Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
Relator: | DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISTA NOVOS FACTOS ADMINISTRADOR CONTRATO DE TRABALHO NULIDADE CONVALIDAÇÃO DANOS NÃO PATRIMONIAIS | ||
Data do Acordão: | 09/25/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
Sumário : | I. - O Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer de questões não equacionadas pelas partes e não apreciadas pelos tribunais de inferior hierarquia. II. - É nulo o contrato de trabalho celebrado entre o administrador e a respectiva sociedade comercial individual ou em relação de domínio ou de grupo. III. - Cessada a causa da invalidade do contrato de trabalho, durante a sua execução, considera-se convalidado desde o início da execução. III - A indemnização por danos não patrimoniais pressupõe, concretamente no Foro Laboral, que se trate de danos que constituam lesão grave, com justificação causalmente segura, decorrente de actuação culposa do agente, e que sejam dignos da tutela do Direito. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 176/23.9T8PDL.L1.S1
Recurso de revista Relator: Conselheiro Domingos José de Morais Adjuntos: Conselheiro José Eduardo Sapateiro Conselheiro Mário Belo Morgado Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. – Relatório 1. - AA intentou acção com processo comum contra Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A.., pedindo a condenação da Ré: “a) A reconhecer a ilicitude do despedimento, com as consequências legais daí advindas, nomeadamente as previstas no art. 390º do C.T; b) No pagamento do valor de 50.804,57€, a título de créditos laborais emergentes da cessação do contrato de trabalho, devidamente aferido conforme consta dos artigos 44º a 51º da presente p.i., montante ao qual acrescem os juros vencidos e vincendos, computados à taxa legal em vigor para as obrigações cíveis, desde aquela data até efectivo e integral pagamento; c) No pagamento do valor, nunca inferior, a 50.000,00€ a título de danos morais causados, como consequência directa e necessária, dos atos ilegais praticados pela R., consistentes na prática premeditada de assédio moral e laboral, destrutiva do bom nome profissional do A, da sua competência e da sua lealdade e seriedade, montante ao qual acrescem juros vencidos, computados à taxa legal em vigor para as obrigações civis, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.” 2. - A Ré contestou, concluindo: “A presente ação deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e absolvida a Ré de todos os pedidos; - Deve o Autor ser condenado como litigante de má-fé, no valor que venha a ser determinado pelo Tribunal, sem prejuízo de outros prejuízos que a Ré possa ter como consequência direta ou indireta da litigância de má-fé, nos termos dos artigos 542.º e 543.º do CPC; - Devendo ser condenada nas custas de parte a que deu causa.”. 3. - O Tribunal da 1.ª instância decidiu: “(J)ulga o Tribunal a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos: a) condena a Ré, Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A., a pagar ao Autor, AA, a quantia de € 2385,94, a título de retribuição relativa a Dezembro de 2022; b) condena a Ré a pagar ao Autor as quantias de € 1389,06 + € 196,11, a título de retribuição do período de férias e subsídio de férias vencidos na vigência deste contrato de trabalho; c) condena a Ré a pagar ao Autor os juros de mora devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, desde a data de vencimento das mesmas até definitivo e integral pagamento; d) absolve a Ré do que mais foi peticionado pelo Autor; e) julga improcedente o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé. Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção do decaimento.”. 4. - Por acórdão de 14 de dezembro de 2023, o Tribunal da Relação acordou: “I. Revogar a decisão recorrida. II. Substituir a decisão recorrida por outra que declara ilícito o despedimento do recorrente. III. Condenar o recorrido a pagar ao recorrente Retribuições intercalares i. 3 524,80 euros (três mil quinhentos e vinte e quatro euros e oitenta cêntimos), devidos pelo mês de Dezembro de 2022. ii. 3 795,94 (três mil setecentos e noventa e cinco euros e noventa e quatro cêntimos) devidos, respectivamente, por cada um dos meses seguintes, desde Janeiro de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão. iii. 759,19 euros (setecentos e cinquenta e nove euros e dezanove cêntimos) de férias pagas e não gozadas. iv. Os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias acima indicadas em i. ii. e iii., vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento. Indemnização pelo despedimento ilícito i. 9 760,98 euros (nove mil setecentos e sessenta euros e noventa e oito cêntimos) de indemnização em substituição da reintegração, sem prejuízo de vir a ser atendido, na liquidação desta indemnização, o tempo decorrido desde o despedimento, em 22.12.2022 e o trânsito em julgado do presente acórdão, à razão de 30 dias de retribuição base indicada no parágrafo 54 por cada ano ou fracção de tempo que exceda três anos. ii. 2000,00 euros (dois mil euros) por danos não patrimoniais; Os juros de mora à taxa legal, sobre as quantias acima indicadas em v. e vi. vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento. IV. Condenar cada uma das partes nas custas do recurso, na proporção do respectivo decaimento – artigo 527.º n.º 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 87.º n.º 1 do CPT.”. “Declaração de voto da 1.ª Adjunta: Apesar de compreendermos a preocupação e angústia do trabalhador, entendemos que esse é o estado natural da situação em que se encontrou, não assumindo a gravidade tutelada pelo artigo 496.º n.º 1 do C. Civil, pelo que consideramos que não devia ser atribuída indemnização por danos não patrimoniais, pelo que voto vencida nesta parte.”. 5. - A Ré interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese: G. Assim, o Relatório n.º 11/2023 – FS/SRATC, proferido pelo Venerando Tribunal de Contas a 07 de dezembro de 2023, corresponde a um documento objetivamente superveniente para efeitos do artigo 680.º, n.º 1 do CPC, pelo que desde já, se requer a junção do Relatório n.º 11/2023 – FS/SRATC, nos termos do artigo 680.º, n.º 1 do CPC, como Documento n.