Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
197/20.3JAPTM-N.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES (RELATOR DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
EXCECIONAL COMPLEXIDADE
PRISÃO ILEGAL
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 08/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

II - Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o STJ apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário (ou aquele em cujo beneficio tenha sido peticionado o habeas) atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

III - Constitui jurisprudência constante do STJ o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP (alargado que seja em função dos números 2 e 3), é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, o que não corresponde a qualquer interpretação normativa inconstitucional.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

1. AA e BB, com os sinais dos autos, na situação de prisão preventiva, vieram, através de advogado (mandatário), apresentar petição de habeas corpus, nos termos e com os fundamentos que se transcrevem:

«1º- Em sede de interrogatório judicial, no pretérito dia 24/06/2023, foi determinada aos Arguidos a aplicação da medida de coação de prisão preventiva prevista no artigo 202º do C.P.P., por se considerar existirem fortes indícios dos mesmos terem praticado, em autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1, e 24º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B do mesmo diploma legal.

2º - Em 23/10/2023, o Senhor JIC decretou a excecional complexidade dos presentes autos.

3º - Os Arguidos são cidadãos de nacionalidade Alemã e Ucraniana, falando Alemão e Ucraniano.

4º - Os Arguidos não dominam a língua Portuguesa.

5º - Apesar disso, em 01/07/2024, os Arguidos foram notificados da Acusação deduzida … em língua Portuguesa!!!!

6º - Continuam, por isso, a aguardar a notificação em língua que dominem e entendam…

7º - Os Arguidos encontram-se presos preventivamente há mais de 12 (doze) meses.

8º- A notificação da Acusação foi proferida, mais de 12 meses após a colocação dos Arguidos em prisão preventiva, e em língua que os mesmos não dominam.…

9º - Embora o artigo 92.º, n.º 1 do Código de Processo Penal estabeleça que os atos processuais são praticados em língua portuguesa, os n.ºs 2 e 3 acautelam as situações de intervenção no processo de pessoa que não conheça ou não domine a língua portuguesa.

10º - Dispõem os n.ºs 2 e 3 do artigo 92.º do Código de Processo Penal o seguinte:

“2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.

3 - A entidade responsável pelo ato processual provê ao arguido que não conheça ou não domine a língua portuguesa, num prazo razoável, a tradução escrita dos documentos referidos no n.º 10 do artigo 113.º e de outros que a entidade julgue essenciais para o exercício da defesa”.

11 - O artigo 113.º, n.º 10 do Código de Processo Penal dispõe que o Arguido é sempre notificado na sua pessoa da acusação.

12º - Ademais, resulta do artigo 61.º, n.º 1, al. j) do Código de Processo Penal que:

“O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:

j) Tradução e interpretação, nos termos dos artigos 92.º e 93.º”.

13º - No vertente caso, os Arguidos deveriam, assim, ter sido notificados do teor do despacho de acusação na sua língua materna, o que não se verificou, comprometendo o seu integral conhecimento dos factos que lhe são imputados e impedindo o seu pleno exercício do direito à defesa.

14º - Importa ainda considerar as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, respetivamente n.ºs 2010/64/UE de 20/10 e 2012/13/UE de 22/12, que regulamentam o direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos atos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal.

15º - Dispõe o artigo 3.º da Diretiva 2010/64/UE o seguinte:

“1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.

2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.

(…)

9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.”.

16º - Por sua vez, dispõe o artigo 3.º da Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, o seguinte:

“1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:

(…)

d) O direito à interpretação e tradução;

(…)

2. Os Estados-Membros asseguram que as informações prestadas por força do n.º 1 devem ser dispensadas oralmente ou por escrito, em linguagem simples e acessível, tendo em conta as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis”.

17º - Tais disposições têm por escopo garantir o direito dos acusados a um processo equitativo, tal como a CEDH estabelece, no n.º 3 do seu artigo 6.º, quando afirma que:

“O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:

a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;

(…)

e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo”.

18º - No caso sub judice, importa ter presente que um dos motivos da declaração de excecional complexidade dos presentes autos foi:

“e) Os arguidos têm diversas nacionalidades – colombiana, Alemã, Russa, Espanhola e Portuguesa – o que acarreta, desde logo, delongas e dilações com as diversas traduções.”

