Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
236/22.3PBLRS.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO ORDINÁRIO
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PODERES DE COGNIÇÃO
CIRCUNSTÂNCIAS
MOLDURA PENAL
CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES
CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I. Neste caso concreto, uma vez que se trata de recurso de acórdão da Relação que decide recurso de decisão de tribunal de coletivo da 1ª instância, os poderes de cognição do STJ, visto o disposto no art. 434.º do CPP, limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, o que significa que as questões que o recorrente colocou (e tal como as colocou) relativas à decisão da matéria de facto estão definitivamente decididas pela Relação, não cabendo na esfera de cognição do STJ pronunciar-se sobre essas questões relativas à decisão da matéria de facto da qual discorda (v.g. quanto à invocada violação do in dubio pro reo e errada apreciação da prova - violação do art. 127.º do CPP).

II. No caso aqui em apreciação, não sendo a decisão recorrida acórdão proferido pela Relação em 1ª instância, nem estando em causa recurso direto para o STJ de acórdão proferido em 1ª instância, por tribunal do júri ou coletivo, mas antes tratando-se de recurso de acórdão da Relação que decidiu recurso anterior do arguido de decisão da 1ª instância, como se assinala no ac. do STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito) “nada foi legislativamente alterado no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”. Com efeito, as únicas exceções introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21.12 à regra geral do recurso para o STJ visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, são (como estabelecido na parte final do art. 434.º do CPP) as previstas nas als. a) e c) do n.º 1, do art. 432.º do CPP, dois casos em que, como tem sido decidido, nomeadamente, no citado acórdão deste STJ de 15.02.2023 “trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo (o que justifica a diferente solução legislativa).”

III. Concorrendo duas ou mais circunstâncias modificativas da moldura penal, sendo umas agravantes e outras atenuantes, funcionam primeiro as agravantes e só depois as atenuantes. Assim, a moldura penal abstrata do crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma de fogo, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), todos do Código Penal e ainda nos termos do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro é de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão, pois é a que resulta da moldura do tipo legal do homicídio qualificado de 12 (doze) anos a 25 (vinte e cinco) anos de prisão, agravada primeiro nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da lei n.º 5/2006, de 23.02, para a de 16 (dezasseis) anos a 25 (anos) de prisão, limite máximo este inultrapassável por força do artigo 41.º, n.º 2 e n.º 3, do CP, incidindo, depois, sobre esta moldura a atenuação especial decorrente da tentativa, fixando-a naquela apontada medida, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, als. a) e b), do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 236/22.3PBLRS do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 2, comarca de Lisboa Norte, foi proferido acórdão em 7.12.2023 a condenar o arguido AA, além do mais:

-pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal, e agravado nos termos do disposto no artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 , da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 10 (dez) anos de prisão;

-pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, previsto e punível pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

- em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Penal, na pena única de 10 (dez) anos e 3 (três) meses de prisão.

- no pedido de indemnização civil de fls. 572 a 575 e, em consequência, foi condenado a pagar ao HOSPITAL BEATRIZ ÂNGELO, o montante de 5.229,59 € (dois mil duzentos e vinte e nove euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa legal contados desde a data da notificação ao arguido do pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento.

Foi absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

2. Tendo recorrido para a Relação de Lisboa, por acórdão do TRL de 11.04.2024 foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

3. Não se conformando com o decidido, recorreu o mesmo arguido para o STJ apresentando as seguintes conclusões1:

A) O recorrente foi condenado pelo Tribunal a quo e posteriormente confirmada a decisão pelo Tribunal da Relação, numa pena em cúmulo jurídico de 10 anos e 3 meses.

B) A condenação respeita à prática em autoria material de um crime de homicídio na forma tentada - 10 anos e num crime de falsas declarações numa pena de 4 meses.

C) O recorrente não concordou com a decisão e recorreu para o Tribunal da Relação.

D) Tal decisão foi confirmada.

E) Este recurso tem em vista a apreciação da matéria de direito.

F) O Tribunal a quo e o tribunal da Relação basearam-se em exclusivo nas declarações do ofendido, considerando que foram objectivas.

G) Não nos é possível concordar com tal afirmação.

H) As declarações do ofendido referiram que ambos estão bêbados, portanto não é possível precisar como ocorreram os factos, pese embora as lesões que apresentou.

I) As declarações do ofendido foram tendenciosas e tem como objectivo atribuir a culpa ao arguido..

I) Por mais estranho que pareça, não foi o arguido que desferiu o tiro e provocou as lesões e o ofendido sabe disso.

K) O arguido foi condenado numa de prisão efectiva de 10 anos por homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º, 22º e 23º, do Código Penal.

L) O Crime de homicídio, na forma tentada, é punível com pena de prisão de 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão.