º 1. K. No que respeita à lei violada pelo Acórdão ora em crise, entende o Recorrente que, no dia 30 de setembro de 2022, data em que o Conselho de Administração do Recorrente delibera sobre a existência de um vínculo laboral com o Recorrido, não se tinha verificado o desaparecimento da causa de nulidade do contrato de trabalho. L. Desde logo por o Recorrido, mesmo após o dia 30 de novembro de 2021, data em que se produziram os efeitos da renúncia ao cargo de membro do Conselho de Administração, ter continuado, efetivamente, a desempenhar funções de administrador de facto no Recorrente, pese embora sem título formal. M. Sempre pugnou o Recorrente, nos sucessivos articulados por si apresentados, que a cessação das funções de ... por parte do Recorrido havia sido meramente aparente. N. Acresce que, tendo o Tribunal a quo, nos factos 3) e 13) da matéria de facto dada como provada acertado, respetivamente, que o Recorrido, enquanto vogal do Conselho de Administração do Recorrente, “era o responsável pela gestão diária da Ré” e, simultaneamente, acertando que, a partir de 01 de dezembro de 2021, o Recorrido exercia a “atividade inerente à gestão corrente da empresa” na qualidade de ..., então a conclusão lógica seria a de que inexiste, materialmente e de facto, qualquer diferença na sua atuação, continuado o mesmo a exercer, na sua essência, as funções de membro do Conselho de Administração. O. Mais a mais, atente-se que do facto 22) da matéria de facto dada como provada se pode extrair que toda a panóplia de funções reconhecidas ao denominado Diretor Geral apenas poderá ser entendida como sintomática de uma vontade em continuar a atribuir, expressamente, ao Recorrido todas as funções e poderes que lhe sempre couberam enquanto membro do Conselho de Administração, e, por essa via, continuar a empossar o Recorrido de tal cargo. P. Pese embora o Código das Sociedades Comerciais não consagre, expressamente, a figura do administrador de facto, contrariamente a outros diplomas legais, a mesma tem vindo a ser largamente reconhecida e acolhida pela doutrina e pela jurisprudência. Q. Neste contexto, vem sendo apontado pela doutrina e pela jurisprudência, essencialmente, três requisitos, que uma vez verificados, permitem a conclusão pela existência de um administrador de facto, a saber: (i) deverá verificar-se um exercício real e efetivo da alta direção, (ii) atuando o administrador de forma autónoma, (iii) com a aceitação ou tolerância dos administradores de direito, conforme resulta, nomeadamente do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 13.09.2028, proferido no âmbito do processo n.º no âmbito do processo n.º 2214/16.2T8CHV-A.G1. R. No âmbito do Direito do Trabalho, igualmente tem vindo a ser acolhida a figura do administrador de facto, como decorre, a título exemplificativo, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.02.2014, proferido no âmbito do processo n.º 652/12.9TTVIS.C1. S. Os administradores de facto deverão ser equiparados aos administradores de direito. T. Na medida em que o Recorrido continuou a desempenhar, materialmente, as funções de membro do Conselho de Administração, tal significa que, a 30 de setembro de 2022, ainda não havia cessado a causa de invalidade do contrato de trabalho, consagrada no artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais. V. O Tribunal a quo ao dar como provado que o Recorrido, sob a designação de ..., exercia as mesmas funções de gestão corrente/diária do Recorrente que lhe cabiam na qualidade de membro do Conselho de Administração, contradiz-se ao concluir pela convalidação do contrato de trabalho por cessação da causa de invalidade, pelo que os fundamentos do Acórdão ora em crise encontram-se em oposição com a decisão, o que configura uma causa de nulidade do Acórdão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), ex vi artigo 666.º, n.º 1 do CPC. W. Sem prescindir, ainda que não se conclua pela verificação da nulidade supra descrita – o que apenas por mero dever de patrocínio se equaciona –, sempre pugna o Recorrente que o Tribunal a quo não observou o preceituado no n.º 1 do artigo 72.º do CPT como lhe incumbia. Y. O Tribunal a quo, tendo procedido a uma reapreciação da matéria de facto, deveria ter tomado em consideração tudo o quanto havia sido discutido sobre a qualidade de administrador de facto do Recorrido, sendo que tais factos se afiguram como essenciais para a boa decisão a causa na medida em que influirão, definitivamente, na apreciação e decisão sobre a cessação da causa de invalidade do contrato de trabalho nulo e, por conseguinte, na qualificação do despedimento como ilícito. Z. Ao não tomar tais factos em consideração no Acórdão ora em crise, o Tribunal a quo incumpriu o disposto no artigo 72.º do CPT, o que configura uma causa de nulidade do Acórdão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), primeira parte, ex vi artigo 666.º, n.º 1 do CPC. AA. Nesta sequência, o Recorrente requer, nos termos do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, que a decisão de facto seja ampliada por forma a que se apurem os factos que não foram objeto de decisão relativos à qualidade de administrador de facto do Recorrido e que determinam a verificação da causa de invalidade do contrato de trabalho a 30 de setembro de 2022. BB. Sem prejuízo do supra exposto, entende ainda o Recorrente que a nulidade do contrato de trabalho não resulta exclusivamente do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, mas igualmente da violação do artigo 22.º, n.º 6 do Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, o que influiu, definitivamente, na decisão de direito da causa. CC. Resulta do facto 1) da matéria de facto dada como provado pelo Tribunal a quo, que o Recorrente é uma sociedade comercial, sob a forma de sociedade anónima, com natureza municipal, pelo que lhe é aplicável a Lei n.º 50/2021, de 31 de agosto, que estatui o regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais. DD. A par disso, e por ter tal natureza, o Recorrente está sujeito à jurisdição e aos poderes de controlo financeiro do Tribunal de Contas, nos termos do disposto n artigo 2.º, n.º 2, alínea c), da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas. EE. O artigo 22º, n.º 6 do Estatuto do Gestor Público aplicável via n.º 4 do artigo 30.