19º - Não podem, portanto, resultar quaisquer dúvidas que, um dos motivos para o processo ser declarado de excecional complexidade foi o facto de ser necessário as “delongas e dilações com as diversas traduções.”

20º - Dispõe o artigo 215° do CPP, o seguinte:

"1 A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado."


Os prazos referidos no n.º1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou ofendidos ou ao caráter altamente organizado do crime.”

21º - No caso em apreço, atentos os crimes indiciados nos autos, o prazo máximo de duração de prisão preventiva, é de doze meses, pelo que, entendem os Arguidos que até ao dia 23/06/2024 deveriam ter sido notificados da Acusação deduzida nos presentes autos.

22º - Assim, o prazo máximo de prisão preventiva nos presentes autos encontra-se ultrapassado.

23º - Dispõe o Artigo 222º do Código de processo Penal que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.” (Negrito e sublinhado nossos).

24º - Encontrando-se ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, a detenção dos Arguidos em estabelecimento prisional mostra-se um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, e é ilegal nos termos do Artigo 222º nº2 alínea c) do Código de processo Penal.

25º - Com a notificação efetuada em 01/07/2024, em Português, foi junto um documento denominado de Acusação com uma data aposta de “10-05-2024”.

26º - Com o devido respeito, é incompreensível, desde logo, que tendo a Acusação uma data aposta de 10/05/2024, a mesma apenas tenha disso notificada, nomeadamente, ao mandatário signatário, por ofício de 27/06/2024 e aos Arguidos em 01/07/2024, em Português!!!!

27º - Pelo que, no caso sub judice, nunca se poderia considerar para efeitos do disposto no artigo 215º, n.º1 do C.P.P. a data de 10/05/2024.

28º - Em primeiro lugar, não resulta dos autos qualquer assinatura manual ou digital do documento denominado “Acusação”.

29º - O DL n.º 12/2021, de 09 de Fevereiro, transpôs para o ordenamento jurídico nacional o Regulamento (UE) 910/2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno.

30º - Nos termos do artigo 1º da referida Lei:

b) Regula a validade, eficácia e valor probatório dos documentos eletrónicos, o reconhecimento e aceitação, na ordem jurídica portuguesa, dos meios de identificação eletrónica de pessoas singulares e coletivas e prevê as normas aplicáveis ao Sistema de Certificação Eletrónica do Estado - Infraestrutura de Chaves Públicas (SCEE).

31º - Vertendo o artigo 2º do mesmo diploma legal que:

O presente decreto-lei aplica-se:

a) Aos documentos eletrónicos elaborados por particulares e pela Administração Pública;

b) Aos sistemas de identificação eletrónica que sejam notificados pelos Estados-Membros da União Europeia ao abrigo dos artigos 7.º e 9.º do Regulamento, em tudo o que não se encontre neste previsto.

32º - Nos termos do artigo 3º do referido diploma legal:

“1 - O documento eletrónico satisfaz o requisito legal de forma escrita quando o seu conteúdo seja suscetível de representação como declaração escrita.

2 - A aposição de uma assinatura eletrónica qualificada a um documento eletrónico equivale à assinatura autógrafa dos documentos com forma escrita sobre suporte de papel e cria a presunção de que:

a) A pessoa que apôs a assinatura eletrónica qualificada é o titular desta ou é representante, com poderes bastantes, da pessoa coletiva em causa;

b) A assinatura eletrónica qualificada foi aposta com a intenção de assinar o documento eletrónico;

c) O documento eletrónico não sofreu alteração desde que lhe foi aposta a assinatura eletrónica qualificada.

3 - A assinatura eletrónica qualificada deve referir-se inequivocamente a uma só pessoa singular ou representante da pessoa coletiva e ao documento ao qual é aposta.”

33º - Assim, a falta de assinatura digital equivale à falta de assinatura, ou seja, á inexistência jurídica do documento.

34º - Por seu lado a Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, refere, no seu artigo 19º, expressamente, que:

“1- Os atos processuais de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público são praticados no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada.

2 - A assinatura eletrónica efetuada nos termos do número anterior substitui e dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais.