M) O Tribunal a quo e o Tribunal da Relação ao aplicar o limite máximo da moldura abstracta teve em consideração essencialmente o aspecto punitivo e não ponderou, como devia, o aspecto pedagógico que deve estar pressente na aplicação de qualquer pena.

N) De acordo com o número 1 do artº 40º do Código Penal, a pena a aplicar visa a reintegração do agente na sociedade, logo, a aplicação da referenciada pena a quem está integrado social, familiar e profissionalmente, certamente contraria a ratio deste preceito e do verdadeiro fim das penas.

O) Por sua vez, o nº 1 do artº 71º do Código penal estipula que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção devendo, conforme previsto no seu número 2, atender-se às circunstâncias que deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente às aí enumeradas.

P) O arguido remeteu-se ao silêncio na audiência de discussão e julgamento e é um direito que lhe assiste, princípio este consagrado no artº 32º da Constituição da República Portuguesa.

Q) Este princípio do processo equitativo tem assento legal no Artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e tem um grande desenvolvimento jurisprudencial no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sob o brocardo NENO TENETUR SE ISPUM ACCUSARE. Ora, um dos corolários do Nenun Tentur é praticamente o direito ao silêncio.

R) O princípio in dubio pro reo é portanto uma vertente da presunção da inocência, mas não o esgota já que o in dubio pro reo só actua em caso de dúvida. Se o julgador tiver dúvida acerca da culpa do arguido, então tem o dever de absolvê-lo.

S) O princípio do julgamento justo e equitativo implica que ninguém pode ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação e que engloba o direito ao silêncio.

T) O arguido não tem obrigação de prestar declarações.

U) Ora, não havendo, pois, prova directa sobre os factos descritos, impunha-se a avaliação dos elementos de prova judiciária existentes à luz dos critérios legais e dos ensinamentos da Doutrina e da Jurisprudência.

V) O artº 127º do CPP dispõe que: “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção a entidade competente”.

X) A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, e, assim, uma conclusão livre apenas subordinada à razão e à lógica.

Y) Contudo, é certo que a livre apreciação de provas (princípio que enforma o processo penal, salvaguardas as excepções legais) não se pode confundir com apreciação arbitrária de provas.

Z) Face às declarações prestadas pelo recorrente em sede de audiência de julgamento, a ausência de qualquer prova testemunhal credível no sentido do vertido na acusação pública, a valoração deturpada do depoimento do ofendido, é convencimento do recorrente que o Tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do princípio consignado no artº 127º do CPP, isto é, apreciou mal a prova.

AA) Em nosso entender o Tribunal a quo deveria ter aplicado uma pena que se situe dentro dos limites mínimos, não podendo de forma alguma ultrapassar os 5 anos de condenação.

O Tribunal a quo e o Tribunal da Relação fizeram errada aplicação dos Arts. 40º, 71º, 127º do Cód. Proc. Penal e do Art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

Termina pedindo que o acórdão recorrido seja revogado e, em sua substituição, proferido outro que condene o arguido numa pena que se situe dentro dos limites mínimos, não devendo ultrapassar, em cúmulo jurídico a pena de 5 anos.

4. Na resposta ao recurso o Ministério Público na Relação, apresentou as seguintes conclusões:

1. O recorrente foi condenado na pena única de 10 (dez) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e de um crime de falsas declarações.

2. Com o seu recurso visa a reapreciação da medida concreta da pena em que foi condenado pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada;

3. Porquanto, no seu entendimento, o Tribunal da Relação não ponderou o especto pedagógico que deve estar presente na aplicação de qualquer pena.

