Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
884/22.1JAPDL.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ARMA DE FOGO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I – Em conformidade com a orientação jurisprudencial predominante no STJ, a utilização de uma arma de fogo manifestada e registada, por detentor de licença de uso e porte da mesma, cujas exatas caraterísticas e circunstâncias de utilização não ficaram apuradas, não evidencia a particular perigosidade legalmente reclamada, relativamente a qualquer outra arma de fogo comumente usada para matar, pese embora o normal ou mesmo elevado perigo resultante do seu uso. e, como tal, não preenche a qualificativa prevista no artigo 132º, n.º 2, al. h), 2ª parte do CP.

II - No entanto, mantendo-se, no caso em apreço, a qualificação dos crimes de homicídio cometidos pelo arguido, nos termos das alíneas e) e/ou j) do n.º2 do artigo 132º do CP, deve operar a agravante geral do artigo 86º, n.º 3, do RJAM, como reclama o MP no seu recurso.

III - Pelo que, sem descurar a necessidade de salvaguardar a proporcionalidade das penas concretas a fixar, em termos absolutos e relativos, na comparação com a jurisprudência produzida em casos similares e prevenindo a hipótese de outros de maior e extrema gravidade, a que melhor se adequará a aplicação de uma pena concreta mais próxima do limite máximo da pena abstrata ou legal, se justifica um aumento das penas em que o arguido foi condenado pela prática dos dois crimes de homicídio qualificado agravado que se afaste do limite mínimo da respetiva moldura penal abstrata decorrente da sua requalificação, ainda que em proporção ligeiramente inferior àquela considerada no acórdão recorrido, visto que o ponto de partida é agora também mais elevado, fixando-se em medida intermédia entre as anteriormente fixadas e a proposta pelo recorrente, ou seja, em 18 (dezoito) anos de prisão por cada um dos dois crimes de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. e), do CP e 86º, n.º 3, do RJAM, dois anos apenas acima do limite mínimo da respetiva moldura abstrata, as quais se afiguram justas, adequadas e fixadas de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, sem ultrapassar a medida da culpa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


*


I. Relatório

1. Por acórdão, de 14.03.2024, do Juízo Central Cível e Criminal de ... (J......) – J 2, do Tribunal Judicial da Comarca dos ..., foi, entre o mais e outro, o arguido AA, com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve na parte que ora releva:

«VI - DECISÃO.

Pelo exposto, julga-se a pronúncia procedente por provada e em consequência:

I - a) Condena-se o arguido AA, como autor material, na forma consumada e em concurso real, da prática de:

- pelo crime de homicídio qualificado, p. e p., nos artigos conjugados 131º/1 e 132º/2-e), todos do CP, em dezassete (17) anos de prisão, cometido na pessoa de BB;

- pelo crime de homicídio qualificado, p. e p., nos artigos conjugados 131º/1 e 132º/2-e), todos do CP, em dezassete (17) anos de prisão, cometido na pessoa de CC;

- pelo crime de profanação de cadáver (aqui como co-autor), p. e p., nos artigos 254º/1-a), e b), do CP, em um ano (1) e seis (6) meses de prisão, no cadáver de BB;

- pelo crime de profanação de cadáver (aqui como co-autor), p. e p., nos artigos 254º/1-a), e b), do CP, em um ano (1) e seis (6) meses de prisão, no cadáver de CC, e

- pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p., no artigo 86º/1-d), por referência aos artigos conjugados 2º/1-ao) e ap), artigo 3º/2-f) e s) e artigo 4º/2, todos da Lei nº 5/2006 de 23.02 (Lei das Armas), em dois (2) anos de prisão,

- em cúmulo jurídico vai o arguido condenado na pena única de vinte e cinco (25) anos de prisão.

(…)

V - Condena-se ainda o arguido AA, na sanção acessória de afastamento do País, nos termos dos artigos 22º e 28º, da Lei nº 37/2006 de 09.08, pelo período de 25 anos, medida esta a ser revista nos termos do artigo 28º/2 da lei acabada de citar.

(…)».

2. Inconformado, interpôs o Ministério Público (MP), em 16.04.2024, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«IV – CONCLUSÕES:

I. A nossa discordância reporta-se exclusivamente à qualificação jurídico-penal efetuada pelo Tribunal a quo e, por conseguinte à medida concreta das penas parcelares dos crimes de homicídio pelos quais o arguido AA foi condenado.

II. Em primeiro lugar no que respeita à verificação da qualificativa como agravante, nos termos da 2.ª proposição da alínea h), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, a qual foi considerada apenas na determinação concreta da pena.

III. Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo não deveria ter considerado que a utilização da pistola Smith & Wesson de calibre .22. na prática dos crimes de homicídio pelo arguido AA consubstanciava um meio particularmente perigoso nos termos e para os efeitos da alínea h) do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal

IV. Cremos que a alínea h), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal prevê, não apenas meio perigoso, o qual obviamente tenha aptidão para provocar a morte, mas meio particularmente perigoso, que seja suscetível, que tenha uma efetiva potencialidade de criar perigo para outros bens jurídicos.

V. O mencionado normativo impõe não apenas um meio perigoso, mas um meio particularmente perigoso, o que significa que tem de ser suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos.

VI. A perigosidade tem de advir do instrumento em si mesmo e não apenas do modo ou das circunstâncias em que é usado. Há de ser o próprio instrumento utilizado a ter “uma aptidão particular para causar a morte” – Cf. Paulo P. Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª ed, página 514.

VII. Não é o facto de se considerar o homicídio qualificado pela verificação do motivo fútil/torpe e/ou as circunstâncias posteriores em que ocorreu a profanação dos cadáveres serem horrendas que faz do meio utilizado na prática dos homicídios um “meio particularmente perigoso”.

VIII. Por outro lado, também não é pelo facto de as vítimas estarem desarmadas e não se encontrarem alertadas para o facto de o agente deter uma arma que, de per se, a torna a arma (pistola calibre .22) um meio particularmente perigoso na prática de um crime de homicídio.

IX. É certo que pistolas, facas e outros instrumentos contundentes são meios, métodos ou instrumentos perigosos ou mesmo muito perigosos, no entanto, não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão, quando estamos na análise da prática de um crime de homicídio.

X. Não está inscrito na natureza das coisas e, assim, deva ser razoável para o Direito que uma arma de fogo, nomeadamente a utilizada, para além da letalidade inerente à necessária idoneidade para matar, haja de ser um meio particularmente perigoso, como o seria, claramente, uma granada de mão, um engenho explosivo, uma metralhadora pesada, etc.

XI. Neste sentido, discordando da qualificação efetuada pelo Tribunal a quo, remete-se para a jurisprudência e doutrina indicada e transcrita na motivação que aqui se dá por reproduzida.

XII. O Ministério Público discorda ainda da não agravação dos crimes de homicídios nos termos do n.º 3, do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro – Regime Jurídico de Armas e Munições e, por conseguinte, com as penas parcelares de cada um dos homicídios.

XIII. O legislador com a agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, veio afirmar que há uma ilicitude agravada aquando da prática de um qualquer crime em que se utilize uma arma, salvo se a utilização da arma já é elemento do tipo de ilícito.

XIV. Com efeito, no caso dos autos, resulta da matéria dada como provada que o arguido AA praticou dois crimes de homicídio qualificado, nos termos conjugados dos artigos 131.º, n.º 1 e 132.º, n.º1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal, tendo cometido tais crimes através de arma de fogo.

XV. No caso em apreço não se verifica uma situação de dupla valoração, pois cada uma das agravantes surge de forma perfeitamente autónoma e independente, não havendo por isso qualquer razão legal, ou imperativo constitucional, que fundamente o afastamento do funcionamento de qualquer delas.

XVI. O uso da arma, comporta um fator de agravação da ilicitude em função da perigosidade para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos criminalmente protegidos e, além disso, não constitui elemento típico do crime de homicídio, pois que este é um crime de execução livre, ao tipo de homicídio é indiferente a forma como o resultado morte ocorre.

XVII. Com efeito, no uso da arma estamos perante uma agravação de natureza geral que dimana de razões de prevenção geral absolutamente distinta, que radica na necessidade de conter o recurso às armas na prática de crimes, quer o crime seja e homicídio, quer seja de roubo quer seja de uma outra qualquer espécie em que seja utilizada a arma.

XVIII. Já no que respeita à qualificação do homicídio, in casu, alínea e) do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, estamos perante uma qualificativa suscetível de evidenciar uma densidade acrescida de culpa, revelando uma especial censurabilidade ou perversidade com que o crime foi em concreto cometido.

XIX. Por conseguinte, tendo o arguido praticado dois crimes de homicídio qualificado, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 86.º, n.º. 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro – Regime Jurídico das Armas e Munições, impõem-se uma nova dosimetria das penas parcelares de cada um dos crimes, face a nova moldura penal abstrata de cada um dos crimes de homicídio, passando esta a ser o mínimo de 16 anos de prisão e o máximo de 25 anos de prisão.

XX. De acordo com o artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal “A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa”, sendo a culpa um dos elementos fundamentais em sede de aplicação de penas, bem como o seu limite intransponível.

XXI. No caso vertente, são particularmente elevadas as exigências de prevenção geral, uma vez que está em causa a proteção do bem jurídico vida, sendo que o crime de homicídio assume exponencialmente proporção, com consequências irremediáveis, o que provoca justificado temor na comunidade, abala a confiança que esta deve ter na eficácia do sistema penal, e impõe, consequentemente, uma necessidade acrescida de dissuadir a prática destes factos pela generalidade das pessoas e de incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes.

XXII. Face ao elevadíssimo grau de ilicitude dos factos, ao circunstancialismo em que os mesmos ocorreram; a existência de dolo direto (na sua forma mais intensa), a total ausência de comportamentos exteriores consentâneos com a interiorização do desvalor da conduta, denotativas de falta de sentido crítico, de consciencialização do desvalor da conduta e de indiferença quanto ao valor vida e respeito pelo cidadão e dignidade humana, a violação do dever de respeito e solidariedade que se impunha, relevando, como se viu, como circunstância de qualificação do crime de homicídio, o comportamento insolente mantido ao longo das várias sessões de audiência de julgamento e o alheamento quanto às consequências advenientes da sua conduta com reflexos no seio familiar das vítimas e impacto no seio da comunidade;

XXIII. Entendemos que deverá o arguido AA ser condenado pela prática de dois crimes do homicídio qualificado agravado, nos termos conjugados dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, artigo 86.º, n.º. 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro – Regime Jurídico das Armas e Munições

XXIV. Por conseguinte, sendo a moldura penal abstrata para cada um dos homicídios de 16 anos a 25 anos de prisão e, em face das circunstâncias expostas, entende- se ser adequado, justo e consentâneo quer com as finalidades ínsitas à punição, quer com a medida da culpa e da consciência da ilicitude, aplicar:

- pelo crime de homicídio qualificado agravado, nos termos conjugados dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, artigo 86.º, n.º. 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro – Regime Jurídico das Armas e Munições, em 19 anos de prisão, cometido na pessoa de BB;

- pelo crime de homicídio qualificado agravado, nos termos conjugados dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, artigo 86.º, n.º. 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro – Regime Jurídico das Armas e Munições, em 19 anos de prisão, cometido na pessoa de CC.

