente entre as partes e subjacente à emissão da confissão de dívida em causa. AD - Sem prescindir, concluímos que o teor dos títulos executivos foram dados por integralmente reproduzidos na exposição de factos, ora, assim sendo, tem que entender-se que foi alegada a relação material subjacente à confissão de dívida – o contrato de mutuo. AE - Mais se o tivesse sido feito de modo insuficiente, poderia e deveria o Tribunal de 1ª Instância, convidar o Exequente à sua especificação ou concretização, ao abrigo do princípio da economia processual. AF - Deste modo, seguindo-se o douto entendimento do acórdão recorrido, caberia aos embargantes/executados alegar e provar a inexistência do contrato de mutuo. AG - E neste aspecto alegaram inclusivamente a simulação e falta de capacidade do falecido para a realização do negócio jurídico desse contrato, o que demonstra claramente, que os executados perceberão completamente a causa de pedir, tendo exercido cabalmente o seu direito de defesa e de contraditório, o que obstaria igualmente à declaração de ineptidão. AH - Por outro lado, e atento os factos provados, resultou que não conseguiram provar quaisquer dos vícios apontados ao contrato de mutuo que alegaram, nem conseguiram demonstrar que a quantia emprestada, afinal não o tenha sido. AI - Isto posto, atento ao lapso de tempo decorrido entre a entrada da acção e as demais audiências, a nulidade da douta sentença com base numa excepção processual de ineptidão do requerimento executivo, excepção essa que não foi levantada pelas partes, a não ser em sede de Recurso final, não obstante o seu conhecimento poder ser oficioso, parece-nos, atento a que não foram prejudicados quaisquer meios de defesa às partes, nem mesmo o argumento de que o devedor originário já se encontra falecido pode prevalecer, atendo a que o credor originário, também já se encontra falecido, quer à data desta execução, quer à data do inventário ( isto é, o devedor originário faleceu a 05.03.2003 e o credor originário faleceu a 26.12.2006), quão mais como referido no douto acórdão, ora recorrido, “A embargante FF na conferência de interessados, enquanto reclamante de uma verba do passivo, aprovou as verbas do passivo nºs. 10 (a que reclamava a seu favor) e as verbas nºs 11 (aqui em execução), 12 e 13” – ex vi pagina 7 do douto acórdão, pontos 7.º a 13.º inclusive) que aos exequentes assistia o direito ao aperfeiçoamento, parece-nos ser uma interpretação deveras extensiva da indicação da causa de pedir, no sentido em que sempre se alegou o contrato de mútuo e do art. 458.º do CC. AJ - Assim duvidas não restam que não assiste qualquer razão à Recorrida, devendo a douta sentença do tribunal 1.ª Instância ser confirmada, com as demais consequências. Nestes termos e nos melhores de Direito, deve dar-se provimento ao presente Recurso e, em consequência, revogar-se o douto acórdão recorrido em conformidade, confirmando-se a douta sentença 1.ª Instância com todas as legais consequências, no que farão V. Exc.as, a sempre Inteira e Costumada JUSTIÇA!” 7. A embargante/executada FF apresentou contra-alegações, rematando com as seguintes conclusões: “A) O presente recurso de revista vem interposto do douto Acórdão, datado de proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que julgou o recurso interposto pela executada procedente e declarou a nulidade de todo o processado, absolvendo as executadas da instância executiva. B) A questão que foi levada recurso consistiu em determinar se o requerimento executivo é inepto, com as necessárias consequências. C) No requerimento executivo os exequentes alegaram que no dia 05.06.2002, II, à data viúvo, subscreveu três declarações de dívida em que reconheceu ser devedor a AA, seu filho, aí devidamente identificado, das quantias de 18.704,92 € em cada uma delas, perfazendo na sua totalidade o valor de 56.114,76€ D) o devedor II faleceu, no estado de viúvo, no dia 05.03.2003, não tendo pago até essa data qualquer