Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18/18.7GTCBR.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONCURSO DE INFRAÇÕES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - No regime vigente (decorrente das alterações ao CPP, introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro), o recurso para o STJ, nos casos subsumíveis à previsão das als. a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP, visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, a existência dos vícios decisórios [nos exactos termos em que o n.º 2 do art. 410.º do mesmo código admite o seu conhecimento] ou a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada [n.º 3 do art. 410.º].

II - A não referência, na al. b) do n.º 1 do art. 432.º do CPP, quanto a visar o recurso nela previsto, exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do art. 410.º do mesmo código, impõe a conclusão de ter sido propósito do legislador excluir como fundamento dos recursos subsumíveis à sua previsão [os interpostos das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pela relações, em recurso, nos termos do art. 400.º, ainda do mesmo código], o conhecimento dos vícios decisórios.

III - Por isso, nos recursos previstos na referida al. b), não pode o recorrente invocar, como seu fundamento, a existência na decisão recorrida, de vícios decisórios, o que, em todo o caso, não impede o seu conhecimento oficioso, como é entendimento consolidado deste STJ (Acórdãos de Justiça de 29 de fevereiro de 2024, Processo n.º 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 8 de novembro de 2023, Processo n.º 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de março de 2023, Processo n.º 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de março de 2022, Processo n.º 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt).

V - Perante a violação pelo arguido da mesma norma típica – art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP – mais de quinhentas e cinquenta vezes, num comportamento global revelador de outros tantos sentidos de ilícito, e não, de um sentido de ilícito unitário, verifica-se uma pluralidade de infracções reconduzível à figura do concurso real de crimes.
Decisão Texto Integral:
RECURSO Nº 18/18.7GTCBR.C1.S1

Recorrente: AA.

Recorrido: Ministério Público.

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Acordam, em audiência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de ...– Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 26º, 255º, a) e 256º, nº 1, d) e e), todos do C. Penal, em concurso aparente com quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do mesmo código.

Por acórdão de 16 de Fevereiro de 2023, foi o arguido absolvido da prática dos imputados quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsificação ou contrafacção de documentos bem como, da prática de quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsas declarações, e condenado pela prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do C. Penal, na pena de trezentos e vinte dias de multa à taxa diária de € 40, perfazendo a multa global de € 12800.

Mais foi decidido não determinar a perda a favor do Estado de vantagem patrimonial.

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Inconformado com a decisão, recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 25 de Outubro de 2023, assim decidiu:

“(…).

1 – Altera-se a matéria de factos nos termos constantes do ponto III.1.2.

2 – Condena-se o arguido AA pela prática, em concurso aparente, dos 554 crimes de falsas declarações, pp. no artigo 348.ºA, n.º 1 do Código Penal e dos 554 crimes de falsificação de documento, pp. pelos artigos 26.º, 255.º, alínea a) e 256.º, nº 1, alíneas d) e e) todos do Código Penal, nas penas parcelares de 14 meses de prisão, cada uma;

- Em cúmulo jurídico das penas referidas em 2), condena-se o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, subordinada ao cumprimento da entrega de uma contribuição monetária no valor de trinta mil euros à ACA-M-Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, a entregar no prazo máximo de seis meses após o trânsito em julgado deste acórdão, de que deverá o arguido fazer prova no processo.

(…)”.

*

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Inconformado com a decisão, recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, requerendo o julgamento do recurso em audiência e formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:

I. Da ineficácia do Estado-Administração – o Rei vai nu

1.ª A situação da vida a que os autos dizem respeito consiste, em resumo, na conduta do arguido que, no exercício da sua atividade profissional de Advogado, em centenas de processos de contraordenações rodoviárias em que assumiu a defesa dos seus clientes, determinou que, no formulário de identificação do condutor, fosse inscrito o seu próprio nome e o número da sua carta de condução, em vez do nome e do número da carta de condução do verdadeiro condutor – o que ocorreu 554 vezes – levando a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) a lavrar autos de contraordenação com conteúdo inverídico no que respeita à identidade do condutor, sabendo o arguido que, por falta de meios da ANSR para o processamento dos processos contestados, a simples apresentação de defesa, qualquer que fosse o nome do condutor, conduziria à prescrição.

2.ª Este processo, acompanhado de perto pelos meios de comunicação social, expôs perante a comunidade a total ineficácia do aparelho do Estado-Administração, no que concerne ao processamento das contraordenações rodoviárias, mostrando às escancaras que basta que o arguido, qualquer arguido, apresente defesa (contestação) no processo contraordenacional para que não seja possível à Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária (ANSR) proferir decisão em tempo oportuno, acabando os processos por ser arquivados por prescrição.

3.ª Demonstra a realidade a quem o quiser saber, e os autos revelaram a quem pudesse não o saber, que só são condenados os arguidos que não apresentam defesa – os que se defendem, com ou sem qualquer fundamento, podem contar com a ineficácia do sistema e com o arquivamento do seu processo, por prescrição.

4.ª É assim há muitos anos, e provavelmente continuará a ser assim, porque o Estado não se dispôs, ou não foi capaz, de se munir dos meios necessários e adequados – designadamente, humanos – a fazer funcionar o sistema sancionatório no âmbito das contraordenações rodoviárias, como de resto também acontece na Justiça, na Educação, na Saúde, na Emigração, etc.

5.ª Estes factos são do conhecimento público, pelo menos do conhecimento de qualquer jurista, e a ineficácia do sistema punitivo contraordenacional tem sido usada por muitos cidadãos e Advogados, que – como o arguido destes autos – aconselham os seus clientes a apresentarem defesa nas contraordenações de que sejam acusados, como forma lícita e eficaz de obter o arquivamento dos autos, por prescrição.

6.ª Quem tem obrigação de tornar o sistema punitivo contraordenacional eficiente é o Estado-Administração, não podendo ser considerado ilícito que um arguido se defenda num processo contraordenacional, com o fito de obter o arquivamento dos autos por prescrição, instituto que só opera porque a máquina estatal está paralisada por falta de meios.

7.ª A 1.ª instância captou esta realidade e enquadrou-a de forma exemplar, na doutíssima decisão que proferiu; diversamente, o Tribunal da Relação de Coimbra resolveu punir de forma exemplar o arguido pela forma como, enquanto Advogado, aproveitou a ineficácia do Estado em benefício dos seus clientes.

8.ª Salvo o devido respeito, o arguido foi condenado no acórdão recorrido por mostrar a ineficiência do Estado, por mostrar que o rei vai nu – como todos sabem, mas não fica bem que se diga.

9.ª Como procurará demonstrar-se, com o respeito, que é muito, devido ao Tribunal da Relação de Coimbra, o acórdão recorrido incorreu em diversos erros de direito, construindo o seu raciocínio com base em premissas invalidamente obtidas, com a manifesta preocupação de salvar a imagem do Estado, à custa da exemplar – e injusta – condenação do arguido.

10.ª Os tribunais não devem agir preocupados em salvar a imagem de um Estado-Administração ineficiente, devendo limitar-se a administrar a justiça, em nome do povo, nos termos do artigo 202.º, n.º 1, da CRP – Justiça que – não temos a mínima dúvida – o acórdão recorrido não fez.

II. Da recorribilidade do acórdão da Relação de Coimbra de 25.10.2023

11.ª O arguido foi, nos presentes autos, acusado da prática de 555 crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelos artigos 26.º, 255.º, al. a), 256.º, n.º 1, als. d) e e) do Código Penal (adiante, CP), em concurso aparente com de 555 crimes de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A do mesmo Código.

12.ª Na 1.ª instância, foi proferido douto acórdão a 16.02.2023, que condenou o arguido pela prática de um único crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de 320 dias de multa, e que o absolveu dos restantes crimes pelos quais vinha acusado, a saber, 555 crimes de falsificação de documentos e os demais 554 crimes de falsas declarações.

13.ª Recorreu o Ministério Público do acórdão da 1.ª instância, na parte absolutória, vindo o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão recorrido, a dar provimento ao recurso, alterando a decisão da matéria de facto e condenando o arguido pela prática, em concurso aparente, dos 554 crimes de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.º 1, e dos 554 crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 26.º, 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, als. d) e e), todos do CP, nas penas parcelares de 14 meses de prisão, cada uma e, em cúmulo jurídico, condenando o arguido na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, subordinada ao cumprimento da entrega de uma contribuição monetária no valor de trinta mil euros à ACA-M-Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, a entregar no prazo máximo de seis meses após o trânsito em julgado do acórdão.

14.ª Atendendo ao disposto nos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. e) (na redação dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é admissível, uma vez que o acórdão da Relação recaiu sobre a decisão da 1.ª instância na parte em que esta foi absolutória, e constitui a primeira decisão condenatória do arguido, por tais crimes – de 554 crimes de falsificação de documentos e mais 553 crimes de falsas declarações.

A não se entender assim, estaremos perante inconstitucionalidade, desde logo, porque o acórdão recorrido condenou pela primeira vez o arguido por tais crimes.

15.ªAinterpretação das normas dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. e) (na redação dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, no sentido de ser irrecorrível o acórdão da Relação que, inovadoramente, face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena o arguido pela prática de mais 553 crimes de falsas declarações e de 554 crimes de falsificação de documento, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1 (direito à defesa e ao recurso, enquanto garantias em processo criminal), conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 (proibição de restrição de garantias constitucionais), ambos da Constituição da República Portuguesa (adiante, CRP) – inconstitucionalidade que se deixa desde já alegada, para os devidos efeitos.

16.ª O acórdão recorrido é ainda passível de recurso, como adiante melhor será explicado, por uma segunda razão – por ter alterado a decisão da matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

III. Da alteração da decisão da matéria de facto no acórdão recorrido com violação do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP

17.ª No recurso que interpôs do acórdão da 1.ª instância, na parte absolutória, o Ministério Público impugnou a decisão da matéria de facto, defendendo que determinados factos deviam ser dados como provados e outros como não provados, mas fez tábua rasa das exigências impostas no artigo 412.º do CPP, não impugnando de forma clara e explícita a decisão da matéria de facto (corpo de n.º 3), não indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados [(al. a)], não indicando de todo as provas que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida [(al. b)] e não indicando as provas que devem ser renovadas - al. c).

18.ª O arguido, na resposta que apresentou, defendeu que o recurso do Ministério Público da decisão da matéria de facto não podia ser conhecido – como é entendimento uniforme da jurisprudência dos tribunais superiores.

19.ª Sendo por demais evidente que, com a matéria de facto provada e não provada constante do acórdão proferido em 1.ª instância, a decisão de direito nele tomada não poderia ser alterada, no recurso, no sentido pretendido pelo então Recorrente, o magistrado o Ministério Público junto do Tribunal da Relação, no parecer que deu, reconhecendo esta manifesta falha do recurso relativo à matéria de facto, procurou salvar o recurso, invocando a existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova.

20.ªAssim, o Ministério Público junto da Relação, tendo em vista obter o mesmo resultado, isto é, a mesma alteração da decisão de facto pretendida no recurso subscrito pelo Magistrado do Ministério Público junto ao tribunal da 1.ª instância, ao abrigo de uma impugnação ampla da matéria de facto, passou a invocar vícios que são do conhecimento oficioso, completamente omitidos na peça do recurso – tendo o arguido manifestado a sua discordância.

21.ª O acórdão recorrido reconheceu que a motivação e as conclusões do recurso do Ministério Público não respeitavam o preceituado no artigo 412.º, aplicável ex vi do artigo 417.º do CPP, decidindo pelo não conhecimento/rejeição do recurso no que respeita à impugnação ampla da matéria de facto.

22.ª No entanto, o acórdão recorrido considerou, oficiosamente, que a decisão da 1.ª instância incorreu no vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – e determinou uma gigantesca alteração da decisão da matéria de facto, provada e não provada.

23.ª O Recorrente não se conforma com essa alteração que, salvo o devido respeito, viola a citada norma, ao extravasar por completo o seu âmbito de aplicação.

24.ª A Relação, verdadeiramente, procedeu a um novo julgamento da matéria de facto, sem a imediação da 1.ª instância, ignorando a fundamentação apontada no acórdão que revogou, e ignorando a prova, que não reapreciou nem podia reapreciar.

25.ª O artigo 410.º, n.º 2, do CPP permite a extensão do recurso, em todos os casos, isto é, mesmo quando a lei restrinja a cognição do recurso à matéria de direito, aos chamados «vícios da matéria de facto», alargamento que só é admissível quando o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

26.ª As regras da experiência comum são «as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece» - Germano Marques da Silva (ob. e loc. cit. supra).

27.ª Sobre o âmbito da indagação a que deve proceder o tribunal superior, nos termos deste preceito, Pereira Madeira (ob. e loc. cit. supra). ensina o seguinte:

«(…) uma coisa é a indagação, por parte do tribunal ad quem dos vícios a que se refere o artigo 410.º, outra bem distinta, a actividade necessária a suprir esses vícios quando existam. Verdadeiramente, na primeira hipótese, trata-se de uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito afinal, já que mais nenhuma prova é necessária ao tribunal respectivo para que possa concluir pela eventual existência ou não dos falados vícios. (…) Porque se trata aqui de uma tarefa de direito, os tribunais superiores, procedem oficiosamente à detecção dos vícios aqui enunciados, atendendo-se imperativamente apenas e só ao teor do texto da decisão recorrida e, se necessário, também às regras da experiência comum.

«Já a eventual correcção dos vícios aqui elencados, implica sempre uma decisão sobre a matéria de facto, sendo portanto uma decisão de facto a levar a cabo nos termos do artigo 426.º, n.ºs 1 e 2, quer pelo próprio tribunal de recurso com jurisdição em matéria de facto, ou, tal não sendo possível, pelo tribunal reenviado para o efeito» (negritos nossos).

28.ª Acrescentando Pereira Madeira, sobre o conhecimento oficioso dos vícios da matéria de facto previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP (ob. cit., pág. 1327):

«[É] hoje praticamente universal a aceitação do princípio do conhecimento ou indagação oficiosa de tais vícios da matéria de facto. Na verdade, mandam a prudência e o bom-senso que nenhum tribunal, seja ele qual for, possa ser obrigado a aplicar o direito a uma matéria de facto ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por seu insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada. Claramente, em tais caos, qualquer que fosse o edifício jurídico que assentasse em tais bases, seria uma edificação insegura, por falta de alicerces» (negritos nossos).

29.ª Também Germano Marques da Silva (ob. cit., pág. 342), citando Maia Gonçalves, refere que «muita da matéria especificada no n.º 2 do artigo 410.º deve considerar-se matéria de direito, porque a respectiva apreciação não pode desprender-se da interpretação e aplicação de normas jurídicas, mas o legislador especificou que toda esta matéria pode agora fundamentar o recurso, mesmo quando limitado à matéria de direito» (negritos nossos).

30.ª A apreciação dos vícios da matéria de facto elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP constitui, assim, matéria de direito, por isso mesmo sendo de conhecimento oficioso.

31.ª Para além da apreciação dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º constituir matéria de direito, de acordo com o que acaba de expor-se, também constitui matéria de direito saber se a Relação apreciou correta ou incorretamente tais vícios, o que significa que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que, como no caso dos autos ocorreu, alterou a decisão da matéria de facto com fundamento no disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º – o erro notório na apreciação da prova.

32.ª Competindo ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar a aplicação dessa norma pelo tribunal a quo, o que constitui estritamente questão de direito.

33.ª Neste sentido, vd. Paulo Pinto de Albuquerque e Helena Mourão (ob. e loc. cit. supra):

«O STJ tem competência para conhecer os vícios do artigo 410.º, n.º 2, quer nos recursos interpostos das decisões das Relações proferidas em primeira instância [nos termos do artigo 432.º, al.ª a)], quer nos recursos interpostos das decisões das Relações proferidas em recurso [nos termos do artigo 432.º, al.ª b)], e mesmo após a Lei n.º 94/2021, de 21.12 (…).

«No segundo caso [artigo 432.º, al.ª b)], há que distinguir: se o vício do artigo 410.º, n.º 2, se reporta à decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, cabe recurso, em segundo grau, para o STJ do acórdão do TR que conheceu desse vício com base no mesmo fundamento, tendo em conta a opção do legislador por um triplo grau de jurisdição, apesar do direito constitucional ao duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto já ficar assegurado com a decisão do TR sobre o vício. Mas se o vício do artigo 410.º, n.º 2, foi cometido pela própria decisão de segunda instância sobre a matéria de facto, cabe recurso do acórdão do TR para o STJ, em primeiro grau, com base neste fundamento novo» (negritos nossos).

34.ª Vejamos agora como tem sido caracterizado o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º, que serviu para o tribunal a quo alterar a decisão da matéria de facto.

35.ª Germano Marques da Silva (ob. cit., pág. 341) ensina de forma lapidar que «erro notório na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (negritos nossos).

36.ª Paulo Pinto de Albuquerque e Helena Mourão (ob. cit., pág. 651-652) efetuam a delimitação positiva do erro notório na apreciação da prova desta forma:

«Constituem o vício do erro notório na apreciação da prova os seguintes casos:

«a. o erro sobre facto notório, neles se incluindo os factos históricos do conhecimento geral;

«b. a ofensa das leis da natureza (isto é, das leis físicas e mecânicas):

«i. a consideração como provado de facto física ou mecanicamente impossível;

«ii. a consideração como não provado de facto em violação da regra tertium non datur.

«c. a ofensa das leis da lógica (…)

«i. a valoração da não confissão (mesmo que conjugada com outros meios de prova) para fundamentar os factos provados;

«ii. a valoração da confissão integral para fundamentar os factos não provados;

«iii. a incompatibilidade entre um facto objetivo provado e um facto subjetivo provado;

«iv. a incompatibilidade entre um facto subjetivo não provado e um facto objetivo não provado;

«v. a incompatibilidade entre um facto objetivo provado e um facto subjetivo não provado;

«vi. a incompatibilidade entre um facto subjetivo provado e um facto objetivo não provado;

«vii. a incompatibilidade entre o meio de prova invocado na fundamentação e os factos dados como provados com base nesse meio de prova (por exemplo, a incompatibilidade entre o conteúdo do documento invocado na fundamentação e o facto dado como provado com base nesse meio de prova);

«d. a ofensa dos conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos (…)».

37.ª O acórdão recorrido invocou ainda outra doutrina e jurisprudência, para as quais se remete, no mesmo sentido, e concluiu afirmando – com o que se concorda inteiramente (quanto ao conceito de erro notório):

«Trata-se, pois, de um erro grosseiro, de uma falha grave e gritante, patenteada pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que, pela sua manifesta desconformidade com as regras da lógica e da normalidade da vida, seria facilmente percetível pelo homem médio» (negritos nossos).

38.ª Por seu turno, Pereira Madeira (ob. cit., pág. 1329) ensina que no erro notório na apreciação da prova «estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta», mas vai bastante mais além, quando acrescenta que o erro pode ser apenas percetível ao jurista, argumentando:

«Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem de ser “notório”. Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das percepções do homem comum – e sopesado à luz das regras da experiência. Ponto é que não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem» (negritos nossos).

39.ª O tribunal a quo, apesar de ter enquadrado bem a questão, em termos teóricos, não fez uma correta aplicação das regras que enunciou e que são pacificamente aceites na doutrina e na jurisprudência, alterando indevidamente a matéria de facto estabelecida pela 1.ª instância – como passa a ser explicado.

40.ª Enumeram-se, de seguida, os factos relevantes para a decisão do recurso, nesta parte, que foram dados como provados, ou como não provados, na 1.ª instância.

41.ª Foram considerados provados, na decisão de 1.ª instância, designadamente os seguintes factos – sendo assinalados a negrito aqueles sobre os quais incidiu a alteração da decisão, operada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, com base em alegado erro notório na apreciação da prova:

«(…)

«3. O arguido, no exercício da sua atividade profissional de advogado, vem sendo procurado por inúmeros clientes, maioritariamente sociedades, relativamente aos quais foram levantados autos de contraordenações previstas no Código da Estrada, sem que fosse identificado o condutor.

«4. Estes clientes recorriam aos serviços do arguido, após a notificação para identificação do condutor, solicitando-lhe que desse andamento a toda a tramitação tendente à sua defesa.

«(…)

«7. No final do ano de 2016, o arguido decidiu que, quando lhe enviassem o expediente para identificação do condutor, iria inscrever ou mandar inscrever o seu nome no local indicado para a identificação de condutor e o seu número de carta de condução.

«8. Esta resolução foi dada a conhecer a todos os funcionários e advogados do escritório que preenchiam o expediente para identificação de condutor, a mando do arguido.

«9. Assim, no seguimento desta decisão, o arguido, na posse da documentação mencionada, pela sua mão ou alguém a seu mando, seguindo as suas ordens e orientações, procedia ao preenchimento do documento “identificação do condutor”, enviado pelas entidades públicas competentes, fazendo dele constar, nomeadamente:

«. no lugar destinado ao nome do condutor infrator, o seu nome: BB ou CC ou DD ou AA; e

«. no lugar destinado ao título de condução, o número da sua carta de condução:

C-..., data de emissão: ........2001.

«10. Preenchido e rubricado, o documento em causa era enviado para a autoridade que constava no rosto do mesmo (ANSR e/ou autoridade autuante), a qual prosseguia os demais trâmites elaborando novo auto de contraordenação em nome da pessoa identificada, ou seja, o aqui arguido, por acreditarem tratar-se do real condutor da viatura.

«11. Com base no documento elaborado nos moldes descritos, em virtude da atuação do arguido, a autoridade pública competente veio a elaborar autos de contraordenação com conteúdo inverídico no que à identidade do condutor diz respeito, iniciando-se um procedimento a correr termos contra este como se do verdadeiro condutor/infrator se tratasse (…).

«12. Conforme o plano por si gizado, ciente e aproveitando-se, designadamente do volume e regras de tramitação dos autos de contraordenação na ANSR, o arguido conseguia, assim, eximir de responsabilidade os seus clientes como a si próprio.

«(…)

«16. O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor), enviados pelas autoridades públicas, factos que originaram a elaboração de autos de contraordenação em que os verdadeiros infratores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais.

«17. O arguido tem uma imagem de eficácia na tramitação de autos de contraordenação, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio junto da comunidade empresarial.

«18. Sabia o arguido que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial).

«19. O arguido também sabia que a ANSR não dispunha de funcionários suficientes para a tramitação de cerca de novecentos mil a um milhão de processos por ano.

«20. O arguido sabia ainda que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional, bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«21. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que, qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«22. Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome para agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«23. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«24. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«25. Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respetiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«26. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo – facto considerado não provado no acórdão recorrido.

«27. O arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. (…)».

42.ª Por seu turno, tinham sido considerados não provados, na decisão de 1.ª instância, os seguintes factos:

«a) Ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infrator, o arguido ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado.

«b) Com esta atuação visava o arguido obter para si um benefício ilegítimo.

«c) Mais visava o arguido obter um benefício ilegítimo para terceiro.

«d) O arguido lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infratores ao Código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.»

43.ª O tribunal a quo decidiu em sentido oposto, considerando que estes factos estão provados, aditando-os assim aos factos provados, com a seguinte redação, mais extensa:

«O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar falsamente dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor) enviados pelas autoridades públicas, factos esses que originaram a elaboração de autos de contraordenação, sendo, por isso, juridicamente relevantes.

«Sabia, o arguido, que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial) e que ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infractor, ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado, uma vez que, os autos de contraordenação seriam autuados em nome diverso do real infractor.

«Com esta sua actuação visava, o arguido, obter para si um benefício – que sabia ser ilegítimo –, uma vez que os infractores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais em causa, criando, assim, junto da comunidade empresarial uma imagem de eficácia na tramitação daqueles autos, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio.

«Mais visava, o arguido, obter um benefício – que sabia ser ilegítimo – para terceiros, os infractores, ao assegurar que, e apesar da sua actuação ilícita, não haveria consequências sancionatórias para os mesmos, seus clientes.

«O arguido agiu, em todas as circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, com intenção de obter para si e para terceiros benefícios ilegítimos, sabendo que lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infractores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

«Sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.»

44.ª Na fundamentação da decisão da matéria de facto, a 1.ª instância explicou claramente o processo de formação da sua convicção, nos termos acima expostos, para os quais se remete, salientando-se:

«(….) a decisão em causa ocorreu no final do ano de 2016, o que foi dado conhecimento aos funcionários e demais advogados do escritório, valorando os esclarecimentos prestados pelo arguido corroborados pelo depoimento das testemunhas EE e FF, que trabalharam no escritório do arguido.

«O arguido contestou, no entanto, que tenha atuado com intenção de obter um benefício ilegítimo, dizendo que é advogado, desde o ano de 2012, tendo-se especializado em direito das contraordenações. Explicou que neste tipo de processos tem uma taxa de sucesso de 90%, sendo que nas infrações rodoviárias em que é necessário identificar o condutor o sucesso é de 100%.

«No ano de 2016, recebia cerca de 200 ou 300 contraordenações no escritório, tendo de contratar advogadas para o auxiliar na tramitação destes processos.

«Nos processos em que as sociedades clientes tinham de identificar os condutores, deparou-se com algumas dificuldades em obter esses elementos, tendo apenas 15 dias para fazer a identificação.

«Mais esclareceu que tendo em conta o elevado número de processos de contraordenação que tinha no seu escritório, a dificuldade em obter a identificação dos condutores, sabendo que tinha uma taxa de sucesso de 100% nos processos de contraordenações rodoviárias, devido à incapacidade da ANSR em tramitar todos os processos de contraordenações, decidiu, no final de 2016, que em todos os processos desta natureza que entrassem no seu escritório iria colocar o seu nome como sendo o condutor do veículo. Desta forma, agilizava os processos de contraordenação, não sendo necessário contactar os clientes para que identificassem os verdadeiros condutores e autores das contraordenações.