…”

35º- Analisando o documento remetido aos Arguidos constatamos que o mesmo não tem a assinatura digital qualificada ou avançada.

36º - Estamos, portanto, perante uma verdadeira inexistência jurídica.

Mas mais,

37º - Para além dessa verdadeira inexistência jurídica, no caso sub judice, nunca se poderia considerar, para efeitos do prazo máximo da prisão preventiva, como acima referimos o dia 10/05/2024.

38º - Nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal:

“Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.” (Negrito nosso).

39º- Assim, verte o artigo 144º do Código de Processo Civil:

1 - Os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição.

(…)

7 - Sempre que se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, e a parte não esteja patrocinada, a apresentação a juízo dos atos processuais referidos no n.º 1 é efetuada por uma das seguintes formas:

a) Entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva entrega;

b) Remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do ato processual a da efetivação do respetivo registo postal;

c) Envio através de telecópia, valendo como data da prática do ato processual a da expedição;

d) Entrega por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato a da respetiva expedição.” (Negrito nosso).

40º - Segundo os artigos acima citados, os atos processuais das partes, consideram-se praticados na data da efetivação do registo postal.

41º - Ou seja, mesmo que o Despacho de Acusação seja proferido com data anterior a 24/06/2024, o que é revelante para verificação do cumprimento do prazo máximo da prisão preventiva, previsto no artigo 215º do Código de Processo Penal, é a data da expedição do registo postal e não a data da prolação da acusação.

Ora,

42º- Portugal é, por determinação Constitucional, “um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, (…), no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes” (art.2º da CRP),

no qual, nomeadamente,

“todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” (nº 4 do art. 20º da CRP),

“Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. (art. 27º, n.º 2 da CRP),

“A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.” (art. 28º, n.º 4 da CRP),

“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, (…).” (art.32º da CRP);

“1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.

2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos (…)” (art.202º da CRP);

“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nele consagrados” (art.204º da CRP);

43º - E no qual a lei ordinária dispõe, nomeadamente, que:

“1. Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes (…).” (art.152º do CPC);

44º- Ou seja: com o óbvio propósito de, por um lado, assegurar o respeito do direito a processo equitativo e das garantias de defesa (arts. 2º, 20º e 32º da CRP); e por outro, impedir que os cidadãos sejam privados da sua liberdade, quando se encontram esgotados os prazos estabelecidos por lei, a lei determina expressamente quando se consideram praticados os atos para efeitos legais.

45º - No caso Sub Judice, conforme decorre expressamente do artigo 144º, n.º1 do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 4º do C.P.P., apenas vale “… como data da prática do ato processual a da respetiva expedição.”

45º- De facto apenas esta interpretação e aplicação da lei assegura a necessária confiança, certeza jurídica e lealdade processual.

46º - Sendo certo que sempre serão inconstitucionais os artigos 144º e 152º do Código de Processo Civil, 215º e 222º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido que:

“Para verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva é relevante a data da dedução da acusação e não a data da expedição da notificação ao Arguido.”

Tais interpretações violam os artigos 2º, 20º, 27º, n.º 2, 28º n.º 4 e 32º todos da Constituição da República Portuguesa.

Inconstitucionalidade que, desde já se argui.

Assim, em face do que ficou exposto resulta, claramente, que a prisão dos Arguidos é manifestamente ilegal, pelo que se requer a V. Exa., o deferimento do presente pedido de Habeas Corpus, e em consequência que seja ordenada a imediata libertação dos Arguidos AA e BB.»

2. Foi prestada a informação referida no artigo 223.º, n.º1, parte final, do Código de Processo Penal (doravante CPP), nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

«Nos termos e para os efeitos do artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, elabora-se informação relativa à descrição dos factos relevantes para a decisão da presente providência:

CC, Ilustre Mandatário dos arguidos AA e BB, nos autos de inquérito com o n.º 197/20.3JAPTM, requereu no dia de hoje (não obstante ter enviado requerimento por fax no dia de ontem que vinha incompleto) a presente providência de habeas corpus em benefício dos identificados arguidos.