XXV. Pelo exposto, por se considerar que o Tribunal a quo não procedeu à correta qualificação jurídico-penal e, nessa medida, violou as normas dos artigos 40.º, 71.º, 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, deverá ser dado provimento a esta pretensão e, consequentemente deverá ser alterada a qualificação jurídica, condenando-se o arguido AA pela prática de dois crimes de homicídio qualificado agravados, nos termos conjugados dos artigos 131.º; 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, nas penas parcelares referenciadas, mantendo-se a pena única por imposição legal.

Vossas Ex.ªs, porém, decidirão como for de

JUSTIÇA !».

3. O recurso, por despachos judiciais de 2.05 e 5.07.2024, foi admitido e mandado remeter ao STJ, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

4. Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso interposto pelo MP.

5. Neste Tribunal, o MP, em 12.07.2024, limitou-se a apor o visto previsto no artigo 416º do Código de Processo Penal (CPP), não havendo, por isso, lugar ao contraditório (cfr. artigo 417º, n.ºs 1 e 2, a contrario, do CPP).

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:

A) À qualificação dos crimes de homicídio nos termos das alíneas e), h) e j) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal (CP) e sua agravação nos termos do artigo 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.2 (RJAM) [conclusões I a XVIII], e, em consequência,

B) À medida das penas parcelares de prisão a aplicar aos crimes de homicídio qualificado agravado [conclusões XIX a XXV].

III. Fundamentação

1. Na parte que aqui releva, é do seguinte teor o acórdão recorrido (transcrição, sem notas de rodapé):

«(…) II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

FACTOS PROVADOS -

Na sequência do julgamento e discussão da causa resultou assente a seguinte matéria de facto com relevância para os autos:

1 - As vítimas, BB e CC, de 74 e 65 anos de idade respectivamente, ambos residentes na ilha do ..., mantinham entre si uma relação de amizade, sendo habitual realizarem em conjunto negócios de compra e venda de terrenos;

2 - A vítima CC tinha implantado, desde ...-...-2013, via subcutânea no lado esquerdo do tórax, um cardioversor desfribrilhador implantável (CDI), do fabricante Boston Scientific, modelo Incepta VR, com o n.º de série ....41;

3 - À data dos factos, em ... de ... de 2022, BB pretendia adquirir um terreno sito no ..., freguesia de ..., na ilha do ..., que se estende da Estrada Regional 1 até à orla marítima, conhecida por ..., contíguo à propriedade dos arguidos, tendo já abordado um dos proprietários, DD, e feito proposta de aquisição;

4 - No dia ... de ... de 2022, a hora não concretamente apurada mas que se situa por volta das 14 horas, as vítimas munidos de um mapa com a localização e delimitação deste terreno saíram juntas no carro de BB, um Land Rover com a matrícula ..-..-PO, com o objectivo de fazer prospecção ao referido terreno;

5 - Chegados à Estrada Regional 1, a cerca de uma distância não concretamente apurada mas pelo menos a cerca de 700 metros da casa dos arguidos, as vítimas imobilizaram a viatura na Estrada Regional nº 1, percorrendo um caminho não concretamente apurado, até chegarem à extrema junto ao muro que divide a propriedade referida em 3 e 4, da residência dos arguidos;

6 - O arguido detinha diversas câmaras de vigilância colocadas ao redor da sua propriedade de modo a ter visão sobre todos os que passassem nas imediações;

7 - E muito embora se trate de zona pouco frequentada, situada junto a uma escarpa que define a linha de costa, pelo menos por duas ocasiões, quando transeuntes passavam na via pública junto à propriedade dos arguidos, foram abordados pelo arguido AA da forma que a seguir se descreve;

8 - Assim, em data não concretamente apurada, mas que se situa entre dois a três meses antes da data referida em 3, o arguido apontou uma arma de fogo de características não concretamente apuradas contra um transeunte;

9 - Numa outra ocasião em data não concretamente apurada, mas que se situa entre três a seis meses antes dos factos referidos em 3, o arguido perante um casal de transeuntes que caminhava próximo da propriedade dos arguidos, no caminho junto à orla marítima, dirigiu-se àqueles de modo alto e sério dizendo as seguintes expressões: “ go away; this is private; fuck off”, o que disse repetidamente aos gritos e em tom sério e ao mesmo tempo que gesticulava;

10 - No dia ... de ... de 2022, o arguido ao ver BB e CC junto ao muro da sua propriedade, junto ao vértice sul, desagradado com as suas presenças no local, apontou e disparou contra as vítimas, de forma não concretamente apurada;

11 - Os ferimentos causados pelos disparos provocaram derramamento de sangue, os quais foram aptos a causar, como causaram, a morte das vítimas;

12 - Foi encontrada no local, numa das reentrâncias do muro virado para a orla marítima (na parte exterior) o invólucro de uma munição deflagrada por arma do arguido, composta de pistola semiautomática, modelo 422, calibre .22 Long Rifle (5,6 mm no sistema métrico) e marca Smith & Wesson.

13 - De seguida, de forma não concretamente apurada, o arguido transportou os corpos das vítimas para dentro da sua propriedade;

14 - Cerca de 24 horas após o desaparecimento das vítimas e apesar da elevada porosidade e irregularidade do solo, era visível sangue fresco junto ao muro da propriedade dos arguidos;

15 - Existindo vestígios de sangue humano desde a área exterior do muro até à área interior, já dentro da propriedade dos arguidos;

16 - Verificando-se, quer na parte exterior, quer na parte interior da propriedade dos arguidos vestígios de sangue e de cabelos das vítimas referidas em 1;

17 - Uma vez dentro da sua propriedade e com o objectivo de ocultar todas as provas do crime, o arguido, em hora não concretamente apurada, mas durante a tarde do dia ...-...-2022, decidiu desfazer-se dos corpos das vítimas para o que preparou pelo menos uma fogueira dentro da propriedade, localizada a norte desta, na parte do terreno que ascende até à Estrada Regional 1 (fogueira norte);

18 - O arguido incendiou os corpos das vítimas, deixando-os a arder durante um número de horas não concretamente apurado, destruindo-os;

19 - A fogueira onde queimou os corpos adquiriu grande dimensão sendo visíveis chamas e fumo, a centenas de metros do local bem como, um cheiro nauseabundo que ficou no ar durante tempo não concretamente apurado;

20 - A arguida chegou a casa por volta das 20 horas do dia ...-...-2022;

21 - Nesse momento ao aperceber-se do que estava a suceder, decidiu auxiliar o arguido, tendo para o efeito, ajudado este a desfazer-se dos corpos das vítimas;

22 - Assim, após realizada a queima dos corpos das vítimas, para a qual foram utilizados diversos materiais inflamáveis designadamente, gasóleo e gasolina bem como, bidões e baldes em plástico, madeiras e arbustos que possuíam na sua propriedade e com o intuito de ocultarem os vestígios remanescentes dos corpos queimados, os arguidos limparam e desfizeram-se das cinzas das vítimas de modo não concretamente apurado;

23 - No dia seguinte, ...-...-2022, os arguidos tentaram livrar-se de todos e quaisquer vestígios que pudessem subsistir do crime, tendo despejado engodo (restos de peixe, entranhas de peixe e espinhas) sobre o sangue existente no solo, eliminado as imagens existentes no sistema de videovigilância, lavado e limpado a propriedade, pendurado para secar diversos tapetes e luvas de limpeza, entrando e saindo de casa para o efeito;

24 - Foi encontrado na fogueira norte, um pequeno objecto metálico de formato arredondado, deformado pela acção do calor, que se apurou ser o CDI que CC tinha implantado no tórax, tal como referido em 2;

25 - Dentro da residência, os arguidos guardavam:

I) Uma pistola semiautomática da marca Smith & Wesson, modelo 422 de 12 tiros, de calibre .22 com as platinas em madeira e o número de série UBB..00;

II) Uma carabina de fabrico russo de alma estriada, da marca TOZ, modelo T03-78-01, calibre .22, com o número de série .....00, a qual compreende uma mira telescópica acoplada, da marca WESTHUNTER;

III) Um total de 1454 munições de calibre .22 por deflagrar, acondicionadas em 28 caixas de 50 unidades (por abrir) e 15 munições numa caixa aberta;

IV) 4 carregadores de diferentes dimensões, dois com 12 munições cada e os outros com 10 e 5 munições cada;

V) Uma besta e um arco, ambos em polímero plástico, o primeiro com mira telescópica acoplada, e anexas 4 setas em carbono com pontas metálicas;

26 - Os arguidos guardavam ainda dentro de casa:

VI) Sete punhais, uma catana e uma baioneta, todos com lâminas superiores a 10 centímetros;

VII) Um boxer com lâmina (garra Karambit), com dimensão superior a 10 centímetros;

VIII) Dois silenciadores.