4. Ora, considerando que a atuação do arguido contra a vida do ofendido traduz uma ilicitude muito elevada;

5. Que o arguido atuou com dolo direto;

6. Que o arguido não manifestou qualquer arrependimento pelos graves factos que praticou;

7. Que o arguido revelou uma total ausência de crítica relativamente às condutas ilícitas que perpetrou;

8. E a globalidade da personalidade do arguido espelhada nos factos que cometeu;

9. A pena aplicada mostra-se adequadamente determinada em função da culpa do arguido.

Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

5. Subiram os autos a este STJ e, o Sr. PGA emitiu parecer sustentando que o STJ só julga de direito, pelo que as matérias alegadas no recurso relacionadas com supostos erros de julgamento e de valoração das provas não podem ser apreciadas, tanto que o ac. da Relação confirmou integralmente o acórdão da 1ª instância, pelo que não havendo nulidades ou vícios de conhecimento oficioso (arts. 379.º e 410.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP), está fixada a matéria de facto, apenas podendo ser conhecidas as questões colocadas quanto à medida concreta da pena de 10 anos de prisão aplicada pelo crime de homicídio qualificado tentado agravado pelo uso de arma e quanto à pena única de 10 anos e 3 meses de prisão (uma vez que a pena aplicada pelo crime de falsas declarações não é recorrível), as quais são de meter, mesmo a primeira (de 10 anos de prisão) apesar do erro quanto ao cálculo da moldura abstrata do crime de homicídio qualificado tentado agravado pelo uso de arma (cujo limite mínimo é de 3 anos 2 meses e 12 dias de prisão e cujo limite máximo é de 16 anos e 8 meses de prisão e não de 22 anos 2 meses e 20 dias como se refere no acórdão da 1ª instância). Conclui, perante o que expõe, que, ponderando todos os fatores e a ausência de circunstâncias atenuantes de relevo, “a conduta do arguido justifica uma censura ético-jurídica elevada, que as necessidades de prevenção especial, face aos antecedentes criminais e à intensidade da sua culpa, são acentuadas e que as exigências de prevenção geral, estando em causa um crime especialmente violento (art. 1.º, al. l), do CPP) que suscita fortíssimo alarme social, são bastante significativas e desaconselham quaisquer cedências a nível sancionatório”, pelo que não obstante a correção a efetuar ao limite máximo da moldura abstrata do homicídio qualificado agravado pelo uso de arma tentado, é de manter a pena de 10 anos de prisão por respeitar “o limite inultrapassável da culpa e ajusta-se aos critérios e finalidades emergentes dos arts. 40.º e 71.º do CP, e aos princípios da necessidade e proporcionalidade subjacentes ao art. 18.º, n.º 2, da Constituição, inexistindo, por isso, fundamentos para reduzi-la.” Quanto à pena única, “considerando a globalidade dos factos, intervalados por dois meses e entre si interrelacionados, e a personalidade do arguido, cujas condenações criminais e comportamento refratário desvelam uma personalidade avessa ao direito”, entende que a pena única de 10 anos e 3 meses de prisão, também não é merecedora de reparo e, assim, deve ser julgado improcedente o recurso.

6. Não houve resposta ao Parecer do Sr. PGA.

7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

II. Fundamentação

8. Factos

Consta da decisão sobre a matéria de facto do acórdão da 1ª instância, confirmada pelo Acórdão da Relação de 11.04.2024, o seguinte:

Realizado o julgamento, o tribunal da 1ª instância deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. No dia ....04.2022, o arguido AA (de alcunha “AA”), acompanhado dos indivíduos BB (de alcunha “BB”) e CC (de alcunha “CC”) dirigiu-se à discoteca «...», sita na ..., em ..., onde encontrou DD;

2. Nesse mesmo espaço de diversão noturna, encontrava-se EE, que ali se tinha deslocado pelas 3 horas, a quem o arguido encomendou uma bebida que no final da noite aquela lhe devia preparar e entregar, pagando alegadamente para o efeito a quantia de 20 € (vinte euros);

3. Pelas 6 horas, quando o ofendido FF e o seu amigo GG estavam a sair da referida discoteca, cruzaram-se com EE, a quem FF ofereceu boleia para casa, que aquela aceitou;

4. Contudo, quando ainda se encontravam à porta da discoteca, surgiu o arguido AA que iniciou uma discussão com EE, exigindo que esta lhe devolvesse os 20 € que lhe tinha entregue, tendo esta respondido que não se lembrava e procurado na sua mala, mas não os tendo encontrando;

5. Nesse momento, o ofendido FF ofereceu-se para pagar os 20 €, ao que o arguido recusou, dizendo que não queria o seu dinheiro;

6. De seguida, pensando que a situação estaria resolvida, o ofendido entrou no seu veículo, acompanhado do seu amigo GG e da EE, tendo seguido em direção à zona da ..., onde esta última reside, seguindo as suas indicações;

7. Contudo, pelas 7 horas, ao chegar à ..., após passar os semáforos ali existentes, GG acabou por imobilizar o veículo na Avenida ..., junto a um supermercado, apercebendo-se que aquela tinha adormecido;

8. Nesse momento, surgiu o arguido AA que se dirigiu para junto da EE e, ao mesmo tempo que batia no vidro e tentava abrir a porta do veículo, começou a exigir que esta lhe devolvesse o dinheiro, dizendo que esta fingia estar a dormir;

9. Nessa sequência, o ofendido FF interveio e disse ao arguido para parar com aquele comportamento, disponibilizando-se novamente para lhe pagar os 20 € (vinte euros), ao que este respondeu “Se tás a defender ela, o problema passa para ti!”, tendo o primeiro respondido “Somos os dois homens, então vamos ali conversar os dois!”, tendo em ato contínuo ambos se envolvido em confronto físico, levando a que DD e GG interviessem e tentassem por cobro à contenda;