º do regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais prevê uma norma cuja redação é idêntica à que resulta do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais. FF. Todavia, a violação daquele artigo 22.º , n.º 6 do Estatuto do Gestor Público tem a agravante, por gravitar no âmbito do setor empresarial do Estado, de implicar a violação de normas sobre autorização de despesas públicas. GG. Isto é, configura a violação de norma referente à assunção e autorização de despesa pública, sendo passível de enquadramento na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º da LOPTC, sendo suscetível de gerar responsabilidade financeira. HH. Não concede o Recorrente que o Tribunal a quo possa concluir pela convalidação de um contrato de trabalho considerando que a nulidade do mesmo acarreta responsabilidade financeira, punível com multa. II. Atento que a celebração de um contrato de trabalho com o Recorrido, com efeitos a 01 de dezembro de 2021, é inválida por violar normas de autorização de despesas públicas, também o será, pela mesma ordem de razão, a deliberação de 30 de setembro de 2022 que reconheceu a existência de um contrato de trabalho. JJ. A deliberação constante da ata de 30 de setembro de 2022 não veio convalidar o contrato de trabalho, sendo igualmente inválida por violar as normas de autorização de despesa pública. KK. Sem prescindir de tudo o quanto foi aduzido, sempre pugna o Recorrente que o Tribunal a quo sempre deveria ter enquadrado a solução jurídica no âmbito do n.º 2 do artigo 125.º do Código do Trabalho. LL. Resultou assente no Acórdão ora em crise que o contrato de trabalho que havia sido celebrado é nulo por violação do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, a qual é qualificável, atentos os seus fins, como sendo uma norma de “ordem pública”. MM. Tendo-se concluído que o contrato de trabalho celebrado entre o Recorrente e o Recorrido seria nulo por violar o disposto no artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, então acompanhando-se o entendimento do Tribunal a quo no sentido de que o contrato se convalidou a 30 de setembro de 2022 – o que se faz unicamente por facilidade de raciocínio e por mero dever de patrocínio –, sempre seria aplicável o n.º 2 do artigo 125.º, do Código do Trabalho, e não o seu n.º 1, por estar em causa um contrato com objetivo e fim contrário à lei e à ordem pública. NN. Assim sendo, deverá revogar-se o Acórdão ora em crise no segmento em que aplica aos factos assentes o disposto no artigo 125.º, n.º 1 do Código do Trabalho, e determinar-se, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 125.º do Código do Trabalho, que a convalidação só produz efeitos a partir do momento em que cessa a causa da invalidade, isto é, a 30 de setembro de 2022. OO. Acresce que, e sem nunca prescindir do supra já aduzido, não pode o Recorrente conformar-se com a decisão do Tribunal a quo em condenar o Recorrente no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, aderindo plenamente ao entendimento da Exma. Senhora Juíza Desembargadora, Dra. Paula Santos, vertido no seu voto de vencido. PP. Apenas resultou da matéria de facto dada como provada o Recorrido sentiu-se angustiado e preocupado quando ao seu futuro profissional. QQ. Os danos não patrimoniais são indemnizáveis na medida em que, atenta a sua gravidade, mereçam a tutela do Direito. TT. Em face do exposto, deverá revogar-se o Acórdão ora em crise no segmento em que condena o Recorrente no pagamento ao Recorrido de uma indemnização por danos não patrimoniais por não se verificarem os pressupostos de que depende a condenação do Recorrente, nomeadamente por o descrito no facto 30 da matéria de facto dada como provada não merecer, per si, a tutela do Direito. (os negritos e sublinhados constam do texto original). 6. - O Autor contra-alegou, concluindo pela manutenção do acórdão recorrido. 7. - Por acórdão de 20 de março de 2024, o Tribunal da Relação julgou improcedentes as nulidades do acórdão proferido em 14 de dezembro de 2023, invocadas pela Ré nas conclusões do recurso de revista. 8. - O Ministério Público emitiu Parecer no sentido da procedência parcial do recurso de revista e da revogação do acórdão recorrido nessa parte: “o recorrido não demonstrou ter sofrido danos não patrimoniais de especial relevo, suscetíveis de serem indemnizados, nos termos do art. 496.º, n.º 1, do CC.”. 9. - A Ré respondeu, discordando do teor do Parecer do M. Público quanto às invocadas nulidades do acórdão recorrido. 10. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir. II. - Fundamentação de facto. Nas Instâncias foi proferida a seguinte decisão de facto: “1. - Factos provados: 1. Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A., foi constituída como ‘pessoa colectiva de direito privado, com natureza municipal e sob a forma de sociedade anónima’. 2. Desde 9 de Setembro de 2013, AA exercia o cargo de vogal do conselho de administração da Ré. 3. E, no exercício deste cargo, o Autor, pelo menos desde Outubro de 2017, era o ‘responsável’ pela gestão diária da Ré. 4. Nas condições descritas nos dois números anteriores, em 29 de Outubro de 2021, o Autor apresentou declaração escrita a renunciar a este cargo. 5. Esta declaração, na mesma data, foi recebida pelo presidente do conselho de administração. 6. Em 26 de Novembro de 2021, o conselho de administração da Ré reuniu-se, com a presença do seu presidente, Eng. BB, e dos seus dois vogais, Dr. CC e ainda o Autor. 7. Nessa reunião, de acordo com a sua acta, assinada pelos três intervenientes: “Foi comunicado e dado a conhecer a carta de renúncia do Dr. AA, com entrada a 29 de Outubro de 2021, como ... da Sociedade Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A., dirigida ao Sr. Presidente do Conselho de Administração, situação esta aceite e aprovada pelo Conselho, tendo sido louvado o trabalho desenvolvido como administrador desta Sociedade em que sendo não remunerado exerceu a tempo inteiro desde finais de 2017 a função de executivo coordenando e executando todas as funções operacionais da empresa municipal. Tendo sido proposto pelo Conselho de Administração que fosse convidado para ... da Sociedade Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A.”. 