27 - Os arguidos conheciam as características das armas que possuíam e sabiam que a sua detenção era absolutamente proibida em quaisquer circunstâncias, ainda assim quiseram detê-las na sua posse e, no caso do arguido, fazer uso das mesmas;

28 - Ao actuar da forma supra descrita o arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a BB e a CC, motivado pelo facto de estarem junto da sua propriedade, revelando uma total insensibilidade e indiferença pela vida das vítimas;

29 - Sendo que as vítimas e os arguidos não se conheciam à data dos factos;

30 - Ao transportar os corpos para dentro da sua propriedade, pegando-lhes fogo e aguardando que ardessem durante várias horas, limpando as cinzas remanescentes por diversos locais para eliminar os vestígios dos homicídios perpetrados, pretendeu o arguido eliminar os corpos das vítimas e ludibriar as autoridades quanto ao seu desaparecimento, subtraindo-se às inerentes responsabilidades;

31 - A arguida, ao chegar a casa e ver a fogueira de grandes dimensões e cheiro nauseabundo, com dois corpos a arder, adquiriu plena consciência e conhecimento dos actos que o arguido praticara e ainda assim decidiu e quis ajudá-lo a eliminar os vestígios, consciente que com a sua colaboração contribuía para o sucesso dos objectivos prosseguidos pelo arguido;

32 - Nesta parte, os arguidos actuaram em conjugação de esforços e intentos e na prossecução de um plano combinado entre ambos com o propósito de se desfazerem, destruírem e ocultarem os cadáveres de BB e CC eliminando os vestígios dos actos perpetrados, com o propósito de ludibriar as autoridades quanto ao seu desaparecimento e subtrair-se às inerentes responsabilidades;

33 - Agiram os arguidos em comum e determinados na execução do seu propósito comum de eliminar e destruir os corpos das vítimas;

34 - Com todas as condutas acima descritas, cada um dos arguidos agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e punidas por lei;

35 - Os arguidos possuíam capacidade para compreenderem a ilicitude das suas condutas e para se determinarem de acordo com o dever ser jurídico;

Factos provados quanto à contestação do arguido AA:

36 - Na ..., o arguido AA era associado do Clube desportivo de tiro P.. .......;

37 - É associado ao Clube de Tiro da ilha do ... e costumava ali naquele local praticar tiro;

38 - Ambos os arguidos praticam tiro na sua propriedade;

39 - O arguido AA padece de dores no ombro, causadas por uma eventual bursite/tendinite e padece também de dores no joelho causadas por uma ligeira artrose com atingimento dos tubérculos da tíbia;

40 - Toma medicação para tal e anda normal e faz a sua vida normal;

41 - O arguido é uma pessoa de respeito e querida entre os amigos;

42 - Encontra-se junta aos autos duas unidades de pacemakers que foram cedidos pelo crematório de ...;

43 - O arguido trabalhou no B........ ......... como sub-chefe de ... na sala de jantar entre ... de ... de 1991 até ... de ... de 1991;

44 - O arguido trabalhou no C...... ..... ...... como concierge entre ... de ... de 1991 até ... de ... de 1991;

45 - O arguido trabalhou no Hotel ... como concierge entre ... de ... de 1991 até ... de ... de 1992;

46 - O arguido trabalhou como assistente de campo nas instalações de ténis no C.... .......... .......... entre ... de ... de 1996 até ... de ... de 1997;

47 - O arguido ficou em 3º lugar na classe de arco branco com 571 anéis no torneio da tocha em 2015;

48 - O arguido ficou em 2º lugar na classe masculina de arco branco com 343 anéis no campeonato do clube V. ..... em 2016;

Factos provados quanto à contestação da arguida EE:

49 - Os arguidos decidiram colocar na propriedade da arguida EE 6 câmaras de videovigilância: uma junto ao portão, uma para noroeste, uma para sudoeste, uma para nordeste, uma para sudeste e uma direcionada para o galinheiro;

50 - Era usual algumas pessoas dirigirem-se ao limite sul da propriedade dos arguidos para descerem a escarpa e apanharem lapas no período do defeso;

51 - Nessas ocasiões, a arguida EE e o arguido AA insurgiam-se e comunicavam às autoridades competentes;

52 - Numa outra ocasião, aperceberam-se que estavam a retirar pedra da vinha vizinha, tendo também alertado as autoridades;

53 - Tendo chegado a efetuar denúncias na página da internet “Na minha ilha”;

54 - Os arguidos passavam o seu dia-a-dia a tratar dos inúmeros animais que possuem (cerca de 23 coelhos, 30 galinhas, 7 cabras, 3 cães e 4 gatos), das suas cultivações (nomeadamente, cenouras, cebolas, morangos, batatas, feijões, couves, courgettes, aboboras, aromáticas, pessegueiro, nespereira e limoeiro) e da residência;

55 - EE passava, habitualmente as sextas e sábados na ..., onde tem o seu gabinete de massagens e exerce a sua profissão há vários anos;

56 - A pistola semiautomática, modelo 422, calibre .22, de marca Smith & Wesson era propriedade do falecido marido de EE, FF;

57 - Após o óbito de FF, em ...-...-2018, EE entregou a referida arma à PSP, bem como a carabina TOZ e uma outra arma de percussão, de Marca Liege;

58 - Posteriormente, já depois de ter conhecido AA e de ter iniciado uma relação com este, resolveram obter as licenças de uso e porte de arma necessárias e fazerem o processo de transmissão das armas, ficando a pistola em nome de AA, e a carabina em nome de EE e a arma de percussão Liege ficou entregue à PSP da ...;

59 - As armas apenas saíam quando os arguidos se dirigiam ao clube de tiro de ..., do qual fazem parte, ou quando praticavam tiro ao alvo, na sua propriedade;

60 - A arguida EE foi para a ... no dia ... de setembro, pelas 08h15, tendo regressado no dia ... de setembro, pelas 17h45 horas;

61 - Quando chegou à ..., a arguida dirigiu-se ao supermercado S..... e ao supermercado Continente, dirigindo-se depois para casa;

62 - A arguida ainda parou pelo caminho para apanhar erva para os animais, tendo chegado a casa por volta das 20h00 horas;

63 - Quando a arguida chegou a casa constatou que o arguido tinha feito uma fogueira, havendo algumas brasas na mesma;

64 - A Câmara Municipal... aprovou um projecto de construção de uma garagem aos arguidos em ... .12.2022, mas sujeito ao parecer da Secretaria Regional do Ambiente e Alterações Climáticas, e eles tinham o prazo de um ano para apresentar o projecto de arquitetura, a partir da data acabada de citar;

65 - A arguida EE recebeu três encomendas na ... provenientes da sua mãe e que incluíam designadamente, fatos de macaco para o arguido AA e luvas de trabalho;

66 - EE colocou os fatos de macaco na máquina de lavar roupa e os packs de luvas num alguidar com água e detergente;

67 - Nas proximidades da residência de EE, não existe um caixote de lixo;

68 - Os arguidos têm, na propriedade, depósitos com gasóleo e gasolina, adquiridos em 2020, aquando do início da pandemia de Covid, destinados aos veículos automóveis que possuem, aos barcos, bem como às máquinas agrícolas;

69 - Os quais estão praticamente cheios;

70 - No dia ... de setembro, foi um dia igual aos outros: trataram dos animais que possuem, da horta, da casa, a EE estendeu a máquina que tinha lavado com os fatos macacos do AA, bem como as luvas que haviam chegado na encomenda e estendeu-as ainda presas umas às outras;

71 - Ainda lavaram duas carpetes que têm na marquise apenas com água e estenderam-nas na rua;

72 - Mais pela tarde, foram abordados por dois Agentes da PSP, que lhes mostraram uma fotografia de pessoa e preguntaram se tinham visto ao que responderam que não;

73 - O arguido AA é titular de Licença de Uso e Porte de Arma com o n.º .21/...-01, válida até 2025/04/20;

74 - A EE é titular de Licença de Uso e Porte de Arma com o n.º .22/...-01, válida até 2025/04/20;

75 - A arguida EE não tem força para armar a besta e quem o fazia era o arguido AA, para que ela pudesse praticar, junto com o arco;

76 - A arguida tem uma propriedade com cerca de 20 mil metros quadrados, com árvores, com mato rasteiro, com agricultura de subsistência e com animais;

77 - Os arguidos fazem uso de várias ferramentas para cortar mato e ramos de arvores para os animais, para cultivar a terra, para construir e reparar os abrigos dos animais, nomeadamente, a catana;

78 - EE nasceu em ..., na ..., em 1969; fez o ensino secundário completo em ... e o seu primeiro emprego foi a entregar jornais enquanto estudava; trabalhou também no D....... .... ..;

79 - Casou em 1995 do FF, e tinham uma quinta com cavalos, ali dando aulas de equitação; viveram em ... até 2005, altura em que se mudaram para a ilha do ..., onde compraram casa; em 2012 compraram a propriedade no ..., aqui vindo a construir a sua casa e FF veio a falecer em 2018, ficando EE sozinha com os seus animais;

80 - Em 2019, através de uma amiga comum, EE veio a conhecer AA, o qual é uma pessoa gentil e carinhosa com EE e com os demais;

81 - EE tem várias formações, feitas na ..., nomeadamente para dar aulas de equitação, para pilotar ultraleves, como operadora de rádio, de massagista/terapeuta;

82 - Quando chegou a Portugal, EE fez um curso de língua portuguesa para estrangeiros e, posteriormente tirou a sua licença de patrão local e a sua licença de uso e porte de arma, sendo também atleta da Federação Portuguesa de Tiro;

83 - Tem trabalhado como massagista, há vários anos, no gabinete de que é proprietária, no C...... ....., tendo clientes fiéis há vários anos;

84 - É uma pessoa gentil e boa amiga;

Factos provados quanto ao pedido de indeminização civil -

(…)

156 - Condições pessoais quanto ao arguido AA - é natural da ..., sendo o segundo de 3 filhos;

157 - O pai exercia funções como agricultor e a mãe era doméstica. Com cerca de 18 anos os pais divorciaram-se, tendo o arguido permanecido a residir com o progenitor;

158 - O arguido realizou o percurso escolar na idade regular, tendo concluído a licenciatura em ... na Universidade de ...;

159 - As dificuldades em obter trabalho regular e nomeadamente na sua área de formação, determinariam que emigrasse em 1988 para a .... Permaneceu neste país até 1992, emigrando, entretanto, para a ...;

160 - O arguido refere só ter regressado à ... de forma muito pontual e aquando do falecimento da progenitora;

161 - Enquanto residiu na ... exerceu funções como empregado de mesa e bar e funções em estabelecimentos hoteleiros, atividade a que deu continuidade na ...;

162 - Posteriormente, viria a exercer funções como responsável num campo de treino de ténis e a trabalhar como taxista e como motorista de autocarros numa autarquia local;

163 - Considera que manteve uma situação organizada, em regra sem dificuldades em obter trabalho, e garante duma situação económica autónoma. Não exerceu funções profissionais na sua área de formação académica, por não lhe ter sido reconhecido o diploma, o que atribui ao facto de ter sido realizado numa Instituição da ex-Jugoslávia;

164 - Na ... constituiu uma relação marital, sendo a companheira de nacionalidade portuguesa e tendo por essa via o arguido deslocado-se várias vezes a Portugal. Em 1995 contraíram matrimónio, vindo a relação a terminar em 2001, por aparente relação extra-conjugal da esposa. O arguido não referencia outras relações afetivas significativas;

165 - Em 2019 deslocou-se para os ..., em visita, acabando por se estabelecer por alguns meses, e, na sequência de ter constituído uma relação do tipo conjugal com EE, fixou-se na Ilha ...;