quantia, tendo deixado como herdeiros os aqui executados, bem como os exequentes. E) o seu credor, AA, também faleceu no dia 26.12.2006, no estado de casado, no regime de comunhão de adquiridos, tendo-lhe sucedido como herdeiros únicos e universais os aqui exequentes, conforme resulta de Habilitação de Herdeiros. F) A aqui embargante, na qualidade de herdeira do alegado devedor e executada nestes autos, deduziu embargos de executada, alegando, por um lado a nulidade das declarações e por outro, a simulação da alegada dívida. G) Os exequentes contestaram os embargos alegando, resumidamente, que as executadas/embargantes sempre tiveram conhecimento que o originário devedor, II, e o originário credor, AA, eram “sócios” na venda de peixe, embora sem firma formalmente constituída. Assim como sempre soube que, apesar de “sócios”, quem liderava/geria a “sociedade” era o seu pai (originário devedor) II, sendo este quem guardava o dinheiro do negócio no seu cofre, gerindo-o como bem entendia, inclusivamente para adquirir património, fazer face a despesas de manutenção e conservação dos seus imóveis, e até para o sustento da família, inclusivamente da embargante/executada FF à qual nunca foi conhecida qualquer actividade profissional, muitas vezes à custa da quota-parte dos lucros que caberiam ao seu filho e “sócio” (originário credor) AA. H) Na sentença de primeira instância refere o Tribunal que não conseguiu apurar a razão pela qual o falecido II emitiu a declarações aos seus dois filhos, AA e FF. I) Mais refere que por força do citado art. 458º, competia aos interessados executados oponentes o ónus da prova de ilidir a presunção da inexistência da relação causal por detrás da emissão dessa declaração, no sentido de demonstrar a inexistência da dívida, a sua ilicitude ou falsidade. J) Por entender que não era assim recorreu a executada para o Tribunal da Relação concluindo que o art. 458.º C. Civil apenas estabelece um regime de “abstracção processual”, ou seja, dispensa o exequente da prova da relação fundamental, mas não o dispensa de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir da ação/execução. K) E ainda que cabendo o ónus da prova da inexistência ou da invalidade da relação jurídica subjacente ao devedor e competindo à causa de pedir, na ação executiva, a individualização da obrigação, não se mostrando esta alegada no requerimento executivo ou até contraditoriamente alegada aquando da contestação dos embargos, alegando aqui que se tratava de acerto de contas do negócio do peixe e ainda nas declarações de parte da exequente esta vem ainda acrescentar outro facto, obras da casa. Assim, “impossível” se torna ao devedor e pior ainda herdeiros deste cumprir tal ónus adequadamente. L) Alegou ainda a executada que quem, como os exequentes/embargados, peticionam o pagamento de uma dívida sem indicação da causa no seu requerimento executivo, não pode limitar-se a juntar aos autos o documento que corporiza a promessa de cumprimento, devendo também identificar a respectiva relação causal, alegando os seus factos essenciais e constitutivos. M) Que sendo o requerimento executivo omisso quanto à causa de pedir, encontra-se o mesmo ferido de ineptidão nos termos do artigo 186.º, do C.P.C., exceção que é de conhecimento oficioso e que determina a absolvição da executada da instância. N) O Tribunal da Relação entendeu que a executada tinha razão reforçando ainda que no despacho saneador foi proclamado de forma tabelar que o processo não enferma de nulidade total, o que não forma caso julgado relativamente ao possível vício de ineptidão de que possa enfermar o requerimento executivo. Foi ainda abordada e relegada para final a excepção de ineptidão do título executivo, por se ter considerado, em face dos articulados, controvertida a matéria relativa à nulidade formal e à simulação do mútuo. O) Refere ainda que a posição atualmente dominante é a que o exequente fica dispensado de provar a causa da obrigação, mas