Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | OLIVEIRA MENDES | ||
Descritores: | FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 10/21/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM * DEC VOT | ||
Referência de Publicação: | DR Iª SÉRIE, 227,23-11-2009, P. 8457-8462. | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | FIXAÇÃO DE JURSIPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | FIXADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Sumário : | «A aplicação do n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a condenado em pena de suspensão da execução da prisão, por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor daquele diploma legal, opera-se através de reabertura da audiência, a requerimento do condenado, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal». | ||
Decisão Texto Integral: | * Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: O Ministério Público, representado pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Coimbra, interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do acórdão proferido naquela Relação em 19 de Novembro de 2008, no Recurso n.º 192/04, que decidiu não ser de conhecimento oficioso, nem a requerimento do Ministério Público, após o trânsito em julgado da condenação, a aplicação de nova lei penal de conteúdo mais favorável, concretamente o n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, que faz coincidir o período de suspensão da execução da pena de prisão à pena de prisão determinada na sentença, aplicação que deverá ter lugar, apenas a pedido do condenado, com reabertura da audiência, no termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, suposta a vigência da pena (1) . Em sentido oposto indicou o acórdão da mesma Relação, de 22 de Outubro de 2008, proferido no Recurso n.º 61/05, o qual decidiu ser de conhecimento oficioso e sem necessidade de reabertura da audiência, a aplicação de nova lei penal de conteúdo mais favorável, concretamente o n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a arguido condenado com trânsito em julgado, enquanto a pena se não extinguir. * Em conferência concluiu-se pela admissibilidade do recurso, face à oposição de soluções relativamente à mesma questão de direito no domínio da mesma legislação, tendo-se ordenado o seu prosseguimento. * O Exm.º Procurador-Geral Adjunto nas alegações que apresentou formulou as seguintes conclusões: 1. As alterações introduzidas pela Lei n.º 59/07, de 4.09, em matéria de aplicação da lei no tempo, visaram reforçar a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 29º da Constituição da República e ultrapassar, assim, o juízo de inconstitucionalidade imputado à ressalva do caso julgado, inserta no n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na anterior versão. 2. Da nova redacção do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, resulta clara a opção do legislador no sentido da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, haja ou não condenação com trânsito em julgado. 3. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 164/08, para as hipóteses de ter havido condenação, transitada em julgado, o legislador estabeleceu um sistema dual: a) Aplicação oficiosa da lei mais favorável, nas situações a que alude o n.º 4, parte final, do artigo 2º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, cessando a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontra cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior; b) Reabertura da audiência, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, (introduzido pela Lei n.º 48/07, de 29-08) para efeitos de aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, quando o arguido ainda não tenha cumprido o limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa. 4. Em caso de suspensão da execução da pena de prisão, aplicada por sentença transitada em julgado, atingida a duração da pena de prisão substituída (n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07), deverá o juiz, oficiosamente, e sem necessidade de reabertura da audiência, determinar extinta a pena, caso não se verifiquem fundamentos que determinem a revogação da suspensão. 5. Nos restantes casos, ou seja fora das situações que cabem na parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, mostra-se afastada a aplicação oficiosa do disposto no n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na sua nova redacção. 6. Em tais casos, poderá haver lugar a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, para efeitos da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, tendo a lei conferido legitimidade para requerer tal reabertura apenas ao próprio condenado. 7. Termos em que: O conflito que se suscita haverá de ser resolvido, fixando-se jurisprudência, no sentido que a seguir se propõe: a. Em caso de suspensão da execução da pena de prisão, aplicada por sentença transitada em julgado, atingida a duração da pena de prisão substituída, deverá o juiz, oficiosamente, determinar extinta a pena, por força do disposto nos artigos 2º, n.