166 - Atribui à relação marital características de coesão e entreajuda, com interesses comuns entre o casal, nomeadamente em termos do cuidado a animais, à manutenção da quinta e a um estilo de vida frugal;

167 - À data dos factos, o arguido residia com a companheira e coarguida no presente Processo EE, em casa propriedade desta. AA não tinha qualquer atividade profissional, dedicando-se ao cultivo de géneros alimentícios e criação de animais, centrando o quotidiano nessas atividades e tarefas domésticas;

168 - O arguido refere que em termos económicos o agregado familiar dependia dessas atividades, ainda que efetuando sobretudo trocas com o que produzia, das poupanças que já possuía, nomeadamente resultantes da venda do apartamento que detinha na ..., e da actividade de massagista exercida pela companheira, EE;

169 - Atento o contexto isolado da habitação e o estilo de vida do arguido, o mesmo mantinha reduzidos contactos sociais. Neste contexto, manifesta uma postura algo crítica face ao funcionamento do meio social onde se insere, nomeadamente quanto a alguma permissividade face a determinados comportamentos que considera censuráveis, em particular em termos ambientais, tendo alertado as autoridades em diversas ocasiões;

170 - Atribui a essas denuncias, algum clima de desconfiança por parte da comunidade, alguma estigmatização social e uma imagem social algo negativa;

171 - AA denota alguma rigidez de funcionamento, característica acentuada pelas diferenças culturais e dificuldades de compreensão do sistema judicial português;

172 - Em contexto prisional indicia adaptação e no essencial cumprimento das regras internas, registando uma infração disciplinar;

(…)

187 - Relativamente aos antecedentes criminais do arguido AA, este não apresenta no seu certificado de registo criminal datado de 22.02.2024, qualquer condenação;

(…)

189 - De acordo com a geolocalização do telemóvel da vítima CC, nº .. ... .. 91, constata-se que aquele no dia ... de ... de 2022 entre as 8 h e 13 m e as 13 h e 07 m, encontrava-se na ... (a sua moradia), seguindo-se uma deslocação até à localidade da ..., onde reside DD e deslocou-se depois até à ..., local onde aconteceram os factos supra citados, onde esteve entre as 14 h e 8 m às 14 h e 32 m;

190 - Sendo esta a última localização conhecida da vítima.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Com interesse para decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:

1 - Na sequência do provado em 8, não se prova que o arguido AA tenha apontado ao transeunte ali referido, a pistola semiautomática, modelo 422, calibre 22, que habitualmente trazia consigo devidamente municiada;

2 - Na sequência do provado em 22, não se prova que os arguidos utilizaram na fogueira materiais inflamáveis tal como benzina e que espalharam as cinzas das vítimas;

3 - Na sequência do provado em 23, não se prova que os arguidos espalharam as cinzas das vítimas bem como, andassem numa azáfama permanente;

4 - Factos não provados quanto à contestação do arguido AA -

5 - Não se prova que quanto ao pacemaker/desfibrilhador encontrado no local do incêndio a norte, esteve exposto a um aquecimento controlado, caso contrário o seu estado teria sido consideravelmente pior (fuligem, carbonizado e presumivelmente mais danificado (do que apenas insuflado);

6 - E que o mesmo terá sido depositado no local dias após o crime;

7 - O pacemaker/desfibrilhador apreendido apresenta a descoloração típica do titânio, que indica um aquecimento até a uma temperatura de cerca de 600 graus centígrados;

8 - Uma vez que o pacemaker/desfibrilhador apreendido não apresenta uma descoloração uniforme, mas passa de amarelo dourado a violeta azulado, é improvável que tenha sido exposto a um aquecimento uniforme;

9 - Há-de presumir-se que o pacemaker/desfibrilhador apreendido só foi aquecido seletivamente, por exemplo, com um queimador de tipo bico;

10 - O pacemaker/desfibrilhador apreendido só podia ter sido depositado na fogueira norte depois do dia .../09/2022;

11 - O local onde o invólucro foi encontrado está do lado errado;

12 - O arguido é uma pessoa pacifica;

Factos não provados quanto à contestação da arguida EE -

13 - Em primeiro lugar temos que uma munição de calibre .22 dificilmente causa a morte imediata;

14 - Os invólucros das munições de calibre .22, são projetados no caso concreto, para a direita e para baixo;

15 - Nesse momento, cerca das 11h30, EE olha pela janela da cozinha e vê uma senhora já dentro da sua propriedade e a aproximar-se da residência;

16 - A sua preocupação imediata foi segurar os cães porque estes andam habitualmente soltos, com receio que os mesmos se apercebessem e começassem a ladrar;

17 - Já na rua, junto à cozinha, a senhora explicou, em inglês, que andava à procura de dois homens que tinham desaparecido, questionando se os tinham visto;

18 - EE respondeu que não e encaminhou-se para dentro de casa para prender os cães e ir buscar a chave do portão para o abrir e a senhora sair;

19 - Qual não é o seu espanto quando, ao chegar cá fora, vê a senhora a saltar o muro que limita a propriedade a oeste e a seguir para norte;

20 - Mais tarde verificaram que tinham derrubado parte do muro (a sudeste) para poderem entrar, sendo que estavam mais dois agentes no exterior da propriedade;

21- E depois apareceu miraculosamente pousado em cima da cinza da fogueira;

22 - Por outro lado, um pacemaker sujeito às temperaturas necessárias para queimar um corpo, não fica ligeiramente deformado, mas sim completamente destruído;

23 - Que o arguido AA nunca utilizou a besta porque, devido à sua dificuldade física, não tinha força para a armar;

24 - A baioneta é um objeto com mais de 70 anos e que foi guardado por FF por ser um objeto antigo, com história e que, EE, manteve por ser do seu marido;

25 - Que a garra karambit é uma faca que a arguida tinha em sua casa;

26 - Quanto às munições, arco e besta, a catana e os silenciadores, não se prova que os arguidos conheciam as características de tais armas que possuíam e sabiam que a sua detenção era absolutamente proibida em quaisquer circunstâncias, ainda assim quiseram detê-las na sua posse;

Factos não provados quanto ao pedido de indemnização civil -

(…)

Todos os restantes factos constantes das defesas apresentadas pelos dois arguidos bem como, pelo pedido de indemnização civil apresentado, ou são matéria de direito, ou são conceitos abstractos ou vagos ou juízos conclusivos ou simplesmente opiniões e pareceres que não foram levados em conta.


*


III - DE DIREITO

Enquadramento jurídico-penal.

A) - Pratica o crime de homicídio, nos termos do artigo 131º, do CP, “quem matar outra pessoa, é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.

Esta norma contém o tipo incriminador base dos crimes contra a vida humana, sendo a partir dele que a lei edifica os restantes crimes contra o mesmo bem jurídico, ora qualificando-o, como faz no artigo 132º, ora privilegiando-o, como acontece nas previsões contidas nos artigos 133º, 134º e 136º, ou introduzindo especificidades quanto ao modo de execução da morte de outrem, nos artigos 135º, 138º e 139º, ou ainda especializando o tipo subjectivo de ilícito, com a incriminação da negligência contida no artigo 137º.

O crime de homicídio consuma-se com a verificação do resultado morte, o que pressupõe retirar a vida a uma pessoa já nascida e ainda viva (tornando-se, a este nível, fundamental aferir quais os momentos do começo e do fim da vida, relevando, a este propósito, quanto ao momento em que começa a vida, as teses acerca do início do acto do nascimento ou, em alternativa, a do nascimento completo e com vida, importada do Direito Civil – art. 66º do CC e, quanto àquele em que a vida já não existe, a da chamada morte cerebral).

Trata-se de um crime de resultado, pelo que qualquer acto ou omissão desde que ligada ao resultado, por um nexo de imputação, à luz da teoria da causalidade adequada, nos termos do artigo 10º do Código Penal, é susceptível de conduzir à sua verificação, do ponto de vista objectivo.

A nível subjectivo, a imputação do resultado ao seu autor faz-se com base no dolo, em qualquer das modalidades, directo, necessário ou eventual, a que alude o artigo 14º do citado diploma.

(…)

As normas incriminadoras contidas no artigo 132º do Código Penal, prevêem formas qualificadas do crime de homicídio, fazendo-o com recurso à combinação entre uma cláusula geral extensiva e assente em conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade, no seu nº 1 e entre os exemplos-padrão, nas diversas alíneas do nº 2 do mesmo normativo, que mais não são do que circunstâncias indiciadoras dessa especial perversidade ou censurabilidade, referindo-se umas aos factos, outras ao seu autor.

Como resulta da cláusula geral contida no nº 1 desse preceito, a agravação só se verificará, se e quando, a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, enunciando, depois, no nº 2, circunstâncias cuja verificação objectiva poderá dar lugar a essa agravação.

A introdução da expressão “entre outras” naquele nº 2, implica, desde logo, que a enumeração de circunstâncias aí contidas não é taxativa, mas meramente exemplificativa.

Por outro lado, estas circunstâncias agravantes modificativas não são de funcionamento automático, como resulta da inclusão da expressão “é susceptível”, no mesmo preceito.

Assim sendo, nem sempre a prova de factos integradores de alguma das circunstâncias expressamente previstas no nº 2 do artigo 132º, desencadeará a agravação, do mesmo modo que, da não verificação de qualquer delas, não se segue que não possam descortinar-se outras que justifiquem a qualificação do homicídio, abrangendo-as a expressão “entre outras”.

“No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do artigo 132º, no caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado “Leitbild” dos exemplos-padrão, que, de alguma maneira, faz com que o caso deva ser considerado como pertencente a um grupo de valoração estratificado a partir do tipo fundamental” - (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pág. 64).

Essa diferença de grau refere-se, essencialmente, à culpa, embora, não deixe de ter repercussões na agravação do desvalor da conduta, em sede de ilicitude.

Mas é a existência de um especial tipo de culpa que constituí a matriz da agravação, que além do argumento de ordem literal acima exposto, justifica também o não funcionamento automático dos exemplos-padrão.

É o critério generalizador da verificação de uma “especial perversidade ou censurabilidade” do agente que determina a verificação de um tipo de culpa agravado, já que é ele que delimita a enumeração exemplificativa contida nas alíneas do nº 2 do artº 132 que mais não são do que a concretização desses conceitos genéricos, sem que, contudo, esgotem a inventariação das situações reveladoras dessa especial censurabilidade ou perversidade.