8. E, ainda nessa reunião, de acordo com a sua acta: “Foi decidido pelo Conselho de Administração que as funções até agora desempenhadas pelo ..., passariam a ser desempenhadas pelo Dr. AA, como ...do Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A., no qual a Administração, por esta deliberação, decide, por unanimidade, delegar os poderes relativos aos actos de gestão corrente da Sociedade, com efeitos a partir de 01 de Dezembro de 2021, com a competência de autorizar, enquanto ..., despesas correntes ou de investimento da sociedade por si só, até 1.000,00€ (mil euros), bem como assinar documentos e contratos em conjunto com o Presidente do Conselho de Administração. Relativamente às condições salariais, foi, por unanimidade, aprovado que terá isenção horária, vencimento base de € 3.253,66€ e subsídio de refeição fixo no valor de 6,35€, durante 20 dias ao mês, 11 meses por ano. O ainda ..., Dr. DD, ausentou-se da sala de reuniões durante a avaliação e decisão dos pontos”. 9. Na sequência desta reunião, e com referência ao descrito no número anterior, pelo conselho de administração da Ré foi solicitada a elaboração de um parecer jurídico com o seguinte objecto: “a) tendo sido ultrapassado a duração do mandato dos administradores, esta circunstância limita o exercício das suas competências; b) pode, nesta circunstância, o Conselho de Administração designar um Director-Geral da Sociedade”. 10. Este parecer foi apresentado em 6 de Dezembro de 2021. 11. E, na mesma data, o vogal do conselho de administração, Dr. CC, enviou ao ... deste órgão, Eng. BB, um email com o seguinte teor: “Na sequência do parecer, peço que marque uma reunião do CA do Coliseu para, entre outros assuntos, deliberarmos sobre a nomeação do Director Geral”. 12. Com efeitos a partir de 1 de Dezembro de 2021, o Autor esteve admitido ao serviço da Ré para o desempenho de funções de ‘director geral’, mediante uma retribuição fixada nos termos mencionados em 8). 13. Exercendo a actividade inerente à gestão corrente desta empresa. 14. Assim agindo sem lhe estar fixada a hora de início e a hora de término da sua actividade. 15. O Autor comunicou aos serviços de contabilidade da empresa, em 3 de Dezembro de 2021, a necessidade de informar a Segurança Social da “admissão como Director geral (…) com efeitos a 1/12/2021”. 16. Comunicou ainda aos serviços da empresa, em data não concretamente determinada de Dezembro de 2021, qual o valor mensal que iria receber, mais informando que seria ‘o mesmo que antes auferia o Dr. EE’ (ao serviço da Ré como ‘...’ até ao ano de 2017). 17. O Autor continuou, após 1 de Dezembro de 2021, a estar presente nas assembleias gerais da Ré. 18. No âmbito das suas funções como ‘...’, era o Autor quem autorizava, todos os meses, o pagamento do salário dos funcionários da Ré, incluindo o seu. 19. Pelo menos no período compreendido entre 25 de Julho e 13 de Agosto de 2022, ao Autor foi atribuído período de férias. 20. Em 4 de Agosto de 2022, o Autor enviou um email aos serviços de gestão financeira da Ré com o seguinte teor: “Boa noite. Vou proceder à correcção da morada no contrato e como estou de férias na ..., vou tentar imprimir o documento para se assinar, na próxima semana entrarei em contacto consigo por email”. 21. Em 30 de Setembro de 2022, o conselho de administração da Ré proferiu uma deliberação com o seguinte teor: “O Conselho de Administração reconhece que a categoria de ... é uma categoria a que corresponde um lugar do quadro de pessoal permanente do Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A. e que a relação jurídica mantida com o Dr. AA é um contrato sem termo, desde 01 de Dezembro de 2021”. 22. Mais deliberando: “As atribuições / funções de ...são as seguintes, conforme resulta do manual de funções do Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A., aprovado em 30 de Junho de 2021, pelo Conselho de Administração e submetido à Direcção Geral das Artes, para efeitos de integração do Coliseu ... na rede Nacional de Teatros e Cineteatros: - Definir, gerir e coordenar as equipas e actividades afectas aos serviços partilhados e departamento técnico; - Elaborar reportes periódicos à Administração; - Representar a empresa sempre que necessário nas suas áreas de intervenção; - Elaborar o Orçamento Anual e documentos; - Controlar a execução do orçamento da empresa; - Colaborar no fecho de contas e no Relatório Anual de Actividades; - Acompanhar a apoiar os trabalhos do Fiscal Único; - Supervisionar os procedimentos de contratação pública; - Gerir as contas bancárias e executar as transferências; - Gerir e analisar os processos de empréstimos e outros serviços bancários; - Supervisionar as candidaturas a fundos comunitários e outras fontes de financiamento; - Garantir a divulgação da informação financeira a que a empresa está obrigada; - Gerir e coordenar os processos comerciais da empresa; - Assegurar a recolha e tratamento da informação estatística da empresa e assegurar os reportes periódicos às entidades a que a empresa está legalmente obrigada; - Garantir a conformidade das actividades de gestão à legislação vigente; - Participar no recrutamento, selecção, integração, formação e avaliação dos trabalhadores da empresa; - Identificar as necessidades de formação e desenvolvimento de competências das equipas; - Definir, controlar, validar mapa de horários e assiduidade das equipas; - Desenvolver e actualizar relatórios de reporte ao Tribunal de Contas e outras entidades nacionais: Plano de Prevenção de Riscos, Relatório de Boas Práticas do Governo Societário e Plano de Igualdade; - Informar e aconselhar a administração ou o subcontratante, bem como os trabalhadores que tratem os dados, a respeito das suas obrigações nos termos do presente regulamento e de outras disposições de protecção de dados da União ou dos Estados-Membros; - Controlar a conformidade com o regulamento, com outras disposições de protecção de dados da União ou dos Estados-Membros e com as políticas da empresa ou do subcontratante relativo à protecção de dados pessoais; - Prestar aconselhamento, no que respeita à avaliação de impacto sobre a protecção de dados e controlar a sua realização nos termos do art. 35º do Regulamento Geral sobre Protecção de Dados (RGPD); - Cooperar com a autoridade de controlo; - Responder à autoridade de controlo sobre questões