º 4, parte final, e 50º, n.º 5, do Código Penal, ambos na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4.09, caso não se verifiquem fundamentos que determinem a revogação da suspensão. b. Alterando-se em conformidade, o acórdão recorrido. O recorrido não apresentou alegações. Após julgamento em conferência, cumpre decidir. * Como se reconheceu no acórdão interlocutório, verifica-se oposição de julgados. A questão ora submetida à apreciação do pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal consiste em saber se a aplicação de lei nova de conteúdo mais favorável a condenado em pena de suspensão da prisão com trânsito em julgado, cuja execução se mantém suspensa, concretamente a aplicação do regime instituído pelo n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, pode ter lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, sem necessidade de reabertura da audiência ou, ao invés, apenas poderá ser operada a pedido do condenado, com reabertura de audiência, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal. Antes de entrar na análise e apreciação da questão objecto do recurso, cumpre abordar e conhecer outra que a montante daquela se situa, de natureza prévia. Trata-se de verificar se a modificação de decisão condenatória transitada em julgado, tendo em vista a aplicação de lei posterior de conteúdo mais favorável ao condenado, à revelia de processo de revisão (2) , se compatibiliza com o princípio constitucional non bis in idem. Perante dois valores jurídicos com dignidade constitucional, de um lado o princípio da aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (3) , do outro o princípio non bis in idem na sua dupla dimensão (4) – direito subjectivo do arguido a não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e princípio objectivo consagrador do caso julgado material –, há que averiguar se a efectivação de um não atinge e pospõe o outro, ou seja, se a aplicação retroactiva de lei mais favorável ao arguido entra ou não em rota de colisão com o princípio non bis in idem. Em matéria de conflito entre direitos constitucionais vem-se entendendo que ocorre verdadeira colisão sempre que a Constituição proteja simultaneamente dois direitos em contradição concreta, isto é, quando a esfera de protecção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito constitucionalmente tutelado ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional (5). A colisão tanto pode ocorrer entre direitos, como entre um direito e um bem ou valor jurídico constitucionalmente consagrados ou entre dois bens ou valores constitucionalmente protegidos, sejam individuais, comunitários ou do Estado. Curemos pois de saber se a aplicação retroactiva de lei de conteúdo mais favorável ao arguido colide com o princípio non bis in idem. Consabido que a aplicação retroactiva de lei de conteúdo mais favorável ao arguido é susceptível de conduzir à modificação de decisão condenatória transitada em julgado, sendo certo que o caso julgado material tem por primordial efeito a intangibilidade da decisão, com força obrigatória universal, dúvidas não restam de que no caso vertente estamos perante um conflito de valores constitucionais. Certo é, porém, que nem todos os conflitos de direitos ou valores constitucionais conduzem a situações de violação (relevante) de um dos direitos ou valores, ou seja, nem todos os conflitos afectam irremediavelmente o direito ou valor atingido. Só assim será quando o conteúdo essencial do direito ou valor atingido for afectado, conteúdo expresso na norma constitucional que o consagra (6) , o qual se afere e estabelece, por um lado, a partir do núcleo fundamental, determinável em abstracto, próprio de cada direito ou valor, ou seja, do “coração do direito”, por outro lado, através do quantum da compressão/restrição a que o direito ou valor atingido é submetido, compressão/restrição que se terá de conter no mínimo necessário, tendo ainda em consideração os respectivos motivos ou fundamentos, posto que a compressão/restrição só é admissível pela necessidade de proteger ou promover um bem constitucionalmente valioso (artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República) e só na proporção dessa necessidade. Vejamos pois se a aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido afecta o núcleo essencial do princípio non bis in idem. O caso julgado material mostra-se constitucionalmente tutelado através da consagração do princípio non bis in idem, constituindo, como já se deixou consignado, a dimensão objectiva daquele princípio. Nesta dimensão são a segurança e a certeza da decisão judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal, que se visam proteger. Estão aqui subjacentes valores atinentes à imagem e credibilidade dos tribunais e ao interesse dos sujeitos processuais e da