«Importa lembrar que a testemunha GG, jurista da ANSR e diretora de serviço responsável pelas contraordenações, confirmou que, à data dos factos, não tinham funcionários suficientes para tramitar as cerca de novecentas mil a um milhão de processos de contraordenações e que os mesmos invariavelmente prescreviam sempre que existia defesa com diligências de prova. Esta testemunha também confirmou aquilo que o arguido invocou, ou seja, o facto de se colocar um nome que não o do verdadeiro condutor em nada alterava a tramitação dos processos. A apresentação da defesa e a falta de recursos humanos para analisar e decidir a defesa é que levava à prescrição dos procedimentos contraordenacionais.

«As testemunhas EE, que trabalhou no escritório do arguido, confirmou que, no ano de 2016, este decidiu que iriam começar a colocar o seu nome nos documentos de identificação de condutor, para tornar mais céleres os procedimentos no escritório. Referiu que era indiferente o nome que colocavam no documento de identificação de condutor, pois com a apresentação da defesa o processo acabaria sempre por prescrever.

«Também a testemunha FF, que trabalha no escritório do arguido, esclareceu que ali começou a exercer funções em 2017 e que já estava instituído que todos os documentos de identificação de condutor iriam ter o nome do arguido, para tornar mais célere o processo.

«Aqui chegados, não tivemos qualquer dúvida que o arguido dizia a verdade, pois a sua versão dos factos é a mais consentânea com as regras de experiência comum e do normal ser. Com efeito, não podemos ignorar que o arguido era especialista em contraordenações e sabia perfeitamente que os processos em causa iriam todos prescrever por falta de meios da ANSR em tramitar atempadamente as defesas que iria apresentar. Por isso, também sabia que, qualquer que fosse o nome que colocasse nos documentos de identificação de condutor, o processo prescreveria e só sabendo disto se percebe que o arguido tenha atuado como atuou. Que sentido faria que indicasse o seu nome se houvesse uma mínima possibilidade de ser condenado? Não faria sentido absolutamente nenhum. A versão dos factos apresentada pelo arguido é a única que se ajusta à lógica racional.

«Não se diga que o arguido atuou para que os clientes não serem mais perturbados e granjear, desta forma, mais clientes. Um advogado que tem uma taxa de sucesso de 100% neste tipo de processos (o que só pode ser verdade, já que o arguido colocava o seu próprio nome nos documentos de identificação de condutor pois sabia que nunca seria responsabilizado) granjeará sempre diversos clientes.

«Por estes motivos demos como assentes os factos descritos 17 a 26 e como não provados os constantes das alíneas a) a d).(…)» (negritos nossos)

45.ª A fundamentação das decisões serve para exteriorizar as razões pelas quais a decisão foi tomada, tendo por objetivos, por um lado, permitir aos cidadãos uma melhor perceção e aceitação das decisões judiciais e, por outro lado, facilitar o trabalho dos tribunais de recurso, permitindo-lhes a melhor sindicância das decisões que devem apreciar.

46.ª No caso dos autos, o tribunal a quo passou ao largo da fundamentação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, não lhe dando qualquer crédito, partindo para uma dantesca alteração da matéria de facto, invertendo o julgamento (quase) por completo, com base no invocado erro notório na apreciação da prova – erro esse que, a existir, sempre seria tudo menos notório, doutra forma o Ministério Público, no seu recurso para a Relação, não teria deixado de o invocar, mas não o invocou, porque tal erro não existe, nem é notório, muito menos com a extensão afirmada pelo tribunal a quo.

47.ª Se o Tribunal da Relação de Coimbra tivesse reapreciado a prova e ouvido as gravações, e se tivesse lido a fundamentação da decisão de facto, porventura teria entendido melhor a realidade e teria evitado incorrer em erros, crassos, notórios, na sua argumentação.

48.ª Analisemos agora, criticamente, um por um, os argumentos utilizados pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

49.ª Diz o acórdão recorrido:

«Ora, sendo o arguido um advogado, NUNCA poderia estar fora de cogitação que os técnicos da ANSR, por iniciativa própria ou por determinação de algum superior hierárquico, decidissem alterar o método de trabalho e/ou a gestão do cumprimento das suas tarefas, ignorando os processos contestados já prescritos – bastava atentar na data da respectiva entrada –, e passando de imediato a apreciar o expediente entrado recentemente, o que poderia coincidir com a entrada dos autos falsificados pelo arguido».

50.ª Salvo o devido respeito, este argumento parte de premissas erradas e contraria a mais elementar lógica: primeiro, pressupõe que a ANSR tem um método de trabalho para tratar dos processos contestados – o que não tem qualquer apoio na prova, como resulta da fundamentação da sentença.

51.ª Quer o arguido, quer, muito principalmente (pela sua isenção e conhecimento dos factos), a testemunha GG, jurista e diretora de serviço responsável pelas contraordenações da ANSR, foram claríssimos no sentido de que todos os processos onde fosse apresentada defesa/contestação, prescreveriam por falta de funcionários para os processar (cfr. fundamentação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância), resultando daqui, indubitavelmente, que os processos com defesa apresentada não têm qualquer seguimento, pelo que não há um método de trabalho para estes processos.

52.ª Acresce que a afirmação do acórdão recorrido no sentido de que a ANSR poderia alterar o tal método de trabalho «ignorando os processos contestados já prescritos – bastava atentar na data da respectiva entrada –, e passando de imediato a apreciar o expediente entrado recentemente», carece de lógica, pois é evidente que a ANSR nunca poderia ter um método de trabalho que abordasse os processos por ordem cronológica, começando pelos mais antigos, já prescritos, sob pena de nunca atingir os não prescritos, mais recentes.

53.ª Constata-se que o tribunal a quo presumiu (sem qualquer fundamentação) a existência de um método de trabalho nos processos contraordenacionais contestados que, não só não existiu nem existia, como não teria qualquer sentido que tivesse existido – pura e simplesmente, a ANSR não processava, por falta de meios, os processos contestados, razão pela qual todos vinham a prescrever.

Porque – e basta pensar um pouco – se o fizesse, deixaria prescrever, em muito maior número, os não contestados, uma vez que os contestados implicam sempre muito mais trabalho e dispêndio de tempo e continuaria a deixar prescrever muitos dos contestados.

54.ª A prova foi unânime nesse sentido, como resulta do acórdão da 1.ª instância, razão pela qual a argumentação do acórdão recorrido é manifestamente errada e desajustada dos elementos que resultam da decisão de primeira instância – texto da decisão, no seu todo, que define os limites da apreciação do vício do erro notório da apreciação da prova, como resulta expressamente da lei.

55.ª Prossegue o acórdão recorrido com mais um argumento que não convence, por ilógico, ao afirmar: «Estivesse o arguido convicto de que tais processos prescreveriam, não teria colocado o seu nome no lugar do autuado e indicado o número da sua carta de condução. E muito menos inscreveria o seu nome no lugar destinado ao nome do condutor infrator (…)», pois é evidente que não é assim, mas precisamente o contrário: se o arguido não tivesse a certeza de que os processos prescreveriam pelo simples facto de ser apresentada defesa, não teria indicado os seus dados na identificação do condutor, sob pena de poder vir a ser, ele próprio, condenado em mais de 550 processos de contraordenação!

56.ª Que advogado assumiria a autoria de mais de 550 infrações e gostaria de ser condenado, em vez dos seus clientes, por antever como possível uma alteração dos métodos da ANSR de forma a impedir a prescrição? É impossível conceber a situação configurada pela Relação, ela sim incorrendo em erro notório – afirmando o que não pode ser verdade, de acordo com as regras da experiência comum.

57.ª Prossegue o acórdão recorrido argumentando que «as invocadas razões de agilização do escritório, revelam-se no mínimo pueris, atenta a tecnologia actual e a respectiva velocidade de informação. A justificação da actuação do arguido por apelo à prescrição dos processos e à agilização do escritório, atentam gravemente contra as regras da experiência».

58.ª Dispõe o artigo 171.º do Código da Estada (adiante, CE), sob a epígrafe «Identificação do arguido»:

«1 - A identificação do arguido deve ser efetuada através da indicação de:

a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa colectiva, denominação social;

b) Domicílio fiscal;

c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respetivo serviço emissor e número de identificação fiscal;

d) Número do título de condução e respetivo serviço emissor;

(…)

2 - Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.

3 - Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infratora.

(…)

5 - Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contraordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa coletiva, deve esta ser notificada para, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação do condutor, ou, no caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, do locatário, com todos os elementos constantes do n.º 1 sob pena de o processo correr contra ela, nos termos do n.º 2.

6 - A pessoa coletiva, sempre que seja notificada para tal, deve, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação de quem conduzia o veículo no momento da prática da infração, indicando todos os elementos constantes do n.º 1, sob pena do processo correr contra a pessoa coletiva.

(…)».

59.ª É esta obrigação legal de identificação do condutor que as sociedades (pessoas coletivas) clientes do arguido tinham que efetuar, no prazo de 15 dias.

60.ª A tecnologia e a velocidade de informação atualmente disponíveis – a que alude o acórdão recorrido – não encurtam esse prazo de 15 dias que a lei concede para a identificação do condutor, e também não resolvem o problema da própria determinação do responsável, prévia à sua comunicação ao escritório do arguido.

61.ª O arguido não tem apenas um cliente, tem, como resultou provado, no ponto 3., «inúmeros clientes, maioritariamente sociedades, relativamente às quais foram levantados autos de contraordenação (…) sem que fosse identificado o condutor» e, tratando-se de sociedades, e não pessoas singulares, o processo de identificação do concreto colaborador/empregado que praticou a contraordenação nem sempre é fácil e rápido, antes pelo contrário, nem a tecnologia pode resolver o problema da determinação, dentro da empresa, daquele concreto condutor, daquela concreta contraordenação.

62.ª Como consta da fundamentação da decisão da matéria de facto da decisão da 1.ª instância, o arguido referiu que «no ano de 2016, recebia cerca de 200 ou 300 contraordenações no escritório (…). Nos processos em que as sociedades clientes tinham de identificar os condutores, deparou-se com algumas dificuldades em obter esses elementos, tendo apenas 15 dias para fazer a identificação.

«Mais esclareceu que tendo em conta o elevado número de processos de contraordenação que tinha no seu escritório, a dificuldade em obter a identificação dos condutores, sabendo que tinha uma taxa de sucesso de 100% nos processos de contraordenações rodoviárias, devido à incapacidade da ANSR em tramitar todos os processos de contraordenações, decidiu, no final de 2016, que em todos os processos desta natureza que entrassem no seu escritório iria colocar o seu nome como sendo o condutor do veículo. Desta forma, agilizava os processos de contraordenação, não sendo necessário contactar os clientes para que identificassem os verdadeiros condutores e autores das contraordenações».

63.ª De acordo com a fundamentação da decisão de facto, na decisão de 1.ª instância, também as testemunhas EE e FF, que trabalharam no escritório do arguido, confirmaram que esta opção de identificação do condutor serviu para tonar mais céleres os procedimentos nesse escritório.

64.ª O acórdão recorrido não explica como é que as tecnologias atuais contornam a dificuldade de determinação, dentro da pessoa coletiva, do condutor e a sua completa identificação no prazo estabelecido na lei, que necessariamente precede essa comunicação ao escritório do arguido e deste à ANSR.

65.º Identificação sem a qual todos os processos prosseguiriam termos contra as próprias sociedades clientes do arguido, como decorre do disposto no artigo 171.º, n.º 6, do Código da Estada, resultado que, naturalmente, cumpria ao arguido evitar.

66.ª Por isso, salvo o devido respeito, o argumento do Tribunal da Relação, assente nas novas tecnologias, é desajustado e não convincente.

67.ª Prossegue o acórdão recorrido:

«Quase um escândalo é considerar provado que “A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.”

Qualquer cidadão logo percebe que a autuação de uma contra-ordenação contra um falso responsável defrauda a pretensão punitiva do Estado, lembrando que no Direito Penal, uma das pretensões do Estado é aplicar as sanções penais aos autores de infracções penais (via de regra, punir os criminosos). Denomina-se isso de pretensão punitiva, que corresponde ao jus puniendi, ou seja, o direito de punir que nasce com o cometimento da infracção penal.

Daí que resulte atentatória das ditas regras da experiência a conclusão de que “Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para desenvolver a respectiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição”».

68.ª Mais uma vez, com o devido respeito, o tribunal a quo ignorou totalmente a fundamentação da decisão da matéria de facto, que aponta precisamente para o contrário do que afirma: a concreta identificação do condutor é irrelevante, o que é relevante é a apresentação da defesa (contestação), pois em todos os casos em que é apresentada defesa a ANSR não dá – por falta de funcionários – andamento aos processos – que acabam por prescrever, com o decurso do tempo, por estarem parados.

69.ª Fosse qual fosse o nome do condutor, o resultado seria sempre o mesmo, desde que viesse a ser apresentada defesa – a prescrição e esta é a realidade sobre a qual foi produzida prova inequívoca, na qual o tribunal de 1.ª instância fundou a sua convicção, conforme expressou na sua decisão, coerente e isenta de qualquer vício.

70.ª Por seu turno, não se sabe em que se fundou a convicção do tribunal a quo, ao decidir em sentido oposto ao da 1.ª instância, porquanto não reapreciou a prova (nem podia reapreciá-la, porque não foi admitido o recurso do Ministério Público, nessa parte) e não há, como é manifesto, qualquer erro, menos ainda notório, na decisão de 1.ª instância, ou seja, não resulta do texto da decisão da 1.ª instância que a matéria de facto foi mal julgada, com erro notório na apreciação da prova.

71.ª Afirma o acórdão recorrido: «Sendo inócua e irrelevante a conclusão de que “A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo” até porque do elenco dos factos provados não consta sequer que os ditos autos de contra-ordenação falseados tenham prescrito».

72.ª Não se entende como é que o tribunal a quo afirma que dos autos não consta que tenha ocorrido prescrição, quando a prescrição é clara e repetidamente afirmada na fundamentação da decisão da 1.ª instância, como sendo o objetivo visado com a apresentação da defesa, objetivo esse sempre alcançado.

73.ª Decorre do quadro apresentado no ponto 15 dos factos provados em 1.ª instância (sem alteração pelo acórdão recorrido), que as 555 contraordenações rodoviárias em causa nestes autos foram praticadas entre janeiro de 2017 e maio de 2018.

74.ª O procedimento por contraordenação rodoviária prescreve no prazo de 2 anos contados da prática da infração, interrompendo-se a prescrição pelas causas previstas no regime geral do ilícito de mera ordenação social e ainda com a notificação da decisão condenatória ao arguido – cfr. artigo 188.º, n.ºs 1 e 2, do CE.

75.ª O regime geral da suspensão e da interrupção das contraordenações vem previsto nos artigos 27.º e ss. do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações).

76.ª Não se vislumbra a possibilidade de aplicação de qualquer suspensão (artigo 27.º-A desse diploma), sendo que a interrupção da prescrição ocorre, nomeadamente, com qualquer notificação ao arguido de despachos e decisões – n.º 1, al. a), do artigo 28.º – e tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo da suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição, acrescido de metade – n.º 3 do artigo 28.º – ou seja, 3 anos no total.

77.ª Portanto, a prescrição do procedimento contraordenacional pelas infrações praticadas entre janeiro de 2017 e maio de 2018 terá ocorrido, no máximo, 3 anos depois da sua prática, entre janeiro de 2020 e maio de 2021 – ou seja, muito antes da dedução da acusação nestes autos, que data de 29.06.2022, muito antes da realização do julgamento da 1.ª instância e, para o que verdadeiramente importa, muito antes da prolação do acórdão recorrido.

78.ª É certo que a prescrição de cada concreto processo de contraordenação identificado nos factos provados não está aí afirmada – de resto, porque esse resultado não era sequer, nem tinha que ser, objeto do julgamento; a prescrição não constava do elenco dos factos imputados ao arguido na acusação, pese embora nessa altura já tivesse decorrido o prazo de prescrição de todas as infrações.

79.ª No entanto, se o Tribunal da Relação considerava, como considerou, duvidosa a verificação da prescrição, não podia ter decidido contra o arguido, condenando-o, porque o princípio in dubio pro reo (uma das vertentes do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) impõe que a dúvida se resolva a favor do arguido.

80.ª Se o tribunal a quo entendia que a concreta prescrição de todos aqueles processos constituía um facto relevante para a decisão, e se tinha dúvidas sobre se a mesma ocorreu, devia ter esclarecido essas dúvidas, antes de decidir, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência.

81.ª De resto, a prova da prescrição, em concreto, desses procedimentos é de muito fácil obtenção – bastando que se oficie à ANSR nesse sentido.

82.ª Assim, a ter essa dúvida, o Tribunal da Relação de Coimbra devia ter anulado a decisão e ordenado a baixa dos autos à 1.ª instância, para que aí se procedesse à produção daquela prova, após o que deveria ser proferida nova decisão, em conformidade com o resultado dessa diligência, em conjugação com a demais prova já antes produzida.

83.ª Decidindo contra o arguido, invocando a dúvida sobre se a prescrição ocorreu, o acórdão recorrido violou o princípio in dubio pro reo e, portanto, o princípio da presunção de inocência.

84.ª Prossegue o acórdão recorrido afirmando: «Mas ainda que tal tivesse sucedido [a prescrição], qualquer jurista, incluindo o arguido, não pode ignorar, porque tem a obrigação de saber que o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto, também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado, considerando os interesses que o tipo legal visa proteger.

«Acresce que a idoneidade probatória /relevância jurídica do documento também não exige a produção efectiva do efeito jurídico pretendido pelo agente do crime – assim, é indiferente que as contra-ordenações tenham, a final, eventualmente prescrito ou tenham resultado na condenação em contra-ordenação.».

85.ª Estes argumentos são, no entanto, exclusivamente de direito, pelo que não servem para decidir sobre a matéria de facto nem para justificar a existência de um erro notório na apreciação da prova.

86.ª Prossegue o tribunal a quo:

«Ora, não obstante o tribunal a quo deu como provado que:

«27. O arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

«Resulta assim inverosímil e contrário às regras a experiência comum, julgar como não provado que:

«“a) Ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infrator, o arguido ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado.

«b) Com esta atuação visava o arguido obter para si um benefício ilegítimo.

«c) Mais visava o arguido obter um benefício ilegítimo para terceiro.

«d) O arguido lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infratores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.“

«Perguntará o cidadão médio normal qual então a razão por que o arguido, que é advogado e recebeu contrapartida pelo serviço que prestou aos infractores – 554 motoristas/ particulares/empresas –, optou por indicar o seu nome como infractor.

«Claramente as regras da experiência indicam que o arguido com a sua actuação visou o seu benefício, o benefício dos terceiros/infractores que o contrataram e causou um prejuízo incalculável na pretensão punitiva do Estado.

«Em condições de normalidade, nenhuma pessoa, mesmo não sabendo ler nem escrever, e muito menos um advogado especialista em contraordenações, procede dessa maneira sem consciência das consequências desses factos ou desconhecendo que esse comportamento é penalmente censurável.»

87.ª Crê o Recorrente que o cidadão médio que leia o acórdão da 1.ª instância ficará a perceber o que dela consta, isto é, que o Estado não dotou a ANSR dos meios necessários ao processamento das contraordenações rodoviárias, de tal forma que os processos em que é apresentada contestação são pura e simplesmente postos de lado, ficando sem decisão e acabando por prescrever, e que a identificação do condutor é irrelevante, na medida em que é inapta para interferir com este resultado.

88.ª Se, em tese, a identificação do condutor sem correspondência com a realidade impede que o Estado proceda contra o verdadeiro responsável, em concreto já não é assim, pois, seja qual seja e fosse qual fosse a identificação do condutor, a apresentação de defesa, conjugada com a falta de recursos da ANSR, conduz os processos ao abismo da prescrição – e estas afirmações não têm nada de ilógico e manifestamente errado, nem contrariam a experiência comum, como dirá o cidadão comum, nem precisa de ser jurista.

89.ª É exclusivamente a inoperacionalidade da ANSR que conduz a defraudar a pretensão punitiva do Estado, e não a conduta do arguido, que se limita a apresentar a defesa no processo contraordenacional e não tem a mínima culpa das falhas do sistema – não podendo nem devendo ser responsabilizado por elas.

90.ª Na verdade, não pode nem deve afirmar-se que a pretensão punitiva do Estado fica defraudada porque os arguidos se defendem – seria o mesmo que culpar os doentes pelo colapso do Serviço Nacional da Saúde, culpar os cidadãos pelos atrasos na Justiça porque recorrem aos tribunais e assim por diante.

91.ª Ao contrário do afirmado no Parecer do Ministério Público apresentado no Tribunal da Relação de Coimbra, seguido no acórdão recorrido, que tentou salvar o recurso da decisão da matéria de facto invocando os vícios do artigo 410.º do CPP, o tribunal da 1.ª instância não se baseou em juízos ilógicos e absurdos, muito pelo contrário, fundou a sua decisão em juízos de meridiana clareza e de lógica impecável.

92.ª É claro que o Estado-Administração fica muito mal retratado na fotografia apresentada no acórdão da 1.ª instância, mas é caso para dizer – sibi imputet.

O que não é admissível é que o acórdão recorrido pretenda, manifestamente, salvar a imagem do Estado, à custa do arguido, que não é responsável nem pode ser condenado pelo mau funcionamento do sistema de punição das contraordenações rodoviárias.

93.ª Pelo que se conclui que não há erro notório na apreciação da prova, na decisão da 1.ª instância, tendo o tribunal a quo alterado a decisão da matéria de facto, fazendo um novo julgamento, fora dos limites permitidos pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP e, portanto, em violação desta norma.

94.ª Deve, assim, a decisão recorrida ser anulada.

IV. Da decisão a proferir, com base na matéria de facto tal como foi julgada em 1.ª instância

95.ª Em face da anulação da decisão recorrida, quanto à alteração da decisão de facto, deve ser proferida nova decisão fundada nos factos tal como foram dados como provados, e não provados, em 1.ª instância.

96.ª E deverá confirmar-se, na íntegra, a decisão de direito da 1.ª instância, quer quanto à qualificação jurídica dos factos, quer quanto à escolha e medida da pena.

97.ª E assim nos exatos termos defendidos pelo arguido na resposta ao recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, que se dão por reproduzidos, por economia de meios, salientando-se apenas as ideias principais.

Assim,

98.ª A primeira questão a decidir é a de saber se a conduta do arguido integra a prática, em concurso efetivo, de 554 crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, als. d) e e), todos do CP, ou se integra a prática de um único crime de falsificação de documento.

99.ª O acórdão da 1.ª instância afirmou que está verificado o elemento objetivo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, als. d) e e), todos do CP, mas considerou também – E BEM - que não se verifica o elemento subjetivo desse crime, pelo que absolveu o arguido.

100.ª Figueiredo Dias (ob. e loc. cit. supra), refere que «constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado.

O facto de o agente ter de actuar com esta específica intenção não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório».

101.ª Afirmou-se, e muito bem, no acórdão da 1.ª instância, sobre o elemento subjetivo deste crime (negritos e sublinhados nossos):

«No tocante ao elemento subjetivo do tipo legal de crime em estudo, para além de se exigir que o agente atue dolosamente, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal, requer-se ainda a que o agente aja com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

«Tratando-se este de um crime de resultado cortado ou de tendência interna transcendente, tal intenção de causar um prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo – que terá de presidir à atuação do autor –, não terá de se concretizar.

«“Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado.” [citação de Helena Moniz]

«Ficou assente que o arguido sabia que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial). Mas também sabia o arguido que a ANSR não dispunha de funcionários suficientes para a tramitação de cerca de novecentos mil a um milhão de processos por ano e que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR o processo sempre atingiria a prescrição.

«Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome por forma a agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa. Objetivamente, a indicação do nome do arguido em vez do nome do condutor do veículo em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional, nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.

«Em qualquer dos processos a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para desenvolver a respetiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do da pessoa que conduzia o veículo respetivo.

«A ser assim, como efetivamente se apurou, temos de concluir que o arguido não atuou com intenção de causar prejuízo ao Estado, pois não foi a sua atuação – ao indicar o seu nome como autor da contraordenação – que impossibilitou a responsabilização do condutor infrator, mas antes a ineficácia dos serviços do Estado em tramitar os processos atempadamente, permitindo que a responsabilidade contraordenacional acabasse por prescrever.

«Igualmente temos de concluir que não foi a atuação do arguido – indicar o seu nome como autor da contraordenação – que levou a que os infratores não fossem responsabilizados, o mesmo é dizer que obtivessem um benefício ilegítimo. Pois a não responsabilização destes sempre ocorria por efeito da prescrição.

«Antes se apurou que o arguido – sabendo que os seus clientes nunca responderiam pela prática da contraordenação – para agilizar o trabalho no seu escritório, passou a fazer constar dos documentos de identificação de condutor o seu próprio nome. O arguido tinha tanta a certeza que nunca responderia pela prática das contraordenações estradais que passou a colocar o seu nome no local destinado à identificação dos condutores.

«Agilizar o expediente do escritório nunca poderá se considerado um benefício ilegítimo na conceção do artigo 256.º do Código Penal.

«Neste conspecto, não se apurando que o arguido atuou com intenção de causar um prejuízo ao Estado ou de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, há que concluir que não se verificam os elementos subjetivos dos crimes de falsificação de documentos pelos quais o arguido vinha acusado.

«Deste modo, não se preenchendo os elementos subjetivos dos crimes, terá o arguido de ser absolvido».

102.ª. Esta certeira argumentação do acórdão da 1.ª instância deve ser repristinada, uma vez que não se verifica o dolo específico que o legislador exige para a integração deste tipo de crime – a intenção de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado.

103.ª Na verdade, os terceiros, ou seja, os reais infratores, não foram ilegitimamente beneficiados com as condutas do arguido consistentes no preenchimento dos formulários com dados de identificação relativos à sua própria pessoa, na medida em que não foi por via dessas condutas, mas pela ineficiência da ANSR, que aqueles viram erradicada a possibilidade de virem a sofrer qualquer sanção pela prática de contraordenações.