Com efeito, mesmo que alguma das circunstâncias enumeradas naquele nº 2 se verifique, sem a especial censurabilidade ou perversidade, não haverá agravação, sendo a sua existência também que justifica a qualificação do homicídio quando da valoração global dos factos ela resulte evidenciada, mesmo que estes não integrem qualquer das alíneas do mesmo nº 2 do artigo 132º.

Nesta última hipótese, porém, vulgarmente designada de homicídio qualificado atípico, mostra-se “indispensável determinar, com particular exigência e severidade” a verificação da «qualificação», sob pena de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra de homicídio doloso”. - (Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, 37 e Acs. do STJ de 03.10.2002; de 27.05.2004; de 15.12.2005; de 29.03.2007 e de 25.04.2007, in http://www.dgsi.pt).

Tais circunstâncias são, pois, além de meramente exemplificativas e de funcionamento não automático, elementos constitutivos do tipo de culpa. - (Neste sentido, Eduardo Correia e Figueiredo Dias, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, 1979, 24 e seguintes; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, p. 27; Cristina Monteiro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, 122 e seguintes; Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes Contra as Pessoas, p. 48 e ss; Teresa Serra, Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, p. 40. Na Jurisprudência, Acs. do STJ de 23.07.86, BMJ nº 359, p. 395; de 06.06.90, CJ, Tomo III, p. 19; de 04.07.96, CJ, Tomo II, p. 222; de 7.12.99, CJ, Tomo III, pág. 234; de 14.11.2002; de 12.06.2003; de 27.05.2004; de 20.04.2006 e de 07.06.2006, in http://www.dgsi.pt ).

A especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, enquanto que, a especial perversidade tem por objecto as componentes da culpa referentes ao agente.

“Parece ser (...) o pensamento da lei (...) o de pretender imputar à "especial censurabilidade”, aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas” - (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, pág. 29 e Acs. do STJ de 27.05.2004 e de 17.10.2007, in http://www.dgsi.pt).

A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.

O crime de homicídio apenas pode ser qualificado e integrar o crime do artigo 132º do Código Penal se, a atitude do agente manifestada no facto, e medida pela valoração inscrita nas circunstâncias enunciadas na lei através dos exemplos-padrão, se apresentar especialmente censurável ou revelar e expor externamente especial perversidade. – Ac STJ 14.2.2003 Pº 03P2024.

As circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias de um maior grau de ilicitude.

Cabe ainda referir que, existindo várias circunstâncias qualificativas em concurso efectivo, nos termos de algumas das alíneas do nº 2 do artigo 132º do CP, deve o arguido/o agente, ser condenado pela qualificativa mais grave, e as restantes qualificativas devem ser consideradas na determinação concreta da pena.


*


Quanto ao homicídio qualificado previsto no artigo 132º/2-e) do CP, determina que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, a circunstância do agente ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.

(…)

Motivo fútil deve ser entendido como “o motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano, avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Ele assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça”. - Ac STJ de 31.1.2012 Pº 894/09.PBBRR.S1.

Como se escreveu no Ac STJ de 26.11.2008 Pº 08P3706 “a propósito da agravante qualificativa (…) «agir por motivo fútil», refere-se a fls. 39 do Comentário Conimbricense do Código Penal que «o exemplo padrão constante da alínea e) é, diferentemente do que sucede com os anteriores, estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente. (…). Ser determinado a matar por qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.

Que motivo fútil é aquele que não tem qualquer relevo; que não pode sequer razoavelmente explicar, e muito menos de algum modo justificar, uma determinada conduta. Trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação para a conduta criminosa. - (Ac. do STJ de 22/3/90, proc. n.º 40582).

«Fútil» é sinónimo de «frívolo», «sem valor»; e antónimo de «sério», «grave», «importante». - (Ac. do STJ de 19/4/90, BMJ 396-253).

Motivo fútil, como tem sido referido no STJ, é o que não é motivo; é o motivo sem relevo, o que de modo algum explica o comportamento do agente, nem o torna compreensível - (Acs. do STJ de 27/2/91, AJ n.º 15/16 e BMJ 404-240, de 6/3/91, AJ n.º 17, de 17/4/91, AJ n.º 18 e BMJ 396-222, de 7/7/93, proc. n.º 44606).

Motivo fútil, é o motivo perante o qual não se compreende a prática do crime, que resulta inadequado à luz dos critérios normais do homem médio - (Acs. do STJ de 2/10/96, proc. n.º 46573, de 5/2/97, proc. n.º 1026/96, de 21/5/97, proc. n.º 107/97, de 22/5/97, proc. n.º 152/9, de 11/12/97, proc. n.º 1050/97, de 18/2/98, proc. n.º 1414/97, de 2/7/98, proc. n.º 37/98).

Só podem ser considerados como fúteis os motivos subjectivos (ou antecedentes psicológicos) que pela sua insignificância forem desproporcionados com a reacção homicida. - (Acs. do STJ de 13/02/97, proc. n.º 986/96, de 18/02/98, proc. n.º 1414/97, de 02/07/98, proc. n.º 37/98).

Sendo exacto que o "motivo fútil" se caracteriza em primeira linha pela sua desproporcionalidade com o crime praticado, haverá que reconhecer que desproporcionalidade existirá sempre entre o homicídio e qualquer razão que o motive.

Assim, algo mais terá de acrescer àquela desproporcionalidade, para que um motivo de crime possa qualificar-se de fútil.

Esse algo mais, consiste na insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais alta, na brutal malvadez, ou traduz-se em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos, que pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reacção homicida - (Acs. do STJ de 12/06/97, proc. n.º 359/97 e de 17-10-2001, proc. nº 2807/01-3).

O vector fulcral que identifica o "motivo fútil" não é pois tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva. - (Ac. do STJ de 4/10/2001, proc. nº 1675/01-5).

No mesmo sentido se tem pronunciado a Doutrina. - (Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal Brasileiro, V, pág. 164, Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, II,3.ª Ed., pág. 66, Júlio Mirabete, Manual de Direito Penal, II, pág. 50, Comentário Conimbricense, I, pág. 32, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 11.ª Ed., pág. 443).

No caso concreto, como se viu, o arguido AA que apenas viu duas pessoas junto ao muro da propriedade da companheira e aqui também arguida a EE, e onde ele também habitava, muro que se localiza do lado sul da propriedade e que confronta directamente com a orla marítima, por volta das 14 horas e qualquer coisa, ou simplesmente no prédio contíguo que pertence também ao Sr. DD (mas não só a ele), mas como este confronta directamente com o prédio pertencente à arguida EE, pois os senhores BB e CC, com certeza que estariam próximos do muro que pertence à arguida.

(…)

E não houve mais nenhum outro movimento registado quanto a esta vítima.

Desconhece-se os pormenores do que terá acontecido naquele momento, entre aqueles dois senhores e o arguido AA: a verdade é que o arguido AA muito desagradado com a presença dos senhores apontou-lhes a sua pistola Smith & Wesson e disparou contra os dois, matando-os.

Desconhece-se se foi apenas disparado um tiro para cada uma das vítimas, isto é, dois tiros, ou se houve depois, mais um tiro de confirmação de morte para aquelas duas pessoas (neste caso, mais dois tiros de confirmação).

Sabemos, que BB e CC foram baleados.

(…)

Nenhuma destas pessoas se conhecia antes, é o que se prova nos autos.

Apenas se conclui face ao exposto, que o desagrado, o incómodo que o arguido AA sentiu, pela presença destas pessoas próximo de si, ou melhor, próximo da propriedade onde habitava, não pode minimamente, explicar o ato de tirar a vida àqueles BB e CC.

É um motivo fútil, inapropriado, inadequado, desproporcionado para que possa explicar o inexplicável: o matar duas pessoas da forma que sucedeu.

Pelo que, se verifica a previsão desta qualificativa, sendo que o arguido agiu determinado sem dúvida, por um motivo fútil, desproporcional e inexplicável face à morte que quis infligir às suas vítimas, nos termos do artigo 132º/2-e), do CP.

O que é absolutamente, censurável e perverso por parte do arguido AA.

E com isto matou duas pessoas.

Logo, resulta do supra exposto que, estão preenchidos os elementos objectivo e subjectivo da prática de dois crimes de homicídio, consumados e com a qualificativa mais grave praticada pelo arguido AA, o que comete com especial perversidade e censurabilidade nas pessoas dos ofendidos BB e CC, p. e p. no artigo 132º/1 e 2-e), do CP.

As outras duas qualificativas previstas no artigo 132º/2 (o praticar os atos acima referidos utilizando um meio particularmente perigoso e frieza de ânimo, previstos nas alíneas h) e j), deste mesmo número 2, do CP, serão tidos em conta na pena concreta a aplicar ao arguido.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, verificam-se todas as condições de punibilidade.


*


(…)

*


Quanto ao homicídio qualificado previsto no artigo 132º/2-j) do CP, determina que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, a circunstância do agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

(…)

No caso concreto, como se viu, o arguido AA ao decidir matar duas pessoas simplesmente porque ficou incomodado e desagradado com a respetiva presença junto ao muro da propriedade onde habitava, tendo consigo uma pistola de calibre .22, que decidiu levar consigo para assim perpetrar os crimes que perpetrou, pistola essa que com certeza estaria em casa, mas através do seu sistema de videovigilância viu-os e assim ao aperceber-se da presença destes dois senhores junto ao seu muro, foi buscar a dita pistola e a levou consigo, é mais uma vez reveladora e conclui-se, pela sua frieza de raciocínio e decisão de tirar a vida a duas pessoas, totalmente indiferente às consequências da sua conduta, o que revela a especial perversidade de carácter mais uma vez evidenciada, e censurabilidade de personalidade deste senhor arguido.

Pelo que, se verifica a previsão desta qualificativa, sendo que o arguido agiu com frieza de ânimo, transportando consigo uma pistola de calibre .22, precisamente adequada com o seu disparo de provocar a morte de duas pessoas, o que decidiu de fazer previamente antes de ir abordar as vítimas, que por sua vez não tinham como se defender daquele instrumento letal que lhes foi dirigido, o que tudo revela a especial perversidade e censurabilidade, a má formação de carácter, a insensibilidade da personalidade perante duas vidas humanas, nos termos do artigo 132º/2-j), do CP.

Logo, resulta do supra exposto que, estão preenchidos os elementos objectivo e subjectivo da prática de dois crimes de homicídio, consumados e com a qualificativa menos grave praticada pelo arguido AA, o que comete com especial perversidade e censurabilidade nas pessoas dos ofendidos BB e CC, p. e p. no artigo 132º/1 e 2-j), do CP.