10. Nesse momento, o arguido AA, ao mesmo tempo que se dirigiu para o veículo onde se fazia transportar, disse ao ofendido “Vou-te dar tiro!”;

11. Ato contínuo, retirou uma pistola de características e calibre não apurados do interior do carro, aproximou-se do ofendido FF, e a uma distância não concretamente apurada, mas superior a um metro e meio e inferior a sete metros, apontou-a na sua direção e efetuou um disparo que o veio a atingir na zona do abdómen, mais concretamente, no hipogastro à esquerda, ficando o respetivo projétil alojado na zona do cóccix;

12. De seguida, o arguido AA regressou para o veículo e colocou-se em fuga para parte incerta juntamente com o indivíduo BB;

13. Por outro lado, GG, DD e CC, pegaram no ofendido FF e, fazendo-se transportar no seu veículo, levaram-no de imediato para o Hospital Beatriz Ângelo, onde este deu entrada pelas 7 horas e 31 minutos e, não obstante ter sido submetido a uma intervenção cirúrgica de urgência, não se mostrou possível proceder à extração do projétil, o qual ainda se mantém no interior do seu corpo;

14. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o ofendido FF sofreu dores na região atingida, bem como “lesões penetrantes do ileoterminal, mesentério justa-ileal, cúpula vesical e recto alto”, que interromperam o trânsito intestinal, e “cicatriz eucromática de laparotomia, hipertrófica, supra e infraumbilical, circundante do umbigo, espessada, de características cirúrgicas, com 17 cm de comprimento; cicatriz eucromática, no quadrante inferior direito, oblíqua ínferomedialmente, de características cirúrgicas, com 3 cm de comprimento”, lesões essas que, até à data de ... .02.2023, determinaram 292 dias de doença com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, incluindo um período de internamento hospitalar de 21 dias;

15. Na sequência do tratamento médico do ofendido, houve necessidade de colocação de saco de colostomia na transição da região umbilical para o flanco esquerdo, até realização de cirurgia para reconstrução do trânsito intestinal, a qual até dia ... de ... de 2023, ainda não tinha sido possível agendar, tendo sido realizada em ... de ... de 2023;

16. Apenas a célere e adequada intervenção clínica (laparotomia emergente) no tratamento das lesões resultantes, obviou a que tenha resultado, em concreto, perigo para a vida do ofendido, tendo em conta o atingimento de estruturas viscerais importantes;

17. Na sequência dos factos acima descritos foram emitidos mandados de detenção contra o arguido e de busca domiciliária à sua residência, sendo que este, no decurso da busca realizada no dia ... .02.2022, logrou saltar de uma janela para a via pública e, assim, colocar-se em fuga;

18. Apenas no dia ... de junho de 2022, após as 19 horas, o arguido veio a ser localizado na zona do ..., em ..., tendo sido abordado por elementos da Polícia Judiciária, os quais se identificaram com as suas carteiras profissionais e disseram “Polícia”;

19. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, aquando da abordagem policial e a fim de evitar a sua detenção, o arguido disse aos inspetores da Polícia Judiciária chamar-se HH;

20. Nessa sequência, tendo em vista a sua cabal identificação, o arguido foi transportado para as instalações daquela Polícia, sendo que junto do respetivo portão de entrada, abriu a porta do veículo policial onde seguia e tentou encetar fuga do mesmo, tendo sido necessário imobilizá-lo e algemá-lo para impedir os seus intentos;

21. Sabia o arguido que ao visar a referida parte específica do corpo do ofendido FF, zona onde se alojam diversos órgãos vitais, propondo-se aí a atingi-lo e utilizando uma arma de fogo de características não apuradas, bem sabendo que a mesma constitui um meio especialmente letal, atuava de modo a provocar-lhe a morte, como pretendia, o que apenas não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente, devido à rápida assistência hospitalar que lhe foi prestada;

22. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a FF, apenas motivado por um sentimento de raiva por este se ter oposto a que aquele continuasse a exigir a quantia monetária de 20 € (vinte euros) que lhe era alegadamente devida por EE;

23. O arguido tinha conhecimento das características e da natureza da arma de fogo;

24. Sabia ainda o arguido que as pessoas que o abordaram eram inspetores da Polícia Judiciária e que ao transmitir-lhes um nome que não correspondia ao seu, estava a declarar e a atestar uma identidade que não correspondia à verdade, com o propósito de os induzir em erro para não ser detido e assim furtar-se à perseguição criminal pelos crimes que cometeu;

25. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime;

26. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DE FLS. 572 A 575

27. Em consequência direta da conduta do arguido, em 6 de maio de 2022, 30 de maio de 2022, 17 de novembro de 2022 e 20 de janeiro de 2023, o Hospital Beatriz Ângelo prestou ao ofendido assistência médica cujo custo ascende a s.229,59 €;