104.ª Por outro lado, qualquer cidadão tem o direito de defesa em qualquer processo de contraordenação, constitucionalmente consagrado (artigos 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 10 e 268.º, n.º 4, da CRP), pelo que é absolutamente lícito que se defenda, ainda que daí decorra a prescrição do procedimento ou até procurando alcançar a própria prescrição, e ser o processo arquivado por prescrição nunca poderá ser entendido como um benefício ilegítimo.

105.ª O propósito do arguido, ao dar instruções no sentido de ser sempre o seu nome e o número da sua licença de condução a constarem do formulário para identificação do condutor foi, como resultou provado, o de agilizar o expediente, ou seja, o trabalho burocrático do seu escritório, o que jamais poderá ser considerado um benefício ilegítimo, na conceção do artigo 256.º do CP.

106.ª É de realçar que esse trabalho de escritório do arguido serviu, no seu todo, à defesa dos seus clientes, defesa que é o exercício de um direito constitucionalmente garantido, pelo que o seu resultado, quando favorável, por mera ineficiência do sistema, como é o caso, não pode nunca ser tido como um benefício ilegítimo.

107.ª Além disso, a indicação de elementos identificativos falsos foi completamente inócua relativamente à obtenção do resultado de arquivamento dos processos, não tendo qualquer influência na prescrição que os viria a atingir a todos – ainda que tivessem sido indicados pelo arguido os efetivos e verdadeiros condutores, o resultado seria exatamente o mesmo: o arguido apresentaria na mesma a defesa e a prescrição sempre ocorreria.

108.ª Levado às últimas consequências, o entendimento sufragado pelo Ministério Público e aceite pelo tribunal a quo levaria à seguinte absurda e, por isso mesmo, inaceitável conclusão: os infratores rodoviários não podem identificar-se nem apresentar defesa perante a ANSR porque, se se identificarem e se apresentarem defesa, como os serviços não funcionam, por falta de meios, e os procedimentos prescrevem, os infratores alcançam um benefício ilegítimo.

109.ª Deve ser, pelas razões já expostas, retomada a decisão da matéria de facto da 1.ª instância, na qual foram dados como não provados os factos relativos ao elemento subjetivo do crime em causa, no caso o dolo específico do crime de falsificação de documentos, a saber, nos termos das alíneas b) e c) dos factos não provados constantes do acórdão recorrido, acima indicados.

110.ª Consolidada desta forma a matéria de facto provada e não provada pela 1.ª instância, não há prova da intenção de obter um benefício, para o próprio ou para terceiro, ou de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, o que implica necessariamente a conclusão de que não está verificado o elemento subjetivo do tipo de crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a), e 256.º, n.º 1, als. d) e e), do CP.

111.ª Pelo que não há crime de falsificação de documento: nem 544 crimes, nem um único crime.

112.ª A não se entender assim, o que só por muito remota possibilidade de raciocínio se equaciona, então a conduta do arguido devia ser qualificada como um crime único, atendendo à unidade da resolução criminosa, nos termos adiante melhor explicitados a propósito do crime de falsas declarações.

113.ª Mas, repete-se, os factos provados não permitem senão a conclusão pela não verificação do elemento subjetivo deste tipo de crime de falsificação de documento, o que impede qualquer condenação do arguido pela sua prática e, se assim continuar a ser entendido – como se espera –, afastado que fica o concurso aparente dos crimes de falsificação de documento e de falsas declarações, por o primeiro não se verificar, há que passar à análise da segunda questão.

114.ª A segunda questão é a de saber se a conduta do arguido integra a prática, em concurso efetivo, de 554 crimes de falsas declarações, previstos e puníveis pelo artigo 348.º - A do CP, ou se integra a prática de um único crime de falsas declarações.

115.ª O tribunal de 1.ª instância considerou que a conduta do arguido integra um crime único de falsas declarações – entendimento rejeitado no acórdão recorrido, que afirma que estamos perante 554 crimes de falsas declarações, em concurso real.

116.ª A este respeito, afirmou-se, e bem, na decisão de 1.ª instância:

«(…) Vem o arguido acusado da prática de 555 crimes de falsas declarações.

«Todavia, ficou assente que, no final do ano de 2016, o arguido decidiu que, quando lhe enviassem o expediente para identificação do condutor, iria inscrever ou mandar inscrever, o seu nome no local indicado para identificação de condutor e o seu número de carta de condução.

«Temos, deste modo, que a intenção do agente abarca ab initio uma pluralidade de atos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, dando mesmo orientações nesse sentido, estando-se, por isso, no plano da unidade criminosa. Como ensina Eduardo Correia (1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque), “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação”. Ora, cremos que foi exatamente isso que aconteceu no caso em apreciação, pois o arguido, a partir de determinada altura, decidiu que, em todos os documentos de identificação de condutor que os seus clientes lhe apresentassem, ia inscrever os seus dados de identificação, tendo dado instruções no seu escritório desta sua decisão.

A ser assim, legitimamente, ao que cremos, se deve concluir que o arguido cometeu um só crime (…) de falsas declarações, pp. pelo artigo 348.º-A, n.º 1 Código Penal» (negritos e sublinhado nossos).

117.ª Foi por considerar haver uma unidade resolutiva que o tribunal de 1.ª instância considerou verificado um único crime de falsas declarações – entendimento que é o mais correto.

118.ª Sobre as instruções que o arguido deu às pessoas que trabalhavam no seu escritório, o Ministério Público, no seu recurso, defendeu que significam apenas a identidade do modus operandi, um método criminoso, mas não é isso que resulta dos factos dados como provados – que, recorde-se, são estes:

«7. No final do ano de 2016, o arguido decidiu que, quando lhe enviassem o expediente para identificação do condutor, iria inscrever ou mandar inscrever o seu nome no local indicado para a identificação de condutor e o seu número de carta de condução.

«8. Esta resolução foi dada a conhecer a todos os funcionários e advogados do escritório que preenchiam o expediente para identificação de condutor, a mando do arguido.»

119.ª Trata-se, inequivocamente, de uma única decisão do arguido, que integra o elemento subjetivo do crime de falsas declarações, e que virá a repercutir-se no sucessivo cumprimento dessa decisão e das instruções que, na mesma ocasião, foram dadas.

120.ª Ademais, tratarem-se estas instruções do estabelecimento do método de trabalho do escritório, a partir desse momento, como constituindo o método criminoso do arguido, como afirmou o Ministério Público no seu recurso para a Relação, não retira nem impede que se conclua pela ocorrência de uma unidade resolutiva, aliás, perfeitamente localizada no tempo.

121.ª Não está demonstrada a existência de 554 resoluções criminosas, de 554 propósitos do arguido – ao contrário do afirmado no acórdão recorrido.

122.ª A consideração, no caso, da existência de uma unidade resolutiva criminosa e a qualificação da atuação do arguido como crime único, é a que segue os ensinamentos da melhor doutrina, merecendo o apoio da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.

123.ª Eduardo Correia, citado e seguido no acórdão da 1.ª instância, ensinava (ob. e loc. cit. supra):

«O problema é (…) o da determinação da ilicitude material. (…) para que uma conduta se possa considerar como constituindo uma infracção não basta, como sabemos, que seja antijurídica; é ainda necessário que seja culposa, que possa ser reprovada ao agente. Ora pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção; a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

«Para determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura, o Autor aponta como critério «o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (negritos nossos).

124.ª Essa conexão temporal verifica-se, no caso, porquanto os 554 atos de falsas declarações ocorrem todos de forma sucessiva e regular, desde janeiro de 2017 a maio de 2018 – cfr. o quadro apresentado no ponto 15 dos factos provados.

125.ªTambém Germano Marques da Silva (ob. e loc. cit. supra) alude à unidade da resolução criminosa, ensinando:

«Importa distinguir o crime continuado do crime de execução sucessiva ou reiterada. (…) o crime de execução sucessiva é o crime, um só crime, que resulta da insistência na sua execução, por sucessivas acções dirigidas à produção do evento; o crime de execução reiterada é também crime único, mas em que as diversas condutas que o integram realizam parcialmente, e não totalmente, a execução e a produção de um evento parcial do crime.

Quer no crime de execução sucessiva quer no de execução reiterada, há uma unidade da resolução criminosa, diversamente do que sucede no crime continuado e no concurso real de crimes, em que há várias resoluções»(negritos nossos).

126.ª Na mesma senda, Paulo Pinto de Albuquerque (ob. e loc. cit. supra) afirma que «As violações plúrimas devem ser objeto de distintas resoluções criminosas. Se o agente tiver tomado uma só decisão criminosa de realização de violações plúrimas do mesmo bem jurídico, há um só crime» (negritos nossos).

127.ª Helena Moniz (ob. e loc. cit. supra) alude à introdução, pela jurisprudência, da designação de «crime de trato sucessivo», que integra os casos em que possa afirmar-se a existência de uma unidade de resolução criminosa, ou uma unidade resolutiva e uma conexão temporal entre os atos realizados.

128.ª Esta Autora refere que a figura do crime de trato sucessivo começou a ser usada pela jurisprudência a propósito principalmente dos crimes de tráfico de estupefacientes, mas também de outros, como o de moeda falsa, obtendo-se a unificação de vários atos em um só crime, por existência de uma unidade resolutiva e daquela conexão temporal entre os atos realizados, mais recentemente passando a ser utilizada a propósito dos abusos sexuais de menores – aqui, em termos criticados neste artigo doutrinal.

129.ª Na jurisprudência, são variadíssimos os acórdãos que refletem o entendimento sufragado pelo tribunal da 1.ª instância e defendido neste recurso, no que concerne à unidade de resolução criminosa, destacando-se os seguintes, todos disponíveis em www.dgsi.pt e com negritos nossos, cujos sumários foram transcritos supra e para os quais se remete: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1986, relatado por Villa Nova; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2004, relatado por Pereira Madeira; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2011, relatado por Pires da Graça; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2013, relatado por Fernando Monterroso; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.10.2015, relatado por Proença da Costa; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.02.2019, relatado por Maia Costa, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.11.2019 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.06.2022, relatado por Cid Geraldo.

130.ª Os casos tratados nestes acórdãos têm evidentes similitudes com o caso dos autos, pese embora não se trate do mesmo tipo de crime, pelo que deve entender-se que, no caso sub judice, há uma unidade de resolução, pelo que o crime é um só.

131.ª Por fim, no que respeita à pena, seja qual for a qualificação do crime – de falsificação de documento ou de falsas declarações – e tratando-se de um único crime, como é inequívoco que se trata, estabelecendo a lei como alternativa à pena de prisão a pena de multa, deve ser esta a pena escolhida, nos termos do artigo 70.º do mesmo código, pois nada justifica a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, pelo contrário, a pena de multa é absolutamente suficiente e adequada para assegurar as finalidades da punição.

132.ª Tal como havia decidido doutamente a 1.ª instância, invocando, para cuja fundamentação, acima transcrita, se remete, realçando-se o seguinte:

«(…) No caso em apreço, apesar da factualidade ser grave, considerando o número de atos praticados pelo arguido e sem esquecer que o mesmo é advogado, o que lhe exigia um atuar conforme o direito, o certo é que o arguido não tem antecedentes criminais e está inserido em termos profissionais e familiares.

«Flui, pois, do exposto, que a pena de multa prevista se afigura suficiente para a ressocialização da agente, perfilando-se, ainda, como adequada à manutenção da confiança da comunidade na vigência da norma infringida, à reprovação e à prevenção do crime.»

133.ª Quanto à medida da pena, o tribunal coletivo entendeu aplicar a multa numa medida próxima do seu máximo, fixando a pena em 32 dias de multa.

134.ª Deve ser retomada a decisão da 1.ª instância, que decidiu bem, no que diz respeito à pena aplicada e à medida concreta da multa, pena que se revela adequada e suficiente para assegurar as necessidades de prevenção geral e especial.

135.ª Destaque-se que o arguido é primário, está muito bem integrado social, familiar e economicamente, cessou a prática do crime logo que se apercebeu do enquadramento jurídico que lhe cabia e obviamente jamais retomará a sua prática, como se escreveu igualmente no douto acórdão da 1.ª instância.

136.ª Caso o Supremo Tribunal entenda que não lhe é possível proferir decisão final, deverá ser ordenada a baixa dos autos ao tribunal a quo, a fim de proferir decisão de direito fundada nos factos tal como foram dados como provados, e não provados, em 1.ª instância.

V. Da aplicação do direito caso seja mantida a matéria de facto tal como foi julgada no acórdão recorrido

137.ª Subsidiariamente, para o caso de se entender que o acórdão recorrido decidiu bem a alteração da matéria de facto, com fundamento em erro notório da apreciação da prova – o que só por remota hipótese de raciocínio se concebe – a decisão de direito que tomou não deve ser mantida.

VI. Da qualificação dos factos como crime único

138.ª A Relação de Coimbra, em conclusão:

- deu como provado também o elemento subjetivo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, als. d) e e), por referência ao artigo 255.º, al. a), do CP,

- considerou existir concurso efetivo dos 554 crimes de falsificação de documentos e dos 554 crimes de falsas declarações, afirmando uma pluralidade de resoluções criminosas e a inviabilidade de concluir pela unidade criminosa,

- afastou o enquadramento dos factos como um crime continuado,

- considerou que é aparente o concurso entre os 554 crimes de falsificação de documentos e os 554 crimes de falsas declarações, e

- considerou que deve ser aplicada a moldura dos crimes mais graves, isto é, a prevista no artigo 256.º, n.º 1, als. d) e e).

139.ª Ora, mesmo com a alteração da matéria de facto no sentido preconizado pela Relação de Coimbra, a sua subsunção jurídica não permite concluir pela existência de 554 resoluções criminosas, sendo, pelo contrário, manifesto que o arguido decidiu, uma única vez, fazer passar a constar os seus próprios elementos identificativos nos documentos de identificação dos condutores que existissem no seu escritório, nesse momento e no futuro.

140.ª Pensou nisso uma vez, tomou uma decisão – que encarou como um método eficaz para resolver uma dificuldade prática, das suas clientes pessoas coletivas procederem à determinação do condutor infrator – e o seu escritório passou a seguir essa regra e a executar essa ordem.

141.ª Não ocorreu, ao contrário do que é afirmado no acórdão recorrido, uma persistente e em cada momento renovada vontade de violar a lei, nem foi formulada por 554 vezes uma opção de vontade, autónoma das demais, de praticar cada um dos crimes.

142.ª Os factos provados, até pela sua sequência e concentração temporal, não permitem que se extraia essa conclusão.

143.ª Por outro lado, ainda que exista ilicitude nessa ordem genérica de trabalho do escritório, isso não significa que haja unidade ou antes pluralidade de resoluções, o que deve ser determinado a partir da forma como o arguido tomou a sua resolução.

144.ª Remete-se para a doutrina e jurisprudência elencadas a propósito da unidade resolutiva e para as considerações supra, uma vez que as mesmas aplicam-se quer à pratica dos 554 crimes de falsas declarações, quer à prática de 554 crimes de falsificação de documentos.

145.ª Devendo concluir-se que houve uma única resolução criminosa, manifestada uma única vez, pelo que há um só crime de falsificação de documentos e um só crime de falsas declarações (em concurso aparente).

VII. Da qualificação dos factos como crime continuado

146.ª O crime continuado é uma qualificação possível, a meio caminho entre o concurso efetivo de 554 crimes, sustentado no acórdão recorrido, e o crime único, sustentado na decisão de 1.ª instância.

147.ª Subsidiariamente, a entender-se não verificada a unidade resolutiva, estaríamos, no máximo, perante um crime continuado de falsificação de documentos, em concurso aparente com um crime continuado de falsas declarações, e nunca perante 554 crimes em concurso efetivo, porquanto a conduta do arguido consiste na realização plúrima do mesmo tipo de crime, executada de forma essencialmente homogénea, no quadro da mesma situação exterior, que lhe diminui consideravelmente a culpa – cfr. artigo 30.º, n.º 2, do CP.

148.ª A qualificação dos factos operada no acórdão recorrido, na afirmação da tomada de 554 resoluções individuais e autónomas para a prática dos crimes, e no desprezo pela diminuição considerável da culpa do agente, no quadro da realização desses mesmos 554 crimes, afasta-se daquilo que a jurisprudência tem vindo a defender, em casos de muitíssimo maior gravidade – como resulta dos acórdãos acima citados, mostrando a Relação de Coimbra, nesse processo de subsunção jurídica, uma mão pesadíssima, a necessitar de ser revista, por ser injustificada.

VIII. Da escolha e da medida da pena

149.ª A pesadíssima mão do tribunal a quo vem ainda a afirmar-se na escolha e na determinação da medida da pena – 5 anos de prisão suspensa pelo mesmo período – com o que o arguido também não pode concordar.

150.ª A moldura penal de cada crime de falsificação de documentos é, nos termos do artigo 256.º, nº 1, als. d) e e) do CP, a pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

151.ª Apesar do artigo 70.º do CP consagrar o princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o tribunal a quo escolheu a prisão, afirmando que a pena de multa «não satisfaz as necessidades da prevenção pelo caso requerido, em face da conduta do arguido e atenta as necessidades de repor a validade das normas violadas», e que «É aconselhável e adequada a opção pela pena de prisão quanto aos crimes de falsificação de documentos, por ajustada à gravidade dos ilícitos em causa, ponderada na sua globalidade, bem como às necessidades de prevenção geral e especial», acrescentando que são sobretudo razões de prevenção geral que impõem a opção pela pena privativa da liberdade».

152.ª Ora, a maior parte das razões de prevenção geral invocadas pelo tribunal a quo prendem-se com a já amplamente analisada situação de incapacidade do Estado-Administração para o processamento das contraordenações, que devem ser resolvidas pelo Estado, não com a punição do arguido, mas com a dotação de meios aos serviços competentes.

153.ª Invoca o tribunal a quo para a determinação da medida concreta da pena, como circunstâncias agravantes gerais:

«- no que respeita ao grau de ilicitude, é elevado, considerando o modo como iludiu as autoridades da ANRS, assumindo-se como infractor em documentos aptos a obstruir a justiça».

154.ª O arguido não iludiu as autoridades, estas é que não têm capacidade para processar as contraordenações contestadas mas, ainda que assim fosse, estas circunstâncias já integram o tipo de crime, pelo que não podem ser duplamente valoradas, também como circunstâncias agravantes para efeitos de escolha e medida da pena – n.º 2 do artigo 72.º do CP.

155.ª Prossegue o acórdão recorrido: «- o arguido assumiu uma actuação para justificar a sua conduta, contrária às regras da normalidade social, desculpabilizando-se mediante imputação de ineficácia àquele organismo estatal, ou seja, sem consciência crítica da danosidade social da sua conduta»

156.ª A defesa e subsequente prescrição, que foi o resultado atingido pela defesa do arguido em benefício dos seus clientes, resulta da lei, e não há nada de ilícito na apresentação de uma defesa que origine ou vise a extinção do procedimento – pelo que o raciocínio da Relação está errado.

157.ª Acrescenta: «- as necessidades de prevenção geral são extremamente elevadas, atentos os bens jurídicos violados e a necessidade de reposição da validade de tais normas», mas não é explicado por que é que as necessidades de prevenção geral dos crimes de falsificação são extremamente elevadas.

158.ª E não se alcança que tarefa seja essa de reposição da validade de normas.

Que normas? Que validade é que foi retirada e tem que ser reposta? O acórdão não explica, mas, se Relação quer referir-se à violação que constitui crime, não pode valorá-la duplamente, sob pena de violação do disposto no artigo 72.º, n.º 2, do CP, citado.

159.ª Prossegue o acórdão recorrido:

«- a motivação que está na origem da conduta do arguido, a obtenção de maiores recursos financeiros, pelo valor auferido de forma ilícita e consequente angariação de clientela para o seu escritório de advocacia.»

160.ª Já foi repetidamente afirmado que não é por causa da identificação do condutor com os seus próprios dados – que integra crime – que o arguido tem sucesso na defesa dos seus clientes, mas sim por apresentar defesa e pela incapacidade da ANSR de processar os autos quando haja contestação, pelo que os fundos obtidos com a atividade do arguido não resultam da sua conduta ilícita – de resto, defender os clientes e obter o pagamento de honorários é, obviamente, lícito.

161.ª Prossegue o acórdão:

«- as exigências de prevenção geral são elevadas atento o alarme social que crimes como o dos autos causam na sociedade pelo que se impõe a reposição da validade das normas violadas», argumento, nesta última parte, repetido e já analisado.

162.ª Quanto ao alarme social, quando muito poderá ocorrer apenas em face do conhecimento público dos resultados obtidos num elevado número de processos de contraordenação (554), e não por cada conduta do arguido, isolada.

163.ª Sendo assim, essa agravante do alarme social só devia ser considerada na determinação da pena a aplicar em cúmulo jurídico, e não nas penas parciais, sob pena de repetição da valoração da mesma circunstância por 554 vezes.

164.ª Acrescentado o tribunal a quo:

«- atendendo aos próprios crimes que estão em causa e à natureza da personalidade do próprio arguido, que facilmente recorre a mecanismos de defesa não credíveis».

165.ª Não se alcança o que seja o recurso a mecanismos de defesa não credíveis, nem a que propósito o tribunal a quo aprecia o mérito do trabalho do arguido enquanto Advogado.

166.ª Como quer que seja, ao contrário do afirmado pela Relação de Coimbra, o arguido obteve sucesso nos processos de contraordenação que contestou, e que contestou licitamente.

NÃO OCORREU UMA ÚNICA CONDENAÇÃO!

167.ª E diz também o acórdão recorrido:

«- predispor-se a correr os riscos no exercício da sua profissão de advogado, inerentes à dita prática ilícita durante quase um ano e meio – (FP nº 15), só pode demonstrar uma adesão consciente e segura a uma conduta antijurídica».

168.ª Na verdade, o arguido só agiu na identificação do condutor como sendo ele próprio porque estava erradamente convencido de que esse comportamento não constituía crime. A sua ignorância não o desculpa, é certo. Mas também não serve para caraterizar a sua personalidade.

169.ª Pode dizer-se que o arguido foi ignorante e até descuidado, mas o mero facto de ter sido processado criminalmente, e sujeito a julgamento, foi suficiente para que o arguido abandonasse aquela prática de errada identificação do condutor, por completo e para sempre – o que torna nulas as necessidades de prevenção especial.

170.ª Conclui-se que a pena a escolher deve ser a de multa, como é regra, e não a de prisão.

171.ª E, a ser escolhida, pena de prisão, atendendo aos limites legais de 1 mês (artigo 41.º, n.º 1, do CP) a 3 anos, não devia ter sido fixada a prisão próxima do meio da pena, devendo tê-lo sido muito abaixo, em 3 meses, no máximo.

172.ª Razão pela qual, em cúmulo, nunca devia ter sido fixada a pena nos 5 anos decididos no acórdão recorrido, mas em medida muito menor, nunca superior a 1 ano de prisão, naturalmente suspensa na sua execução, por idêntico período.

173.ª O acórdão recorrido violou as normas dos artigos 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP, 30.º, n.º 2, 70.º e 71.º, n.º 2, do CP.

174.ª Devendo ser revogado e substituído por outro que mantenha o decidido na 1.ª instância ou, se não se entender ser possível a tomada de decisão pelo tribunal ad quem, deve ser anulada a decisão e ordenada a baixa dos autos à Relação, para proferir decisão com base na matéria de facto tal como foi julgada na 1.ª instância.

TERMOS EM QUE, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS SABERÃO SUPERIORMENTE SUPRIR, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, REVOGANDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO,

A) REPONDO-SE NA ÍNTEGRA A DECISÃO DA 1.ª INSTÂNCIA,

B) OU, SUBSIDIARIMENTE, CASO SE ENTENDA NÃO SER POSSIVEL, SER ORDENADA A BAIXA DOS AUTOS AO TRIBUNAL RECORRIDO A FIM DE PROFERIR DECISÃO COM BASE NA MATÉRIA DE FACTO TAL COMO FOI DECIDIDA NA 1.ª INSTÂNCIA,

C) OU, SUBSIDIARIMENTE, CONDENAR O ARGUIDO PELA PRÁTICA DE UM ÚNICO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS,

D) OU, SUBSIDIARIMENTE, CONDENAR O ARGUIDO PELA PRÁTICA DE UM CRIME CONTINUADO DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS,

E) EM QUALQUER CASO, ESCOLHENDO-SE A PENA DE MULTA,

F) OU, SUBSIDIARIMENTE, CONDENAR O ARGUIDO NA PENA ÚNICA DE PRISÃO NÃO SUPERIOR A 1 ANO, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO.

*

O recurso foi admitido por despacho de 12 de Dezembro de 2023.