Esta qualificativa prevista no artigo 132º/2-j) do CP, será tida em conta na pena concreta a aplicar ao arguido.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, verificam-se todas as condições de punibilidade.


*


C) Quanto ao crime de detenção de arma proibida, dispõe a Lei nº 5/2006 de 23.02, na versão da Lei nº 50/2019 de 24.07, ou Lei das Armas:

(…)

Tudo visto, foram apreendidas na residência dos arguidos AA e EE, para o que agora importa, 1545 munições de calibre .22, 4 carregadores.

Ora, nesta parte nada há de ilícito porquanto as duas armas manifestadas na PSP, isto é a pistola Smith & Wesson de calibre .22 e a carabina TOZ também ela de calibre .22, são armas da classe C e como tal são duas e podem ter até 2000 munições.

(…)

Logo não se encontra provado o artigo 86º/1-e) da lei das armas.

(…)

Nesta parte e visto o direito como acima se expôs, subsumindo-se os factos provados ao direito em conjugação com os não provados, temos que o arguido AA, comete um crime de detenção de arma proibida, p. e p., no artigo 86º/1-d), da Lei 5/2006 de 23.02 (versão da Lei nº 50/2019 de 24.07), em autoria material e na forma consumada, porque detém os punhais, a garra karambit e a baioneta, que são armas proibidas, o que resultou da conjugação de toda a prova produzida e das regras da experiência (artigo 127º do CP).

(…)

No tocante, à catana, às munições de calibre .22, à besta e arco e aos silenciadores, isso é legal, não constituindo crime e por isso vão os arguidos nesta parte absolvidos.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, verificam-se todas as condições de punibilidade.


*


(…)»

2. Tratando-se de recurso interposto de acórdão condenatório em pena de prisão superior a cinco anos, proferido por tribunal coletivo e restrito à matéria de direito, é inquestionável a competência do STJ para o respetivo conhecimento, nos termos dos artigos 434º e 432º, n.ºs 1, al. c) e 2, do CPP.

Também se afigura indiscutível a legitimidade do MP e o seu respetivo interesse em agir no presente recurso, mesmo à luz da interpretação mais lata do artigo 401º do CPP feita pelo AFJ n.º 2/2011, de 16.12.2010, publicado Diário da República, 1.ª série — N.º 19 — 27 de Janeiro de 2011, pois, se é verdade o acórdão recorrido ter confirmado a acusação pública e a decisão de pronúncia que a validou, acrescentando-lhes, após devida comunicação, a referência às normas legais pertinentes à punibilidade dos arguidos com a pena acessória de expulsão/afastamento do território nacional, não o é menos que os fundamentos e pedidos agora formulados no recurso o foram também e expressamente nas alegações orais produzidas pelo MP em audiência de discussão e julgamento, na sessão do dia 28.02.2023, conforme se alcança da audição do correspondente registo áudio, acessível através da aplicação “media studio”, da plataforma digital Citius em uso nos tribunais, entre as horas 11.04.33 e 12.05.07.

E a não aplicação in casu do dever de notificação aos arguidos e da concessão aos mesmos de prazo para pronúncia sobre a eventual alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na decisão recorrida quanto aos crimes de homicídio, previsto no artigo 424º, n.º 3, do CPP, na medida em que a mesma já é do seu conhecimento, atenta a notificação que lhes foi feita da motivação e conclusões do recurso interposto pelo MP e do despacho judicial que o admitiu, com a inerente faculdade de resposta que a lei lhes faculta, da qual, por opção, não se prevaleceram2.

Avancemos para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra da sua precedência lógica.

2. 1. Qualificação dos crimes de homicídio nos termos das alíneas e), h) e j) do n.º 2 do artigo 132º do CP e sua agravação nos termos do artigo 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.2 [conclusões I a XVIII]

O arguido AA foi, entre o mais, condenado em duas penas parcelares de:17 anos de prisão, como autor material e na forma consumada de dois crimes de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, n.º 2, al. e), parte final, do CP.

Todavia, conforme decorre da fundamentação e dispositivo do acórdão recorrido e como constava da acusação pública, confirmada pelo despacho de pronúncia, consideraram-se também verificadas as circunstâncias qualificativas daqueles crimes previstas nas als. h), segunda parte, e j) primeira parte, daquele n.º 2, que não relevaram para efeitos da sua qualificação, mas apenas enquanto circunstâncias agravantes gerias para determinação da medida concreta das respetivas penas.

O MP, porém, em linha com a argumentação desenvolvida nas alegações orais produzidas em audiência de discussão e julgamento e pedido aí expressamente formulado, não se conformou com aquela decisão quanto à verificação da circunstância qualificativa prevista na segunda parte da al. h) do n.º 2 do artigo 132º do CP, nem com a desconsideração e não aplicação aos crimes de homicídio qualificado da agravante geral prevista no artigo 86º, n.º 3, do RJAM.

Para tanto, suportado em jurisprudência que cita, nomeadamente no acórdão do STJ, de 29.06.2023, proferido no processo n.º 15/11.3PEALM.L5:S1, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota3, afirma, em síntese:

- os factos provados não integram a qualificativa agravante prevista na 2ª parte da al. h) do n.º 2 do artigo 132º do CP;

- antes impõem a aplicação ao caso em apreço da agravante geral prevista no artigo 86º, n.º 3, do RJAM.

Vejamos se lhe assiste razão.

A questão reconduz-se a saber se a arma de fogo com a qual se deu como provado ter o arguido disparado e, em consequência, matado as vítimas, integra o conceito de instrumento particularmente perigoso previsão na referida alínea e se, não o integrando, pode e deve considerar-se apta a preencher a agravante geral consagrada no referido preceito do RJAM.

Recordemos os factos provados sobre o uso e caraterísticas da arma em discussão:

“10 - No dia ... de ... de 2022, o arguido ao ver BB e CC junto ao muro da sua propriedade, junto ao vértice sul, desagradado com as suas presenças no local, apontou e disparou contra as vítimas, de forma não concretamente apurada;

11 - Os ferimentos causados pelos disparos provocaram derramamento de sangue, os quais foram aptos a causar, como causaram, a morte das vítimas;

12 - Foi encontrada no local, numa das reentrâncias do muro virado para a orla marítima (na parte exterior) o invólucro de uma munição deflagrada por arma do arguido, composta de pistola semiautomática, modelo 422, calibre .22 Long Rifle (5,6 mm no sistema métrico) e marca Smith & Wesson;

25 - Dentro da residência, os arguidos guardavam:

I) Uma pistola semiautomática da marca Smith & Wesson, modelo 422 de 12 tiros, de calibre .22 com as platinas em madeira e o número de série UBB2400;

27 - Os arguidos conheciam as características das armas que possuíam e sabiam que a sua detenção era absolutamente proibida em quaisquer circunstâncias, ainda assim quiseram detê-las na sua posse e, no caso do arguido, fazer uso das mesmas;

56 - A pistola semiautomática, modelo 422, calibre .22, de marca Smith & Wesson era propriedade do falecido marido de EE, FF;

57 - Após o óbito de FF, em ...-...-2018, EE entregou a referida arma à PSP, bem como a carabina TOZ e uma outra arma de percussão, de Marca Liege;

58 - Posteriormente, já depois de ter conhecido AA e de ter iniciado uma relação com este, resolveram obter as licenças de uso e porte de arma necessárias e fazerem o processo de transmissão das armas, ficando a pistola em nome de AA, e a carabina em nome de EE e a arma de percussão Liege ficou entregue à PSP da ...;

59 - As armas apenas saíam quando os arguidos se dirigiam ao clube de tiro de ..., do qual fazem parte, ou quando praticavam tiro ao alvo, na sua propriedade”.

Serão estes factos suficientes para permitir dar por verificada a circunstância qualificativa do n.º 2, al. h), 2ª parte, do artigo 132º do CP, ou seja, que o arguido utilizou “meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática crime de perigo comum”.

O acórdão recorrido, apesar de ter excluído a detenção e uso de tal arma do crime de detenção de arma proibida pelo qual os arguidos foram condenados, o que desde logo afasta a parte final do segmento normativo antes reproduzido relativo à prática de crime de perigo comum, considerou que as circunstâncias concretas do caso permitem integrá-la no conceito de “meio particularmente perigoso”, com os seguintes fundamentos:

“Quanto ao homicídio qualificado previsto no artigo 132º/2-h) do CP, determina que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, a circunstância do agente praticar o facto juntamente com pelo menos mais duas pessoas, ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

(…)

O meio “particularmente” perigoso, é aquele que tem aptidão particular para causar a morte, ou seja, uma perigosidade tal que, para além de dificultar consideravelmente a defesa da vítima, pode atingir terceiros de forma indiscriminada por exemplo, gasolina incendiada, ou uma caçadeira de um cano de calibre 12 com cartuchos com 12 ou 16 bagos de zagalote, com diâmetro de 7,5 mm e 2,4 gr., respectivamente (assim no acórdão do STJ, de 1.10.2003, in SASTJ, 74, 111), um automóvel, uma adaga com duas linhas de corte, sendo uma delas em serra e a outra em linha com o comprimento de lâmina de 21,5 cm e cabo de 14,5 cm, um taco de basebol, ou uma faca de mato com lâmina corto-perfurante que mede 19,3 cm de comprimento.

Mas não é um instrumento particularmente perigoso uma arma de fogo proibida (acórdão do TRP de 17.12.2008 in CJ, XXXIII, 5, 225), nem uma faca de lâmina articulada e cabo em material polimérico, com comprimento de lâmina de 9,5 cm e largura máxima de 2,5 cm utilizada na prática do homicídio (acórdão do STJ de 7.12.2011, in CJ, Acs. do STJ, XIX, 3, 227), nem uma machada com o comprimento total de 30 cm, com o cabo em madeira com cerca de 18 cm e uma lâmina cortante com cerca de 10 cm de comprimento (acórdão do STJ de 23.02.2012, processo 123/11.0JAAVR.S1).

O crime de perigo comum só qualifica o homicídio quando o agente do homicídio é também autor ou comparticipante num crime doloso de perigo comum, não sendo suficiente que ele cometa o crime de perigo comum negligentemente, nem que aproveite o crime de perigo comum cometido por terceiro sem a sua participação.

A especial censurabilidade reside na atitude do agente que não se importa com a colocação em perigo de outras pessoas além da vítima do homicídio.