28. MAIS, PROVOU-SE QUE:

29. Do relatório social com a referência n.º .......7, de 2.11.2023, resulta que:

30. i. Em contexto prisional, o arguido tem apresentado um comportamento conforme às regras, mantendo-se inativo em termos formativo-laborais, apesar de demonstrar interesse em ocupar-se, recebendo visitas regulares da companheira, que continua a apoiá-lo;

31. ii. Antes de ser preso à ordem destes autos, o arguido vivia em união de facto com a companheira desde 2017, em habitação arrendada, descrita como detendo as condições de habitabilidade, sendo o relacionamento afetivo caracterizado por adequação e assente em entreajuda e afetividade, sendo AA valorizado nas interações que estabelece nos diferentes contextos e no papel que mantém neste agregado constituído;

32. iii. Profissionalmente, antes de ser preso, o arguido mantinha-se inativo, tendo antes exercido funções a partir de 17.11.2021, com contrato de trabalho como ajudante de ... na empresa "E..., Lda.". Na sequência de um acidente de trabalho esteve de baixa médica entre 3.01.2022 e 31.03.2022, tendo comparecido depois ao trabalho apenas nos dias 5, 6 e 7 de abril de 2022, não justificando as ausências posteriores;

33. iv. A subsistência do agregado dependia anteriormente sobretudo dos rendimentos auferidos pela companheira do arguido, responsável do turno da noite das encomendas online do hipermercado continente, não sendo referidos constrangimentos a este nível;

34. v. Natural da ... e filho único, o arguido provém de um enquadramento familiar diferenciado, mas desfavorável, caracterizado por comportamentos de violência doméstica agravados pela problemática de alcoolismo do pai, ..., na relação conjugal, sendo a mãe ...;

35. vi. De modo a evitar a exposição de AA a esse ambiente negativo e, decorrente da separação dos pais, ocorrida quando ele tinha cerca de sete anos, um dos seus tios paternos, ..., acolheu-o no seu agregado constituído junto do cônjuge, ..., e dos descendentes, num clima relacional harmonioso e normativo;

36. vii. Posteriormente, aos 15 anos, integrou o agregado materno junto da mãe e dos irmãos uterinos, e cerca de um ano depois integrou o agregado paterno até aos 17 anos, altura em que foi para o ... para ingressar no ensino superior;

37. viii. No ..., o arguido prosseguiu os estudos na Faculdade no ..., na área de ..., habilitando-se ao fim de dois anos com o curso de técnico superior;

38. ix. Regressando novamente à ... e, após adquirir formação específica, AA iniciou funções laborais como ... contra incêndios aéreos no Aeroporto, aos 22 anos, tendo também realizado formação como ... nos ..., atividade que manteve até se deslocar para Portugal em 2017 para realização de tratamentos médicos;

39. x. O arguido tem um filho com 6 anos de idade, que vive com a mãe em ...;

40. xi. No Estabelecimento Prisional, o arguido recebe visitas da sua mãe, da companheira e da mãe desta;

41. O arguido já foi condenado pela prática:

i. Em 12.08.2017, de um crime de condução sem habilitação legal, por decisão proferida em 12.09.2018, transitada em julgado em 11.01.2019, na pena de 80 dias de multa;

ii. Em 1.01.2017, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por decisão de 24.05.2019, transitada em 24.06.2019, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 6 meses;

iv. Em 3.08.2020, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, um crime de detenção ou tráfico de armas proibidas e um crime de condução sem habilitação legal, por decisão de 27.04.2021, transitada em julgado em 27.04.2021, na pena de 450 dias de multa;

v. Em 10.01.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, por decisão de 13.04.2023, transitada em julgado em 15.05.2023, na pena de 230 dias de multa; e

vi. Em 15.07.2020, de um crime de condução sem habilitação legal e dois crimes de falsificação de documento, por decisão de 7.03.2023, transitada em julgado em 17.04.2023, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa por igual período.»

*

II.2.2. Na decisão recorrida foi dada como não provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

«III. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou que:

1. Nas circunstâncias descritas em 3. dos factos provados, EE solicitou boleia para casa a FF, ao que este acedeu;

2. Instantes depois, o arguido AA telefonou para a EE, tendo esta acabado por combinar para este ir ter consigo para lhe entregar a bebida, solicitando que GG encostasse o veículo onde seguiam, a fim de aguardarem pela chegada daquele;

3. O arguido AA, juntamente com DD, BB e CC, fazendo-se transportar num veículo dirigiu-se para o local que EE lhe indicou;

4. Após aguardarem breves minutos, GG apercebeu-se da aproximação da viatura do arguido e arrancou novamente em direção à ...;

5. GG imobilizou o veículo que conduzia no local identificado em 7. dos factos provados na sequência de ter constatado que a EE tinha deixado de dar indicações;