relacionadas com o tratamento de dados, incluindo a consulta prévia a que se refere o art. 36º do RGPD, e consulta, sendo caso disso, esta autoridade sobre qualquer outro assunto; - Operacionalizar o treino em privacidade e realizar autoavaliações de gestão da privacidade; - Manter directrizes e templates de impacto sobre a protecção de dados (PIA / DPIA); - Identificar os requisitos legais e regulamentares de conformidade da privacidade; - Conduzir uma avaliação do risco de privacidade na organização; - Definir, no plano artístico, a estratégia global de programação respeitando o orçamento e os objectivos do C. M.; - Negociar os termos gerais das propostas de programação com os artistas e agentes; - Gerir o projecto artístico e acompanhar a realização dos eventos programados; - Acompanhar o Plano de Comunicação dos eventos programados; - Investigar e desenvolver acçõesde prospecção no contexto da programação artística; - Analisar a aprovar as propostas relativas ao serviço educativo; - Acompanhar e participar nos projectos transversais e internos do CM; - Analisar o validar os alugueres externos e articular com o Município, plano anual relativo às respectivas ocupações de sala; - Analisar e decidir sobre as propostas de programação recebidas; - Representar a empresa, sempre que necessário; - Cumprir com as medidas de autoprotecção”. 23. Em 28 de Outubro de 2022, o conselho de administração da Ré passa a ser composto por: Dra. FF, ..., e GG, vogal. 24. Em 15 de Dezembro de 2022, o Autor reúne-se com os membros do conselho de administração da Ré, sendo falado entre os mesmos, em termos não concretamente determinados, mas por iniciativa dos membros do conselho de administração, a continuidade do Autor como ‘...’. 25. Em 19 de Dezembro de 2022, o Autor, por email, enviou uma comunicação escrita aos membros do conselho de administração da Ré com o seguinte teor: “Venho por este meio comunicar que a partir da presente data, dia 19/12/2022, apresento a minha demissão de ... do Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A.”. 26. Em 22 de Dezembro de 2022, o Autor apresentou uma comunicação escrita dirigida à presidente do conselho de administração da Ré com o seguinte teor: “… vimos, ao abrigo do disposto no art. 402º do Código do Trabalho, REVOGAR a denúncia contratual anteriormente manifestada, pelo que continuaremos a assumir junto dessa empresa as funções correspondentes à categoria para a qual fomos contratados”. 27. Ainda em 22 de Dezembro de 2022, o conselho de administração da Ré enviou ao Autor uma comunicação escrita com o seguinte teor: “… a celebração do contrato de trabalho em causa, quando V. Exa. ainda era ... da empresa, visando a prestação de serviços futura, latu sensu, quando cessassem as suas funções de ..., com funções inerentes a este cago, cai sob a alçada do artigo 398º, nº 1, do Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de Setembro, com a sua actual redacção – Código das Sociedades Comerciais –, que proíbe os ... em exercício de funções de celebrarem qualquer contrato de trabalho ou de prestação de serviços (com efeitos no decurso ou após a cessação de funções) com a sociedade administrada ou com outra que com esta esteja numa relação de domínio ou de grupo. (…) Assim (…), este Conselho de Administração, na sua reunião de 22 de Dezembro de 2022, decidiu declarar a nulidade do contrato de trabalho celebrado entre V. Exa. e o Coliseu ..., com efeitos imediatos, por violação de norma imperativa (artigo 398º, nº 1, do CSC), nos termos do disposto nos arts. 280º e 294º do Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966 (Código Civil), com a sua actual redacção. Face ao exposto, informa-se que cessa, assim, imediatamente, o vínculo contratual estabelecido entre V. Exa. e o Coliseu ..., para todos os devidos e legais efeitos”. 28. Na sequência desta comunicação escrita apresentada pela Ré, o Autor não voltou a exercer funções nos termos descritos em 8), 12), 13) e 14). 29. Em data não concretamente determinada, após 19 de Dezembro de 2022, a Ré diligenciou pela comunicação aos serviços da Segurança Social da cessação de funções do Autor por iniciativa deste último. 30. Como consequência do descrito em 24) e 27), o Autor sentiu-se angustiado e preocupado quanto ao seu futuro profissional. 31. A Ré pagou ao Autor as seguintes prestações: a) em Dezembro de 2021, € 3253,66, € 127,00 e € 271,14, com referência a “Vencimento”, “Subsídio Alimentação” e “Subsídio de Natal”; b) em Janeiro de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; c) em Fevereiro de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; d) em Março de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; e) Em Abril de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; f) em Maio de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; g) em Junho de 2022, € 3253,66 e € 3253,66, com referência a “Vencimento” e “Subsídio de Férias”; h) em Julho de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; i) em Agosto de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; j) em Setembro de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; l) em Outubro de 2022, € 3253,66 e € 127,00, com referência a “Vencimento” e “Subsídio Alimentação”; m) em Novembro de 2022, € 3253,66, € 127,00 e € 3253,66, com referência a “Vencimento”, “Subsídio Alimentação” e “Subsídio de Natal”. 