*

Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto alegando, em síntese:

- Não assiste razão ao arguido quando diz que a Relação, a coberto da invocação do vício de erro notório na apreciação da prova, procedeu a um novo julgamento da matéria de facto, sem a imediação da 1ª instância e ignorando a fundamentação do acórdão que revogou;

- A 1ª instância considerou provados factos que preenchem os elementos objectivos do crime de falsificação de documento, mas também considerou não existir prova de factos preenchedores do elemento subjectivo do mesmo crime, apesar de a prova do dolo ser feita por inferência na ausência de confissão;

- Estando provado que o arguido agiu de modo a fazer constar dos documentos de identificação do condutor enviados pela autoridade pública, factos que deram causa à elaboração de autos de contra-ordenação em que os verdadeiros infractores não seriam contactados no âmbito dos respectivos processos, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, tal significa que cada um dos proprietários veículos e/ou que deles tinham o domínio, e incorreram na prática das contra-ordenações, foram ilegitimamente beneficiados com a conduta do arguido, por se verem livres de sofrer qualquer sanção por aquela prática, assim causando prejuízo ao Estado;

- O Tribunal da Relação enquadrou correctamente o vício de erro notório na apreciação da prova, e esclareceu, ponto por ponto, com a devida fundamentação, os segmentos do acórdão da 1ª instância onde o mesmo se revela, acrescendo que, contrariamente ao alegado pelo arguido, a Relação não fez tábua rasa da motivação do mesmo acórdão, como claramente resulta da sua leitura;

- O arguido, ao afirmar que a Relação, caso tivesse ouvido a gravação da prova por declarações, teria evitado o erro crasso cometido, pretende obter um terceiro grau de jurisdição sobre a apreciação da prova, que lhe está vedado pelas regras do processo, revisitando a prova produzida no julgamento da 1ª instância, citando excertos que aproveitam à sua argumentação e analisando-os criticamente de acordo com o critério de credibilidade que considera adequado, contrapondo ao pela Relação afirmado, erro manifesto de julgamento, violador da lógica elementar e detectável pelo cidadão comum, juízos de razoabilidade de teor contrário, reafirmando justificações que o tribunal ad quem rejeitou, pretendendo, por esta via, o restabelecimento da decisão de facto da 1ª instância;

- A verificar-se esta possibilidade, carece de fundamento a questão colocada pelo arguido de saber se, então, a sua conduta integra a prática de 554 crimes de falsificação de documento, ou apenas, um, pois a ausência de prova dos elementos subjectivos do ilícito típico, torna estéril a discussão;

- Quanto à segunda questão colocada – a de saber se a sua conduta integra a prática de 554 crimes de falsa declarações ou, apenas, a prática de um –, importa, em primeiro lugar, esclarecer que foi acusado da prática de 555 crimes, que a 1ª instância unificou num único, e daí, a sua absolvição da prática dos sobrantes 554; e em segundo lugar, dizer que, a Relação decidiu, e bem, que o arguido, em cada concreta acção, renovou o propósito criminoso, determinante da prática de tantos crimes, quantos as acções praticadas;

- A manter-se a alteração da matéria de factos decidida pela Relação, contrariamente ao pretendido pelo arguido, não devem as múltiplas condutas deste serem unificadas sob uma ‘intenção inicial’ pois esta mais não é do que um propósito futuro, uma manifestação de intenção, devendo considerar-se a existência de uma pluralidade homogénea de delitos de falsas declarações e falsificação, não cabíveis no conceito de unidade de acção;

- Também não estaremos, contrariamente ao pretendido pelo arguido, perante um crime continuado de falsificação de documentos, em concurso aparente com um crime continuado de falsas declarações, pois, dado o espaçamento temporal verificado entre as condutas, a qualidade profissional do arguido e a flagrante violação dos deveres inerentes a tal qualidade, a reiteração da acção fica a dever-se a uma certa tendência da personalidade do agente, não havendo, portanto, atenuação da culpa, o que exclui a continuação criminosa;

- Na determinação da medida da pena, tendo considerado a existência de consunção entre as normas do art. 256º, nº 1 e do art. 348º-A do C. Penal, com a aplicação ao caso da moldura penal do primeiro, a Relação aplicou o critério geral do art. 71º do C. Penal, considerando as circunstâncias atenuantes e agravantes verificadas as exigências de prevenção requeridas, e na determinação da medida concreta da pena única observou igualmente o critério legal aplicável, sendo adequada, proporcional e justa a pena de 5 anos de prisão,

e concluiu pela integral manutenção do acórdão recorrido.

*

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu douto parecer, não obstante ter sido requerida a audiência.

*

Cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, veio o Ilustre Mandatário do arguido relembrar ter requerido a audiência de julgamento, aí pretendendo responder ao parecer, requerendo que fosse ordenada a subsequente tramitação legal.

*

*

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência, após o que, o tribunal reuniu e deliberou nos termos que seguem.

*

*

*

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

A matéria de facto provada que provém das instâncias é a seguinte:

“(…).

1. O arguido exerce a atividade profissional de advogado, sendo titular da cédula n.º ...-C, com escritórios na Rua ... e Rua ..., ... (cf. fls. 92).

2. O arguido é titular da carta de condução n.º C-..., emitida a ........2001, habilitando-o a conduzir veículos da categoria B (ligeiro) e B1 (triciclo ou quadriciclo) - (cf. print de fls. 104).

3. O arguido, no exercício da sua atividade profissional de advogado, vem sendo procurado por inúmeros clientes, maioritariamente sociedades, relativamente aos quais foram levantados autos de contraordenações previstas no Código da Estrada, sem que fosse identificado o condutor.

4. Estes clientes recorriam aos serviços do arguido, após a notificação para identificação do condutor, solicitando-lhe que desse andamento a toda a tramitação tendente à sua defesa.

5. Após o primeiro contacto, o arguido solicitava aos clientes que enviassem para o seu endereço eletrónico, designadamente o endereço de e-mail ... ou que se dirigissem a um dos seus escritórios identificados supra a fim de procederam à entrega da documentação, designadamente o auto de contraordenação em nome dos titulares dos veículos e o expediente da notificação para identificação de condutor – cfr. Anexo XIII cujo termo se encontra a fls. 1100 (5º Vol.).

6. Por tal serviço cobrava o arguido a quantia de, pelo menos, € 50,00, a título de honorários.

7. No final do ano de 2016, o arguido decidiu que, quando lhe enviassem o expediente para identificação do condutor, iria inscrever ou mandar inscrever o seu nome no local indicado para a identificação de condutor e o seu número de carta de condução.

8. Esta resolução foi dada a conhecer a todos os funcionários e advogados so escritório que preenchiam o expediente para identificação de condutor, a mando do arguido.

9. Assim, no seguimento desta decisão, o arguido, na posse da documentação mencionada, pela sua mão ou alguém a seu mando, seguindo as suas ordens e orientações, procedia ao preenchimento do documento “identificação do condutor”, enviado pelas entidades públicas competentes, fazendo dele constar, nomeadamente:

- no lugar destinado ao nome do condutor infrator, o seu nome: BB ou CC ou DD ou AA; e

- no lugar destinado ao título de condução, o número da sua carta de condução: C-..., data de emissão: ........2001.

10. Preenchido e rubricado, o documento em causa era enviado para a autoridade que constava no rosto do mesmo (ANSR e/ou autoridade autuante), a qual prosseguia os demais trâmites elaborando novo auto de contraordenação em nome da pessoa identificada, ou seja, o aqui arguido, por acreditarem tratar-se do real condutor da viatura.

11. Com base no documento elaborado nos moldes descritos, em virtude da atuação do arguido, a autoridade pública competente veio a elaborar autos de contraordenação com conteúdo inverídico no que à identidade do condutor diz respeito, iniciando-se um procedimento a correr termos contra este como se do verdadeiro condutor/infrator se tratasse – cf. Anexo XIV cujo termo se encontra a fls. 1190 (5º Vol.).

12. Conforme o plano por si gizado, ciente e aproveitando-se, designadamente do volume e regras de tramitação dos autos de contraordenação na ANSR, o arguido conseguia, assim, eximir de responsabilidade os seus clientes como a si próprio.

CONCRETIZANDO:

13. Assim, conforme tabela infra, em dias e horas não concretamente apurados mas posteriores às datas constantes da coluna “Data da infração” e anteriores à data constante da coluna “Data da identificação”, o arguido, relativamente a autos levantados em nome dos seus clientes, proprietários das viaturas identificadas na coluna “Matrícula” e identificados no item “Proprietário”, procedeu, por si ou por terceira pessoa sob as suas ordens e orientações, ao preenchimento e rubrica do documento “identificação do condutor”, nos moldes já supra descritos, fazendo constar o seu nome conforme coluna “Identificação do condutor da viatura”.

14. Após o que determinou a sua remessa às autoridades competentes, tudo conforme tabela que segue.

15. Nestes termos, o arguido procedeu da forma assim descrita nas seguintes situações:

INFORMAÇÃO DA INFRAÇÃO INFORMAÇÃO PROPRIETÁRIO DA VIATURA INFORMAÇÃO CONDUTOR DA VIATURA

ORD.DATA INFRAÇÃONÚMERO AUTONÚMERO PROCESSOMATRÍCULAPROPRIETÁRIOIDENTIFICAÇÃODATA IDENTIFICA ÇÃO
104-01-2017 ...6.../2017..NZ.....Decoração Lda.BB
209-01-2017...86...2.../2017..NL..Transportes...Lda.CC
310-01-2017 ...6.../2017..PC..C...Lda.CC
412-01-2017 ...4.../2017..PR..HHDD
512-01-2017...14...4.../2017..PI.....Térmicas Lda.CC
617-01-2017 ...9.../2017..QC.....Bebidas Lda.CC
717-01-2017...39...9.../2017..OF..MUNICIPIO DE ...CC
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1131-01-2017...36...0.../2017..CB.....Ar Condicionado...Lda.CC
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1407-02-2017...82...7.../2017..QH..... Escola de Condução SA.CC
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AA
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... Máquinas Automáticas Lda.AA
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16. O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor), enviados pelas autoridades públicas, factos que originaram a elaboração de autos de contraordenação em que os verdadeiros infratores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais.

17. O arguido tem uma imagem de eficácia na tramitação de autos de contraordenação, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio junto da comunidade empresarial.

18. Sabia o arguido que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial).

19. O arguido também sabia que a ANSR não dispunha de funcionários suficientes para a tramitação de cerca de novecentos mil a um milhão de processos por ano.

[Factos provados aditados pela Relação, sem número de origem]

O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar falsamente dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor) enviados pelas autoridades públicas, factos esses que originaram a elaboração de autos de contraordenação, sendo, por isso, juridicamente relevantes.

Sabia, o arguido, que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial) e que ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infractor, ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado, uma vez que, os autos de contraordenação seriam autuados em nome diverso do real infractor.

Com esta sua actuação visava, o arguido, obter para si um benefício - que sabia ser ilegítimo -, uma vez que os infractores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais em causa, criando, assim, junto da comunidade empresarial uma imagem de eficácia na tramitação daqueles autos, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio.

Mais visava, o arguido, obter um benefício - que sabia ser ilegítimo - para terceiros, os infractores, ao assegurar que, e apesar da sua actuação ilícita, não haveria consequências sancionatórias para os mesmos, seus clientes.

O arguido agiu, em todas as circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, com intenção de obter para si e para terceiros benefícios ilegítimos, sabendo que lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infractores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

Sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

27. O arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

[Mais se provou:]

28. Nada consta no CRC do arguido.

29. O arguido teve um processo de crescimento e socialização normativo, integrado em agregado constituído pelos pais e irmã mais nova, em contexto económico abastado.

30. Seu pai, atualmente reformado por invalidez, teve a profissão de ..., e sua mãe ainda exerce o cargo de ...e sua irmã reside em ... com a família que constituiu.

31. Cresceu em ..., na casa da avó materna, onde beneficiou de uma educação e acompanhamento mais próximo e cuidador, sendo esta a figura familiar assinalada como referência importante no seu crescimento.

32. Os progenitores, por motivos profissionais, horários e mobilidades ao longo das respetivas carreiras, terão sido figuras mais ausentes fisicamente, mas participativas na educação dos filhos.

33. Em ..., frequentou a escolaridade obrigatória, sem registos de incidentes, e, apesar da boa condição económica familiar, DD relata que, para poder praticar atividades extracurriculares do seu gosto e realização pessoal, teve de demonstrar esforço e mérito no seu percurso escolar.

34. Assim, para poder adquirir a sua primeira viatura, abandonou temporariamente os estudos e, dos 18 aos 20 anos de idade, trabalhou no gabinete de contabilidade de uma empresa de transportes local.

35. Posteriormente, com 20 anos, mudou-se para a residência dos pais, em ..., quando ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

36. No decurso do seu 2.º ano universitário, sofreu um problema de saúde que o sujeitou a ...

37. Durante o período de internamentos hospitalares (cerca de um ano), DD contou com o apoio da família e dos colegas de curso para estudar e frequentar as provas de avaliação curriculares, com autorização médica para as deslocações à faculdade ..., para a supervisão e eventual necessidade de intervenção de socorro.

38. Neste contexto, DD completou com aproveitamento o 2.º ano e regressou a casa dos pais e à sua vida estudantil, com a adaptação às recomendações e exigências que a sua condição médica exigia (...).

39. Concluiu o curso de direito, quando tinha 25 anos, ainda com as limitações clínicas referidas, e foi viver para ..., em apartamento da mãe e onde esta exercia a sua atividade profissional.

40. Completou o estágio de advocacia, aos 28 anos de idade, em ..., e passou a exercer essa profissão liberal.

41. Em 2012, com 30 anos de idade, frequentou uma formação no Centro de Estudos Judiciários, onde completou a especialização em direito contraordenacional.

42. Posteriormente, abriu o seu escritório de advocacia especializado em contraordenações (rodoviárias, fiscais e marítimas), profissão que o realiza aos níveis pessoal e profissional e na qual se considera um bom litigante.

43. O arguido tem uma relação de união de facto com HHH (31 anos – ...) desde há 1 ano.

44. A relação afetiva é relatada por ambos como coesa e gratificante.

45. O casal reside em apartamento de tipologia T3, que é propriedade da companheira, e está situado na urbanização ....

46. Atualmente, DD tem sociedade com outros advogados na firma “C... & A...”, com escritório em ....

47. Porém, não exerce a advocacia (apesar de não estar suspenso pela Ordem dos Advogados), nem comparece no seu escritório desde que foi constituído arguido no presente processo, devido ao elevado mediatismo e “perseguição” pelos meios de comunicação social.

48. O arguido é descrito como indivíduo com orientação social normativa e de elevadas capacidades de trabalho, sendo determinado pela valorização do desempenho no seu escritório, nas quais trabalham, atualmente, ... advogados.

49. Os rendimentos mensais líquidos do agregado familiar são os seguintes:

a. Vencimento do arguido: € 3.... (quota na sociedade);

b. - Vencimento de HHH (companheira): € ...

c. Aufere, ainda, 90% dos lucros anuais da sociedade, na qualidade de sócio gerente e fundador.

50. Tem ainda bens e rendimentos imobiliários.

51. Com os progenitores e irmã o relacionamento é distante e ausente desde há alguns anos.

(…)”.

B) Factos não provados

A matéria de facto não provada que provém das instâncias é a seguinte:

“ (…).

[Da 1ª instância:]

a) Ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do

condutor infrator, o arguido ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado.

b) Com esta atuação visava o arguido obter para si um benefício ilegítimo.

c) Mais visava o arguido obter um benefício ilegítimo para terceiro.

d) O arguido lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infractores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

[Aditados pela Relação (com a numeração proveniente da matéria de facto provada):]

20. O arguido sabia ainda que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional, bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

21. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que, qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

22. Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome para agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa.

23. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional.

24. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.

25. Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respectiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição.

26. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.

(…)”.

C) Fundamentação quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova

“(…).

Da análise do texto do acórdão recorrido resulta que o tribunal a quo incorreu no vício do erro notório na apreciação da prova, de conhecimento oficioso.

Vejamos.

Determina-se no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.:

«2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.» (sublinhados nossos)

Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

Em suma, existirá erro notório na apreciação da prova quando, no texto da decisão recorrida, se considera provado, ou não provado, um facto que contraria a mais elementar lógica e viola, de forma frontal e clara, as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista do homem médio, devendo tal vício constar da própria decisão da matéria de facto e não da motivação desta ou da fundamentação de direito.

Por outro lado, a demonstração de tal vício tem que resultar do próprio texto da sentença, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não se afigurando possível a sua demonstração através de elementos alheios à decisão, ainda que constantes do processo.

Nesse sentido, veja-se o Ac. do TRC de 17.12.2014, em cujo sumário se lê:

«I. Os vícios da decisão, entre os quais se inclui o erro notório na apreciação da prova, previstos no nº 2, do artigo 410.º, do CPP, são vícios intrínsecos da sentença penal, pois respeitam á sua estrutura interna e, por tal motivo, a lei exige que a sua demonstração resulte do respetivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, não sendo admissível a sua demonstração através de elementos alheios á decisão, ainda que constem do processo.

II. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341).

III. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

A propósito de tal vício, refere-se também no Ac. STJ de 02.02.2011:

I. O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.

Trata-se, pois, de um erro grosseiro, de uma falha grave e gritante, patenteada pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que, pela sua manifesta desconformidade com as regras da lógica e da normalidade da vida, seria facilmente percetível pelo homem médio.

Posto isto.

A simples leitura do texto do acórdão recorrido revela com clareza que o tribunal a quo violou ostensivamente as regras da experiência comum, o que não escapa à perceção de um normal cidadão.

Com efeito, o tribunal julgou provado, além do mais, que:

17. O arguido tem uma imagem de eficácia na tramitação de autos de contraordenação, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio junto da comunidade empresarial.

18. Sabia o arguido que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial).

19. O arguido também sabia que a ANSR não dispunha de funcionários suficientes para a tramitação de cerca de novecentos mil a um milhão de processos por ano.

20. O arguido sabia ainda que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional, bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

21. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que, qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

22. Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome para agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa.

23. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional.

24. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.

25. Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respetiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição.

26. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.

27. O arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”

Ora, sendo o arguido um advogado, NUNCA poderia estar fora de cogitação que os técnicos da ANSR, por iniciativa própria ou por determinação de algum superior hierárquico, decidissem alterar o método de trabalho e/ou a gestão do cumprimento das suas tarefas, ignorando os processos contestados já prescritos – bastava atentar na data da respectiva entrada –, e passando de imediato a apreciar o expediente entrado recentemente, o que poderia coincidir com a entrada dos autos falsificados pelo arguido.

E é seguro que não esteve fora de cogitação. Estivesse o arguido convicto de que tais processos prescreveriam, não teria colocado o seu nome no lugar do autuado e indicado o número da sua carta de condução. E muito menos inscreveria o seu nome no lugar destinado ao nome do condutor infrator, com as modificações sinalizadas no Facto Provado nº 9: “… o seu nome (BB ou CC ou DD ou AA)”.

As invocadas razões de agilização do escritório, revelam-se no mínimo pueris, atenta a tecnologia actual e a respectiva velocidade de informação.

A justificação da actuação do arguido por apelo à prescrição dos processos e à agilização do escritório, atentam gravemente contra as regras da experiência.

Quase um escândalo é considerar provado que “A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.”

Qualquer cidadão logo percebe que a autuação de uma contra-ordenação contra um falso responsável defrauda a pretensão punitiva do Estado, lembrando que no Direito Penal, uma das pretensões do Estado é aplicar as sanções penais aos autores de infracções penais (via de regra, punir os criminosos). Denomina-se isso de pretensão punitiva, que corresponde ao jus puniendi, ou seja, o direito de punir que nasce com o cometimento da infracção penal.

Daí que resulte atentatória das ditas regras da experiência a conclusão de que “Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respectiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição”.

Sendo inócua e irrelevante a conclusão de que “A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.” até porque do elenco dos factos provados não consta sequer que os ditos autos de contra-ordenação falseados tenham prescrito.

Mas ainda que tal tivesse sucedido, qualquer jurista, incluindo o arguido, não pode ignorar, porque tem a obrigação de saber que o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto, também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado, considerando os interesses que o tipo legal visa proteger.

Acresce que a idoneidade probatória /relevância jurídica do documento também não exige a produção efectiva do efeito jurídico pretendido pelo agente do crime – assim, é indiferente que as contra-ordenações tenham, a final, eventualmente prescrito ou tenham resultado na condenação em contra-ordenação.

Ora, não obstante o tribunal a quo deu como provado que:

27. O arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Resulta assim inverosímil e contrário às regras a experiência comum, julgar como não provado que:

a) Ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infrator, o arguido ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado.

b) Com esta atuação visava o arguido obter para si um benefício ilegítimo. c) Mais visava o arguido obter um benefício ilegítimo para terceiro.

c) Mais visava o arguido obter um benefício ilegítimo para terceiro.

d) O arguido lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infratores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.”

Perguntará o cidadão médio normal qual então a razão por que o arguido, que é advogado e recebeu contrapartida pelo serviço que prestou aos infractores – 554 motoristas/ particulares/empresas –, optou por indicar o seu nome como infractor.

Claramente as regras da experiência indicam que o arguido com a sua actuação visou o seu benefício, o benefício dos terceiros/infractores que o contrataram e causou um prejuízo incalculável na pretensão punitiva do Estado.

Em condições de normalidade, nenhuma pessoa, mesmo não sabendo ler nem escrever, e muito menos um advogado especialista em contraordenações, procede dessa maneira sem consciência das consequências desses factos ou desconhecendo que esse comportamento é penalmente censurável.

Tem, pois, razão o MP no seu parecer quando conclui: Analisando toda esta prova, e no que concerne ao elemento subjetivo inerente à conduta do arguido, o Tribunal a quo, e mal a nosso ver, concluiu pela sua não verificação, de acordo com um juízo que consideramos contrário às regras da experiência comum, no confronto com a demais factualidade objetiva apurada. O que está em causa é a emissão de documentos, pelo arguido, de forma a modificar a relação jurídica atinente ao ius puniendi contraordenacional entre cada um dos infratores e o Estado. Esse objetivo foi alcançado pelo arguido, conforme resultou provado no douto acórdão, pois o arguido agiu: “de modo a fazer constar dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor), enviados pelas autoridades públicas, factos que originaram a elaboração de autos de contraordenação em que os verdadeiros infratores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais.”. Isso significa, pelas regras da lógica e da experiência comum, que os terceiros – cada uma das pessoas proprietárias dos veículos e/ou que tinham o domínio sobre eles e que incorreram em contraordenações – foram assim ilegitimamente beneficiados com as condutas do arguido, na medida em que viram erradicada a possibilidade de vir a sofrer qualquer sanção pela prática de contraordenação. Causando prejuízo ao Estado, ao esconder a verdadeira identidade do autor da contraordenação, o arguido visava desta forma também obter para si um benefício ilegítimo, sendo que a vítima dos crimes de falsificação foi o Estado Português / ANSR.”

Tudo a impor a alteração dos factos conexionados com o supra exposto, por se verificar um manifesto erro de julgamento quanto aos mesmos, descortinando-se no respectivo julgamento de facto as apontadas falhas grosseiras que, ferindo a mais elementar lógica, seriam facilmente detectadas pelo cidadão comum, porque o Tribunal a quo baseou-se em juízos ilógicos e absurdos, desrespeitando as regras da experiência comum e da normalidade da vida.

Como adverte o Cons. Armindo Monteiro no AC STJ de 05-06-2012 – “ Só há erro notório quando o tribunal incorre em manifesto erro de análise, quando teve como definitivo um leque factual que a sã lógica das coisas, o bom senso, a justa e prudente apreciação das provas, dadas a conhecer na sentença, a partir da sua simples leitura ou de acordo com as regras da experiência, o repudia e descredibiliza em absoluto.”

Consequentemente, ocorre o erro notório na apreciação da prova porque o tribunal recorrido a valorizou contra as regras da experiência comum, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, Vol. III, 2ª Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

Em conformidade, altera-se a matéria de facto nos termos seguintes:

Está provado e por isso se aditam aos factos provados:

O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar falsamente dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor) enviados pelas autoridades públicas, factos esses que originaram a elaboração de autos de contraordenação, sendo, por isso, juridicamente relevantes.

Sabia, o arguido, que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial) e que ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infractor, ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado, uma vez que, os autos de contraordenação seriam autuados em nome diverso do real infractor.

Com esta sua actuação visava, o arguido, obter para si um benefício - que sabia ser ilegítimo -, uma vez que os infractores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais em causa, criando, assim, junto da comunidade empresarial uma imagem de eficácia na tramitação daqueles autos, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio.

Mais visava, o arguido, obter um benefício - que sabia ser ilegítimo - para terceiros, os infractores, ao assegurar que, e apesar da sua actuação ilícita, não haveria consequências sancionatórias para os mesmos, seus clientes.

O arguido agiu, em todas as circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, com intenção de obter para si e para terceiros benefícios ilegítimos, sabendo que lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infractores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

Sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”.

*

E transitam para os factos não provados - porque não se provaram - os seguintes factos:

20. O arguido sabia ainda que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional, bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

21. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que, qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

22. Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome para agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa.

23. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional.

24. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.

25. Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respetiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição.

26. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.”.

D) Fundamentação quanto à qualificação jurídica dos factos provados

“(…).

Nenhuma reserva foi suscitada quanto ao enquadramento jurídico efectuado no acórdão recorrido referente aos crimes de falsas declarações, pp. pelo artigo 348.ºA do Código Penal.

Escreveu-se a propósito no acórdão recorrido “Tendo presentes as considerações acima expendidas, parece-nos claro que os factos provados integram a previsão objetiva do n.º 1 do artigo 348.º-A do Código Penal. Também se apurou que o arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Não restam, pois, dúvidas que também se encontram preenchidos os elementos subjetivos de ilícito da incriminação em análise, tendo o arguido atuado com dolo direto, nos termos do n.º 1 do artigo 14.º do Código Penal.

Vistas as considerações que antecedem estas conclusões, afigura-se-nos correcto o enquadramento jurídico efectuado pelo tribunal recorrido quanto a tal crime.

A única questão quanto a tais crimes, colocada no recurso, é a da pluralidade de infracções, ou seja, a do concurso efectivo dos 554 crimes de falsas declarações, pois o tribunal recorrido integrou a conduta do arguido no plano da unidade criminosa, por considerar que este tomou uma única resolução. Questão que trataremos no item seguinte -III.3.

No que respeita ao crime de falsificação de documentos, também o tribunal recorrido revelou rigor no respectivo tratamento jurídico, apenas absolvendo o arguido por considerar não verificado o elemento subjectivo do respectivo tipo legal.

Vejamos pois o que a propósito se consignou no acórdão recorrido:

Apurados os factos, importa proceder ao seu enquadramento jurídico-penal. Para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado, mister é que pratique um facto típico, ilícito, culposo e punível.

O facto consubstanciará um ilícito típico quando a conduta do agente preencha objetiva e subjetivamente os elementos do tipo legal de crime.

Dos crimes de falsificação de documentos

O arguido encontra-se acusado da prática de quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsificação de documentos, pp. no artigo 256.º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código Penal.

Determina esta norma que:

“Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

(…)

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;

é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.

Considerava-se, inicialmente, que o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documentos era a fé pública, traduzida esta num sentimento geral de confiança nos atos públicos.