Aos sobreditos arguidos foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva em 24-06-2023, por resultar fortemente indiciada a prática, por banda dos arguidos, criminalidade altamente organizada por referência aos crimes de associação criminosa, tráfico de estupefacientes e branqueamento de capitais previsto e punidos pelos artigos 21.º, n.º 1, 24.º, al. c), 28.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e 368.º-A, do Cód. Penal.

Em 23/10/2023, foi decretada a excepcional complexidade dos presentes autos.

Em 10.05.2024 foi deduzida acusação contra os arguidos.

A revisão da medida de coacção aplicada aos arguidos ocorreu em 10.05.2024 – Referência Citius n.º ......97, do apenso B – tendo sido mantida a prisão preventiva a ambos os arguidos, por se manterem inalterados os correspondentes pressupostos – o que foi comunicado aos arguidos, após tradução, em 12.06.2024.

O despacho de acusação foi traduzido para as línguas alemã e ucraniano, tendo sido notificado aos arguidos – conforme resulta de fls. 8795 // 8482 e 8485 // 8400 e seguintes e 8686 e seguintes.

*

Face à factualidade supra enunciada, afigura-se que nos autos não se verifica que os arguidos se encontrem em situação de prisão ilegal, por não se encontrarem preenchidos quaisquer dos pressupostos enunciados nas alíneas a) a c), do n.º 2, do artigo 222.º do Código de Processo Penal, acompanhando aqui a promoção do Ministério Público antecedente, no sentido de que não resulta qualquer prisão ilegal.

*

Extraia certidão e incorpore no presente processo as seguintes peças processuais:

i. Decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva aos arguidos;

ii. Despacho de 23.10.2023 – declaração de especial complexidade;

iii. Despacho de acusação de 10.05.2024;

iv. Despacho de reexame da medida de coacção de 10.05.2024 – apenso B;

v. Despachos de acusação traduzidos e notificação aos arguidos – fls. 8795, 8482 a 8485, 8400 e seguintes e 8686 e seguintes;

vi. Promoção do Ministério Público de 31.07.2024;

vii. O presente despacho.

*

Após, dê cumprimento ao disposto no artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e remeta imediatamente ao Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça os elementos acima referidos, a par da petição, promoção antecedente e presente despacho.

Remeta-se com muita urgência ao Colendo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça cópia da petição de habeas corpus, bem como da presente informação e de certidão de todas as peças processuais supra identificadas.

(…).»

3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o Ex.mo advogado, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão a decidir:

Saber se os peticionários se encontram ilegalmente em prisão preventiva, nos termos do artigo 222.º, n.º 2, al. c), do CPP - ilegalidade proveniente de, alegadamente, a duração da prisão exceder o prazo máximo fixado pela lei.

2. Factos

A matéria factual relevante para o julgamento dos pedidos resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e da consulta efetuada através do CITIUS, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula):

1. Os arguidos/ora peticionários foram submetidos a 1.º interrogatório de arguidos detidos, na Comarca dos Açores – ... – Serviço de Turno, tendo-lhes sido imposta, no final dessa diligência, por despacho de 24 de junho de 2023, a medida de coação de prisão preventiva prevista no artigo 202.º do CPP, por se considerar fortemente indiciada a prática por parte dos mesmos do crime de tráfico agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º1 e 24.º, al. c), por referência à tabela I-B, do DL n.º 15/93, de 22/01.

2. Por despacho de 23 de outubro 2023, foi declarada a excecional complexidade do processo.

3. Em 10 de maio de 2024 foi deduzida acusação contra os arguidos/peticionários e outros (referência CITIUS ......69, de 10-05-2024, documento com 157 páginas), imputando aos ora peticionários os seguintes crimes:

- a AA a prática, na forma consumada e em concurso real (artigo 14.º n. º1, 26.º e 77.º do Código Penal): em coautoria material, 1 (um) crime de tráfico de estupefaciente agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n. º1 e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei 15/93, com a redação da Lei 11/2004, de 27 de março, por referência à tabela I-B anexa ao referido diploma (legislação de combate à droga); e, em coautoria material, 1 (um) crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.º, n. º2 - por referência ao n.º 1 deste artigo -, do Decreto-Lei 15/93, de 22/01, com a redação da Lei 45/96, de 3 de setembro;