não fica dispensado de a alegar, designadamente no requerimento executivo, sob pena de ineptidão, quando do título executivo não consta a causa e o devedor se limite a confessar a dívida, sem menção do respectivo negócio causal. P) O Acórdão recorrido sustenta ainda que a não se entender assim, impondo-se ao devedor (ou ao executado) o ónus de alegação e prova da inexistência de uma qualquer causa geradora de obrigações e da ocorrência de quaisquer vícios que a afectassem, prejudicado ficaria até o exercício cabal do seu direito ao contraditório. Q) E que tal vício é ainda mais flagrante no caso vertente, quando se constata que a execução não é movida contra o primitivo devedor, subscritor das declarações em que reconheceu as dívidas, mas já contra os seus sucessores mortis causa, para quem é impossível cumprir adequadamente o ónus de contraprova da existência de uma obrigação causal com que em momento algum foram confrontados. R) E ainda que sendo certo que em sede de resposta aos embargos já a alegação pelos exequentes da obrigação causal é extemporânea, por envolver alteração da causa de pedir na pendência do processo, com os inerentes reflexos no exercício do contraditório que aos executados assiste. S) O que determina a nulidade de todo o processado e consequente absolvição da recorrente e demais executados da instância executiva, por se tratar de caso de litisconsórcio necessário (artigo 634.º, n.º 1 do CPC) e de vício que afeta as duas embargantes. T) Não se conformando com esta decisão vieram os exequentes recorrer alegando que as executadas como contestaram não viram o seu direito à defesa prejudicado. U) Insistem ainda os exequentes que ao abrigo do artigo 458.º do código civil ficam dispensados de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto. V) Mas confundem os exequentes a alegação dos factos com a prova dos mesmos. Pois pelo facto de o credor ficar dispensado da prova da relação fundamental, não o dispensa de alegar os factos constitutivos dessa relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir. W) Os exequentes no seu requerimento executivo não alegam qualquer causa, limitando-se a juntar aos autos os documentos, mas é totalmente omisso quanto à relação causal, nem alegam os seus factos essenciais e constitutivos. X) Sendo o requerimento executivo omisso quanto à causa de pedir, encontra-se o mesmo ferido de ineptidão nos termos do artigo 186.º, do C.P.C., exceção que é de conhecimento oficioso. Y) Argumentam ainda os exequentes que, a considerar-se verificada a falta (vício), deveria o tribunal a quo ter ordenado o aperfeiçoamento do requerimento executivo. Z) Ora, resulta dos artigos 6º, nº 2 e 278º, nº 3 do CPC que as excepções dilatórias só subsistem (só dão lugar à absolvição da instância) se não forem sanadas, incumbindo ao juiz providenciar pelo respectivo suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância. AA) O convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo está reservado aos vícios não subsumíveis ao nº 2 do art. 726º do CPC – fora dos casos enquadráveis no nº 2 do art. 726º do CPC o juiz deverá proferir despacho de aperfeiçoamento para suprimento de irregularidades do requerimento executivo e de sanação de falta de pressupostos processuais. BB) A ineptidão do requerimento executivo por falta de indicação da causa de pedir, por constituir vício enquadrável na alínea b) do nº 2 do art. 726º do CPC, não é suscetível de convite ao aperfeiçoamento (art. 726º, nº 4 do CPC) - a eventual correção ou aperfeiçoamento não é modo legalmente admissível de sanação do vício. CC) Face ao exposto, o Acórdão recorrido fez uma correta aplicação das normas legais, devendo ser mantido. TERMOS EM QUE E NOS MAIS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, NEGANDO PROVIMENTO AO RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, CONFIRMANDO O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO, FARÃO, COMO SEMPRE, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA”. 8. Foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. O objeto do recurso, tal como delimitado pelas respetivas conclusões, consiste na ineptidão do requerimento executivo – vício que, tendo fundamentado o acórdão recorrido, a recorrente considera inexistir. 2. As instâncias deram como provada a seguinte Matéria de facto 1.º No dia 05.06.2002, II, à data viúvo, subscreveu três declarações de dívida em que reconheceu ser devedor a AA, seu filho, aí devidamente identificado, das quantias de 18.704,92 € em cada uma delas, perfazendo na sua totalidade o valor de 56.114,76€ (cinquenta e seis mil cento e catorze euros e setenta e seis cêntimos). 2º Declarações de dividas essas registadas no Cartório Notarial de..., sob os números 78,79 e 80, tendo o devedor pago os respectivos impostos de selo, onde foi igualmente reconhecida notarialmente a sua assinatura, conforme os documentos nºs 1 a 4 juntos com o req. executivo e que aqui se dão por integralmente por reproduzidos. 3º Nos termos das quais, o AA se obrigou a pagar tais quantias no prazo de 8 (oito) dias após a solicitação pelo credor para esse efeito, mas nunca antes decorridos 5 (cinco) anos sobre a data do documento. 4º O II faleceu, no estado de viúvo, no dia ....03.2003 não tendo pago até essa data qualquer quantia. 5º O II deixou como herdeiros os executados, bem como os exequentes. 6º O herdeiro AA, também faleceu no dia ....12.2006, no estado de casado, no regime de comunhão de adquiridos, tendo-lhe sucedido como herdeiros únicos e universais os exequentes. 7º Exequentes e executados intervieram todos como herdeiros e interessados no processo de inventário nº 2114/12.5..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... -Instância Local - Secção Cível - J..., por óbito de KK e do II. 8º Os exequentes reclamaram essas dívidas à herança do devedor, nesse processo, através de requerimento de impugnação/oposição e reclamação à relação de bens, reclamação essa apresentada no dia 10.11.2014, (Requerimento Refª Citius nº ...56). 9º O que deu origem a uma rectificação da Relação de Bens, passando as mesmas a constar da Relação de Bens, sob a verba 11, apresentada pela cabeça-de-casal da herança, FF. 10º Contudo, na conferência de interessadas estas não foram aprovadas pelos interessados não reclamantes do passivo. 11º Tendo sido proferido despacho a 25.09.2015, no qual a Mrtmª Juiz decidiu, nos termos do Artº 1355º do anterior CPC, não reconhecer, no Inventário, essa dívida. 12º E, posteriormente, foi proferida sentença, em 15/04/2016, que homologou a partilha, decisão que transitou em julgado em 23/05/2016. 13º A embargante FF na conferência de interessados, enquanto reclamante de uma verba do passivo, aprovou as verbas do passivo nºs. 10 (a que reclamava a seu favor) e as verbas nºs 11 (aqui em execução), 12 e 13. 14º O falecido II tinha vários imóveis. As instâncias enunciaram os seguintes Factos Não Provados 1. O falecido II assinou as declarações de dívida dadas á execução, no final da sua vida, sem saber e/ou perceber o que estava a assinar. 2. O falecido AA nunca emprestou ao seu pai II, também já falecido, os montantes reflectidos em cada uma das três declarações de dívida dadas á execução. 3. O falecido II não necessitava desses empréstimos, porque não tinha créditos para pagar e recebia duas reformas, a sua e a da falecida mulher, o que era suficiente para os seus gastos. 4. O falecido AA não tinha rendimentos que lhe permitissem ter tais montantes para emprestar. 5. O falecido II não tinha créditos para pagar e recebia duas reformas, a sua e a da falecida mulher. 6. Era o falecido II que dava dinheiro ao filho AA, porque este passava por dificuldades, o que era do conhecimento de toda a família. 7. O II pretendia beneficiar os dois filhos, AA e FF nas partilhas por sua morte, para além da quota disponível. 8. O II, e o originário credor, AA, eram "sócios" na venda de peixe, embora sem firma formalmente constituída. 