6. BB e CC intervieram no confronto físico referido em 9. dos factos provados tentando pôr fim à contenda;

7. O arguido retirou a pistola referida em 11. dos factos provados do porta luvas do veículo;

8. O arguido efetuou o disparo que atingiu o ofendido a uma distância de cerca de um metro e meio daquele;

9. O arguido não era possuidor de licença de uso e porte de arma que o habilitasse a adquirir, guardar ou deter, por qualquer forma e motivo, a arma acima mencionada;

10. Nas circunstâncias referidas em 23. dos factos provados, o arguido bem sabia que não possuía licença nem autorização para o efeito e que não lhe era permitido detê-la, nem a usar, nas circunstâncias acima descritas, contudo não se coibiu de o fazer porque era esse o seu propósito.»2

*

9. Direito

Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Analisadas as conclusões do recurso do acórdão da Relação de Lisboa apresentado pelo arguido para o STJ, verifica-se que:

1ª- tanto invoca que discorda da matéria de facto dada como assente, fazendo a sua própria análise das declarações do ofendido em audiência, formulando um juízo genérico e abstrato quanto à prova testemunhal produzida em julgamento, considerando que por, em audiência, se ter remetido ao direito ao silêncio, perante a avaliação que faz da prova produzida oralmente em julgamento, o tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do princípio consignado no art. 127.º do CPP e apreciou mal a prova e, por isso, deve ser-lhe aplicada pena que se situe dentro dos limites mínimos, não podendo ultrapassar em cúmulo jurídico os 5 anos de prisão;

2ª- como alega que recorre apenas de direito e quanto à medida da pena do crime de homicídio na forma tentada (10 anos) pelo qual foi condenado, por a achar exagerada e desproporcionada, tendo o Tribunal da Relação lhe aplicado o limite máximo da moldura abstrata que refere ser de 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses, não ponderando o aspeto pedagógico subjacente à pena, tendo apenas em atenção o aspeto punitivo, por terem sido violados os critérios apontados nos arts. 40.º e 71.º do CP, pugna que lhe seja aplicada pena que se situe dentro dos limites mínimos, não podendo ultrapassar em cúmulo jurídico os 5 anos de prisão.

Pois bem, primeiro que tudo importa esclarecer que o arguido quando recorre para o STJ, neste caso está a recorrer do acórdão da Relação, que confirmou a decisão da 1ª instância e não a recorrer, também, da decisão da 1ª instância, como erradamente alega em sede de motivação de recurso. O recurso da decisão da 1ª instância foi para a Relação e, como esta confirmou aquela decisão é que recorreu para o STJ do acórdão da Relação.

Em segundo lugar é preciso ter presente os poderes de cognição do STJ, indicados no art. 434.º do CPP, como acima foi referido.

1ª Questão

Começando pelo recurso do arguido, quanto à questão da decisão da matéria de facto da qual discorda, nos termos acima indicados, designadamente, invocando violação do in dubio pro reo e errada apreciação da prova (violação do art. 127.º do CPP).

Assim.

Neste caso concreto, importa ter em atenção que os poderes de cognição do STJ, visto o disposto no art. 434.º do CPP (uma vez que se trata de recurso de acórdão da Relação que decide recursos de decisão de tribunal coletivo da 1ª instância), limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito.

Com efeito, as únicas exceções introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21.12 à regra geral do recurso para o STJ visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, são (como estabelecido na parte final do art. 434.º do CPP) as previstas na al. a) do n.º 1, do art. 432.º (quando se trata de “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”) e na al. c) do mesmo n.º 1 do artigo 432.º do CPP (quando se trata “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”).

Nesses dois casos, como se tem decidido, nomeadamente, no acórdão deste STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito)3, que seguimos de perto, “trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo (o que justifica a diferente solução legislativa).”

No caso aqui em apreciação, não sendo a decisão recorrida acórdão proferido pela Relação em 1ª instância, nem estando em causa recurso direto para o STJ de acórdão proferido em 1ª instância, por tribunal do júri ou coletivo, mas antes tratando-se de recurso de acórdão da Relação que decidiu recurso anterior do arguido de decisão da 1ª instância, como se assinala na jurisprudência acima citada, “nada foi legislativamente alterado no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.”

Assim sendo, o recurso do arguido segue a regra geral, o que significa que as questões que o recorrente colocou (e tal como as colocou) relativas à decisão da matéria de facto estão definitivamente decididas pela Relação, não cabendo na esfera de cognição do Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a invocada violação do in dubio pro reo e sobre a errada apreciação da prova (violação do art. 127.º do CPP).