própria comunidade, designadamente, o interesse na tutela estável dos bens jurídicos, mediante a imutabilidade da decisão, essencial às legítimas expectativas dos sujeitos processuais e à confiança do cidadão e da comunidade na justiça e nos tribunais. Na sua dimensão subjectiva, porém, o princípio non bis in idem, enquanto garante da posição do arguido, integrado num processo penal justo e equitativo, tem prevalentemente em vista a protecção do condenado, defendendo-o contra a possibilidade de ser julgado por mais de uma vez pelo mesmo facto, ou seja, a possibilidade de repetição arbitrária do julgamento, com dupla punição pelo mesmo crime ou condenação após um julgamento absolutório. Nesta perspectiva é por demais evidente que o princípio non bis in idem não colide, minimamente, com o princípio da aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido. Ao invés, conjugam-se harmoniosamente. Com efeito, se a proibição do duplo julgamento pelo mesmo facto visa, obviamente, a defesa do arguido contra a possibilidade de uma condenação após uma absolvição ou de dupla punição pelo mesmo crime, ou seja, tem por desiderato, evitar uma injusta administração da justiça, torna-se claro que a aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, mais não constituindo que a correcção de decisão considerada desajustada, face a posterior/diferente valoração legislativa, em nada colide com a essência da dimensão subjectiva do princípio non bis in idem, com ele se mostrando inteiramente consonante. Acresce que a lei adjectiva penal faz depender a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável de pedido do arguido – artigo 371º-A. Mas mesmo na sua vertente objectiva inexiste verdadeiro conflito entre aquele princípio e o da aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido. Vejamos. A própria Constituição admite, em certos e determinados casos, a compressão, restrição ou limitação de direitos ou de valores constitucionalmente consagrados em ordem ao correcto exercício, protecção e defesa de outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados, mediante o estabelecimento de autorização expressa ou implícita nesse preciso sentido. Nuns casos o texto constitucional indica directa ou indirectamente a possibilidade de um direito ou valor com protecção constitucional ser comprimido ou restringido, noutros a Assembleia da República legisla nesse sentido ou autoriza o Governo (artigo 165º, da CRP) a fazê-lo (7) . No caso de a restrição ser directamente autorizada pela Constituição tem por limite a “operacionalidade mínima” ou o “alcance central de aplicação” do direito que se pretende seja exercido ou tutelado. Sendo a restrição indirectamente autorizada pela Constituição, através de lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado (artigo 165º, da CRP), a mesma deverá ater-se aos fins em nome dos quais foi autorizada e só deve ser adoptada se esses fins não puderem ser alcançados por outros meios “menos gravosos”(8). Ora, a verdade é que o legislador de 2007 (Leis n.ºs 59/07, de 4 de Setembro e 48/07, de 28 de Agosto) ao estabelecer a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável ao arguido ainda que a condenação tenha transitado em julgado, a pedido do mesmo – artigos 2º, n.º 4, do Código Penal e 371º-A, do Código de Processo Penal –, entendeu autorizar restrição ao princípio non bis in idem, na sua dimensão objectiva (caso julgado material). Por outro lado, certo é que a restrição adoptada se contém nos limites atrás referidos, consabido que a Constituição estabelece, sem qualquer excepção, o princípio da aplicação retroactiva de lei penal mais favorável ao arguido (parte final do n.º 4 do artigo 29º) (9) , o que só poderá ser alcançado se contempladas, também, as situações de condenação com trânsito em julgado. Mostra-se conforme à Constituição, pois, a modificação de decisão condenatória transitada em julgado, a pedido do arguido, tendo em vista a aplicação de lei posterior de conteúdo mais favorável, à revelia do processo de revisão. Aliás, o Tribunal Constitucional já se pronunciou neste mesmo sentido perante casos coincidentes com o dos presentes autos (10). *** *** Retomando a questão objecto do presente recurso verificamos que em defesa da posição assumida no acórdão recorrido alega-se que as alterações introduzidas às leis penais, substantiva e adjectiva (Leis n.ºs 59/07, de 4 de Setembro e 48/07, de 29 de Agosto), em matéria de aplicação das leis no tempo face a decisões condenatórias transitadas em julgado, instituem dois regimes distintos, um no caso de a nova lei se mostrar mais favorável ao condenado tout court, situação em que se atribui ao condenado o direito de requerer a reabertura da audiência para aplicação do novo regime – artigo 371º-A, do Código de Processo Penal –, o outro aplicável, somente, no caso de a pena já cumprida atingir o limite máximo da pena prevista pela nova lei, situação em que a lei substantiva manda cessar a respectiva execução e seus efeitos penais – última parte do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal –, pelo que não se enquadrando a questão decorrente da alteração introduzida ao artigo 50º, n.