Para efeitos desta alínea são crimes de perigo comum não apenas os previstos nos artigos 272º e ss., do CP como por exemplo o crime previsto no artigo 86º da Lei nº 5/2006 que substituiu o anterior artigo 275º do CP, por exemplo são armas proibidas uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada, um spray lacrimogéneo, ou uma soqueira (acórdão do TRP de 9.10.2012, in CJ XXXII, 4, 109), tudo de acordo com Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª Edição actualizada da Universidade Católica Editora, págs. 514 e ss., com o que aceitamos totalmente.

No caso concreto, como se viu, o arguido AA encontrava-se na posse da sua arma/pistola Smith & Wesson de calibre .22, e simplesmente desagradado ou incomodado com a presença dos dois indivíduos o BB e o CC, ali posicionados junto à extrema, no muro da sua propriedade (onde ele vivia em união de facto com a arguida EE ela sim a dona do prédio), decidiu atirar, atingindo cada um deles de modo fatal, causando-lhes a morte pois que, no uso desta pistola que é um meio particularmente perigoso e que não deu a mínima hipótese dos dois senhores se protegerem, pois que estavam num lugar amplo, sem esconderijos e com o mar por trás deles, não tiveram qualquer forma de escapar desta arma.

A qual lhes foi apontada directamente e que lhes tirou a vida.

O que tudo revela uma especial e acrescida censurabilidade e perversidade do arguido AA, pois que ele percebeu com clareza que se encontrava perante pessoas já idosas e que não estavam por sua vez preparadas para se defenderem do uso de uma arma.

Ou seja, para além do seu motivo para os matar ser fútil, o faze-lo através de uma pistola de calibre .22, perante pessoas com alguma idade e totalmente desarmadas e ser num lugar que não era muito frequentado, tudo isso confere a especial censurabilidade e perversidade ao uso, in casu, deste meio particularmente perigoso.

Pelo que, se verifica a previsão desta qualificativa, sendo que o arguido agiu munido de um meio particularmente perigoso, provocando a morte de duas pessoas que não tinham como se defender de uma pistola que lhes foi apontada frontalmente e que mais a mais atenta a sua idade também era difícil que se pudessem defender de tal meio, para além de que o próprio espaço físico era a céu aberto, sem escapatória possível face à arma que lhes foi dirigida, o que tudo revela a especial perversidade e censurabilidade, a má formação de carácter, a insensibilidade da personalidade perante duas vidas humanas, nos termos do artigo 132º/2-h), do CP.

Logo, resulta do supra exposto que, estão preenchidos os elementos objectivo e subjectivo da prática de dois crimes de homicídio, consumados e com a qualificativa menos grave praticada pelo arguido AA, o que comete com especial perversidade e censurabilidade nas pessoas dos ofendidos BB e CC, p. e p. no artigo 132º/1 e 2-h), do CP.

Esta qualificativa prevista no artigo 132º/2-h) do CP, será tida em conta na pena concreta a aplicar ao arguido.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, verificam-se todas as condições de punibilidade”.

A reproduzida fundamentação, além de se revelar equívoca quanto ao relevo dado ou não à prática de um crime de perigo comum que a detenção e uso da arma não consubstanciou, por estar devidamente manifestada, registada e licenciada, afigura-se contraditória e insubsistente, ora dizendo que uma arma de fogo não se traduz em instrumento particularmente perigoso, ora se afirmando o seu contrário, ainda que por apelo `às concretas circunstâncias em que foi usada e à indefesa das vítimas, exercício em certa medida especulativo e meramente conclusivo, sem respaldo na matéria de facto provada a propósito, a começar pelo transcrito ponto 10, que culmina com a afirmação de que o uso da arma contra as vítimas decorreu em circunstâncias não concretamente apuradas.

Tanto bastaria para considerar incorreta a qualificação dos crimes de homicídio em apreço pela questionada alínea, mesmo à luz da jurisprudência citada que admite a particular perigosidade de uma arma em função das concretas circunstâncias do seu uso, em particular da posição desamparada ou de indefesa da vítima, sem contudo dispensar que da imagem global dos factos possa indiciar-se ou extrair-se o tipo especial de culpa reclamado pela cláusula geral do n.º 1 do artigo 132º do CP, que se reconduz à possibilidade de, sobre o autor do crime de homicídio, pela sua conduta ilícita particularmente desvaliosa e atitude ou personalidade desviante por ela revelada, formular um particular e acentuado juízo de censura e/ou de perversidade.

Acresce que, como alega o MP, a orientação jurisprudencial atualmente predominante no STJ, em conformidade com o acima referenciado acórdão de 29.06.2023 e os demais nele mencionados4, todos alinhados com a melhor doutrina nele também resenhada, afasta convincentemente a tese sufragada no acórdão recorrido, na medida em que a utilização da referida arma de fogo, cujas exatas caraterísticas e circunstâncias de utilização não ficaram apuradas, não evidencia a particular perigosidade legalmente reclamada no exemplo padrão em análise relativamente a qualquer outra arma de fogo comumente usada para matar, pese embora o normal ou mesmo elevado perigo resultante do seu uso.

Afastado, como se afigura indiscutível, o preenchimento da qualificativa prevista no artigo 132º, n.º 2, al. h), 2ª parte do CP no caso em apreço, sem prejuízo da manutenção da qualificação dos crimes de homicídio cometidos pelo arguido AA, nos termos das suas alíneas e) e/ou j), que não vêm questionadas, coloca-se a questão de saber se deve ou não operar a agravante geral do artigo 86º, n.º 3, do RJAM, como reclama o MP no seu recurso.

Ora, como também se refere naquele mencionado acórdão e aqui se acompanha e tem por integrado “19. O n.º 3 do artigo 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar a uma agravação mais elevada; a agravação não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação [assim, os acórdãos de 13.4.2016 (Pires da Graça), Proc. 294/14.4PAMTJ.L1.S1, e de 6.4.2017 (Helena Moniz), Proc. 1183/15.0JAPRT.P1.S1, e de 15.11.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, em www.dgsi.pt].

O uso de arma, comportando um fator de agravação da ilicitude em função da perigosidade para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos criminalmente protegidos, não constitui elemento típico do crime de homicídio; sendo um crime de execução livre, ao tipo de homicídio é indiferente a forma como o resultado morte é provocado [acórdão de 9.3.2022, Proc. 874/20.9JAPRT.S1; cfr. também o citado acórdão de 07.05.2015, e, entre outros, o acórdão de 11.03.2021 (Margarida Blasco), Proc. 75/20.6JAFAR.S1, em www.dgsi.pt).

Disse-se no acórdão de 25.10.2017 (Oliveira Mendes), Proc. 1504/15.PBCSC.L1.S2 (em www.dgsi.pt): “A agravação prevista no n.º 3 do art. 86.º do RJAM (…) opera pelo simples cometimento do crime com arma, excetuando-se apenas os casos em que o porte ou uso da arma é elemento do respetivo crime ou a lei já preveja agravação mais elevada para o crime em função do uso da arma, o que não é o caso. (…) E sempre nos permitimos enfatizar ainda, a propósito da questão da sobredita agravação, (…) que, como o STJ vem também dizendo, aliás uniformemente, nada obsta a que, mesmo no quadro do homicídio qualificado, possa ser convocada essa agravante geral. Nesse sentido, e entre outros, decidiram já os Acórdãos de 31-03-2011, proferido no Processo n.º 361/10.3GBLLE, da 5.ª Secção, de 18-01-2012, proferido no âmbito do Processo n.º 306/10.0JAPRT.P1, da 3.ª Secção, de 26-04-2012, proferido no âmbito do Processo n.º 293/10.5JALRA.C1.S1, da 5.ª Secção, de 12-03-2015, proferido no Processo n.º 185/13.6GCALQ.L1.S1, da 3.ª Secção, de 25-03-2015, proferido no Processo n.º 1504/12.8PMLRS.L1.S1, também da 3.ª Secção, e de 7-05-2015, proferido no Processo n.º 2368/12.7JAPRT.P1.S2, da 5.ª Secção.

20. Em síntese, não sendo o uso de arma elemento do tipo de crime de homicídio, e não levando, no caso, ao preenchimento de circunstância qualificativa do tipo de crime do artigo 132.º, não há fundamento para afastar a agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas”.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, procede esta questão.

2. 2. Medida das penas parcelares de prisão a aplicar aos crimes de homicídio qualificado agravado [conclusões XIX a XXV].

O recorrente não questiona a pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão aplicada ao arguido AA, em resultado do cúmulo jurídico efetuado das cinco penas de prisão em que foi condenado pela prática de outros tantos crimes, por esse ser o seu limite máximo inultrapassável, nos termos do artigo 77º, n.º 2, do CP.

No entanto, peticiona o aumento para 19 (dezanove) anos das penas parcelares de 17 (dezassete) anos de prisão que lhe foram aplicadas pela prática de cada um dos dois crimes de homicídio qualificado integrados naquele cúmulo, na eventualidade verificada da procedência da sua antecedente pretensão relativa à agravação desses crimes.

Tendo essa anterior pretensão logrado provimento, forçoso é concluir, desde logo, pela modificação da moldura penal abstrata ou legal a considerar na determinação da medida concreta das penas a aplicar-lhes, por terem passado a ser crimes de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, do CP e 86º, n.º 3, do RJAM, situando-se agora aquela moldura entre os 16 (dezasseis) e os 25 (vinte e cinco) anos de prisão, em lugar da anterior situada entre os 12 (doze) e os 25 (vinte e cinco) anos.

Consequentemente, pese embora as ditas penas tenham sido fixadas no acórdão recorrido em 17 (dezassete) anos de prisão, dentro, portanto, dos limites da nova moldura penal abstrata, importa verificar se essa medida se perfila consentânea com a referida agravação e as finalidades e critérios considerados naquele acórdão à luz dos artigos 40º e 71º do CP, quanto mais não seja por razões de coerência interna da própria decisão.

Vejamos.

É hoje consensual a ideia de que a determinação concreta da pena não está dependente de qualquer exercício discricionário ou “arte de julgar” do juiz, não se compadece com o recurso a critérios de índole aritmética, nem almeja uma “precisão matemática”, antes reclama a ponderação e valoração das finalidades de prevenção das penas e dos critérios da sua escolha e dosimetria, sempre por referência à culpa do agente, como seu necessário pressuposto e limite inultrapassável, em conformidade com o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do CP5.

Conforme, aliás, constitui jurisprudência constante do STJ e pode ver-se, por todos, no acórdão de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

Acresce que, sem esquecer que o nosso ordenamento jurídico-penal concebe os recursos como remedio jurídico e não como novo julgamento, também em matéria de escolha e determinação da medida da pena, de que decorre o dever do tribunal ad quem se abster, em princípio, de qualquer intervenção modificativa, salvo inobservância das operações e critérios legalmente estipulados ou de manifesta injustiça da pena, por desproporcionalidade ou desnecessidade6, no caso em apreço essa modificação pode justificar-se pela simples, mas relevante referida requalificação jurídica dos crimes de homicídio e correspondente aumento da sua moldura penal abstrata ou legal.