9. Apesar de "sócios", quem liderava/geria a "sociedade" era o seu pai (originário devedor) II, sendo este quem guardava o dinheiro do negócio no seu cofre, gerindo-o como bem entendia, inclusivamente para adquirir património, fazer face a despesas de manutenção e conservação dos seus imóveis, e até para o sustento da família, inclusivamente da embargante/executada FF à qual nunca foi conhecida qualquer actividade profissional, muitas vezes à custa da quota-parte dos lucros que caberiam ao seu filho e "sócio" (originário credor) AA. 3. O Direito A ação executiva pressupõe a anterior definição dos elementos, subjetivos e objetivos, da relação jurídica de que é objeto. Tal definição está contida no título executivo, documento que constitui a base da execução por a sua formação reunir requisitos que a lei entende oferecerem a segurança mínima reputada suficiente quanto à existência do direito de crédito que se pretende executar. O título executivo constitui um pressuposto processual específico da execução. É ele que determina o fim e os limites da ação executiva (art.º 10.º n.º 5 do CPC). Daí que a sua falta ou insuficiência constitua fundamento para o indeferimento liminar do requerimento executivo pelo juiz (art.º 726.º n.º 2 al. a) do CPC), para ulterior rejeição oficiosa da execução (art.º 734.º n.º 1 do CPC) e para oposição à execução (art.º 729.º alínea a) do CPC). Entre os documentos a que o legislador atribui a força de título executivo, enumerados no art.º 703.º do Código de Processo Civil, contam-se, nos termos da alínea b) do n.º 1, “os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”. A lei atribui, pois, força de título executivo aos documentos que, reunidos determinados requisitos de natureza formal, importem o reconhecimento de uma obrigação. Os exequentes apresentaram à execução três documentos em que II reconheceu ser devedor a AA, seu filho, aí devidamente identificado, das quantias de € 18 704,92 em cada uma delas, perfazendo na sua totalidade o valor de € 56 114,76. Essas declarações de dívida foram registadas em cartório notarial, onde foi igualmente reconhecida a sua assinatura. Assim, o referido documento consubstancia uma declaração cujo conteúdo integra o reconhecimento de uma obrigação pecuniária do primitivo devedor (de quem os ora executados são herdeiros) para com o primitivo credor (de quem os exequentes são herdeiros). Nos termos do n.º 1 do art.º 458.º do Código Civil, essa declaração faz presumir a existência e a validade da relação negocial fundamental, que in casu constitui a fonte da obrigação exequenda. Contudo, se na aludida declaração não constar a indicação da fonte constitutiva da obrigação, deve ela ser indicada no requerimento executivo, sob pena de ineptidão por omissão de indicação de causa de pedir (art.º 724.º n.º 1, alínea e), 186.º n.ºs 1 e 2 alínea a), 196.º, 577.º alínea b), 726.º n.º 2 alínea b) do CPC; neste sentido, v.g., Castro Mendes, Direito Processual Civil, Acção executiva, AAFDL, 1980, pág. 7; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, 12.ª edição, 2009, Almedina, páginas 41 a 43; José Lebre de Freitas, A ação executiva, 7.ª edição, 2017, Gestlegal, pp. 184 e 189, nota 6; na jurisprudência, v.g., STJ, 29.01.2002, CJ STJ, ano X, t. I, pág. 64; 16.3.2004, processo 04B3004; 04.12.2007, processo 07A3805, 27.11.2007, processo 07B3685; 15.9.2011, 192/10.0TBCNT-A.L1; 07.5.2014, 303/2002.P1.S1; 27.4.2017, 108/13.2TBMIR-A.C1.S1; 04.02.2021, 2829/17.1T8ACB-A.C1.S1; 16.02.2023, processo 30218/15.5T8LSB-A.L1.S1 - consultáveis em www.dgsi.pt). De facto, reconhece-se atualmente que a causa de pedir na ação executiva não se confunde com o título executivo, sendo certo que este, pese embora constitua a base da execução, por vezes carece de prova e alegação complementar para fundar a pretensão deduzida na execução (vide, desde logo, as alegações e diligências destinadas a tornar a obrigação exequenda certa, exigível e líquida, se o não for em face do título executivo – artigos 713.