º 5, do Código Penal, na última parte do n.º 4 do artigo 2º deste diploma, há que a submeter ao regime instituído pelo artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, tanto mais que a aplicação automática do regime ora consagrado para a fixação do período de suspensão da execução da pena de prisão pode redundar em prejuízo do condenado e a determinação do regime mais favorável depende de um juízo ponderativo a formular e a emitir pelo tribunal, implicando nalguns casos a necessidade de produção de prova, pelo que só deve e pode ter lugar a pedido do condenado e com submissão ao princípio do contraditório, sob pena de violação do princípio non bis in idem(11). Em defesa da orientação assumida no acórdão fundamento é invocada a circunstância de o regime instituído pelo n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, ao fazer coincidir o período de suspensão da execução da pena com a duração da pena aplicada é mais favorável para o condenado que o regime pré-vigente, posto que se traduz numa redução do período de suspensão da execução da pena, razão pela qual é de conhecimento oficioso, sem necessidade de reabertura de audiência, tanto mais que a sua aplicação não depende de qualquer juízo ponderativo (12).. * Como este Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, de forma constante e pacífica, o apuramento do regime mais favorável perante sucessão de leis penais, de acordo com o disposto na primeira parte do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal (13), é feito através do cotejo dos regimes em bloco da lei vigente e da lei pré-vigente ao caso em julgamento, ou seja, pondo em confronto a globalidade daqueles dois regimes e não apenas partes ou segmentos dos mesmos, confronto que há-de ser feito em concreto, isto é, tendo em consideração as circunstâncias específicas do caso em apreciação, visto que o texto legal ao estabelecer que é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável apenas admite a aplicação de um dos regimes (14) . Aliás, foi este o entendimento assumido por Eduardo Correia no seio da Comissão Revisora do Código Penal, após dúvidas suscitadas por José Osório e por Gomes da Silva perante a expressão normas então constante do Projecto, expressão que mais tarde viria a ser substituída por regime, dúvidas sobre «se se aplicam as parcelas mais favoráveis de cada lei ou se se aplica só, em globo, a lei mais favorável», ao referir expressamente que “o que importa é que ao delinquente seja aplicado o regime previsto numa ou noutra lei, que concretamente se mostre mais favorável”(15). A Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, alterou o n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, fazendo coincidir o período de suspensão da execução da pena com a pena de prisão fixada na sentença, com a limitação de que o período de suspensão em caso algum pode ser inferior a 1 ano (16). Na redacção anterior o período de suspensão da execução da pena variava entre o mínimo de 1 e o máximo de 5 anos (17). Do cotejo das redacções vigente e pré-vigente do n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, resulta que enquanto a antiga redacção atribuía ao julgador um papel interventivo na fixação do período de suspensão da execução da pena, ficando dependente do seu julgamento a determinação daquele período, a redacção actual, fazendo corresponder o período de suspensão da execução da pena à pena de prisão determinada na sentença, com a limitação referida, retirou ao juiz qualquer possibilidade de interferência na fixação daquele período, o qual decorre directa e imediatamente da lei. Conquanto o texto legal, na redacção pré-vigente, não estabelecesse critério para determinação/fixação do período de suspensão da execução da pena, como este Supremo Tribunal se pronunciou em diversas decisões, a duração daquele período deve ser encontrada em função das concretas necessidades de socialização do condenado, necessidades a aferir a partir da sua personalidade, suas condições pessoais, características e gravidade do facto e duração da pena (18). Ora, resultando o período de suspensão da execução da pena fixado na vigência da lei anterior de considerações de natureza preventiva, enquanto que de acordo com a lei vigente aquele período tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, é evidente que o cotejo entre aqueles dois regimes não se pode circunscrever a uma mera operação de confronto entre os períodos de suspensão da execução da pena, sob pena de violação grosseira do critério legal de aferição do regime mais favorável a que atrás fizemos referência, qual seja o de que os regimes em confronto devem ser analisados na sua globalidade, não podendo ser