- a BB a prática, na forma consumada e em concurso real (artigo 14.º n. º1, 26.º e 77.º do Código Penal): em coautoria material, 1 (um) crime de tráfico de estupefaciente agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n. º1 e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei 15/93, com a redação da Lei 11/2004, de 27 de março, por referência à tabela I-B anexa ao referido diploma (legislação de combate à droga); e, em coautoria material, 1 (um) crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.º, n.º2 - por referência ao n.º 1 deste artigo -, do Decreto- Lei 15/93, de 22/01, com a redação da Lei 45/96, de 3 de setembro.

4. No despacho de dedução de acusação, o Ministério Público determinou que a arguida DD fosse notificada por via postal simples, com PD, “nos termos dos artigos 277.º, n.º 3, ex vi 283.º , n.ºs 5 e 6 e 113.º , n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, sendo os demais arguidos notificados pessoalmente para os respetivos Estabelecimentos Prisionais onde se encontram. Antes, porém, solicite a tradução integral deste despacho para a língua de cada um dos presos preventivos (Castelhano, Ucraniano e Alemão), nomeando-se desde já os tradutores indicados pela secção, fixando-se o prazo em 25 dias para a realização da mesma”. O Ministério Público pronunciou-se, ainda, no sentido da manutenção das medidas de coação em curso, determinando que os autos fossem previamente remetidos ao Juiz de Instrução para apreciação do arresto preventivo e da promoção quanto às medidas de coação.

5. Por despacho de 15.05.2024 (referência Citius ......97, do apenso B) foi mantida a prisão preventiva a ambos os arguidos, o que lhes foi notificado, após tradução (referências ......20 e ......74, ambas com certificação CITIUS em 12-06-2024), sendo que tal despacho mencionava ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público. O mesmo despacho foi notificado ao mandatário dos arguidos, ora peticionários, conforme referência ......07, certificação CITIUS em 15.05.2024.

6. O Ex.mo mandatário dos arguidos peticionários foi notificado da acusação conforme referência ......12 (certificação CITIUS em: 27.06.2024).

7. Os ofícios dirigidos ao Estabelecimento Prisional para notificação dos arguidos ora peticionários correspondem às referências ......04 (certificação CITIUS em 27.06.2024, relativamente ao arguido BB) e ......89 (certificação CITIUS em 25.07.2024, relativamente ao arguido AA), na sequência da conclusão das traduções da acusação para as respetivas línguas.

*

3. Direito

3.1. Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

Excetua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se incluem: (a) a detenção em flagrante delito; (b) a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; (c) a prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão; (d) a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente; (e) a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente; (f) a detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente; (g) a detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários e; (h) o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

O artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.

Em anotação ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508):

«Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27.º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.»

José Lobo Moutinho (Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de José Lobo Moutinho [et alii], Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo1, 2.ª edição, 2010, pp. 694-695), em comentário ao mesmo artigo 31.º, n.º1, da Lei Fundamental, sustenta que a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus « …não significa e não equivale à excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.»

A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.

Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que constituem fundamentos da providência de habeas corpus os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

Tem também decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).

Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário (ou aquele em cujo beneficio tenha sido peticionado o habeas) atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1).

3.2. No caso concreto, os arguidos/peticionários consideram que a prisão preventiva que lhes foi imposta por despacho proferido no dia 24.06.2023 se mantém para além do prazo fixado na lei, porquanto, segundo alegam, foram notificados da acusação, sem tradução nas respetivas línguas, depois de ultrapassado o prazo de um ano de prisão.

Vejamos.

Em matéria de prisão preventiva, os prazos a considerar são os previstos no artigo 215.º, do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso:

«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

(…).

3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.»

Tendo em vista os crimes fortemente indiciados no momento da imposição da prisão preventiva e a declaração de excecional complexidade do processo, o prazo de duração máxima da prisão preventiva sem que fosse deduzida acusação era, in casu, de um ano.

Constitui entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, ser a partir do momento da aplicação da prisão preventiva que se contam os prazos máximos da medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido (neste sentido, entre muitos, o acórdão de 11.11.2021, proc. 869/18.2JACBR-G.S1).