Ora, respeitando essas questões à decisão sobre a matéria de facto e, tendo sido sindicadas pela Relação, no âmbito dos seus poderes de cognição, as matérias que lhe foram colocadas (decidindo a Relação, por um lado, não ter detetado qualquer falha ou desrespeito das regras legais e dos princípios gerais de direito na valoração da prova, concluindo que o acórdão proferido pelo Tribunal recorrido não padece de quaisquer dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal, em concreto, os previstos na al. c) e, por outro lado, não conheceu do invocado erro de julgamento, por não terem sido alegados todos os seus pressupostos, tendo ainda afastado, por inverificada, a alegada violação do princípio in dubio pro reo), ficaram definitivamente decididas, sendo irrecorrível nessa parte a decisão da Relação.

Por isso, rejeita-se o recurso, por inadmissibilidade legal, na parte em que foi impugnado o Acórdão da Relação, quanto à decisão sobre a matéria de facto, já decidida definitivamente (face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.ºs 2 e 3 e 434.º, do CPP).

2.ª Questão

Invoca o recorrente que a medida da pena (10 anos de prisão) aplicada pelo crime de homicídio qualificado agravado com arma na forma tentada pelo qual foi condenado, foi exagerada e é desproporcionada, estando próxima do limite máximo da respetiva moldura abstrata (que considera ser entre 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses), não tendo ponderado o aspeto pedagógico subjacente à pena mas apenas atendido ao aspeto punitivo, violando os critérios apontados nos arts. 40.º e 71.º do CP, pugnando que lhe seja aplicada pena que se situe dentro dos limites mínimos, não podendo ultrapassar em cúmulo jurídico os 5 anos de prisão.

Vejamos então.

Na Apreciação do Recurso, quanto à “Determinação da medida da pena” consignou-se na decisão impugnada:

Em decorrência da objecção que o recorrente colocou à subsunção jurídica feita pelo Tribunal recorrido e no pressuposto de o recurso obter vencimento no sentido da pretendida requalificação da conduta do arguido como crime de homicídio negligente, p. p. pelo artigo 137º, n.º 2, do Código Penal, alega que a medida concreta da pena parcelar e unitária aplicadas deveriam ser reduzidas a 5 anos e aplicar-se a suspensão da sua execução [conclusões LL), MM) e NN), do recurso].

Face à resposta dada à questão anterior e à manutenção da imputação do homicídio qualificado, é evidente ter ficado prejudicada a pretensão neste segmento.

Sem prejuízo, sempre se dirá que, não merece censura a pena aplicada ao recorrente quanto ao crime pelo qual foi condenado, crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.º 2, al. 2), do Código Penal – pena de 10 anos de prisão –, pois, se encontra suportada em adequada fundamentação. O mesmo se diga quanto à pena aplicada pelo crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348º-A, nº 1, do Código Penal.4

Nos termos do artigo 40º do Código Penal, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

Por sua vez, decorre do artigo 71º, nº 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial do agente, determinando o nº 2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime, “considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.

Decorre, por fim, do nº 3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.

A decisão recorrida fundamentou a fixação da medida concreta da pena em termos que merecem a nossa inteira concordância:

«(..) Atendendo ao modo como o arguido atuou atentando contra a vida do ofendido, o que fez através de uma arma de fogo, a ilicitude é muito elevada quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, sendo inferior à média no que se refere ao crime de falsas declarações;

- O dolo do arguido é direto quanto a ambos os crimes que cometeu;»

«(…) Ponderando os vários elementos supra expostos, entende o Tribunal que relevam de forma superior à média as exigências de prevenção especial positiva no caso concreto mormente no que se refere ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, sendo inferiores à média no que se refere ao crime de falsas declarações.(…)»

É evidente que, no caso em apreciação, pelas apontadas razões, não se impõe minimamente a intervenção correctiva deste Tribunal da Relação em sede de fixação da medida concreta das penas, e também não há razão para alterar o decidido quanto à pena conjunta, que se mostra estabelecida com observância do disposto no artigo 77.º, do Código Penal:

«Ora, considerando o já referido em sede de apreciação dos critérios elencados no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, a ausência de manifestação por parte do arguido de qualquer arrependimento pelos graves factos que praticou, revelando total ausência de crítica relativamente às condutas ilícitas que perpetrou e atendendo, ainda, à personalidade do arguido espelhada nos factos que cometeu, o tribunal decide condenar o arguido na pena única de 10 anos e 3 anos de prisão.»

*

III.3.4. Suspensão da execução da pena

A apreciação desta questão teria como pressuposto a redução da pena de prisão a medida não superior a 5 anos. Como assim não sucedeu, a apreciação desta questão revela-se prejudicada.

Pois bem.