º e seguintes do CPC - além das situações de sucessão no direito ou na obrigação exequenda – art.º 54.º n.º 1 do CPC) - nomeadamente a alegação da causa da obrigação exequenda, se não constar do título executivo, conforme ocorre nas situações previstas no art.º 458.º n.º 1 do Código Civil. Pensa-se, como Lebre de Freitas, que a presunção da existência de causa para a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida referidos no art.º 458.º n.º 1 do Código Civil não eximem o credor de, tanto na ação executiva como na ação declarativa, invocar a relação fundamental, enquanto facto constitutivo e individualizador da sua pretensão, face ao qual o alegado devedor deduzirá a sua defesa e serão invocáveis as exceções da litispendência e do caso julgado (cfr. Lebre de Freitas, desde logo em A acção declarativa comum, Coimbra Editora, 2000, páginas 182 a 185 e em A confissão no direito probatório, Coimbra Editora, 1991, páginas 387 a 391; Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, pp. 311 e 312; na jurisprudência, vide os citados acórdãos do STJ). In casu, no requerimento executivo os recorrentes limitaram-se a brandir a existência da declaração de dívida, sem articular os factos constitutivos desta. Porém, a lei estipula que no requerimento executivo o exequente “[e]xpõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo” (alínea e) do n.º 1 do art.º 724.º do CPC). De facto, constituindo o título executivo a base da execução, se nele constam os factos suficientes para justificar a pretensão executiva, preenchido está o ónus de alegação da causa de pedir que a sustenta. Ora, nas declarações que foram dadas à execução consta que “a aludida dívida refere-se a quantia de igual montante mutuada pelo referido AA ao declarante”. Mais aí se consignando que “O Declarante obriga-se a entregar ao aludido AA a totalidade do referido capital no prazo de 8 (oito) dias após a solicitação para esse efeito, mas nunca antes de decorridos 5 (cinco) anos sobre a presente data” (negritos nossos). Tanto bastou para que, até à interposição da apelação pela embargante, não se questionasse a aptidão do requerimento executivo, no que se refere a alegação de causa de pedir. De facto, na petição de embargos as embargantes não duvidaram de que as dívidas alegadamente subjacentes às declarações dadas à execução emergiam de mútuos, mútuos esses cuja nulidade arguiram, seja quanto à forma, seja por alegada simulação. E, porque assim foi, no despacho que se proferiu nos termos e para os efeitos previstos no art.º 596.º n.º 1 do CPC enunciou-se, entre os temas da prova (para o que se levou em consideração que o respetivo ónus de prova recaía sobre as embargantes/executadas), “Se o falecido AA nunca emprestou ao seu pai II, também já falecido, os montantes refletidos em cada uma das três declarações de dívidas dadas à execução”, “Se o falecido II não necessitava desses empréstimos, porque tinha vários imóveis, não tinha créditos para pagar e recebia duas reformas, a sua e a da falecida mulher, o que era suficiente para os seus gastos”, “Se o falecido AA não tinha rendimentos que lhe permitissem ter tais montantes para emprestar”. Factos esses que foram dados como não provados. E é por ninguém, neste processo, ter dado por falta de alegação de causa de pedir, que só na apelação a embargante FF veio arguir a falta de causa de pedir no requerimento executivo e a sua consequente nulidade, por ineptidão. Sem razão, como já se viu. No que, pelas razões expostas, se discorda do acórdão recorrido. O que tem, como consequência, que deve repristinar-se a sentença. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se a sentença. As custas da apelação e da revista, na modalidade de custas de parte, são a cargo da embargante/executada FF, que nelas decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC). Lx, 09.7.2024
Jorge Leal (Relator) Nelson Borges Carneiro Jorge Arcanjo |