Do que decorre que, tendo como termo a quo o momento do decretamento da prisão preventiva – 24.06.2023 –, o prazo de um ano atingiu o seu termo final no dia 24.06.2024, às 24h00, porquanto se trata de um prazo de natureza substantiva, devendo computar-se nos termos dos artigos 296.º e 279.º, do Código Civil (cf. o citado acórdão de 11.11.2021).

A acusação contra os arguidos/ peticionários e outros é anterior a 24.06.2024, pois os autos documentam, indubitavelmente, ter sido deduzida em 10.05.2024, conforme referência CITIUS ......69, dessa data.

A alegação de que da acusação não consta “assinatura digital qualificada ou avançada”, pelo que estamos “perante uma verdadeira inexistência jurídica”, é desprovida de qualquer fundamento.

Estamos perante um ato processual de magistrado do Ministério Público, praticado no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, assinado eletronicamente pelo seu autor, através de um cartão de tipo smartcard associado a um código PIN, chave pessoal e intransmissível, como se extrai da análise do canto superior esquerdo da 1.ª página do documento em questão, onde foi aposta pelo sistema a menção da data da assinatura e a identificação de quem assina, associado ao canto superior direito da mesma página onde consta o número do processo e a referência CITIUS do documento.

Neste contexto, as menções ao DL n.º 12/2021, de 09 de fevereiro, e bem assim à Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, para sustentar a suposta “inexistência jurídica” da acusação, são, salvaguardado o devido respeito, incompreensíveis, pois os autos documentam a prática do ato em causa no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com satisfação da exigência de aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada.

Atente-se que o Ministério Público, ao deduzir acusação, pronunciou-se, ainda, no sentido da manutenção das medidas de coação em curso, determinando que os autos fossem previamente remetidos ao Juiz de Instrução para apreciação do arresto preventivo e da promoção quanto às medidas de coação.

Por despacho de 15.05.2024 (referência Citius ......97, do apenso B) foi mantida a prisão preventiva a ambos os arguidos, o que lhes foi notificado, após tradução (referências ......20 e ......74, ambas com certificação CITIUS em 12-06-2024), sendo que tal despacho mencionava ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público. O mesmo despacho foi notificado ao mandatário dos arguidos, ora peticionários, conforme referência ......07, certificação CITIUS em 15.05.2024.

Por conseguinte, os arguidos /peticionários e o seu mandatário não ignoravam que já havia sido deduzida acusação contra aqueles, antes mesmo desta lhes ter sido notificada.

Não se questiona a necessidade de tradução da acusação para as línguas dos arguidos.

Tradução que foi efetivamente efetuada, conforme havia sido ordenado pelo Ministério Público, que determinou expressamente a tradução integral do seu despacho para a língua de cada um dos presos preventivos – despacho que corresponde, no sistema, a um PDF com 157 páginas.

Foi necessário, por conseguinte, aguardar pela conclusão da tradução em diversas línguas de um texto extenso e só após a apresentação dos textos pelos respetivos intérpretes foi possível proceder à notificação dos arguidos / peticionários com o texto da acusação já traduzido.

Os ofícios dirigidos ao Estabelecimento Prisional para notificação dos arguidos ora peticionários correspondem às referências ......04 (certificação CITIUS em 27.06.2024, relativamente ao arguido BB) e ......89 (certificação CITIUS em 25.07.2024, relativamente ao arguido AA), na sequência da conclusão das traduções da acusação para as respetivas línguas.

Acresce constituir jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP (alargado que seja em função dos números 2 e 3) é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido (entre muitos, os acórdãos de 09.08.2013, proc. 374/12.0JE​LSB-A.S1; de 17.05.2023, proc. 3233/21.2T9VNF-J.S1; de 29.06.2023, proc. 787/22.0PBMTA-B.S1; de 31.08.2023, proc. 442/23.3JABRG-B.S1; de 7.02.2024, proc. 822/22.1TELSB-C.S1).

Acusação e notificação são atos processuais distintos. A notificação é, obviamente, consequência do despacho acusatório, e destina-se a dar conhecimento do ato ao sujeito processual visado. Só depois de existir acusação é possível proceder à sua tradução e, na sequência, comunicar-se essa tradução.