32. E não pagou ao Autor qualquer prestação pecuniária por conta da retribuição relativa a Dezembro de 2022. * 2. Facto não provados: a) com referência à reunião do conselho de administração da Ré de 26 de Novembro de 2021, o descrito em 8) tenha sido aposto na respectiva acta ‘por lapso’ do conselho de administração; b) o conselho de administração da Ré, na reunião de 15 de Dezembro de 2021, tenha proferido uma deliberação nos termos descritos em 8); c) nos termos descritos em 12), o Autor e a Ré tenham ajustado que o valor mensal a auferir pelo primeiro já incluía a prestação relativa a ‘retribuição de isenção de horário’; d) em Agosto de 2022, todos os funcionários da Ré se encontrassem a gozar as suas férias; e) o Autor, no período mencionado em 19), tenha estado a exercer funções, com o conhecimento e por determinação da Ré; f) o Autor, após 1 de Dezembro de 2021, continuasse a apresentar-se nas assembleias gerais da Ré como ‘membro do conselho de administração’; g) nas circunstâncias descritas em 24), os membros do conselho de administração da Ré tenham proposto ao Autor deixar de exercer funções de ‘...’, com declaração de ‘denúncia do contrato’, e passar a ser ‘... financeiro’; h) tenha sido na sequência do descrito na alínea anterior que o Autor apresentou a declaração de cessação de funções / “demissão” mencionada em 25); i) na sequência do descrito em 24) e 25), o conselho de administração da Ré tenha convocado todos os funcionários da Ré para informá-los que o Autor ‘tinha pedido a sua demissão’ e que ‘não voltaria a trabalhar no Coliseu ...’; j) como consequência da acção da Ré, nos termos descritos em 24) e 27), o Autor tenha se sentido vexado e ‘desprezado’ por colegas e subalternos; l) A Ré tenha diligenciado nos termos definidos em 29) no dia 22 de Dezembro de 2022; m) com consequência do descrito em 29), o Autor tenha se sentido angustiado e preocupado quanto ao seu futuro profissional; n) a Ré tenha entregue ao Autor, para além do descrito em 31), qualquer outra quantia pecuniária a título de retribuição de isenção de horário, retribuição do período de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal; o) quaisquer outros factos com relevância na decisão da presente causa.”. III. - Fundamentação de direito. 1. - O objecto do recurso de revista contem as seguintes questões: i - Nulidade do acórdão recorrido porque os fundamentos se encontram em contradição com a decisão e por incumprimento do disposto no artigo 72.º do CPT, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC; ii - Nulidade do contrato de trabalho existente entre as partes; iii - Da convalidação do contrato de trabalho. iv - Verificação, ou não, dos pressupostos para a indemnização por danos não patrimoniais. 2. - Das nulidades do acórdão recorrido 2.1. - Por acórdão de 20 de março de 2024, o Tribunal da Relação julgou improcedentes as invocadas nulidades, fundamentando: “No que respeita à nulidade mencionada na conclusão V acima transcrita, pelos motivos explicados nos parágrafos 25 a 32 do acórdão aqui impugnado, que se dão por reproduzidos, o Tribunal da Relação julgou não existir contradição entre os factos provados sobre as funções exercidas pelo autor/apelado enquanto membro do conselho de administração e enquanto ..., por um lado, e a convalidação do contrato de trabalho, por outro lado. Pelo que, contrariamente ao que defende o requerente (réu/apelado), não se verifica a nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – c) do CPC, ex vi artigos 666.º n.º 1 do CPC e 77.º do Código de Processo do Trabalho (CPT). O que sucede é que o requerente discorda da solução de direito pela qual optou o Tribunal da Relação. No que respeita à nulidade referida nas conclusões W, X, Y e Z acima transcritos, o Tribunal começa por sublinhar que, contrariamente ao que defende o requerente (réu/apelado), a matéria de facto relevante, sobre as funções de facto exercidas pelo autor/apelante enquanto membro do conselho de administração e enquanto ..., consta dos factos provados 2, 3, 7, 8 e 12 a 18, levados em conta pelo Tribunal da Relação no acórdão cuja nulidade é invocada. Pelo que, sobre esse tema fáctico, nem se verifica o incumprimento do disposto no artigo 72.º n.º 1 do CPT pelo Tribunal de primeira instância, nem esse incumprimento foi suscitado no presente recurso de apelação, nem, a esse propósito, se verificam os pressupostos da aplicação, pelo Tribunal da Relação, do disposto no artigo 5.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), uma vez que a matéria com relevo para a decisão consta dos factos mencionados no parágrafo que antecede. Ainda que assim não fosse, quod non, o expediente previsto no artigo 72.º do CPT não pode ser usado para corrigir ou completar articulados, lançando para o juiz a tarefa, que cabe às partes, de delimitar adequadamente os contornos fácticos do litígio (cf. Hélder Quintas, Comentários ao Código de Processo do Trabalho, Almedina, página 507).”. 2.2. - O artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC, dispõe: “É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)” (alínea c); e “… quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar …” (alínea d). A nulidade prevista na alínea c) respeita à estrutura da sentença, não podendo haver “contradição lógica” entre os fundamentos e a decisão, isto é, quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e, em vez de a tirar, o tribunal decidir noutro sentido, oposto ou divergente, ainda que juridicamente correcto. Como escreve José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, pág. 670, “A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial”. A sentença é nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, isto é, quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença expressa – cf. Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil anotado, 5.º/141. A nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º está directamente relacionada com o dever do juiz estabelecido no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pelo solução dada a outras”. Esta norma sempre suscitou o problema de saber qual o sentido exacto da expressão “questões” nela empregue. E tem sido resolvido com base no ensinamento do Professor Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil, Anotado, V, pág. 54, que escreve: “… assim como uma acção só se identifica pelos seus três elementos essenciais (sujeitos, objecto e causa de pedir) (…), também as questões suscitadas pelas partes só ficam devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos) e qual o objecto dela (pedido), senão também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)”. Nas alíneas K. a V. das conclusões do recurso de revista, a Ré discorre sobre a figura do “administrador de facto”, afirmando que “Os administradores de facto deverão ser equiparados aos administradores de direito.”. Ora, basta ler os articulados das partes, e, em particular, a contestação da Ré para se constatar que tal questão não foi aí suscitada, nem foi objecto de apreciação na sentença e no acórdão recorrido. Sendo pacífico na jurisprudência que, destinando-se os recursos a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não tenham sido equacionadas, é manifesto que a questão (nova) do “administrador de facto” não pode ser agora conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça. [cfr., neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal Justiça: de 14.01.2015 proc. n.