Todavia, após um processo de decantação doutrinal e jurisprudencial, logrou-se firmar a ideia de que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime “é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.”(1)

O crime de falsificação encontra-se sistematicamente inserido no título relativo aos crimes contra a vida em sociedade, sendo que, conforme se refere no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2003(2), o bem jurídico prevalentemente tutelado por esta norma é “(…) a segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal”, sendo, de igual modo – e atendendo à configuração do elemento subjetivo deste ilícito - tutelados os interesses particulares de determinada pessoa que sofreu um prejuízo por força do atentado contra aqueles valores.

Trata-se, pois, de um crime formal ou de mera atividade e de um crime de perigo abstrato, bastando que o documento seja falsificado para que se verifique a sua consumação.

Neste âmbito, é naturalmente relevante a definição do objeto da ação do presente crime. Documento, nos termos da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal, deverá ser entendido como “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.

De realçar, no âmbito desta aproximação analítica, que “(…) aquilo que constitui a falsificação de documentos é não a falsificação do documento enquanto objeto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento. (…).

Documento, para efeitos do crime de falsificação, é, [pois,] a declaração e não o objecto em que esta é incorporada (…)(3)”.

Regressemos ao caso concreto.

Nos termos do artigo 170.º do Código da Estrada, qualquer autoridade ou agente de autoridade, se no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, assim se dando inicio a um processo de contraordenação.

Neste âmbito, a identificação do arguido deve ser efetuada através da indicação dos elementos de identificação constantes do artigo 171.º, n.º 1 do Código da Estrada, nomeadamente nome completo ou, quando se trate de pessoa coletiva, denominação social, número do título de condução e respetivo serviço emissor.

Quando se trate de contraordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo – cf. artigo 171.º, n.º 2 do Código da Estrada.

Dispõe o n.º 3 do artigo 171.º do mesmo diploma que, quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contraordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa coletiva, deve esta ser notificada para, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação do condutor, devendo a mesma proceder à identificação de quem conduzia o veículo no momento da prática da infração, indicando todos os elementos constantes do n.º 1 do artigo 171.º do Código da Estrada.

A notificação efetuada ao titular do documento de identificação do veículo pela autoridade autuante é acompanhada de um formulário, pré preenchido com a data da infração, número do processo e matrícula do veículo, devendo o notificado proceder ao preenchimento do condutor/infrator com a indicação do nome, morada, data de nascimento, número da licença/carta de condução, data de emissão da mesma.

O notificado deve devolver o documento “Identificação do Condutor” devidamente preenchido, remetendo o mesmo para a autoridade pública ali identificada – ANSR ou para a autoridade policial autuante (GNR, PSP, Polícia Municipal, etc.).

Se, o titular do documento de identificação do veículo identificar a pessoa autora da contraordenação, é instaurado processo contraordenacional contra a pessoa identificada como condutor infrator.

O arguido exerce a atividade profissional de advogado, sendo titular da carta de condução nº C-..., emitida a ........2001, habilitando-o a conduzir veículos da Categoria B (ligeiro) e B1 (Triciclo ou quadriciclo).

O arguido, no exercício da sua atividade profissional de advogado, vem sendo procurado por inúmeros clientes, maioritariamente sociedades, relativamente aos quais foram levantados autos de contraordenações previstas no Código da Estrada, sem que fosse identificado o condutor. Estes clientes recorriam aos serviços do arguido, após a notificação para identificação do condutor, solicitando-lhe que desse andamento a toda a tramitação tendente à sua defesa. Após o primeiro contacto, o arguido solicitava aos clientes que enviassem para o seu endereço eletrónico ou que se dirigissem a um dos seus escritórios a fim de procederam à entrega da documentação, designadamente o auto de contraordenação em nome dos titulares dos veículos e o expediente da notificação para identificação de condutor. Por tal serviço cobrava o arguido a quantia de, pelo menos, € 50,00, a título de honorários.

De seguida, o arguido na posse da documentação mencionada, pela sua mão ou alguém a seu mando, seguindo as suas ordens e orientações, procedia ao preenchimento do documento identificação do condutor”, enviado pelas entidades públicas competentes, fazendo, dele, constar, nomeadamente: no lugar destinado ao nome do condutor infrator, o seu nome (BB ou CC ou DD ou AA) e no lugar destinado ao título de condução, o número da sua carta de condução C-..., data de emissão: ........2001. Preenchido e rubricado, o documento em causa era enviado para a autoridade que constava no rosto do mesmo (ANSR e/ou autoridade autuante), a qual prosseguia os demais trâmites, elaborando novo auto de contraordenação em nome da pessoa identificada, ou seja, o aqui arguido, por acreditarem tratar-se do real condutor da viatura. Com base no documento elaborado nos moldes descritos, em virtude da atuação do arguido, a autoridade pública competente veio a elaborar autos de contraordenação com conteúdo inverídico, no que à identidade do condutor diz respeito, iniciando-se um procedimento a correr termos contra este como se do verdadeiro condutor/infrator se tratasse.

Temos, assim, que o arguido fez constar falsamente em documentos, factos juridicamente relevantes, ou seja, indicando o seu nome e o número da sua carta de condução em documentos de identificação de condutor, quando não era ele o condutor, e utilizou-os, passando os processos de contraordenação a correr contra si.

Conclui-se, assim, estarem preenchidos os elementos do tipo objetivo de ilícito do crime de falsificação, pp. pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal.”

Nenhuma objecção se nos suscita o precedente labor sobre o tipo legal em questão.

Ora, considerando a alteração sobre a matéria fáctica operada no ponto III.1.1, ao contrário da conclusão do tribunal recorrido, impõe-se-nos julgar verificado o elemento subjectivo do tipo legal do crime em apreciação.

Com efeito, quanto ao elemento subjetivo, trata-se de um crime intencional porque o agente necessita de actuar com dolo, mas com a especial intenção de “causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

No caso concreto – além de ter ficado assente que o arguido sabia que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes –, apurou-se que o arguido agiu com dolo directo e com intenção de causar prejuízo ao Estado e de obter benéfico para si e para terceiros, os seus clientes – proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial –, benefícios esses manifestamente ilegítimos.

Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado - Helena Moniz, Cometário, p. 685.

Assim, é de concluir que a conduta do arguido atento o acervo fáctico provado integra a previsão do crime de falsificação de documento pp art. 256º do Código Penal, nº 1, d) do CP.

(…)”.

E) Fundamentação quanto à unidade ou pluralidade de crimes

“(…).

I - De acordo com o art. 30.º, n.º 1, do CP, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Nesta norma está definido o que se apelida de concurso, dito efectivo ou puro o qual pode ser ideal (com uma acção violam-se diferentes tipos de crime ou com uma só acção viola-se o mesmo tipo várias vezes - heterogeneidade ou homogeneidade) ou real (com várias acções preenche vários tipos ou várias vezes o mesmo tipo).

A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes (tantos quantos os tipos de crime violados); a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime.

Este preceito consagra um critério teleológico e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes.

Neste último caso, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.

Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas acções naturalísticas. É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia.

Esta posição foi, porém, rejeitada por Figueiredo Dias há alguns anos, propondo como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica.

No entanto, o mesmo autor reconhece que, quando apenas um tipo legal for violado, “será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual, no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente.” – Ac STJ de 06-02-2019.

Entendeu o tribunal recorrido que a intenção do arguido abarcou ab initio uma pluralidade de atos sucessivos que ele se dispôs logo a praticar, dando mesmo orientações nesse sentido, estando-se, por isso, no plano da unidade criminosa. E citando o Prof Eduardo Correia (1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque), concluiu que “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação”.

III.3.1 - Vejamos.

Estando em causa a violação do mesmo tipo legal de crime, sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação.

Essencial para tal determinação será, sempre, a conexão temporal que liga as várias condutas do agente. Daí que «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, 1971, vol. II, p. 202).

Ora, o comportamento do arguido evidencia uma persistente, e em cada momento renovada, vontade de violar a lei e em que, para cada um dos actos praticados, formulou uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as demais, determinantes da prática dos outros actos, naquelas 554 diferentes ocasiões.

Foi ele que criou, por sua exclusiva iniciativa, em todas as diferentes circunstâncias de tempo, as condições favoráveis e adequadas à prática dos diferentes actos integradores dos crimes em causa.

Analisados os factos provados, conclui-se que a múltipla actuação do arguido em todos os documentos apenas tem como constante a indicação do seu nome (com variantes) e da sua carta de condução.

De resto, nem os ditos documentos são complementares ou encadeados, nem se destinam a um fim comum, sendo diversos os sujeitos, as contra-ordenações, os veículos (ligeiros ou pesados) e sobretudo diversas as relações jurídicas no âmbito das contra-ordenações estradais. Nesse sentido, como conclui e bem o recorrente, não há sequer identidade de resultado.

Em suma, existe um “desfasamento contextual” entre cada um dos documentos emitidos pelo arguido, pois assinou impressos diversos porque se destinavam a processos de contra-ordenação diferentes, iniciados relativamente a sujeitos diferentes (proprietários dos veículos) em que estão em causa ilícitos do direito administrativo diversos e cometidos em contextos diversos.

Acresce que a conduta ilícita tem a sua génese na contratação do arguido como advogado, por pessoas diferentes, ou seja, fica dependente da vontade de outrem, o terceiro que recorre aos seus serviços forenses. Não há também qualquer unidade do ponto de vista da identidade dos responsáveis pelas contra-ordenações, que viram a sanção administrativa liminarmente afastada pela conduta do arguido.

Desde modo, torna-se incompreensível a aceitação de que a todas as acções do arguido presidiu uma única e inicial resolução criminosa, não obstante a similitude do modus operandi.

O que não permite ao Tribunal cogitar que o arguido agiu como agiu em obediência a uma só resolução inicial, isto é, a um só desígnio criminoso.

Inviável então concluir pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime de falsificação de documentos e de um único crime falsas declarações, dada a pluralidade de resoluções que presidiu a todo o comportamento do arguido desde o início até ao final.

III.3.2 Ponderemos o crime continuado.

Nos termos do artigo 30.º do Código Penal, não estando em causa – como sucede no caso sub judice – bens eminentemente pessoais -, “a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” constitui um só crime continuado (cf. n.º 2).

Logo se percebe que não basta a repetição do “modus operandi” e que os bens jurídicos violados tutelem bens jurídicos muito próximos, para que se verifique continuação criminosa.

Como se refere no Ac. do STJ de 8.11.07 (Proc. 07P3296, disponível wwwdgsi.pt, a circunstância de se verificar a repetição do “modus operandi” utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. “a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa”.

O traço fundamental distintivo do crime continuado reside então numa circunstância exterior que determine a diminuição da censura do agente, por via de uma menor exigibilidade – sempre que aquela se lhe apresente – de actuar conforme ao direito, o que apenas sucederá quando não seja o agente o “veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê” – (cf. acórdão do TRL de 13.04.2011, proc. n.º 250/06.6PCLRS.L1 – 3), o que não é o caso.

Tal como se salienta no TRC de 18.04.2012, as “circunstâncias exteriores conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa não podem ser consideradas como facilitadoras da sua reiteração criminosa, mas antes como uma clara persistência criminosa, que afastam a diminuição da culpa”.

No caso sub judice a manifesta renovação do respectivo processo de motivação por parte do arguido, contradiz a diminuição considerável de culpa que terá necessariamente de encontrar-se no momento exógeno das condutas, ou conforme o Prof Eduardo Correia “na disposição exterior das coisas para o facto” - cf. o acórdão do STJ de 03.12.2014 (proc. n.º 446/09.9GAPTL.S1).

Também Paulo Pinto de Albuquerque escreve no Comentário ao Código Penal, (2º edição, p. 162): “a diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. É o que sucede por exemplo quando o agente se depara repetidamente com um meio facilitador da prática do crime, como uma janela ou porta aberta, isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ativamente a provoca (…)”. Assim, “não há diminuição da culpa quando o agente engendra ou fabrica o meio apto a realizar o crime, como uma máquina de falsificar moeda ou um documento falso para burlar, enganar, ocultar a autoridade pública ou outras pessoas, que utiliza repetidamente diante do sucesso da primeira conduta criminosa”.

Em suma, inexistindo qualquer situação exterior, estranha à vontade do arguido, que o tenha determinado à prática daqueles factos ilícitos e que tenha a virtualidade de diminuir a respectiva culpa, muito menos de modo considerável, como exige a lei, não se verificam os pressupostos do crime continuado, não podendo o arguido ser condenado por um só crime continuado de falsificação de documento nem por um só crime continuado de falsas declarações.

Vale dizer que uma disposição interior do agente para determinado tipo de crimes não é critério para considerar una uma actividade criminosa que, em si mesma, é constituída por diferentes e plúrimos crimes.

Do mesmo modo a conexão temporal e espacial dos factos tem uma importância secundária e na verdade quando a atuação do agente se prolonga por um período de tempo demasiado longo, designadamente, durante meses ou até anos, poderá questionar-se no caso concreto a verificação do crime continuado. Na verdade, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “a mediação de um período de tempo tão dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os fatores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito, e distanciar-se da mesma. Não o fazendo já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime” (Comentário do Código Penal, p. 138).

Resta a solução normal do concurso de crimes sendo inequívoco que neste caso o arguido desenvolveu múltiplas acções, pelo que estamos perante 554 acções típicas autónomas, ocorridas em dias diferentes, em que estiveram subjacentes outras tantas resoluções criminosas.

Em face do exposto, entendemos que a qualificação jurídica feita na acusação, é a que perfilhamos, não se evidenciando uma situação de alteração da qualificação jurídica para um só crime continuado de falsidade de declarações e de falsificação de documento, como entendeu o tribunal recorrido.

F) Fundamentação quanto à existência de concurso real ou concurso aparente

“(…).

O concurso real (tal como o concurso ideal) distingue-se do chamado concurso legal, aparente ou impuro.

Muitas normas do direito penal estão umas para as outras numa relação de hierarquia, no sentido de que a aplicação de umas exclui a das outras.

“De onde resulta que a pluralidade de tipos que se podem considerar preenchidos, quando se toma isoladamente cada uma das respectivas disposições penais, vem, no fim de contas, em muitos casos, olhadas tais relações de mútua exclusão e subordinação, a revelar-se inexistente.

Neste sentido se afirma que se está perante um concurso legal ou aparente de infracções, em que podem surpreender-se, entre as normas, categorias ou relações de especialidade, consumação, alternatividade e subsidiariedade.

No concurso aparente de infracções, embora o comportamento do agente preencha vários tipos de crime, o que sucede é que o conteúdo ou substância criminosa é aqui tão esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados, que os restantes devem recuar, subordinando-se perante uma tal aplicação - Ac STJ de 10 de Outubro de 1996, relator Cons Silva Paixão,

No caso, a relação de consumpção é, precisamente, uma das que pode existir entre as normas penais, sendo, por isso, uma das categorias que costuma autonomizar-se no concurso aparente - Prof Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol II, pág 205 - reimpressão 1971 e Acórdão da Relação de Lisboa de 29-06-2010

Aplicando os princípios jurídicos supra enunciados, ainda que de forma esquemática, ao caso em apreço, podemos concluir que entre as normas dos artigos 256.º, nº 1, alíneas d) e e) e 348.ºA do Código Penal, intercede uma relação de consumpção, tal como a define o Prof Eduardo Correia, devendo a punição deste concurso ser encontrada na moldura penal mais grave, na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida da pena.

Será assim aplicada a moldura do artigo 256.º, nº 1, alíneas d) e e) que é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa pois o crime pp art 348-A do CP é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.

(…)”.

G) Fundamentação quanto à determinação da medida concreta das penas

“(…).

Escolha e medida das penas parcelares. Medida da pena única.

O art. 256.º, nº 1, alíneas d) e e) do C.Penal prevê em alternativa pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

O art. 70º do C.Penal, referindo-se ao critério de escolha da pena principal, sempre que o tipo legal preveja em alternativa prisão e multa, consagra a princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade “… sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

Ora no caso concreto a pena de multa não satisfaz as necessidades da prevenção pelo caso requerido, em face da conduta do arguido e atenta as necessidades de repor a validade das normas violadas.

É aconselhável e adequada a opção pela pena de prisão quanto aos crimes de falsificação de documentos, por ajustada à gravidade dos ilícitos em causa, ponderada na sua globalidade, bem como às necessidades de prevenção geral e especial.

No caso sub judice, são sobretudo razões de prevenção geral que impõem a opção pela pena privativa da liberdade.

As operações a realizar pelo Tribunal baseiam-se nos critérios estabelecidos artigos 40º, 70º, e 71º, nº 1, todos do Código Penal.

Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).

De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.

Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.

Como ensina Figueiredo Dias in “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs : « As exigências de prevenção geral, ... constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada ; As exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio político-criminal da necessidade da pena (Art. 18º, n. 2, da CRP) e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (consagrado no n.º 1 do mesmo comando). Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena»

A determinação da medida concreta da pena é feita em função das necessidades de prevenção e da culpa do agente, devendo o tribunal atender, para o efeito, a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras circunstâncias, haverá que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

É esta a enumeração dos factores de medida da pena, que Figueiredo Dias dividiu em três categorias, relativos à execução do facto: os relativos à personalidade do agente e relativos à conduta do agente anterior ou posterior ao facto; os factores relativos à execução do facto - se encontram o grau da violação ou do perigo de violação (tentativa e crimes de perigo), o dano causado ou posto em causa, a natureza, os meios, a forma e a eficácia da perpetração, a dimensão do conhecimento e da vontade, a medida da lesão do dever de cuidado e da violação dos deveres impostos ao agente (estes, para além daquele, ao nível das relações do mesmo com o bem jurídico ofendido, a vítima, o objecto da acção), e finalmente os sentimentos manifestados, os motivos e os fins, o próprio comportamento da vítima.

Nos factores relativos à personalidade do agente pesam as condições pessoais e económicas, a sensibilidade à pena e a susceptibilidade de por ela ser influenciado, as qualidades pessoais manifestadas.

Nos factores relativos à conduta do agente contam-se a vida anterior, o passado criminal, alguns serviços relevantes, a reparação (com efeito conseguido ou objecto de esforço) das consequências do crime (em particular o dano causado), o comportamento processual (que não seja apenas táctico).

A moldura penal abstrata aplicável ao crime falsificação simples é de pena de prisão até três anos ou multa.

Não se verificam quaisquer circunstâncias modificativas da pena abstracta.

Na determinação, dentro da moldura penal abstracta, da medida concreta da pena, segue-se, como já foi referido, o critério geral do art. 71º, nº 1: em função da culpa do agente e atendendo ainda às exigências de prevenção de futuros crimes.

Assim:

- no que respeita ao grau de ilicitude, é elevado, considerando o modo como iludiu as autoridades da ANRS, assumindo-se como infractor em documentos aptos a obstruir a justiça.

- intensidade do dolo é a mais elevada, o que constitui uma forma superior de culpa – dolo directo.

- O grau de violação dos deveres impostos ao agente também é elevado, atendendo a que o arguido é advogado, por isso que tem um dever acrescido de cumprimento da lei;

- o arguido assumiu uma actuação para justificar a sua conduta, contrária às regras da normalidade social, desculpabilizando-se mediante imputação de ineficácia àquele organismo estatal, ou seja, sem consciência crítica da danosidade social da sua conduta.

- as necessidades de prevenção geral são extremamente elevadas, atentos os bens jurídicos violados e a necessidade de reposição da validade de tais normas.

- a motivação que está na origem da conduta do arguido, a obtenção de maiores recursos financeiros, pelo valor auferido de forma ilícita e consequente angariação de clientela para o seu escritório de advocacia.

- O grau de violação dos deveres impostos ao agente também é elevado, pois o arguido é advogado, tendo um dever acrescido de cumprir a lei.

- o arguido tem suporte familiar estável e mostra-se integrado profissional, social e economicamente.

- o arguido não tem antecedentes criminais;

- as exigências de prevenção geral são elevadas atento o alarme social que crimes como o dos autos causam na sociedade pelo que se impõe a reposição da validade das normas violadas.

- atendendo aos próprios crimes que estão em causa e à natureza da personalidade do próprio arguido, que facilmente recorre a mecanismos de defesa não credíveis.

- predispor-se a correr os riscos no exercício da sua profissão de advogado, inerentes à dita prática ilícita durante quase um ano e meio - ( FP nº 15), só pode demonstrar uma adesão consciente e segura a uma conduta antijurídica.

Tudo ponderado, afiguram-se adequadas às circunstâncias do caso as seguintes penas parcelares e condenar o arguido:

- pela prática de cada um dos 554 crimes, pp art 256.º, nº 1, alíneas d) e e), do CP, na pena de 14 meses de prisão.

III.6 – Medida da pena única

Encontrando-se os crimes de falsificação de documentos praticados pelo arguido numa relação de concurso, importa proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas – art.º 77º, nº 1, do C.P.

Estabelece este art. 77º, n.º1 do Código penal, sobre as regras de punição do concurso de crimes, que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

E nos termos do nº 2, a moldura do concurso, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

A medida da pena a atribuir em sede de cúmulo jurídico tem uma especificidade própria.

Como se lê em Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §§ 420 e 421, págs. 290/2 -, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72º-1 (actual 71º-1), um critério especial: o do artigo 77º, nº 1, 2ª parte.

Expõe o Autor que, na busca da pena do concurso, «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». Acrescenta que «de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

Nos termos do nº 2 do art.º 77° C.P., no caso presente a pena unitária aplicável tem como limite máximo os referidos 25 anos de prisão ( máximo legal ) e como limite mínimo 14 meses de prisão.

Cumpre agora ver os factos concorrentes no seu conjunto e detetar uma possível conexão e o tipo de conexão que os liga os factos, tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido por forma a possibilitar uma avaliação da gravidade do ilícito global perpetrado e a “culpa pelos factos em relação” (cfr. MONTEIRO, Cristina Líbano, in “A Pena “Unitária” do Concurso de Crimes”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano XVI, n.º 1, pág. 162 e segs.).

Tendo em conta, em conjunto;

- os factos acima elencados e que aqui reproduzimos para as determinação das penas parcelares,

- quanto à ilicitude do conjunto dos factos, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais é de considerar elevada, pois no caso presente estamos face a 554 crimes de falsificação de documentos simples em que a “vítima” é o Estado.

- a personalidade do arguido neles espelhada,

- é de considerar o ilícito global agora julgado como resultado de uma pluriocasionalidade, não revestindo ainda a carga necessária para que se possa falar de tendência criminosa radicada na sua personalidade.

- o período temporal em que os factos ocorreram, - o seu contexto e circunstancialismo,

- as condições pessoais e sociais do arguido,

- São prementes as exigências de prevenção geral como já referido foi supra.

Em face do exposto e valorando o ilícito global perpetrado, ponderando que estamos perante uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade do arguido, e considerando a «gravidade do ilícito global perpetrado», este Tribunal da Relação de Coimbra tem por ajustada, adequada e necessária à ressocialização do arguido a sua condenação na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

(…)”.

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Âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.

Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.

Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente – que de tão extensas, com dificuldade cumprem o papel que lhes é assinalado na norma acima referida – e, as questões a decidir no recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:

- A alteração da decisão da matéria de facto operada pela Relação, com violação do disposto no art. 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal;

- A qualificação jurídica dos factos;

- A escolha e a medida concreta das penas.

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Da alteração da decisão da matéria de facto operada pela Relação, com violação do disposto no art. 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal

1. A situação processual que suporta a questão em análise é, em síntese, a que se passa a descrever:

- O arguido foi acusado pela prática de 555 crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 26º, 255º, a) e 256º, nº 1, d) e e), todos do C. Penal, em concurso aparente, com 555 (quinhentos e cinquenta e cinco) crimes de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A do C. Penal e, em acórdão proferido pela 1ª instância, foi absolvido da prática de todos os crimes de falsificação ou contrafacção de documento, foi absolvido da prática de 554 crimes de falsas declarações e foi condenado, pela prática de um crime de falsas declarações, na pena de 320 dias de multa à taxa diária de € 40, perfazendo a multa global de € 12800; a decisão da 1ª instância teve como suportes essenciais, a ausência da prova do dolo [a matéria dos artigos 22 a 27 da acusação, referentes ao dolo, na sua essencialidade, foi considerada não provada] relativamente aos crimes de falsificação ou contrafacção de documento e a consideração de uma resolução criminosa única relativamente aos crime de falsas declarações;

- Interposto recurso pelo Ministério Público, a Relação decidiu rejeitar a impugnação ampla da matéria de facto nele deduzida, por inobservância, pelos recorrente, dos respectivos ónus de especificação, decidiu padecer o acórdão recorrido de vício do erro notório na apreciação da prova e, consequentemente, modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, passando a matéria dos artigos 22 a 27 da acusação, relativa ao dolo do crime de falsificação ou contrafacção de documento a constar dos factos provados, e passando a matéria dos pontos 21 a 26 dos factos provados do acórdão da 1ª instância, a matéria não provada.