Porém, para efeitos do disposto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 2 e 3, do CPP, não é a notificação da acusação (com ou sem tradução) que delimita o prazo máximo da prisão preventiva, na fase a que respeita, mas sim a dedução ou não de acusação em determinado período temporal.

Assim resulta, de forma clara, do disposto no n.º 1 do artigo 215.º do CPP, que os prazos de duração máxima da prisão preventiva contam-se até à prolação da decisão (acusação, decisão instrutória, condenação), sendo irrelevante, para o efeito, o momento da respetiva notificação e a regularidade desta, conforme entendimento que este STJ tem vindo a reafirmar de forma uniforme, como já se disse, desde há muito (seguramente, há mais de 20 anos).

Em todos os casos referidos no referido n.º1, é patente a referência à data da prática do ato processual ou elaboração da decisão (acusação, decisão instrutória e condenação) proferida no processo de acordo com cada etapa ou fase processual e não ao momento em que chega ao conhecimento do destinatário o teor da mesma.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou diversas vezes sobre a matéria: cf. Acórdão n.º 2/2008 (in DR, II Série, de 14.02.2008), já na vigência da nova redacção do artigo 215.º, introduzida pela Lei 48/2007, de 29.08; Acórdão n.º 280/2008, de 14.05.2008, em que estava em causa a alegada inconstitucionalidade do artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP; Decisão Sumária n.º 454/2022, de 30.06. Extrai-se desta jurisprudência o entendimento de não ser inconstitucional a norma em causa, na interpretação de que o prazo máximo da prisão preventiva se afere em função da data da prolação da acusação e não da data da sua notificação ao arguido.

Contrariamente ao que supõem os peticionários, não estamos perante qualquer lacuna de regulamentação que reclame a aplicação do Código de Processo Civil ao abrigo do artigo 4.º do CPP.

Por conseguinte, carecem manifestamente de razão os peticionários quando pretendem ser contrária à CRP (artigos 2.º, 20.º, 27.º, n.º 2, 28.º n.º 4 e 32.º) a interpretação sustentada neste STJ e cuja conformidade com a Constituição o Tribunal Constitucional já sufragou, no sentido de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP (dilatado que seja em função dos números 2 e 3), é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao(s) arguido(s) - ou, acrescente-se, a data da expedição dessa notificação.

Ora, à data da apresentação da presente petição, já tinha sido deduzida nos autos acusação contra os ora peticionários (em 10.05.2024), antes do termo do prazo de um ano contado a partir da data em ficaram sujeitos à medida de prisão preventiva, à ordem dos mesmos autos.

Com a dedução da acusação o prazo de duração máxima da prisão preventiva passou a ser o da condenação em 1.ª instância, ou, sendo requerida a instrução, o da decisão instrutória.

Em suma, a medida coativa de prisão preventiva dos arguidos/peticionários mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da CRP e 222.º do CPP.

3.3. O artigo 223.º, n.º6, do CPP, estabelece: «Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 30 UC.»

A jurisprudência tem considerado, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso.

O mesmo critério deve ser utilizado para determinar quando uma petição de habeas corpus é “manifestamente infundada”, justificando a aplicação de uma sanção processual pecuniária, penalizadora do uso manifestamente censurável da providência por evidente ausência de pressupostos e fundamentos.

É o que ocorre no presente caso, em que é patente e indubitável, numa avaliação perfunctória dos fundamentos do pedido de habeas corpus, diversamente do alegado, que o prazo de prisão preventiva não se mostra ultrapassado.

Em consequência, devem os peticionários ser condenados, para além da tributação devida nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processais, também numa soma, nos termos do artigo 223.º, n.º6, do CPP, que, in casu, se fixa, para cada um, em 6 UC.


*


III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes de turno do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.

Custas pelos peticionários, com 3 UC de taxa de justiça para cada um (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa), sendo ainda condenado, cada um deles, nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, no pagamento de uma soma de 6 (seis) UC, a título de sanção processual.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de agosto de 2024

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Vasques Osório (1.º Adjunto)

António Latas (2.º Adjunto)

Maria Amélia Ribeiro (Presidente)