º 2881/07.8TTLSB.L1.S1; de 05-07-2016 proc. n.º 2860/10.8TBVFR.P1.S1; de 22.02.2017 proc. 1519/15.4T8LSB.L1.S1; de 15.09.2021 proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1; de 23.06.2023 proc. 1236/20.3T8BJA.E1.S1, todos in www.dgsi.pt]. Improcede, assim, a arguição das alegadas nulidades do acórdão recorrido. 3. - Da Nulidade do contrato de trabalho existente entre as partes 3.1. - No acórdão recorrido foi consignado: “30. Porém, do facto provado 21 resulta a convalidação do contrato de trabalho nulo, uma vez que, em 30 de Setembro de 2022, o Conselho de Administração do recorrido, por deliberação, reconheceu que a categoria de director-geral é uma categoria a que corresponde um lugar do quadro de pessoal permanente do Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A. e que a relação jurídica mantida com o recorrente é um contrato sem termo, desde 1 de Dezembro de 2021. Na verdade, em 30.9.2022, quando o Conselho de Administração, que tem poderes para representar o recorrido (cf. artigos 408.º e 409.º do CSC), deliberou sobre a existência do vínculo laboral com o recorrente, já tinha desaparecido a causa de invalidade do contrato de trabalho, uma vez que o recorrente já não fazia parte do Conselho de Administração do recorrido há dez meses. Ora, cessando a causa de invalidade do contrato de trabalho durante a sua execução, como resulta da deliberação do Conselho de Administração do recorrido de 30.9.2022, o contrato considera-se convalidado ab initio – cf. artigo 125.º n.º 1 do CT. Essa convalidação do contrato de trabalho opera automaticamente com o desaparecimento da causa de invalidade e retroage ao momento do início da execução do contrato, sendo a partir desse momento que se deve contar a antiguidade do recorrente”. (…). 36. Feito este enquadramento, provou-se que, quando deliberou declarar a nulidade do contrato de trabalho aqui em crise, o Conselho de Administração do recorrido tinha conhecimento dos factos susceptíveis de gerar a nulidade da deliberação há mais de um ano, uma vez que tais factos ocorreram na sessão do Conselho de Administração de 26.11.2021. Pelo que, nos termos do artigo 412.º do CSC, em 22.12.2022, decorrido o prazo de um ano sobre o conhecimento dos factos que geraram a nulidade, independentemente da sua qualificação jurídica, já tinha caducado o direito do Conselho de Administração declarar nula a sua deliberação de 26.11.2021. Mas ainda que assim não fosse e que tal prazo se devesse contar apenas a partir da data em que o Conselho de Administração teve conhecimento do parecer de 8.12.2022, o certo é que nessa data já se tinha convalidado o contrato de trabalho, mediante a deliberação do Conselho de Administração de 30.9.2022, conforme foi explicado supra nos parágrafos 30 e 31.”. 3.3. – O artigo 398.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, estabelece: “Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.”. O artigo 22.º, n.º 6, do Estatuto do Gestor Público - Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março -, determina que: “6 - Os gestores públicos não podem celebrar, durante o exercício dos respectivos mandatos, quaisquer contratos de trabalho ou de prestação de serviços com as empresas mencionadas nos n.ºs 2 a 4 [a mesma empresa local] que devam vigorar após a cessação das suas funções.”. O artigo 30.º n.º 4 do regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais – RJAEL – dispõe: “4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, alterado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 8/2012, de 18 de janeiro, é subsidiariamente aplicável aos titulares dos órgãos de gestão ou de administração das empresas locais.”. Decorre, pois, da conjugação dos citados normativos, que era nulo o contrato de trabalho do Autor, com efeitos a 01.12.2021, constituído pela deliberação do Conselho de Administração da Ré, em 26.11.2021 – cfr. ponto 8 dos factos dados como provados. 4. - Da convalidação do contrato de trabalho 4.1. - Importa, agora, saber se a deliberação do Conselho de Administração da Ré, datada de 30.09.2022, teve o condão de convalidar o contrato de trabalho, desaparecida que foi a causa da sua nulidade. 4.2. - No ponto 21) da matéria de facto dada como provada, consta: “Em 30 de Setembro de 2022, o conselho de administração da Ré proferiu uma deliberação com o seguinte teor: "O Conselho de Administração reconhece que a categoria de ... é uma categoria a que corresponde um lugar do quadro de pessoal permanente do Coliseu M... - Sociedade de Promoção e Dinamização de Eventos Culturais, Sociais e Recreativos, E.M., S.A. e que a relação jurídica mantida com o Dr. AA é um contrato sem termo, desde 01 de Dezembro de 2021”.”. 4.3. - O artigo 125.º - Convalidação de contrato de trabalho - do Código do Trabalho estabelece: “1 - Cessando a causa da invalidade durante a execução de contrato de trabalho, este considera-se convalidado desde o início da execução. 2 - No caso de contrato a que se refere o artigo anterior, a convalidação só produz efeitos a partir do momento em que cessa a causa da invalidade.”. E o artigo 124.º - contrato com objecto ou fim contrário à lei ou à ordem pública -, n.º 1: “Se o contrato de trabalho tiver por objecto ou fim uma actividade contrária à lei ou à ordem pública, a parte que conhecia a ilicitude perde a favor do serviço responsável pela gestão financeira do orçamento da segurança social as vantagens auferidas decorrentes do contrato.”. Ora, ao contrário do alegado pela Ré, o contrato de trabalho em causa estava ferido de nulidade por não poder ser celebrado por força da lei - artigo 398.º, n.º 1, do CSC, conjugado com o artigo 22.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, e artigo 30.º n.