Tendo por horizonte o que antecede, alega o arguido – conclusões 17ª a 94ª –, em síntese, que:

- O recorrido acórdão da Relação, tendo entendido que o acórdão da 1ª instância enfermava de erro notório na apreciação da prova, determinou uma alteração da matéria de facto que extravasou completamente o âmbito de aplicação do referido vício decisório, procedendo a um novo julgamento de facto sem imediação da 1ª instância, ignorando a fundamentação do seu acórdão bem como a prova, que não reapreciou por não o poder fazer pelo que, constituindo muita da matéria especificada no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal matéria de direito, e sendo também matéria de direito saber se a Relação apreciou, correcta ou incorrectamente, os vícios ali previstos, ao alterar, como alterou, a matéria de facto, compete a este Supremo Tribunal conhecer de tal aplicação;

- O acórdão da Relação, apesar de ter correctamente enquadrado, em termos teóricos, a questão do erro notório na apreciação da prova, fez uma incorrecta aplicação das próprias regras por si enunciadas, vindo a alterar indevidamente a matéria de facto fixada pela 1ª instância pois que, tendo esta considerado provada a matéria dos pontos 3, 4, 7 a 12 e 16 a 27, e considerado não provada a matéria dos pontos a) a d), do acórdão que proferiu, a Relação passou a não provada a matéria dos referidos pontos 20 a 26, e passou a provada a matéria dos referidos pontos a) a d), se bem que, com redacção mais extensa [na verdade, a Relação aditou aos factos provados a matéria constantes dos artigos 22 a 27 da acusação], tendo, para tanto, ignorado a fundamentação da decisão de facto da 1ª instância quando, se a tivesse lido, reapreciado a prova e ouvido as gravações, teria melhor entendido a realidade e evitado incorrer em erros de argumentação, crassos e notórios, pois que, como consta da motivação de facto, o arguido e as testemunhas EE e FF, colaboradoras daquele, afirmaram ter o arguido comunicado no escritório a decisão de actuar, como veio a actuar, no final de 2016, o arguido explicou que é advogado especialista em contra-ordenações, tendo nas rodoviárias em que é necessário identificar o condutor da viatura uma taxa de sucesso de 100%, e porque em 2016 recebia entre 200 a 300, dada a dificuldade em obter os elementos necessários e o curto prazo para o fazer, decidiu fazer constar dos documentos enviados à autoridade administrativa a sua própria identificação, assim agilizando o seu processamento sem necessidade de contactar os clientes para que identificassem o condutor, a testemunha GG, jurista da ANSR e directora de serviço responsável pelas contra-ordenações, afirmou que, na data dos factos, não existiam funcionários suficientes para tramitar cerca de um milhão de contra-ordenações pelo que, sendo requeridas diligências de prova, as mesmas, invariavelmente, prescreviam, sendo que, a errada indicação do nome do condutor não influenciava o seu andamento, vindo a prescrição a ser causada pela falta de recursos humanos, sendo estas as razões de prova que levaram a 1ª instância a credibilizar a versão apresentada pelo arguido quanto à versão dos factos, assim dando como provados os factos 17 a 26 e não provadas as alíneas a) a d);

- Como primeiro erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, sendo advogado, não poderia deixar de admitir que a ANSR pudesse alterar o método de trabalho e gestão, ignorando os processos de contra-ordenação impugnados e já prescritos, e passando de imediato a apreciar os recentemente entrados, podendo nestes contarem-se os processos falsificados por si enviados, pois o raciocínio pressupõe que exista método de trabalho para tratar os processo impugnados, o que não tem apoio na prova produzida, como resulta da fundamentação do acórdão da 1ª instância, designadamente, das suas declarações e do depoimento da testemunha GG, acrescendo que nunca a ANSR poderia ter como método de trabalho a presumida abordagem dos processos por ordem cronológica, começando pelos mais antigos, sob pena de nunca chegar aos mais recentes, ainda não prescritos, pois o que sucedia é que, devido à falta de meios, aquela autoridade não processava os processos impugnados, para evitar que os processos não impugnados prescrevessem em maior número;

- Como segundo erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, se o arguido estivesse convicto de que os processos prescreveriam, não teria colocado o seu nome na identificação do infractor e indicado o seu número de carta de condução, sendo evidente que se deveria ter concluído precisamente pela inversa, isto é, se o arguido não tivesse a certeza de que os processos prescreveriam pela simples apresentação de defesa, não teria indicado os seus dados de identificação, pois poderia vir ele a ser condenado em cada um dos autos, não se vendo que um advogado possa assumir a autoria de 550 contra-ordenações praticadas por clientes, na perspectiva de uma provável mudança de métodos da ANSR para evitar a prescrição;

- Como terceiro erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, as invocadas razões de agilização do escritório são ingénuas dada a actual tecnologia e a sua velocidade de informação, atentando contra as regras da experiência, pois que, nos termos da lei, a obrigação de identificação do condutor da viatura pelas sociedades suas clientes tinha de ser observada no prazo de 15 dias, prazo que as ditas tecnologias e velocidade não encurtam, e também não resolvem o problema da própria determinação do condutor, prévia à sua comunicação ao escritório, sendo certo que não tinha só um cliente, e que também o acórdão recorrido não explica como as ditas tecnologias contornariam as dificuldades apontadas;

- Como quarto erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, choca considerar provado que a indicação do nome do arguido em vez do nome do condutor da viatura não ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado, pois qualquer pessoa percebe que a autuação de uma contra-ordenação contra um falso responsável defrauda o jus puniendi, atentando contra as regras da experiência a conclusão de que em todos os processos em causa, a pretensão punitiva do Estado foi frustrada pela falta de meios para evitar a prescrição, consubstanciando-se o erro em ter a Relação ignorado a motivação de facto do acórdão da 1ª instância, da qual consta que a concreta identificação do condutor é irrelevante, sendo apenas relevante a apresentação da defesa, sendo esta apresentação que, face à falta de funcionários, conduz à paragem dos processos e consequente prescrição, não se percebendo em que se fundou a convicção da Relação para decidir em sentido contrário ao da 1ª instância quando não reapreciou a prova, pois não o podia fazer;

- Como quinto erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, é irrelevante a conclusão de que a inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não da sua conduta, uma vez que não resulta dos factos provados que os autos de contra-ordenação falseados tenham prescrito, não se entendendo como pode a Relação dizer que do processo não consta que tenha ocorrido a prescrição quando a mesma é clara e repetidamente afirmada na decisão da 1ª instância como sendo o objectivo visado na apresentação da defesa, sempre alcançado, e decorre do quadro que integra o ponto 15 dos factos provados do acórdão da 1ª instância que as 555 contra-ordenações ocorreram entre Janeiro de 2017 e Maio de 2018, sendo que, a prescrição ocorreria no prazo máximo de 3 anos, muito antes, portanto, da dedução da acusação, que teve lugar a 29 de Junho de 2022, pelo que, ainda que a prescrição de cada concreto processo identificado nos factos provados deles não conste, até porque não constava da acusação, se a Relação considerava duvidosa e relevante a verificação da prescrição, em vez de decidir contra reo, deveria ter esclarecido a dúvida, anulando a decisão e determinando a baixa do processo, para que a 1ª instância produzisse prova sobre a prescrição, e assim, não o tendo feito, violou o princípio in dubio pro reo e a presunção de inocência;

- Como sexto erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, ainda que a prescrição não tivesse ocorrido, qualquer jurista, arguido incluído, não pode ignorar que o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto e de mera actividade, e também a idoneidade probatória do documento não exige a efectiva produção do efeito jurídico pretendido pelo agente, sendo, assim, irrelevante, que as contra-ordenações em causa tenham, ou não, prescrito, pois a argumentação é meramente jurídica, não servindo para decidir sobre a matéria de facto e justificar a existência de erro notório na apreciação da prova;

- Como sétimo erro de raciocínio da Relação, aponta o arguido a afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual, tendo a 1ª instância considerado provada a matéria do ponto 27 dos factos provados, resulta contrária às regras da experiência considerar como não provada a matéria levada às alíneas a) a d) dos factos não provados, pois que, sendo o arguido advogado que recebeu contrapartida pelos serviço prestado aos infractores condutores/empresas, tais regras apontam no sentido de que, ao actuar como actuou, visou o seu benefício e o benefício de quem o contratou, e causou prejuízo à pretensão punitiva do Estado; contudo, qualquer leitor do acórdão da 1ª instância fica a perceber que o Estado não dotou a ANSR dos meios necessários para processar as contra-ordenações rodoviárias, de modo que, apresentada defesa, são postas de lado, ficando por decidir, até à prescrição, sendo, para o efeito, irrelevante a identificação do condutor, de modo que, se em tese, a identificação do condutor sem correspondência com a realidade impede que o Estado proceda contra o verdadeiro responsável, em concreto, assim não é pois, fosse qual fosse a identificação do condutor, apresentada a defesa, dada a falta de meios, o processo não prossegue e aguarda a prescrição, nada havendo de contrário às regras da lógica e da experiência comum neste raciocínio, sendo a pretensão punitiva do Estado apenas prejudicada pela sua inoperacionalidade e não pelo arguido, que não tem culpa das falhas do sistema.

Vejamos, então.

2. Como norma de carácter geral relativa aos fundamentos do recurso, dispõe o art. 410º, nº 1 do C. Processo Penal que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida. Assim, o recurso pode ter por fundamento quaisquer questões, de natureza adjectiva ou substantiva, que não sejam excluídas por lei e não se encontrem definitivamente resolvidas.

Porém, o recurso pode ter como fundamentos, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, i) a existência de vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – desde que eles resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (nº 2 do art. 410º), ou ii) a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

É sabido que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal com competência tendencialmente exclusiva em matéria de direito, o que faz do recurso para ele interposto um recurso de revista ampliada ou alargada aos vícios decisórios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, Reimpressão, Almedina, pág. 211 e António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo V, 2024, Almedina, pág. 392).

O art. 432º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça», estabelece, na parte em que agora releva:

1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

(…).

Por sua vez, dispõe o art. 434º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Poderes de cognição» que, [o] recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432º.

Assim, no regime vigente (decorrente das alterações ao C. Processo Penal, introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro), o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos casos subsumíveis à previsão das alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, a existência dos vícios decisórios [nos exactos termos em que o nº 2 do art. 410º do mesmo código admite o seu conhecimento] ou a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada [nº 3 do art. 410º].

Por outro lado, a não referência na alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, quanto a visar o recurso nela previsto, exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo código, impõe a conclusão de que foi propósito do legislador excluir como fundamento dos recursos subsumíveis à sua previsão [os interpostos das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pela relações, em recurso, nos termos do art. 400º, ainda do mesmo código], o conhecimento dos vícios decisórios. Portanto, nos recursos previstos na alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, o recorrente não pode invocar, como fundamento do recurso, a existência, no acórdão recorrido, de vícios decisórios, o que, em todo o caso, não impede o seu conhecimento oficioso (António Gama, op. cit., pág. 395-396).

Trata-se- aliás, do entendimento consolidado deste Supremo Tribunal, no sentido de que, no regime em vigor, os vícios decisórios e as nulidades previstos no art. 410º, nºs 2 e 3 do C. Processo Penal, só constituem fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos previstos na alínea a) – recurso de decisão da relação proferido em 1ª instância – e alínea c) – recurso per saltum de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal colectivo – do nº 1 do art. 432º do mesmo código, não sendo pois, nos termos da alínea b) do mesmo nº 1 – recurso de decisão que não seja irrecorrível proferida pela relação, em recurso, nos termos do art. 400º do mesmo compêndio legal – admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do referido art. 410º, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios decisórios, quando a correcta decisão de direito a proferir possa vir a ser afectada pela sua subsistência (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt).

In casu, o Juízo Central Criminal de... do Tribunal Judicial da Comarca de ... absolveu o arguido da prática dos crimes de falsificação ou contrafacção de documento e de quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsas declarações, que lhe eram imputados na acusação, e condenou-o, pela prática de um crime de falsa declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do C. Penal, na pena de 320 dias de multa à taxa diária de € 40.

Por seu turno, em recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação de Coimbra, depois de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1ª instância, com fundamento na existência de erro notório na apreciação da prova, revogando o acórdão recorrido, condenou o arguido pela prática de quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 26º, 255º, a) e 256º, nº 1, d) e e), todos do C. Penal, em concurso aparente com quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do C. Penal, na pena de 14 (catorze) meses de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, condicionada à entrega da quantia de € 30000 (trinta mil euros) à ACA-M – Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, no prazo de seis meses a contar do trânsito da decisão, dela devendo fazer prova nos autos.

Como se vê, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi proferido em recurso e é inovatório, na parte em que, revertendo a decretada absolvição da 1ª instância quanto aos crimes de falsificação ou contrafacção de documento, condenou o arguido pela prática de quinhentos e cinquenta e quatro crimes falsificação ou contrafacção de documento, na pena de 14 (catorze) meses de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período.

Não se questiona da recorribilidade do acórdão da Relação para este Supremo Tribunal, atento o disposto na parte final da alínea e) do nº 1 do art. 400º do C. Processo Penal que, como é sabido, veio consagrar a jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de assistir aos arguidos o direito a recorrer, pelo menos, uma vez, das decisões condenatórias, após decisão absolutória da 1ª instância (acórdãos nº 31/2020, de 16 de Janeiro e nº 595/2018, de 13 de Novembro), conjugada com o disposto na alínea b) do nº 1 do art. 432º do mesmo código.

O arguido, no recurso interposto para este Supremo Tribunal sindica pretende, quer a forma como a Relação indagou e concluiu pela existência do vício de erro notório na apreciação da prova, quer o modo como o supriu. Questionando, pois, o arguido a forma como uma determinada norma jurídica (a da alínea c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal) foi interpretada e aplicada pela Relação, estamos perante uma questão de direito, ainda que versando ou não a existência de um vício da decisão.

Aqui chegados, atentemos, com a brevidade que se impõe, no vício em causa.

3. Já sabemos que, nos termos do art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal, o recurso pode ter por fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou o erro notório na apreciação da prova.

Os três vícios enunciados consubstanciam erros de lógica jurídica da decisão recorrida e não, do julgamento, só sendo admissível a sua demonstração através do respectivo texto, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Vale isto dizer que, para a referida demonstração, não é legalmente possível lançar mão de quaisquer elementos alheios à decisão, ainda que constantes do processo, v.g., o registo gravado de prova por declarações e documentos.

As regras da experiência são definições de juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 30), são as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 324), são as regras extraídas de casos semelhantes ou seja, a inferência que permite a afirmar que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos (Santos Cabral, Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade, Julgar, Ano 17, 2012, Edição da ASJP, pág. 24), são regras gerais de carácter científico com validade universal ou afirmações do princípio da normalidade, id quod plerumque accidit, segundo o qual, perante a ocorrência ‘normal’ de um facto determinado, se admitem produzidos igualmente todos os factos que o costumam acompanhar (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª Edição, 2017, pág. 88).

Ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova – alínea c), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal – quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo ou, dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81).

4. O Ministério Público, na acusação que deduziu contra o arguido, imputou-lhe a prática, em autoria, de quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 26º, 255º, a) e 256º, nº 1, d) e e), todos do C. Penal, em concurso aparente com quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A do C. Penal.

No que respeita aos factos integradores do tipo subjectivo dos crimes em causa, do despacho acusatório consta a seguinte factualidade:

“(…).

22. O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar falsamente dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor) enviados pelas autoridades públicas, factos esses que originaram a elaboração de autos de contraordenação, sendo, por isso, juridicamente relevantes.

23. Sabia, o arguido, que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial) e que ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infractor, ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado, uma vez que, os autos de contraordenação seriam autuados em nome diverso do real infractor.

24. Com esta sua actuação visava, o arguido, obter para si um benefício ilegítimo, uma vez que os infractores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais em causa, criando, assim, junto da comunidade empresarial uma imagem de eficácia na tramitação daqueles autos, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio.

25. Mais visava, o arguido, obter um benefício ilegítimo para terceiros, os infractores, ao assegurar que, e apesar da sua actuação ilícita, não haveria consequências sancionatórias para os mesmos, seus clientes.

26. O arguido agiu, em todas as circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, com intenção de obter para si e para terceiros benefícios ilegítimos, sabendo que lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infractores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

27. Sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

(…)”.

No acórdão do Juízo Central Criminal de ...– Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., de 16 de Fevereiro de 2023, foram considerados provados os seguintes factos integradores do tipo subjectivo dos crimes em causa:

“(…).

16. O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor), enviados pelas autoridades públicas, factos que originaram a elaboração de autos de contraordenação em que os verdadeiros infratores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais.

17. O arguido tem uma imagem de eficácia na tramitação de autos de contraordenação, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio junto da comunidade empresarial.

18. Sabia o arguido que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial).

19. O arguido também sabia que a ANSR não dispunha de funcionários suficientes para a tramitação de cerca de novecentos mil a um milhão de processos por ano.

20. O arguido sabia ainda que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional, bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

21. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que, qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

22. Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome para agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa.

23. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional.

24. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.

25. Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respetiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição.

26. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.

27. O arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

(…)”.

E foram considerados não provados os seguintes factos relativos ao tipo subjectivo dos crimes em causa:

“(…).

b) Com esta atuação visava o arguido obter para si um beneficio ilegítimo.

c) Mais visava o arguido obter um beneficio ilegítimo para terceiro.

(…)”.

A 1ª instância considerou também não provada a seguinte factualidade:

“(…).

a) Ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infrator, o arguido ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado.

d) O arguido lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infratores ao código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

(…)”.

Da leitura da motivação de facto do acórdão da 1ª instância resulta, em síntese, que a convicção alcançada pelo tribunal colectivo teve por suporte os seguintes elementos:

- O arguido admitiu a veracidade dos factos objectivos praticados – pontos 1 a 16 – aliás, confirmados pela prova documental existente nos autos;

- O arguido negou a intenção, ao actuar como actuou, de obter um benefício ilegítimo, por ser advogado há mais de uma dezena de anos, especialista em direito das contra-ordenações com uma taxa de sucesso de 90%, mas que, nas contra-ordenações rodoviárias com identificação do infractor, atinge os 100% e, perante entrada anual, em 2016, de cerca de trezentas contra-ordenações, aumentou os meios humanos do escritório e, nos processos em que as sociedades clientes tinham que identificar os condutores, deparando-se com dificuldades em obter os elementos, face ao prazo legal de 15 dias para se proceder à identificação, decidiu que, em todos esses processos, iria colocar os seus próprios dados como sendo o infractor, evitando a necessidade de contactar os clientes para a identificação dos autores das infracções; por outro lado, o arguido afirmou desconhecer a alteração legislativa ocorrida em 2013, que veio tipificar a prestação de falsas declarações nestas situações;

- A testemunha GG, jurista e directora do serviço de contra-ordenações da ANSR afirmou que, na data dos factos, a autoridade administrativa não possuía meio humanos para tramitar quase um milhão de contra-ordenações anuais, e que os processos, invariavelmente, prescreviam, quando existia defesa com meios de prova, por falta de pessoal para a analisar e decidir, sendo que, a indicação, ou não, na documentação, do verdadeiro infractor, em nada alterava a tramitação dos processos;

- As testemunhas EE e FF, colaboradoras no escritório do arguido, afirmaram que, para tornar mais célere os processos, foi decidido por este, a partir de 2016, que na documentação para identificação do condutor seria colocado o seu nome e os seus elementos de identificação.

Conjugando estes elementos de prova, o tribunal colectivo, dando credibilidade à versão apresentada pelo arguido – excepção feita ao alegado desconhecimento sobre a proibição de prestação de falsas declarações – por a considerar a mais consentânea com as regras da experiência comum, dado ser especialista em contra-ordenações, conhecedor da falta de meios da ANSR para tramitar atempadamente as defesas a apresentar e sabedor de que, independentemente da veracidade da identificação do condutor constante dos documentos, os processos prescreveriam, só assim se justificando a sua actuação, nenhum sentido fazendo a indicação do seu nomese existisse uma possibilidade mínima de ser condenado, e não se podendo dizer que assim actuou para não causar mais incómodos aos clientes e incrementar o seu número, pois a sua taxa de sucesso processual sempre a tal conduziria, sem maior justificação, considerou assentes os pontos 17 a 27 dos factos provados e não assentes os pontos a) a d) dos factos não provados.

O acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Outubro de 2023, modificou a decisão de facto da 1ª instância, considerando como provados os seguintes factos relativos ao tipo subjectivo dos crimes em causa:

“(…).

O arguido prestou e/ou determinou a prestação de informações que bem sabia não serem verdadeiras, de modo a fazer constar falsamente dos mencionados documentos (documentos identificação de condutor) enviados pelas autoridades públicas, factos esses que originaram a elaboração de autos de contraordenação, sendo, por isso, juridicamente relevantes.

Sabia, o arguido, que não era o condutor dos veículos nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contraordenação elaborados em nome dos seus clientes (proprietários das viaturas alvo de fiscalização não presencial) e que ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infractor, ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado, uma vez que, os autos de contraordenação seriam autuados em nome diverso do real infractor.

Com esta sua actuação visava, o arguido, obter para si um benefício - que sabia ser ilegítimo -, uma vez que os infractores não mais seriam contactados no âmbito dos processos contraordenacionais em causa, criando, assim, junto da comunidade empresarial uma imagem de eficácia na tramitação daqueles autos, granjeando deste modo numerosa clientela e negócio.

Mais visava, o arguido, obter um benefício - que sabia ser ilegítimo para terceiros, os infractores, ao assegurar que, e apesar da sua actuação ilícita, não haveria consequências sancionatórias para os mesmos, seus clientes.

O arguido agiu, em todas as circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, com intenção de obter para si e para terceiros benefícios ilegítimos, sabendo que lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos, nomeadamente, tendentes a sancionar legalmente os infractores ao Código da Estrada, e bem assim a autoridade pública inerente a tal punição.

Sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

(…)”.

Ainda na mesma modificação da decisão de facto, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou como não provados os seguintes:

“(…).

20. O arguido sabia ainda que a falta de meios da ANSR levaria à prescrição do procedimento contraordenacional, bastando, para tanto, a apresentação de defesa e que, qualquer que fosse o nome do condutor comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

21. O arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do respetivo veículo, agiu convicto de que, qualquer que fosse o nome comunicado à ANSR, o processo sempre atingiria a prescrição.

22. Nessa convicção, o arguido decidiu indicar o seu nome para agilizar o expediente do escritório e evitar mais contactos com os clientes em causa.

23. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada atrasou a tramitação do processo contraordenacional.

24. A indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado.

25. Em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respetiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição.

26. A inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.

(…)”.

Em suma, a Relação fez ingressar nos factos provados, ipsis verbis, os artigos 22 a 27 da acusação [considerados não provados, no acórdão da 1ª instância] e removeu para os factos não provados, os pontos 20 a 26 dos factos provados do acórdão da 1ª instância [que por esta haviam sido aditados à factualidade provada, mediante credibilização da versão do arguido, pelas razões sobreditas].

Da leitura da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ora em recurso, resulta, em síntese, que a, nele, afirmada existência do vício de erro notório na apreciação da prova foi suportado nos seguintes elementos:

- A qualidade de advogado do arguido impõe que não tenha posto de parte a possibilidade de a ANSR, em qualquer momento, alterar o modo de encarar a tramitação dos processos de contra-ordenação rodoviária com defesa apresentada, v.g., passando a tratar, de imediato, os processos acabados de entrar no serviço, pois se assim não fosse, isto é, estivesse o arguido absolutamente convicto de que todos os processos em que teve intervenção prescreveriam, e não teria neles colocado os seus elementos de identificação, e muito menos, com as modificações do [seu] nome, apresentadas;

- As invocadas razões, pelo arguido, de agilização do escritório são carecidas de fundamento, atenta a tecnologia actual;

- Considerar provado que, a indicação do nome do arguido, em vez do nome do condutor do veículo, em nada ludibriou nem cerceou a pretensão punitiva do Estado, é inaceitável e atentatório das regras da experiência, pois qualquer cidadão entende que a elaboração de um auto de contra-ordenação contra quem não é responsável pela sua prática, defrauda a pretensão punitiva do Estado, do mesmo modo, atenta contra as referidas regras, a provada conclusão de que, em todos os processos acima indicados a pretensão punitiva do Estado foi cerceada pela falta de meios da ANSR para a desenvolver a respectiva tramitação processual em tempo de evitar a prescrição;

- É irrelevante a provada conclusão de que, a inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo, por ser a falsificação ou contrafacção de documento um crime de perigo abstracto e de mera actividade, não exigindo a verificação de qualquer resultado, nem a produção do efeito visado pelo agente, acrescendo não constar dos factos provados que qualquer dos processos de contra-ordenação que integram o objecto dos autos tenha sido considerado prescrito;

- Deste modo, tendo sido considerada provada a matéria do ponto 27 dos factos provados do acórdão da 1ª instância [o arguido sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal], atenta contra as regras da experiência comum, ter sido considerada não provada a matéria dos pontos a) a d) do mesmo acórdão, pois aquelas regras, à pergunta sobre a razão de o arguido, enquanto advogado especialista em contra-ordenações e que é remunerado pelos serviços que presta, ter optado por indicar o seu nome, como autor daquelas, apontam para o seu benefício e para o benefício dos seus clientes, bem como para o prejuízo da pretensão punitiva do Estado.

A partir daqui concluiu o Tribunal da Relação de Coimbra que a 1ª instância incorreu em erro notório na apreciação da prova, e procedeu à modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos que, supra, se deixaram expostos.

Aqui chegados.

5. Como ponto prévio, cumpre notar que não se questiona a legitimidade de qualquer cidadão a quem seja imputada a prática de uma contra-ordenação, rodoviária ou não, de apresentar a sua defesa perante a autoridade administrativa, nos termos previstos na lei, pois que se trata do simples exercício de direito constitucionalmente garantido (art. 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa).

Na verdade, a nudez real, na sugestiva imagem usada pelo arguido na motivação do recurso, não pode sobrepor-se nem limitar os direitos dos administrados pois, como é evidente, compete exclusivamente ao Estado dotar-se dos meios necessários para que a tramitação processual, in casu, de contra-ordenações rodoviárias, decorra com a normalidade necessária, de modo a que a prescrição do procedimento só excepcionalmente se verifique.

Quanto ao mais.

Já dissemos que a dissensão entre a 1ª instância e a Relação de Coimbra reside, essencialmente, na prova, ou ausência dela, dos factos relativos ao tipo subjectivo dos crimes que integram o objecto dos autos [na vertente, digamos assim, da falsificação ou contrafacção de documento], portanto, no que respeita ao dolo.

O dolo, entendido, brevitatis causa, como o conhecimento e vontade de praticar o facto [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal] é sempre um facto da vida interior do agente portanto, um facto subjectivo. Enquanto facto subjectivo, não é apreensível pelos sentidos de terceiro e por isso, a sua demonstração probatória, quando não exista confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo só pode ser feita por inferência, devendo resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em especial, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum. Com efeito, o julgador pode comprovar a existência do dolo mediante presunções naturais ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às máximas da vida e regras da experiência (Figueiredo Dias, Ónus de Alegar e Provar em Processo Penal?, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 105º, pág. 142).