segmentados, confronto que tem de ser feito em concreto. Tal critério, transposto para o caso ora em apreciação, impõe que a norma do n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, não seja isoladamente cotejada com a norma pré-vigente correspondente, ou seja, sem mais, devendo a procura do regime mais favorável ao condenado passar pelo cotejo do instituto da suspensão da execução da pena de prisão à luz dos dois regimes, vigente e pré-vigente, cotejo que, repete-se, não poderá ser feito em abstracto, antes em concreto. Vejamos. A decisão ora sob recurso, que conduziu à suspensão da execução da pena de prisão aplicada (2 anos) pelo período de 3 anos e 6 meses, fundamentou-se no entendimento assumido pelo julgador de que aquela concreta pena de substituição realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, n.º 1, do Código Penal. Para tal conclusão o período de suspensão fixado pelo tribunal, enquanto parte integrante da pena de substituição, assumiu, obviamente, um papel fundamental, sem o qual aquela pena perde o seu sentido útil, designadamente enquanto sanção destinada a prevenir a prática de futuros crimes. Aquele período de suspensão foi fixado em função de considerações de natureza preventiva, tendo sido considerado o necessário para que a pena de substituição atinja os fins a que se destina. Assim, é por demais evidente que o confronto dos dois regimes, vigente e pré-vigente, não se pode circunscrever ao cotejo do período de suspensão da execução da pena fixado na decisão recorrida com o período que resulta da aplicação do actual n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, período este que decorre directa e imediatamente da lei e que tem a duração da própria pena, mas nunca inferior a 1 ano. Sendo o período de suspensão previsto no actual n.º 5 do artigo 50º do Código Penal um período fixo, não podendo assim servir de elemento a utilizar pelo tribunal para atingir as finalidades da pena, estas terão de ser obtidas através de outro meio que a lei contemple e que o julgador possa utilizar. Tal meio, através do qual se procurará obter a pena necessária, não pode deixar de ser a fixação de deveres, regras de conduta ou a imposição do regime de prova, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 50º do Código Penal (19) . Assim, ter-se-á de averiguar se o julgador, face à lei nova, que faz coincidir o período de suspensão ao quantum de pena de prisão determinado na sentença, tendo em consideração os critérios legais que presidem ao instituto da suspensão da execução da pena de prisão, teria, de acordo com esses critérios, aplicado a pena de suspensão da prisão nos moldes em que foi cominada ou, ao invés, teria subordinado a suspensão ao cumprimento de outros deveres, à observância de outras regras de conduta e em que medida (20). Só depois disso está o julgador em condições de cotejar, em concreto, os regimes pré-vigente e vigente e dizer qual dos dois é mais favorável ao condenado. Acresce, ainda, que o legislador de 2007 entendeu alterar os pressupostos de outras penas de substituição, como é o caso da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, alargando a possibilidade da sua aplicação aos casos em que ao agente deva ser aplicada pena de prisão não superior a 2 anos – n.º 1 do artigo 58º do Código Penal (21). Destarte, no caso que se encontra subjacente à decisão sob recurso, tendo sido aplicada pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos e 6 meses, a aplicação do regime de conteúdo mais favorável passa, também, pela questão de saber se a cominação ao condenado do instituto da prestação de trabalho a favor da comunidade é ou não mais favorável, cotejo que, obviamente, terá de ser feito em concreto, não dispensando, em caso algum, a directa intervenção daquele, consabido que a pena de substituição em causa só pode ser aplicada com a aceitação do condenado – n.º 5 do artigo 58º do Código Penal. Intervenção que, aliás, é em qualquer caso imprescindível. Como vimos, o cotejo entre os dois regimes implica uma ponderação dos dois em concreto e uma decisão sobre qual dos dois é o mais favorável ao condenado. Ora, a declaração do direito do caso penal concreto, como refere Figueiredo Dias (22), não é apenas tarefa do tribunal (concepção “carismática” do processo), sendo antes tarefa de todos os que nele intervêm, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assume. Nesta conformidade, o arguido, enquanto principal interessado na declaração do regime que lhe é concretamente mais favorável, não poderá deixar de nela intervir, no uso dos seus direitos de participação, de audiência (23). Vejamos agora como o legislador de 2007 previu e estabeleceu a intervenção do arguido/condenado na declaração do direito perante sucessão de leis penais. Como já vimos, o legislador penal de 2007, no integral cumprimento da norma constitucional que regula a aplicação da lei criminal no tempo, designadamente na parte em que manda aplicar retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido – parte final do n.