º 4 do RJAEL - e não porque o seu objeto ou fim fosse contrário à lei ou à ordem pública. Na verdade, como decorre dos pontos 8, 21 e 22 dos factos dados como provados, o objeto do contrato é a prestação de trabalho subordinado ao empregador, com “a categoria de ...”, cargo inserido no quadro de pessoal permanente da Ré, mediante o pagamento de salário, não se denotando nas funções a desempenhar qualquer elemento atípico à respetiva categoria profissional, razão pela qual esse objeto não é, claramente, contrário à lei ou à ordem pública. Assim, cessada a causa da invalidade do contrato de trabalho, durante a execução do mesmo, deve considerar-se convalidado desde o início da execução - 01.12.2021 -, nos termos do artigo 125.º, n.º 1, do CT. [cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.2018, Proc. n.º 28602/15.3T8LSB.L1.S1 (Revista – 4.ª Secção), relator António Leones Dantas, in www.dgsi.pt]. 5. - Da verificação, ou não, dos pressupostos para a indemnização por danos não patrimoniais. 5.1. - No acórdão recorrido, pode ler-se: “58. Relativamente aos factos, o Tribunal leva em conta que: o despedimento do recorrente teve lugar por iniciativa dos novos membros do Conselho de Administração quando foi alterada composição deste órgão, tendo sido precedido de um período em que foi posta em causa a continuidade do seu vínculo laboral (cf. factos provados 23 e 24); nesse contexto, o recorrente denunciou o contrato tendo depois revogado a denúncia, o que leva o Tribunal a presumir (artigo 351.º do CC) que a sua capacidade de discernimento quanto à sua situação profissional, foi fortemente abalada pelas dúvidas levantadas pelo Conselho de Administração do recorrido quanto à continuidade do seu contrato (cf. factos provados 25 a 26); o vício da nulidade do contrato foi invocado pelo recorrido após convalidação do mesmo pelo mesmo órgão do recorrido, o Conselho de Administração (cf. factos provados 21 e 27); o recorrente, manteve uma colaboração estreita com o recorrido desde 2013, como vogal do Conselho de Administração e assegurando a gestão diária do recorrido desde 2017, sem que tenha sido apurado que essas tarefas fossem remuneradas (cf. factos provados 2 e 3); além da alteração na composição do Conselho de Administração, não se apuraram factos que objectivamente justificassem a eliminação do cargo de director-geral que o recorrente ocupava. (…). 60. - Assim, tendo em conta os factos enunciados no parágrafo 58, afigura-se que o despedimento foi levado a cabo com a finalidade, por parte dos novos membros do Conselho de Administração do recorrido, de atingir a esfera pessoal do recorrente e é nesse contexto que, à luz da doutrina acima mencionada, os danos morais sofridos pelo recorrente merecem a tutela do direito. Aplicando ao caso o disposto no artigo 566.º do CC, afigura-se ser de atribuir ao recorrente uma indemnização por equivalente, pelos danos morais apurados, constantes do facto provado 30. A margem de discricionariedade do Tribunal na fixação deste valor é aqui delimitada pelos seguintes factores: a preocupação e angustia do recorrente com a estabilidade laboral, o número de anos que durou a colaboração do recorrente com o recorrido anteriormente à constituição do vínculo laboral, que levam a presumir ter sido criada no recorrente a expectativa de que, após a celebração do contrato, essa colaboração fosse estável; o vínculo laboral que se lhe seguiu e a sua duração; o valor mensal da retribuição base. Assim, segundo critérios de equidade o Tribunal fixa a indemnização por danos não patrimoniais no montante 2 000,00 euros.” (o negrito consta no texto original). Nesta parte do acórdão, a 1.ª Adjunta votou vencida. 5.2. - Os danos não patrimoniais são compensáveis quando, pela sua natureza e gravidade mereçam a tutela do direito, conforme o disposto no citado artigo 28.º do CT. De acordo com o artigo 496.º, n.º 1, do Cód. Civil, “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. No dizer de Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 499, “O Código Civil aceitou, em termos gerais, a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, embora limitando-a àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). (…).”. São quatro os requisitos para a tutela dos danos não patrimoniais: (i) comportamento ilícito e culposo do agente; (ii) existência de danos; (iii) que esses danos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (não bastando um mero incómodo); (iv) que se verifique um nexo causal entre aquele comportamento e o dano, por forma a que este seja, daquele, consequência. Por sua vez, a gravidade deve ser aferida por um padrão objectivo e não por critérios subjectivos, cabendo ao tribunal a sua avaliação. No caso dos autos, quanto à “existência de danos”, está apenas provado no ponto 30 da matéria de facto: “Como consequência do descrito em 24) e 27), o Autor sentiu-se angustiado e preocupado quanto ao seu futuro profissional.”. Os sentimentos de angústia e preocupação são, em regra, inerentes a todos os despedimentos sem justa causa, pelo que se torna necessário alegar e provar factos que permitam ao Tribunal concluir pela gravidade e repercussão da angústia e preocupação na pessoa do concreto trabalhador despedido. Ora, como escreveu o Ex.mo Sr. Procurador Geral-Adjunto no seu parecer, a redacção do ponto 30 dos factos dados como provados “é demasiado genérica e pouco concretizada” para podermos concluir por qualquer grau de gravidade daqueles dois sentimentos. Na verdade, tais danos apenas devem ser atendíveis quando, para além de uma plausível relação de causa-efeito, a lesão deles decorrente assuma especial relevo, configurando gravidade que vá, notoriamente, para além daquela que sempre resulta, como sobredito, duma situação de ruptura contratual similar à de um despedimento individual sem justa causa. Neste contexto, a matéria descrita no ponto 30 é insuficiente para concluirmos pela gravidade relevante, nos termos e para efeitos do artigo 496.º, n.º 1, do Cód. Civil. IV. - Decisão Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social: a) - Julgar improcedente o recurso de revista quanto às questões i. a iii. do seu objecto e manter o acórdão recorrido nessa parte. b) - Julgar parcialmente procedente o recurso de revista quanto à questão iv., no que respeita ao pagamento do valor de 2 000,00 € a título de danos não patrimoniais, absolvendo a Ré nesta parte do pedido. Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção de 20% e 80%, respectivamente. Lisboa, 25 de setembro de 2024
Domingos José de Morais (Relator) José Eduardo Sapateiro Mário Belo Morgado |