Pois bem.

i) O arguido inicia a sua argumentação, dizendo que, tivesse a Relação lido a fundamentação da decisão de facto da 1ª instância, reapreciado a prova e ouvido as gravações, melhor teria entendido a realidade e evitado incorrer em erros crassos e notórios de argumentação.

Que a Relação leu, como, aliás, se lhe impunha, a motivação de facto do acórdão do Juízo Central Criminal de ..., é algo que resulta inequivocamente dos argumentos que avançou para decidir sobre a existência do declarado vício de erro notório na apreciação da prova.

Que a Relação não ouviu as gravações e não reapreciou a prova é a consequência necessária e legal, dos limites de conhecimento dos vícios decisórios e da decidida impossibilidade legal de conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo recorrente Ministério Público [como o arguido, mais adiante, vem a reconhecer].

ii) Com ressalva do respeito devido, carece de fundamento o primeiro erro de raciocínio apontado pelo arguido à Relação. Com efeito, a circunstância de a testemunha GG, como consta da motivação de facto do acórdão da 1ª instância, ter dito que «à data dos factos, não tinham funcionários suficientes para tramitar as cerca de novecentas mil a um milhão de processos de contraordenações e que os mesmos invariavelmente prescreviam sempre que existia defesa com diligências de prova» e ainda que, «o facto de se colocar um nome que não o do verdadeiro condutor em nada alterava a tramitação dos processos» pois, «a apresentação da defesa e a falta de recursos humanos para analisar e decidir a defesa é que levava à prescrição dos procedimentos contraordenacionais», não é impeditiva de a ANSR, não podendo deixar de estar ciente do grave problema com que se deparava, não pudesse vir a optar por uma outra solução tendente a, se não a resolver, pelo menos, a atenuar, as graves consequências decorrentes da falta de meios para tramitar as contra-ordenações.

E é precisamente esta possibilidade de alteração na abordagem do problema, que a Relação equaciona, a qual, por remota que fosse, não deixaria de ser representada pelo arguido. Note-se, aliás, que do transcrito segmento da motivação de facto, relativo ao depoimento da testemunha, não resulta evidente que fosse opção da ANSR não tramitar, sem excepção, os processos contestados, para evitar que os não contestados prescrevessem em maior número.

iii) Relativamente ao segundo erro de raciocínio apontado à Relação, entende o arguido que, se não tivesse a certeza de que os processos de contra-ordenação prescreveriam com a simples apresentação de defesa, não se teria identificado como autor das infracções, correndo o risco de ver a ser condenado em cada um dos mais de quinhentos autos, face a uma possível alteração de procedimento da ANSR para evitar a prescrição, sendo ilógica a conclusão da Relação no sentido de que, se estivesse seguro de que os processos prescreveriam, não se teria identificado como infractor.

Acontece que, aqui, a Relação, partindo da possibilidade de a ANSR modificar, a dada altura, o procedimento até então seguido, por forma a, pelo menos, diminuir o número de prescrições nos processos com oposição, formulou a questão essencial, qual seja, a de saber a razão pela qual o arguido, advogado que recebia, como seria expectável, contrapartidas monetárias pelos serviços prestados aos autores das contra-ordenações e/ou às empresas suas clientes, optou por se identificar, perante a autoridade administrativa, como autor das infracções. E respondeu à mesma, dizendo que as regras da experiência apontam no sentido de ter o arguido visado o seu benefício e o benefício dos verdadeiros infractores e/ou empresas clientes.

Que o arguido visou alcançar um benefício para os verdadeiros agentes das contra-ordenações rodoviárias cuja autoria, falsamente, assumiu, resulta evidente. Com efeito, não questionando o arguido que sabia que, ao indicar o seu nome em tais documentos, estava a prestar uma declaração falsa, agindo, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal [ponto 27 dos factos provados], é manifesto que, por um lado, constituiria uma dificuldade acrescida de efectivar a pretensão punitiva do Estado, objectivada na maior dificuldade que o Estado teria em identificar correctamente os reais infractores para os poder perseguir e punir pela prática das contra-ordenações rodoviárias ocorridas (assim se criando um prejuízo para o Estado), independentemente de estarem ou não, ou passarem a estar, reunidas as condições necessárias para, pelo menos, obviar à prescrição da maioria dos processos contestados, e por outro, que conferiu aos reais autores das contra-ordenações rodoviárias o benefício, necessariamente ilegítimo, porque contrário ao direito, de não poderem ser perseguidos nem sancionados pela prática da infracção cometida, independentemente da prescrição ou não do procedimento.

E com o que fica dito se afasta também o quarto erro de raciocínio apontado à Relação.

iv) Já o benefício próprio visado pelo arguido passa por outros caminhos, que convocam o terceiro erro de raciocínio apontado à Relação consistente na descredibilização das razões de agilização do funcionamento do seu escritório de advocacia, face à actual tecnologia e à velocidade da informação, quando o que estava em causa, na invocação de tais razões, eram as dificuldades das várias empresas clientes em identificarem o condutor da infracção e fazerem a respectiva comunicação ao escritório em tempo útil, atento o prazo de 15 dias fixado na lei para a devolução dos documentos, devidamente preenchidos, à autoridade administrativa.

Cabe lembrar, a este propósito, o que a 1ª instância fez constar da motivação de facto do respectivo acórdão, no que respeita às declarações do arguido e que foi: «O arguido contestou, no entanto, que tenha atuado com intenção de obter um benefício ilegítimo, dizendo que é advogado, desde o ano de 2012, tendo-se especializado em direito das contraordenações. Explicou que neste tipo de processos tem uma taxa de sucesso de 90%, sendo que nas infrações rodoviárias em que é necessário identificar o condutor o sucesso é de 100%. No ano de 2016, recebia cerca de 200 ou 300 contraordenações no escritório, tendo de contratar advogadas para o auxiliar na tramitação destes processos. Nos processos em que as sociedades clientes tinham de identificar os condutores, deparou-se com algumas dificuldades em obter esses elementos, tendo apenas 15 dias para fazer a identificação. Mais esclareceu que tendo em conta o elevado número de processos de contraordenação que tinha no seu escritório, a dificuldade em obter a identificação dos condutores, sabendo que tinha uma taxa de sucesso de 100% nos processos de contraordenações rodoviárias, devido à incapacidade da ANSR em tramitar todos os processos de contraordenações, decidiu, no final de 2016, que em todos os processos desta natureza que entrassem no seu escritório iria colocar o seu nome como sendo o condutor do veículo. Desta forma, agilizava os processos de contraordenação, não sendo necessário contactar os clientes para que identificassem os verdadeiros condutores e autores das contraordenações.».

Como se vê, a agilização do escritório apresentava duas vertentes: uma, que se prendia com a exiguidade do prazo legal concedido para que os documentos fossem devolvidos à ANSR com a identificação do condutor infractor; outra, traduzida na preocupação de não incomodar os clientes com contactos para que procedessem a tal identificação.

O arguido, como advogado com actividade, especializada, em direito contra-ordenacional, não ignorava que a lei prevê as consequências para o não cumprimento atempado da identificação do condutor infractor (art. 171º, nºs 5 e 6 do C. da Estrada), e que é a de o processo correr contra a pessoa colectiva titular do documento de identificação do veículo. Sucede que as consequências da ultrapassagem do prazo em causa não seriam convenientes para a estratégia gizada pelo arguido. Em primeiro lugar porque, a distinta concreta situação – responsabilização da pessoa colectiva pela prática da infracção – poderia quebrar a questionável rotina da ANSR, tornando menos provável a esperada prescrição do procedimento. Depois, porque a apresentação de uma defesa, neste condicionalismo, não poderia seguir os moldes de defesa apresentada em processos com condutor identificado, o que aumentaria também a referida possibilidade de quebra da rotina seguida com as apontadas consequências. E por último, a sua previsível consequência legal – a apreensão do veículo pelo período que caberia à inibição de conduzir (art. 147º, nº 3 do C. da Estrada) – que poderia pôr em causa a acreditada eficácia do arguido na ‘resolução’ deste tipo de problemas jurídicos.

Apontando tudo isto no sentido de o arguido ver afectada a sua carteira de clientes, quer presente, quer futura, percebe-se a razão de ter indicado como motivo da opção tomada, de fazer constar dos documentos uma falsa identificação dos verdadeiros condutores, assumindo-a, em nome próprio, contra a realidade dos factos: obstar às consequências desagradáveis para a estratégia traçada, correndo, embora, um risco, em todo o caso, calculado, face à notória insuficiência de meios da ANSR para processar, em tempo minimamente aceitável, os processos de contra-ordenação contestados, de poder ser descoberta a sua estratégia, mantendo e incrementando as fontes de rendimento do seu escritório de advocacia.

É evidente que o exercício da advocacia, enquanto actividade essencial ao bom funcionamento do sistema de justiça, não pode, na sua totalidade, ser pro bono. A obtenção de rendimentos com tal exercício e, portanto, o lucro, são o fim natural do mesmo.

Porém, quando para lucrar com esta actividade, o advogado traça estratégias de procedimento que, em determinados aspectos, essenciais ou não para atingir o resultado pretendido, são violadores da lei, o benefício pretendido e assim alcançado é ilegítimo.

Ora, é precisamente isto o que a Relação afirma quando, de modo breve, diz que, claramente as regras da experiência indicam que o arguido com a sua actuação visou o seu benefício, o benefício dos terceiros/infractores que o contrataram e causou um prejuízo incalculável na pretensão punitiva do Estado.

v) Relativamente ao quinto erro de raciocínio apontado à Relação, face ao que fica dito, resulta, em nosso entender, ser acertada a afirmada irrelevância da matéria de facto fixada pela 1ª instância segundo a qual, a inexistência de consequências sancionatórias resultou da ineficácia da ANSR e não do facto de o arguido indicar o seu nome em vez do nome da pessoa que conduzia o veículo respetivo.

Para que não subsistam dúvidas, esclarece-se que, tal irrelevância nada tem a ver com a circunstância de constar ou não dos factos provados a prescrição nos procedimentos com informações falseadas pelo arguido, dos autos de contraordenação. Aliás, como bem diz o arguido, se a prescrição em tais processos era, de alguma forma, relevante, podia e devia a Relação ter desenvolvido os esforços processuais necessários para a sua demonstração.

Deste modo, sempre com ressalva do respeito devido, carece de fundamento a invocada violação do princípio in dubio pro reo e do principio da presunção de inocência, com o afirmação de ter a Relação decidido contra o arguido, invocando a dúvida quanto à verificação da prescrição.

vi) Relativamente ao sexto erro de raciocínio apontado à Relação, a qualificação da falsificação ou contrafacção de documento, como crime de perigo abstracto e como crime de mera actividade não releva para efeitos de fixação da matéria de facto, em sede da análise do vício decisório de que cuidamos, pelo que assiste, neste aspecto, razão ao arguido, ainda que não existam consequências a extrair.

vii) Relativamente ao sétimo erro de raciocínio apontado à Relação, nada mais há a acrescentar, para além do que antecede, designadamente, para além do que se deixou dito, em iii) e iv) que antecedem.

6. Em conclusão, não se vê que o Tribunal da Relação de Coimbra tenha interpretado e aplicado de modo incorrecto a norma do art. 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal, na medida em que se ateve apenas ao texto do acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal da Comarca de ..., conjugado com as regras da experiência comum, nada havendo, pois, a censurar ao acórdão recorrido quanto à referida interpretação e aplicação, bem como, à consequente modificação da decisão da matéria de facto.

Assim, deve ser mantida a matéria de facto tal como foi fixada pelo acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Coimbra.

*

Da qualificação jurídica dos factos

7. Qualificar jurídico-penalmente um determinado facto – o pedaço de vida, delimitado no espaço e no tempo, imputado ao agente, portanto, o objecto do processo – é subsumir um determinado acontecimento na descrição abstracta de uma preposição penal, isto é, verificar se aquele comportamento concreto daquele agente, corresponde ou não, ao comportamento abstractamente descrito numa dada lei penal, como constituindo um crime (Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2ª Edição, 1995, Almedina, pág. 100).

No que concerne a esta ampla questão, o arguido, quer no corpo da motivação, quer nas conclusões formuladas, abordou as várias hipóteses em função dos factos provados que viessem a ter-se por verificados.

Assim:

- Tendo como pressuposto a matéria de facto provada tal como foi fixada pela 1ª instância, i) expressou o entendimento – conclusões 98ª a 113ª – de que não se verifica, nem um crime único, nem quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, d) e e), do C. Penal, pelo não preenchimento do respectivo tipo subjectivo, designadamente, do dolo específico, consubstanciado na intenção de obtenção de benefício ilegítimo, para o agente ou para terceiro [tal como havia sido decidido pela 1ª instância], ii) e expressou o entendimento – conclusões 114ª a 130ª – de que, estando provada a existência de uma unidade resolutiva criminosa quando decidiu, a partir de determinada altura, inscrever os seus dados de identificação nos documentos de identificação do condutor, a serem enviados à autoridade administrativa, está verificado apenas um único crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A do C. Penal [tal como havia decidido a 1ª instância] e, iii) expressou o entendimento – conclusões 131ª a 135ª – de que, independentemente de se entender que praticou um único crime de falsificação ou contrafacção de documento ou um único crime de falsas declarações, deve o seu sancionamento ser feito pela aplicação de uma pena de multa, com recuperação da medida concreta da pena fixada pela 1ª instância, por ser suficiente para assegurar as exigências de prevenção;

- Tendo como pressuposto a matéria de facto provada tal como foi fixada pela Relação de Coimbra, i) expressou o entendimento – conclusões 137ª a 145ª – de que continua a ser manifesto que formou apenas uma resolução criminosa, que passou a ser seguida e executada no escritório, pelo que, existirá apenas um crime de falsificação ou contrafacção de documento, em concurso aparente com um crime de falsas declarações, ii) expressou o entendimento – conclusões 146ª a 148ª – de que, a não se entender existir um único crime, estará então verificado um crime de falsificação ou contrafacção de documento na forma continuada, em concurso aparente com um crime de falsas declarações na forma continuada, por estarem verificados os respectivos pressupostos e, iii), expressou o entendimento – conclusões 150ª a 172ª – de que se mostra infundada a opção pela pena privativa da liberdade feita pela Relação, atentas as exigências de prevenção requeridas pelo caso, e que, feita a opção pela pena de prisão, a sua medida concreta se mostra excessiva, pois deveria ter fixado abaixo do ponto médio da moldura penal abstracta aplicável, razão pela qual o cúmulo jurídico efectuado nunca deveria ter sido superior a um ano de prisão, suspensa na respectiva execução.

Uma vez que, pela sobreditas razões, se mantém a matéria de facto nos exactos termos em que foi fixada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, é nesta perspectiva que será analisada a questão da qualificação jurídico-penal dos factos.

a. Da unidade ou pluralidade de crimes de falsificação ou contrafacção de documento em concurso aparente com a unidade ou pluralidade de crimes de falsas declarações

i) Na acusação pública foi imputada ao arguido a prática, em concurso aparente, de quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do C. Penal.

Trata-se de um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico autonomia intencional do Estado, e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo de ilícito objectivo]

- A acção típica, i.e., que o agente declare ou ateste falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei confira efeitos jurídicos, próprios ou alheios;

[Tipo de ilícito subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal;

[Tipo de culpa]

- A realização do facto típico com culpa dolosa enquanto atitude contrária ou indiferente à violação do bem jurídico, pressuposta a consciência da ilicitude da conduta.

A matéria de facto provada permite inquestionavelmente concluir que o arguido, com a sua conduta, preencheu o tipo, objectivo e subjectivo, deste crime.

Note-se, aliás, que a 1ª instância assim o entendeu, sem que o arguido tenha contestado esta qualificação jurídica.

ii) Na acusação pública foi também imputada ao arguido a prática, em concurso aparente, de quinhentos e cinquenta e cinco crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, d) e e), ambos do C. Penal.

Como ponto prévio, cumpre dizer que não se suscitaram dúvidas nos autos quanto a integrarem os elementos documentais enviados pelo arguido para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, contendo os elementos identificadores dos supostos autores das contra-ordenações rodoviárias, o conceito de documento, ínsito no art. 255º do C. Penal.

Quanto ao mais.

Trata-se de um crime comum, de perigo abstracto, de mera actividade [quanto à alínea e) mas de resultado quanto à alínea d)], que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental e, portanto, a verdade intrínseca do documento enquanto tal (Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, obra colectiva, Parte Especial, Tomo II, 1999, Coimbra Editora, pág. 679 e seguintes e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 931 e seguintes), e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo [com referência às alíneas indicadas]:

[Tipo de ilícito objectivo]

- A acção típica, i.e., que o agente faça constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante ou o venha a usar;

[Tipo de ilícito subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal;

- A específica intenção de o agente causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa, um benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

[Tipo de culpa]

- A realização do facto típico com culpa dolosa enquanto atitude contrária ou indiferente à violação do bem jurídico, pressuposta a consciência da ilicitude da conduta.

A 1ª instância considerou que a factualidade que deu como provada preenchia o tipo objectivo do crime de falsificação ou contrafacção de documento, com referência às alíneas d) e e) do nº 1 do art. 256º do C. Penal, porque “fez constar falsamente em documentos, factos juridicamente relevantes, ou seja, indicando o seu nome e o número da sua carta de condução em documentos de identificação de condutor, quando não era ele o condutor, e utilizou-os, passando os processos de contraordenação a correr contra si.”.

Já quanto ao tipo subjectivo entendeu a 1ª instância que “no tocante ao elemento subjetivo do tipo legal de crime em estudo, para além de se exigir que o agente atue dolosamente, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal, requer-se ainda a que o agente aja com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”. Mais entendeu que o arguido, quando decidiu indicar o seu nome como sendo o condutor do veículo interveniente na contra-ordenação, agiu na convicção de que, fosse qual fosse o nome de condutor comunicado à ANSR, o processo sempre prescreveria, dada a falta de meios daquela autoridade administrativa para o tramitar em tempo útil, e por isso, passou a indicar o seu nome, para agilizar o expediente do escritório e para evitar mais contactos com os clientes, e concluiu, por restas razões, que o arguido não actuou com intenção de causar prejuízo ao Estado, nem de obter para si, nem para terceiro, um benefício ilegítimo.

Em consequência, com o entendimento de não estarem preenchidos os elementos subjectivos do crime, a 1º instância absolveu o arguido da sua prática.

Diferente foi o entendimento da Relação de Coimbra que, pelas razões sobreditas, procedeu à modificação da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, dela passando a constar a factualidade preenchedora do tipo subjectivo do crime de falsificação ou contrafacção de documento, designadamente, do seu elemento intencional, i.e., a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa, um benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

Partindo deste pressuposto de facto, concluiu a Relação de Coimbra que a factualidade provada por si considerada preenche o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de falsificação ou contrafacção de documento, com referência à alínea d) do nº 1 do art. 256º do C. Penal.

A matéria de facto fixada pela Relação de Coimbra, que não sofreu alteração pela via do presente recurso, permite efectivamente concluir pelo preenchimento do tipo, objectivo e subjectivo, do crime em análise, pois que resulta provado que o arguido, sabendo não ser o condutor dos veículos alvo de fiscalização não presencial, nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos de contra-ordenação elaborados em nome dos seus clientes, proprietários daqueles veículos, ao indicar o seu nome e título de condução nos documentos enviados para identificação do condutor infractor, ludibriava e cerceava a pretensão punitiva do Estado, visando obter para si e para terceiros benefícios que sabia ilegítimos, pois, por um lado, os infractores não mais seriam contactados nos processos de contra-ordenação em causa, deste modo os eximindo a qualquer consequência sancionatória, e por outro, criando junto da comunidade empresarial uma imagem de eficácia, com granjeio de numerosa clientela, tendo em todas as circunstâncias agido voluntária e conscientemente, ciente de que lesava a autenticidade e genuinidade dos documentos e que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Em suma, o arguido, com a sua conduta preencheu o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), do C. Penal.

iii) Aqui chegados, temos que o arguido, com a sua conduta, preencheu o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), do C. Penal, e o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do mesmo código.

A acusação pública imputava ao arguido a prática dos dois crimes referidos em concurso aparente. A questão não se colocou no acórdão da 1ª instância porque a decisão foi no sentido, como sabemos, da absolvição do arguido, por atipicidade da conduta, relativamente ao crime de falsificação ou contrafacção de documento.

A Relação, por seu turno, entendeu que entre os dois tipos de ilícito existe um concurso aparente portanto, um concurso de normas, resultante de uma relação de consumpção entre o crime de falsificação ou contrafacção de documento e o crime de falsas declarações, devendo o arguido ser punido pelo crime com a moldura penal mais grave.

É também nosso entendimento existir um concurso aparente entre o crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pela alínea d) do nº 1 do art. 256º do C. Penal, e o crime de falsas declarações, na modalidade de declaração escrita.

Consequentemente, deve o arguido ser punido pelo crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto no art. 256º, nº 1, d) do C. Penal.

iv) Decidido que o arguido deve ser punido pelo crime de falsificação ou contrafacção de documento, vejamos agora se a sua conduta corresponde a uma unidade ou a uma pluralidade de crimes.

A Relação de Coimbra entendeu que a conduta do arguido configura um concurso efectivo de crimes.

Já o arguido defende ser manifesto que decidiu uma única vez, para esse momento e para futuro, passar a fazer constar os seus elementos de identificação, dos documentos para identificação de condutores que existissem ou viessem a existir no seu escritório, o que fez para solucionar a dificuldade prática das suas clientes pessoas colectivas identificarem o condutor infractor, e não, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, que em cada momento, renovou o propósito de violar a lei, pois tal não é consentido pela sequência e concentração temporal dos factos provados, citando doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores.

Vejamos.

No concurso de crimes podemos distinguir entre o concurso legal, aparente ou impuro e o concurso efectivo, verdadeiro ou puro. No primeiro, conforme já referido, supra, está apenas em causa um concurso de normas.

Atentemos, pois, no concurso efectivo, verdadeiro ou puro, que é o que releva para a questão a decidir.

No concurso efectivo, verdadeiro ou puro as diversas normas abstractamente preenchidas pela conduta do agente e, por isso, aplicáveis, concorrem, paralelamente, na aplicação ao caso concreto (sendo aquele punido nos termos prescritos no art. 77º, nºs 1 e 2 do C. Penal).

Aqui, podemos distinguir entre concurso ideal, quando através de uma só conduta são preenchidos diversos tipos (concurso ideal heterogéneo), ou se preenche várias vezes o mesmo tipo (concurso ideal homogéneo), e concurso real, quando através de uma pluralidade de condutas é preenchida uma pluralidade de tipos ou várias vezes o mesmo tipo.

Estabelece o nº 1 do art. 30º do C. Penal que, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente. Assim, quando o agente, com a sua conduta, preenche mais do que um tipo de crime, ou preenche o mesmo tipo de crime várias vezes, estamos perante um concurso de crimes, resultando evidente que a norma transcrita disciplina o concurso efectivo de crimes, equiparando o concurso ideal ao concurso real.

O arguido lançou mão da posição de Eduardo Correia segundo a qual, brevitatis causa, se a conduta do agente preenche vários tipos de ilícito, necessariamente foram negados diversos valores jurídico-penais, com a consequente verificação de uma pluralidade de infracções, do mesmo modo que, se apenas um tipo de ilícito foi preenchido, a conduta do agente apenas negou um valor jurídico-penal e apenas se verifica uma única infracção, sendo certo que, porque a conduta, para além de típica e ilícita, tem também de ser culposa, haverá que recorrer ao critério da pluralidade de juízos de censura [a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes], determinando-se a existência de uma pluralidade de juízos de censura, pela verificação de uma pluralidade de resoluções de realização do projecto criminoso, aferida fundamentalmente pela conexão temporal que liga as diversas acções integradoras da conduta, no sentido de dela resultar que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação (Direito Criminal, II, Reimpressão, 1971, Livraria Almedina, pág. 201 e seguintes).

Esta posição vem sendo refutada por Figueiredo Dias que defende o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global. Para este Mestre, o “crime” por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera “acção”, nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside – numa palavra que vimos usando e progressivamente concretizando ao longo de toda esta exposição sistemática – no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes ((Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 988 e seguintes). Assim, a pluralidade de resoluções é compatível com a unidade de sentido de ilícito do comportamento total, independentemente de estarem ou não em causa, bens eminentemente pessoais, do mesmo modo, que a unidade de resolução é compatível com a pluralidade de sentidos autónomos de ilícito dentro do comportamento global, ainda que não exista descontinuidade temporal entre os vários actos praticados, independentemente da natureza eminentemente pessoal dos bens em causa (op. cit., pág. 1007 e seguintes).

O acórdão recorrido, partindo da lição de Eduardo Correia, segundo a qual a existência de uma unidade resolutiva exige uma conexão temporal que, em regra e de acordo com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente levou a efeito toda a actividade , sem ter de renovar o respectivo processo de motivação, ponderou que “o comportamento do arguido evidencia uma persistente, e em cada momento renovada, vontade de violar a lei e em que, para cada um dos actos praticados, formulou uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as demais, determinantes da prática dos outros actos, naquelas 554 diferentes ocasiões” tendo sido “ele que criou, por sua exclusiva iniciativa, em todas as diferentes circunstâncias de tempo, as condições favoráveis e adequadas à prática dos diferentes actos integradores dos crimes em causa”, pelo que, “analisados os factos provados, conclui-se que a múltipla actuação do arguido em todos os documentos apenas tem como constante a indicação do seu nome (com variantes) e da sua carta de condução (…), nem os ditos documentos são complementares ou encadeados, nem se destinam a um fim comum, sendo diversos os sujeitos, as contra-ordenações, os veículos (ligeiros ou pesados) e sobretudo diversas as relações jurídicas no âmbito das contra-ordenações estradais, (…), existe um ‘desfasamento contextual’ entre cada um dos documentos emitidos pelo arguido, pois assinou impressos diversos porque se destinavam a processos de contra-ordenação diferentes, iniciados relativamente a sujeitos diferentes (proprietários dos veículos) em que estão em causa ilícitos do direito administrativo diversos e cometidos em contextos diversos, (…), a conduta ilícita tem a sua génese na contratação do arguido como advogado, por pessoas diferentes, ou seja, fica dependente da vontade de outrem, o terceiro que recorre aos seus serviços forenses, não há também qualquer unidade do ponto de vista da identidade dos responsáveis pelas contra-ordenações, que viram a sanção administrativa liminarmente afastada pela conduta do arguido ”, tornando-se, deste modo “incompreensível a aceitação de que a todas as acções do arguido presidiu uma única e inicial resolução criminosa, não obstante a similitude do modus operandi, o que não permite ao Tribunal cogitar que o arguido agiu como agiu em obediência a uma só resolução inicial, isto é, a um só desígnio criminoso.”.