º 4 do artigo 29 da Constituição –, passou a possibilitar a aplicação retroactiva da lei mais favorável nos casos de condenação com trânsito em julgado, desde que a pena aplicada ainda esteja em execução, alteração que operou por via da eliminação da parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal (24).. Nesses casos, anteriormente excluídos da aplicação retroactiva de lei penal mais favorável, o legislador introduziu dois mecanismos distintos de efectivação do benefício. Um, previsto na última parte do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal (25), aplicável à situação ali contemplada, cumprimento pelo condenado de uma pena igual ou superior ao limite máximo previsto na lei posterior, de efectivação automática (26). O outro, previsto na lei adjectiva penal, através do aditamento do artigo 371º-A (27) , aplicável a todos os demais casos, cuja efectivação depende de pedido do condenado e de realização de audiência destinada a esse concreto fim (28). Tal diversidade de regimes é facilmente perceptível e justificável, tendo pleno cabimento. Num caso estamos perante mecanismo de efectivação automática, visto que a lei posterior é objectiva e indiscutivelmente mais favorável, sendo que a sua aplicação retroactiva está apenas dependente da verificação de uma situação de facto atinente ao cumprimento da pena pelo condenado, a qual é constatável através do mero cotejo do limite máximo da pena aplicável ao crime cometido e do período de clausura sofrido pelo condenado. Constituiria, pois, um formalismo injustificado, e seria uma pura inutilidade, sujeitar ao pedido do condenado e à realização de uma audiência a aplicação retroactiva da lei posterior, razão pela qual o legislador optou por submeter aquela concreta situação a regime igual ao já estabelecido para os casos de descriminalização. No outro estamos face a mecanismo de efectivação complexa, com pedido prévio do condenado e realização de uma audiência, visto que há necessidade de averiguar se a lei posterior é mais favorável que a anterior, não só em abstracto, mas também em concreto, o que implica a formulação e a emissão de um juízo ponderativo/comparativo no que concerne à aplicação da lei nova à situação concreta, para além de que o regime resultante da lei posterior, podendo aparentemente beneficiar o condenado, designadamente em abstracto, poderá não ser por ele querido por, na sua óptica, ser menos favorável ou, sendo mais favorável para a generalidade das pessoas, ser para si desfavorável, ou não lhe interessar pura e simplesmente (29) Consabido que no caso em apreciação não estamos perante a situação contemplada na parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, certo é que a aplicação ao condenado da lei penal vigente de conteúdo mais favorável, abstractamente considerado, designadamente o disposto no n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, terá de se processar nos termos do disposto no artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, ou seja, com reabertura de audiência a requerimento do condenado (30). Trata-se, aliás, da única solução compatível com o princípio non bis in idem, nas suas duas vertentes. Só o pedido do condenado e a garantia de que a declaração do direito será feita com a sua participação e a dos demais sujeitos processuais, sob contraditório pleno, asseguram, em absoluto, por um lado, o direito do arguido ao julgamento único, a não modificação arbitrária da sentença e a certeza de que a lei posterior só será aplicada se lhe for indiscutivelmente mais favorável, por outro lado, o direito dos demais sujeitos processuais e da comunidade à estabilidade do decidido em sentença com trânsito em julgado, enquanto meio de tutela dos bens jurídicos e de defesa da ordem jurídica, através da garantia de participação na decisão de aplicação da lei nova de conteúdo mais favorável ao condenado. * Termos em que se fixa a jurisprudência seguinte: «A aplicação do n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a condenado em pena de suspensão da execução da prisão, por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor daquele diploma legal, opera-se através de reabertura da audiência, a requerimento do condenado, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal». Sem tributação. * Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Outubro de 2009 Oliveira Mendes (Relator) Souto de Moura Maia Costa Pires da Graça Raul Borges Soares Ramos Fernando Fróis Carmona da Mota Pereira Madeira Santos Carvalho (voto a decisão, sem prejuízo pela aplicação do disposto na parte final do artº 2º, nº 4, do C. Penal) Henriques Gaspar Rodrigues da Costa Santos Monteiro Arménio Sottomayor Santos Cabral Noronha Nascimento ------------------------- (1) Ao condenado, AA, foi cominada a pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses. |