No que aqui releva, a fundamentação do acórdão recorrido a este propósito foi do seguinte teor:

«D) Escolha e medida da pena.

O crime de homicídio qualificado, p. e p., nos artigos 132º/1 e 2-e), h) e j) do CP, é punido com de prisão de doze anos a vinte e cinco anos.

(…)

No crime de homicídio qualificado, já sabemos que punimos apenas por uma circunstância agravante/qualificativa (a mais grave de todas) e as outras duas circunstâncias qualificativas vão contar na medida concreta da pena.

(…)

Por sua vez, dispõe o artigo 40º do CP que, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre que, e tanto quanto possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa - nulla poena sine culpa - a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.

A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.

A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; esse logicamente não pode ser outro que não o mínimo de pena que em concreto ainda realiza eficazmente aquela protecção.

Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem todavia sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.

Ora se, por um lado a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que - dentro claro está da moldura legal - a moldura da pena aplicável ao caso concreto, há-de definir-se entre o mínimo imprescindível a estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

Assim, a medida das penas de acordo com o que dispõe o artigo 71º do CP, determina-se em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

A determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:

a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) a intensidade do dolo ou da negligência;

c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) as condições pessoais do agente e a sua condição económica;

e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deve ser censurada através da aplicação da pena.

No caso dos autos, e quanto ao arguido AA, atenta a gravidade dos factos praticados designadamente, a profanação e destruição de dois cadáveres bem como, a detenção de várias armas proibidas, as quais são meios muito perigosos de se deter em qualquer lugar mais ainda se for em casa, a acrescer os dois homicídios consumados e agravados/qualificados por três circunstâncias que evidenciam a especial perversidade e censurabilidade no seu cometimento, a elevada ilicitude dos factos, o dolo ser muito intenso e persistente ao longo do tempo que leva a cometer os crimes e até fazer desaparecer os dois cadáveres, nada o tendo feito demover, ao que acresce a posição do arguido durante o julgamento que nega a prática dos crimes, mostrando-se totalmente insensível ao cometimento dos mesmos, não evidenciando qualquer arrependimento, denotando um baixo carácter e uma personalidade egoísta, auto-centrada, de total desprezo pelo valor supremo que é a vida humana, pelo motivo fútil que evidenciou ao tirar a vida das duas vítimas nos autos, revela ainda um carácter mesquinho, frio e calculista, intolerante, razão pelo que o tribunal opta pela pena de prisão, para o arguido AA.

(…)

Portanto, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e assegurar a eficácia do sistema penal.

O abalo, a intranquilidade a ponderar, arrancam da importância do bem ou valor violados e seu grau de reiteração, por isso se pede à pena a finalidade de tranquilizar o tecido social, de atenuar o alvoroço gerado pelo afrontamento à lei, bem como dissuadir potenciais criminosos, contendo os seus instintos primários.

Em caso algum, qualquer que seja a sua valência, a ponderação desses interesses pode suplantar a medida da culpa, que limita pelo topo a medida da pena.

Pelo que, a pena a aplicar aos arguidos deve fazer-lhes sentir a gravidade da sua conduta e de um modo justo, equilibrado e razoável e adverti-los a que de ora em diante, não devem voltar a prevaricar, respeitando os valores que as normas legais protegem, sendo que in casu, atenta a forma como se deu por provada quanto ao cometimento destes crimes, é muito grande as necessidades de prevenção especial, quer quanto ao arguido AA, quer quanto à arguida EE, sendo por de mais evidentes as graves necessidades de prevenção geral, quanto a toda a sociedade, sem esquecer o comportamento altamente reprovável dos dois arguidos durante o julgamento pela insolência e má educação demonstradas.

A favor dos arguidos milita o facto de não possuírem averbado qualquer antecedente criminal e de serem trabalhadores.

Temos aqui ainda a relevar e a sopesar, as duas circunstâncias qualificativas que não puderam ser tomadas em consideração supra: o cometer o homicídio com meio particularmente perigoso e com total frieza de ânimo no caso do arguido AA e no caso de ambos os arguidos, por responderem ainda por um crime de arma proibida.

Por conseguinte e tudo sopesado, entendemos ser adequado e proporcional punir o arguido AA, do seguinte modo:

- pelo crime de homicídio qualificado, p. e p., nos artigos conjugados 131º/1 e 132º/2-e), todos do CP, em dezassete (17) anos de prisão, cometido na pessoa de BB;

- pelo crime de homicídio qualificado, p. e p., nos artigos conjugados 131º/1 e 132º/2-e), todos do CP, em dezassete (17) anos de prisão, cometido na pessoa de CC;

(…)».


*


Do trecho transcrito resulta ter o acórdão recorrido observado as operações e respeitado as finalidades e critérios relevantes para a determinação das penas concretas fixadas para os crimes de homicídio em discussão.

Todavia, como dele sobressai, essa determinação partiu de um referencial mínimo substancialmente inferior ao que agora se impõe considerar, que passou de 12 para 16 anos de prisão, mínimo de cada uma das molduras penais abstratas ou legais consideradas e a considerar em função da (re)qualificação dos aludidos crimes, naquele acórdão e no presente.

Por outro lado, valorou na determinação concreta das penas a circunstância qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132º do CP, que agora já não pode relevar, em função daquela requalificação jurídica, mantendo-se, no entanto, para esse mesmo efeito, a da alínea j), relativa à frieza de ânimo com que o arguido atuou.

Assim, tendo em conta que a favor do arguido militam apenas a ausência de antecedentes criminais registados e os seus hábitos de trabalho, embora marcados por instabilidade e precariedade laboral formal, como o próprio reconhece, cujo valor atenuativo é diminuto, por tais circunstâncias corresponderem ao normal e esperado comportamento da generalidade dos cidadãos e dos padrões de convivência comunitária numa sociedade regida pelo direito.

E que, em seu desfavor preponderam os traços de personalidade egoísta, fria e indiferente ao sofrimento dos outros seres humanos com quem interage, ainda que por si infligido, também evidenciados no cometimento dos crimes de homicídio pelos quais foi condenado, a ausência de qualquer sinal de arrependimento ou de interiorização do desvalor da sua conduta, que não assumiu, desse modo elevando significativamente as exigências de prevenção especial e a necessidade de aplicação de uma forte punição capaz de produzir os desejados efeitos regeneradores e ressocializadores que a prisão também pode e deve encerrar, se executada em conformidade com essa finalidade legal.

Ao que acrescem as prementes e muito elevadas exigências de prevenção geral, face ao duplo atentado contra a vida humana, bem jurídico supremo de um Estado de direito, fundado na dignidade e na inviolabilidade da pessoa e da vida humana, constitucional e legalmente consagrado, e, ainda, o elevado grau de ilicitude e da intensidade do dolo direto com que atuou, decorrentes da própria classificação legal dos crimes de homicídio como criminalidade especialmente violenta, nos termos do artigo 1º, als. j) e l), do CPP, e da sua qualificação agravada.

Pelo que, sem descurar a necessidade de salvaguardar a proporcionalidade das penas concretas a fixar, em termos absolutos e relativos, na comparação com a jurisprudência produzida em casos similares7 e prevenindo a hipótese de outros de maior e extrema gravidade, a que melhor se adequará a aplicação de uma pena concreta mais próxima do limite máximo da pena abstrata ou legal, se justifica um aumento das penas em que o arguido AA foi condenado pela prática dos dois crimes de homicídio qualificado agravado que se afaste do limite mínimo da respetiva moldura penal abstrata decorrente da sua requalificação, ainda que em proporção ligeiramente inferior àquela considerada no acórdão recorrido, visto que o ponto de partida é agora também mais elevado, fixando-se em medida intermédia entre as anteriormente fixadas e a proposta pelo recorrente, ou seja, em 18 (dezoito) anos de prisão por cada um dos dois crimes de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. e), do CP e 86º, n.º 3, do TJAM, dois anos apenas acima do limite mínimo da respetiva moldura abstrata, as quais se afiguram justas, adequadas e fixadas de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, sem ultrapassar a medida da culpa.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, condenar o arguido AA, como autor material, na forma consumada e em concurso real:

1. de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p., pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal e 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, cometido na pessoa de BB, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;

2. de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p., pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal e 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, cometido na pessoa de CC, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão.

b) manter o acórdão recorrido em tudo o mais.

c) Sem custas (cfr. artigo 522º, n.º 1, do CP).


*


Conhecimento imediato, com cópia, ao Juízo Central Cível e Criminal de ... (artigo 215º, n.º 6, do CPP).

Lisboa, d. s. c.

(Processado pelo relator e revisto e assinado digitalmente pelos signatários)

João Rato (relator)

Jorge Gonçalves (1º adjunto)

Vasques Osório (2º adjunto)

________


1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

 Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

2. Neste sentido e por todos, vejam-se Helena Morão e Paulo Pinto de Albuquerque, nos comentários ao artigo 424º do CPP, em Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos / org. [de] Paulo Pinto de Albuquerque, 5ª edição atualizada, vol. II, Lisboa, UCP Editora. 2023.

3. Disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

4. A que, entre outros, se acrescenta o de 30.10.2013, proferido no processo n.º 40/11.4JAAVR.C2,S1, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, também disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

5. Para maiores desenvolvimentos, pode ver-se Adelino Robalo Cordeiro, in “A Determinação da Pena”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, Volume II, Centro de Estudos Judiciários , Lisboa 1998, a pp. 30 a 54, na esteira de Figueiredo Dias, em Direito Penal 2, Parte Geral – As consequências Jurídicas do Crime.

6. Conforme ponto IV do sumário publicado do acórdão de 8.11.2023, proferido no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1, relatado pela Conselheira Ana Barata Brito, sem prejuízo, naturalmente, da amplitude sindicante dos tribunais de recurso, quando, ainda assim, concluam pela injustiça da pena, por desproporcional ou desnecessidade, como se afirmou, v. g., no acórdão do STJ, de 14.06.2007, proferido no processo n.º 07P1895, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

7. Como será o caso decidido no acima referenciado acórdão do STJ, de 29.06.2023, e também no de 31.01.2024, proferido no processo 2540/22.1JAPRT.P1:S1, relatado pelo do presente, também disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, em que se manteve a pena de 19 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado por um jovem de 17 anos.