Pois bem.

Resulta do ponto 13 dos factos provados que na contra-ordenação que aí consta sob o número de ordem 96, o proprietário da viatura interveniente foi identificado como «AA» e o condutor da viatura interveniente foi identificado como «CC», o que, conjugado com o teor do ponto 9 dos factos provados, significa que, esta contra-ordenação teve por autor o próprio arguido, daqui resultando estarem, apenas, em causa, quinhentas e cinquenta e quatro acções e, portanto, quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento.

Embora se tenha provado que o arguido, enquanto advogado em exercício da actividade profissional respectiva, no final de 2016, decidiu que na documentação, designadamente, no expediente da notificação para identificação do condutor, enviada pelos seus clientes e relativa a autos de contra-ordenação em que não foi identificado o condutor da viatura, passaria a ser inscrito o seu nome e o número da sua carta de condução, no campo destinado à identificação do condutor, documentação que, depois de preenchida nestas condições, seria enviada à autoridade administrativa, não vemos que possa aceitar-se estar verificada uma unidade de resolução criminosa que superintendeu a todo o seu comportamento, repetidamente efectivado ao longo de cerca de um ano e cinco meses [Janeiro de 2017 a Maio de 2018].

Com efeito, devendo reconhecer-se que existe uma conexão temporal estreita entre as várias condutas naturalisticamente consideradas – atendendo às datas da prática das contra-ordenações, por outras não estarem disponíveis, temos, no ano de 2017, 11 em Janeiro, 9 em Fevereiro, 12 em Março, 21 em Abril, 21 em Maio, 14 em Junho, 45 em Julho, 41 em Agosto, 42 em Setembro, 50 em Outubro, 82 em Novembro e 53 em Dezembro, e no ano de 2018, 49 em Janeiro, 32 em Fevereiro, 48 em Março, 17 em Abril e 7 em Maio –, para além do que se referiu no acórdão recorrido, designadamente, quanto a serem distintos os/as clientes do arguido e os veículos envolvidos, determinando a completa diferenciação de cada conjunto de documentação, por serem diversas as contra-ordenações, e quanto a ser cada concreta conduta praticada pelo arguido motivada pela vontade de terceiro, pela vontade de cada cliente que recorreu aos seus serviços, cumpre ponderar que, sendo o arguido advogado com escritório montado e, pelo menos, alguma prática no exercício do direito das contra-ordenações rodoviárias, necessariamente que, todos os dias, ao presenciar a entrada de vária documentação relativa a contra-ordenações rodoviárias em que a autoridade fiscalizadora não logrou identificar o condutor do veículo interveniente, independentemente da decisão inicial tomada quanto ao tratamento a dar a tais contra-ordenações, não poderia deixar de reflectir sobre o justo ou injusto da opção escolhida, portanto, de se motivar ou não, para adequar a sua conduta ao direito, e de formar nova resolução criminosa.

Se o agente toma a resolução genérica de passar parte da sua vida a praticar crimes, v.g., crimes de falsificação ou contrafacção de documento, não é razoável inferir que, por mais intensa e sólida que seja essa resolução, que todos os crimes futuros são/serão a execução de um único crime. A resolução criminosa exige sempre a representação pelo agente dos concretos actos a praticar, não sendo compatível com a formulação de um projecto que abranja de forma indistinta todos os factos criminosos a praticar em momentos futuros indeterminados, à mercê de oportunidades que eventualmente surjam, pois, como se pode ler no acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Junho de 2022 (processo nº 10/20.1PAENT.S1, in www.dgsi.pt) que vimos seguindo de perto, o que conta para a unificação da conduta criminosa do arguido, quando a mesma se desdobra em várias acções subsumíveis, cada uma delas, ao respectivo tipo legal, não é aquela primeira decisão tomada em abstracto (…), mas a decisão de cometer determinado crime em concreto, em determinadas circunstâncias que pelo arguido foram concretamente ponderadas e analisadas e lhe permitiram passar à respectiva execução.

Assim concluímos que, in casu, perante a violação pelo arguido da mesma norma típica – a do art. 256º, nº 1, d) do C. Penal – quinhentas e cinquenta e quatro vezes, ou seja, perante um comportamento global revelador de uma pluralidade de sentidos de ilícito, e não, de um sentido de ilicitude unitário, deve ser considerada a existência de uma pluralidade de infracções, portanto, de um concurso real de crimes, conforme disposto no art. 30º, nº 1 do C. Penal.

b. Do crime continuado

Pretende o arguido – conclusões 146ª a 148ª – que o concurso real de crimes de falsificação ou contrafacção de documento deve ser reconduzido à figura do crime continuado, por entender que a sua conduta se traduziu na realização plúrima do mesmo tipo de crime, executada de forma essencialmente homogénea, no quadro da mesma situação exterior, que lhe diminui consideravelmente a culpa.

Vejamos.

Já vimos que, em regra, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (nº 1 do art. 30º do C. Penal).

Porém, constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (nº 2 do mesmo artigo).

Embora configure um concurso de crimes efectivo, a lei concebe o crime continuado como um único crime, portanto, como uma unidade criminosa, uma unidade do facto normativamente construída.

Historicamente, o crime continuado surge jurisprudencialmente tratado na Alemanha no século XIX, associado à necessidade prática de os tribunais se desembaraçarem de extensas séries de crimes praticados pelo mesmo ou pelos mesmos agentes, com acrescidas dificuldades de prova relativamente a cada concreta conduta, a que se juntou a necessidade de obstar a sancionamentos porventura desproporcionados e injustos, resultantes do tratamento de tais casos como concurso efectivo de crimes (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 1027 e seguintes).

Entre nós, foi Eduardo Correia (op. cit., pág. 208 e seguintes) quem, perante acções que deveriam ser tratadas no âmbito da pluralidade de infracções, realçando que as mesmas preenchiam o mesmo tipo de crime ou diversos tipos, tutelando o mesmo bem jurídico, e embora a elas tenha presidido uma pluralidade de resoluções, entendeu que deveriam ser unificadas numa só infracção, por revelarem uma considerável diminuição da culpa do agente, elegendo como elemento essencial da continuação criminosa a existência de uma relação exógena, que de maneira considerável tenha facilitado a repetição da conduta ilícita, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comportasse de acordo com o direito. Esta posição veio a ser consagrada no C. Penal.

A existência de crime continuado, tal como ser mostra definido no nº 2 do art. 30º do C. Penal, pressupõe que entre as diversas condutas a integrar na continuação, exista uma conexão, objectiva e subjectiva, determinante da sua consideração como uma unidade de facto.

No que à conexão objectiva respeita devemos considerar:

- A existência de uma pluralidade de condutas que violem o mesmo bem jurídico ou bens jurídicos fundamentalmente idênticos; significa isto que, sendo vários os bens jurídicos atingidos, entre eles deve existir uma relação de estreita proximidade; por outro lado, serão sempre diferentes os bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal (nº 3 do artigo em referência) portanto, os tutelado pelos tipos previstos no Título I da Parte Especial do C. Penal;

- A pluralidade de condutas deve ser executada de forma essencialmente homogénea, não sendo, no entanto, exigível, em regra, proximidade espácio-temporal entre elas (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 1030 e Eduardo Correia, op. cit., pág. 211); e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior.

No que concerne à conexão subjectiva, cumpre dizer que a lei é omissa quanto ao dolo exigível para o preenchimento da figura. Figueiredo Dias entende ser compatível com a continuação criminosa quer o dolo conjunto – planeamento prévio pelo agente das diversas condutas típicas –, quer o dolo continuado – o agente planeia repetir a conduta caso a ocasião o proporcione –, quer a pluralidade de resoluções, desde que possa afirmar-se a existência de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, assim relevando a posição de Eduardo Correia, e concluindo que a unificação da conduta continuada radica na diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída (op. cit., pág. 1033).

Dito isto.

Resulta dos factos provados que o arguido actuou uma pluralidade de condutas violadoras do mesmo bem jurídico.

Também resulta dos factos provados que todas as condutas em causa foram executadas de forma essencialmente homogénea, com o mesmo modus procedendi.

Também resulta dos factos provados, quanto à conexão subjectiva, uma pluralidade de resoluções.

O que, contudo, não está presente, é a imprescindível situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, isto é, uma disposição das coisas para o facto alheia ao agente, facilitadora da repetição da conduta e tornando cada vez menos exigível um comportamento conforme ao direito.

Com efeito, o que resulta dos factos provados é que foi o arguido quem pensou e criou as condições que entendeu necessárias para obter o resultado pretendido [resultado que nada tem a ver com a prescrição do procedimento criminal das contra-ordenações em causa], ao estabelecer o procedimento a adoptar no seu escritório de advocacia, relativamente a todas e a cada uma das contra-ordenações rodoviárias em causa, pelo que, não se mostra verificada a diminuição considerável da sua culpa.

Em suma, a situação em apreço nos autos não é subsumível à figura do crime continuado.

*

Da escolha e da medida concreta das penas

7. Da escolha da pena

Alega o arguido – conclusões 149ª a 170ª – que sendo o crime de falsificação ou contrafacção de documento punível, em alternativa, com pena privativa ou pena não privativa da liberdade, apesar da preferência por esta última estabelecida no art. 70º do C. Penal, a Relação optou pela aplicação de pena de prisão, expressando o entendimento de que só esta assegura as exigências de prevenção requeridas pelo caso, atenta a gravidade dos ilícitos praticados e necessidade de repor a validade das normas violadas, posto serem sobretudo as exigências de prevenção geral que justificam a opção feita, quando a maior parte destas exigências [de prevenção geral] se prendem com a incapacidade do Estado, através da ANSR, para processar as contra-ordenações, questão cuja solução não passará pela sua punição, pois que, contrariamente ao afirmado, não iludiu as autoridades administrativas, a defesa apresentada nos processos de contra-ordenação e a subsequente prescrição do procedimento respectivo resulta da lei, não é explicada a afirmação de serem extremamente elevadas as necessidades de prevenção geral quanto ao crime em causa, também não se explica o que seja a reposição da validade de normas, mas se está em causa a violação que constitui crime, ocorre dupla valoração legalmente interdita, o seu sucesso não decorre da identificação dos condutores com os seus próprios dados, mas da apresentação da defesa e incapacidade da ANSR em tramitar os processos, o alarme público só poderia ser considerado em sede de pena única, sob pena de dupla valoração legalmente inadmissível, a sua personalidade não pode ser caracterizada em função do seu errado, mas não desculpável, convencimento de que as condutas assumidas não constituíam crime, tanto mais que a existência do processo conduziu ao abandono daquelas, anulando as exigência de prevenção especial, pelo que, a correcta e legal opção deveria ter sido a de pena não privativa da liberdade.

Vejamos.

O art. 70º do C. Penal fixa o critério de escolha da pena, estabelecendo que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A preferência da lei pela pena não privativa da liberdade pressupõe a sua aptidão para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Atentemos, pois, nestas finalidades.

Dispõe o art. 40º do C. Penal, sob a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», no seu nº 1 que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Estabelece, por sua vez, o seu nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. A medida da culpa, exprimindo a responsabilidade individual do agente pelo facto, é, assim, o fundamento ético da pena.

Concordantemente, dispõe o art. 71º, nº 1 do C. Penal que, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Deste modo, prevenção geral – protecção dos bens jurídicos – e prevenção especial – reintegração do agente na sociedade – constituem as finalidades da pena, através delas se reflectindo a necessidade comunitária da punição do caso concreto.

Em suma, podemos dizer que são finalidades exclusivamente preventivas – e não, também, finalidades de compensação da culpa – que justificam a preferência por uma pena não privativa da liberdade, designadamente, pela pena de multa (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pág. 331).

Aqui chegados.

Pelas razões supra expostas, tornou-se o arguido autor da prática, em concurso real, de quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo arts. 255.º, alínea a) e 256.º, nº 1, alínea d), ambos do C. Penal.

O crime em causa é punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Tendo o arguido sido absolvido na 1ª instância da prática destes crimes, a Relação de Coimbra, revogando a decisão, condenou-o pela prática dos mesmos optando pela aplicação de penas parcelares de prisão [catorze meses de prisão por cada um dos crimes].

O acórdão da Relação de Coimbra, em crise, fundamentou assim a escolha da pena:

O art. 70º do C.Penal, referindo-se ao critério de escolha da pena principal, sempre que o tipo legal preveja em alternativa prisão e multa, consagra a princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade “… sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

Ora no caso concreto a pena de multa não satisfaz as necessidades da prevenção pelo caso requerido, em face da conduta do arguido e atenta as necessidades de repor a validade das normas violadas.

É aconselhável e adequada a opção pela pena de prisão quanto aos crimes de falsificação de documentos, por ajustada à gravidade dos ilícitos em causa, ponderada na sua globalidade, bem como às necessidades de prevenção geral e especial.

No caso sub judice, são sobretudo razões de prevenção geral que impõem a opção pela pena privativa da liberdade.”.

Mais adiante – no segmento do acórdão recorrido que tratou da determinação da medida concreta das penas parcelares – encontram-se ainda as seguintes considerações:

- As necessidades de prevenção geral são extremamente elevadas, atentos os bens jurídicos violados e a necessidade de reposição da validade de tais normas;

- As exigências de prevenção geral são elevadas atento o alarme social que crimes como o dos autos causam na sociedade pelo que se impõe a reposição da validade das normas violadas;

- Atendendo aos próprios crimes que estão em causa e à natureza da personalidade do próprio arguido, que facilmente recorre a mecanismos de defesa não credíveis;

- Predispor-se a correr os riscos no exercício da sua profissão de advogado, inerentes à dita prática ilícita durante quase um ano e meio, só pode demonstrar uma adesão consciente e segura a uma conduta antijurídica;

- O arguido assumiu uma actuação para justificar a sua conduta, contrária às regras da normalidade social, desculpabilizando-se mediante imputação de ineficácia àquele organismo estatal, ou seja, sem consciência crítica da danosidade social da sua conduta;

- O arguido não tem antecedentes criminais.

Ensina Figueiredo Dias que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral positiva ou de reintegração [não, a negativa, de intimidação] portanto, como reforço da consciência jurídica da comunidade e do seu sentimento de segurança face à violação da norma acontecida ou, dito de outro modo, na conhecida fórmula de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida, ocupa o lugar cimeiro como fim da pena (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pág. 72 e seguintes).

É, pois, à prevenção geral positiva que o acórdão da Relação de Coimbra se refere, determinante da crítica feita pelo arguido nas conclusões 157ª e 158ª, carecida de fundamento, aliás, pois não se trata de caso de valoração duplicada da mesma circunstância.

As exigências de prevenção geral positiva relativas ao crime de falsificação ou contrafacção de documento podem ser consideradas elevadas [não, extremamente elevadas], dada a frequência com que o mesmo continua a ser praticado.

Para esta qualificação contribuiu inequivocamente a conduta do arguido, pelo número absolutamente incomum de ilícitos praticados, pelo meio concreto em que tal prática ocorreu – no desenrolar de procedimentos por contra-ordenações rodoviárias –, conjugados com a divulgação da actividade em causa e a qualidade profissional daquele, tudo requerendo uma resposta firme do sistema judicial, de modo a repor a confiança comunitária na validade da norma desrespeitada.

Por outro lado, no que às exigências de prevenção especial de ressocialização respeita, embora o arguido não tenha antecedentes criminais, se mostre inserido em termos familiares [vive com a companheira, mas não mantém relacionamento próximo com os familiares directos], profissionais [exerce, com sucesso, uma actividade profissional liberal] e sociais, e tenha uma situação económica superior à média nacional, a falta de escrúpulos que a sua excessiva conduta patenteia, aponta para uma personalidade pouco sensível aos valores tutelados pela norma violada, o que é paradoxal com a actividade profissional desenvolvida.

Concluímos, assim, que as exigências de prevenção que se fazem sentir no caso, não seriam adequada e suficientemente realizadas com a aplicação de pena de multa, nada havendo a censurar à Relação de Coimbra relativamente à opção feita pela pena de prisão.

8. Da determinação da medida concreta das penas parcelares

Alega o arguido – conclusões 153ª, 154ª, 159ª, 160ª e 171ª – que a ser escolhida pena de prisão, considerando a moldura penal de 1 mês a 3 anos de prisão, resulta excessiva a fixação da pena concreta próxima do ponto médio daquela moldura, antes devendo ser fixada, no máximo, em 3 meses de prisão, pois que, não iludiu as autoridades administrativas pelo que, errou a Relação ao qualificar como elevado o grau de ilicitude, como também errou a Relação ao entender que foi motivação da sua conduta a obtenção de mais recursos financeiros de forma ilícita e ampliação da clientela do escritório, pois o sucesso no desenrolar dos processos de contra-ordenação nada teve a ver com a identificação de cada condutor com os seus [do arguido] próprios dados de identificação, mas com a simples apresentação de contestação e a incapacidade da ANSR tramitar o processo em tempo útil, resultando os seus proventos do pagamento de honorários pela defesa licitamente apresentada.

Vejamos.

O critério legal de determinação da medida concreta da pena encontra-se previsto no art. 71º do C. Penal. Nos termos do disposto no seu nº 1, a determinação dessa medida é feita, dentro dos limites definidos pela moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, dispondo o seu nº 2 que, para este efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número.

Com Figueiredo Dias diremos que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).

A medida concreta da pena resultará então do grau de necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), mas sem ultrapassar a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o ponto mais baixo onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014, proferido no processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1 (in www.dgsi.pt), a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

Não se trata, portanto, do exercício de um poder discricionário do juiz e da sua arte de julgar, mas do uso de um critério legal, sendo a pena concreta o resultado de um procedimento juridicamente vinculado. Porém, porque estamos perante a aplicação de um critério legal sujeito a diversos parâmetros, o quantum da pena não é fixável com precisão matemática.

A Relação de Coimbra considerou ser elevado o grau de ilicitude do facto, ao assumir, enganosamente, a autoria de infracções rodoviárias, considerou ser elevado o grau de violação dos deveres impostos ao arguido dada a sua qualidade de advogado, considerou ser elevada a intensidade do dolo, pois o arguido agiu sempre com dolo directo, considerou que o arguido actuou motivado pela obtenção de recursos e angariação de clientela.

Considerou, por outro lado, a inexistência de antecedentes criminais, e a integração familiar, profissional e social do arguido e a sua estável e sólida situação económica.

Finalmente, considerou serem elevadas as exigências de prevenção geral, e quanto às exigências de prevenção especial, reflectiu sobre a conduta desculpabilizante do arguido, reveladora de falta de consciência crítica sobre o desvalor da conduta praticada.

E concluiu pela fixação da pena a aplicar a cada crime em catorze meses de prisão.

Entendemos que a Relação ponderou todas as circunstâncias, agravante e atenuantes, que havia a ponderar, face à matéria de facto provada e atento o critério legal aplicável. Apenas haverá a acrescentar que a mera pluralidade de crimes, aqui potenciada pela exorbitância do número em causa, aumenta a culpa e, portanto, o juízo de censura a exercer.

Também as exigências de prevenção se mostram correctamente analisadas, sem prejuízo de, quanto a estas, remetermos para o que se deixou dito em 7., que antecede, para evitar desnecessárias repetições.

Assim, porque as circunstâncias agravantes se sobrepõem às circunstâncias atenuantes, porque são elevadas as exigências de prevenção geral e porque, em todo o caso, não são propriamente inexistentes as exigências de prevenção especial, a pena de catorze meses de prisão, para sancionar cada um dos crimes de falsificação ou contrafacção de documento, porque situada entre o primeiro quarto e o meio da moldura penal aplicável, mostra-se proporcional, adequada e necessária, e plenamente suportada pela medida da culpa do arguido, pelo que deve ser mantida.

9. Da determinação da medida concreta da pena única

Alega o arguido – conclusão 172ª – que, no pressuposto da pretendida redução da medida das penas parcelares, não deveria a pena única ter sido fixada em 5 anos de prisão, mas em medida não superior a 1 ano de prisão, suspensa na respectiva execução. No corpo da motivação, o arguido não densificou argumentação relativamente a esta questão.

Vejamos.

O art. 77º do C. Penal, com a epígrafe «Regras da punição do concurso», dispõe no seu nº 1 que, [q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

É, assim, pressuposto da aplicação deste critério especial de determinação da medida da pena que o agente tenha praticado uma pluralidade de crimes constitutiva de um concurso efectivo – real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo –, antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, distinguindo este último aspecto os casos de concurso dos casos de reincidência. Verificado este pressuposto, o agente é condenado numa pena única.

Por seu turno, a consideração conjunta da globalidade dos factos e da personalidade do agente constitui o tópico diferenciador do critério.

O C. Penal afastou o sistema da acumulação material de penas, tendo optado pela instituição de um sistema de pena conjunta, resultante de um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 283 e seguintes e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 2013, Coimbra Editora, pág. 56 e seguintes). Com efeito, estabelece o nº 2 do art. 77º do C. Penal que, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limites mínimos a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

A determinação da medida concreta da pena única a aplicar ao concurso de crimes exige a observância de um determinado iter, que tem como pressuposto prévio a determinação da medida concreta da pena de cada crime integrante do concurso, de acordo com o critério estabelecido no art. 71º do C. Penal, passa, depois, pela fixação da moldura penal do concurso, nos termos previstos no nº 2 do art. 77º do C. Penal, a que se segue a pedra angular desta problemática, a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, dentro dos limites da respectiva moldura penal, em função do critério geral da medida da pena, fixado no art. 71º do C. Penal, e do critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final do mesmo código, nos termos do qual, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, vindo a terminar, quando disso seja caso, pela verificação dos respectivos pressupostos, com a substituição da pena única de prisão por uma pena de substituição, de acordo com o critério geral de escolha da pena, previsto no art. 70º do C. Penal.

A ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, para efeitos da medida da pena única, recomenda uma explicação breve.

Podemos dizer que o conjunto dos factos indicará a gravidade do ilícito global praticado – sendo particularmente relevante para a sua valoração a conexão que possa existir entre os factos integrantes do concurso –, enquanto a avaliação da personalidade unitária do agente permitirá saber se o conjunto dos factos integra uma tendência desvaliosa ou se, pelo contrário, é apenas uma pluriocasionalidade que não tem origem na personalidade, sendo que, só no primeiro caso, o concurso de crimes deverá ter um efeito agravante. É igualmente importante a análise do efeito previsível da pena sobre a conduta futura do agente (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 290 e seguintes). No mesmo sentido pode ver-se, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2013, processo nº 455/08.5GDPTM, in www.dgsi.pt, no qual se escreveu, além do mais, «[f]undamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade.».

O arguido foi condenado no acórdão recorrido pela prática de quinhentos e cinquenta e quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, d), ambos do C. Penal, na pena de catorze meses de prisão, para cada um. Atento o disposto no art. 77º, nº 2 do mesmo código, a moldura penal aplicável ao concurso é a de 14 meses de prisão a 25 anos de prisão.

A Relação de Coimbra, ponderando a elevada ilicitude do conjunto dos factos, face ao seu número e à circunstância de ter como única “vítima” o Estado, o contexto em que foram praticados, a personalidade do arguido que deles resulta, mas na qual não radica uma tendência criminosa, mas uma mera pluriocasionalidade, considerou adequada a pena de cinco anos de prisão [com um voto de vencido, onde foi defendida sanção mais elevada].

Pois bem.

Temos como evidente a conexão estreita existente entre todos crimes praticados, quer porque integram a mesma categoria jurídico-penal, quer porque foram executados através do mesmo modus procedendi, quer porque ocorreram num, relativamente, limitado período [cerca de um ano e cinco meses] para o número de ilícitos típicos envolvidos, quer porque comungaram o mesmo motivo de actuação, devemos considerar uma ilicitude global de grau médio/elevado.

No que à personalidade unitária do arguido respeita nada mais há a acrescentar, par além dos traços que se deixaram registados em 7., que antecede, e aqui se dão por reproduzidos, evitando desnecessárias repetições.

Acompanhamos, assim, a Relação de Coimbra, quanto a não demonstrar a conduta do arguido, até este momento, a existência de uma carreira criminosa com raízes na sua personalidade, não devendo, por isso, funcionar o concurso de crimes como agravante, na determinação da medida da pena única.

Certo é que, efectivamente, assim não funcionou. Com efeito, a pena de 5 anos de prisão, fixada pela Relação de Coimbra, situada ligeiramente acima do primeiro oitavo e bem abaixo do primeiro quarto da moldura penal abstracta, mostra-se plenamente suportada pela medida da culpa do arguido.

Por outro lado, se crítica merece, não será, seguramente, a de ser excessiva, pelo que, na perspectiva inversa, será, necessariamente, necessária e adequada.

Em suma, não merecendo censura, deve a pena única de 5 anos de prisão ser mantida, bem como, evidentemente, a sua substituição pela suspensão da respectiva execução, nos exactos termos e condições em que foi decretada no acórdão recorrido.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UCS. (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 31 de Outubro de 2024

Vasques Osório (Relator)

Albertina Pereira (1ª Adjunta)

Jorge Gonçalves (2º Adjunto)

Helena Moniz (Presidente da secção)