Está em discussão a pena individual do crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma tentado e a pena única em que o recorrente foi condenado (a pena aplicada pelo crime de falsas declarações não foi colocada em crise pelo recorrente e, bem, até porque face ao disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, não é recorrível, como bem diz no seu parecer o Sr. PGA junto deste STJ).

Como sabido, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade 5.

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida 6.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Jorge de Figueiredo Dias 7, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente 8, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.

Acrescenta, também, o mesmo Autor 9 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.

Impondo-se a realização de cúmulo jurídico das penas aplicadas, importa observar o disposto no art. 77.º do CP revisto.

O art. 77.º, n.º 1, do CP, sobre as regras de punição do concurso, estabelece um regime especial de punição, que consiste na condenação final numa única pena, considerando-se, “na medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

A justificação para este regime especial de punição radica nas finalidades da pena, exigindo uma ponderação da culpa e das razões de prevenção (prevenção geral positiva e prevenção especial), no conjunto dos factos incluídos no concurso, tendo presente a personalidade do agente10.

Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou (a pena única é o resultado da aplicação dos “critérios especiais” estabelecidos no mesmo art. 77.º, n.º 2, não esquecendo, ainda, os “critérios gerais” do art. 71.º do CP11).

Depois, sendo aplicada pena de prisão, consoante o seu quantum (caso seja aplicada pena única de prisão até 5 anos) impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.

Feitas estas considerações teóricas e analisando a decisão sob recurso no que respeita à fundamentação da referida pena aplicada ao arguido recorrente pelo crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma de fogo, tentado p. e p. nos arts. 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1, al. e), todos do CP e nos termos do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, importa antes de mais deixar bem clara a respetiva moldura abstrata, uma vez que há erro no seu cálculo, o que culminou num desfasamento no limite máximo indicado no acórdão da 1ª instância (como bem assinala o Sr. PGA, junto deste STJ, no seu parecer), e que não foi corrigido no acórdão recorrido.

Com efeito, a moldura penal abstrata a considerar é de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão, pois é a que resulta da moldura do tipo legal do homicídio qualificado de 12 (doze) anos a 25 (vinte e cinco) anos de prisão, agravada primeiro nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da lei n.º 5/2006, de 23.02, para a de 16 (dezasseis) anos a 25 (anos) de prisão, limite máximo este inultrapassável por força do artigo 41.º, n.º 2 e n.º 3, do CP, incidindo, depois, sobre esta moldura a atenuação especial decorrente da tentativa, fixando-a naquela apontada medida, nos termos do artigo 73, n.º 1, als. a) e b), do CP.

É que, concorrendo duas ou mais circunstâncias modificativas da moldura penal, sendo umas agravantes e outras atenuantes, funcionam primeiro as agravantes e só depois as atenuantes12.

Portanto, a moldura abstrata do crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo, cometido na forma tentada pelo arguido, como se referiu, tem como limite mínimo 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias de prisão e como limite máximo 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão (não sendo o limite máximo o referido pela 1ª instância de 22 anos 2 meses e 20 dias de prisão, que não foi corrigida pela Relação, nem tão pouco o referida pelo recorrente de 10 anos e 8 meses de prisão, sendo que este também errou quanto ao seu limite mínimo, uma vez que indicou ser de 1 ano 7 meses e 6 dias).

A Relação concordou com a pena aplicada pela 1ª instância de 10 anos de prisão, pelos motivos que indicou na decisão sob recurso, não encontrando motivo para corrigir a medida concreta dessa pena aplicada, mas teve em atenção uma moldura abstrata errada.

Vejamos então, tendo em atenção, desde logo, que nos movemos no âmbito de uma moldura abstrata cujo limite máximo da pena de prisão é menor do que aquele de que partiu a 1ª instância e a Relação, uma vez que esta também não efetuou qualquer correção, como se viu.

Ora, e dentro da moldura abstrata corrigida por este STJ, havia que considerar, que o arguido agiu com dolo direto e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada.

A ilicitude dos factos apurados é elevadíssima, atento o seu modo de atuação, impondo-se que agisse de outro modo com o ofendido, tanto mais que não tinha motivos para essa sua atuação (nem havia motivos/razões que justificassem minimamente o seu modo de agir).

A forma como atuou é muito grave, revelando uma maior desatenção à advertência de conformação ao direito.

De ponderar igualmente as consequências da sua conduta, que assumiram elevada gravidade, como se vê pelas lesões sofridas pelo ofendido, dadas como provadas, que não se mostram ultrapassadas, destacando-se, além do mais, que tem ainda uma bala alojada que não lhe foi retirada e, o que é certo é que, da conduta do arguido não redundou a sua morte, dada a pronta assistência médica de que beneficiou, com o auxílio de terceiros, pois o arguido após o disparo até fugiu.

São muito elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (a vida) no crime de homicídio qualificado tentado agravado, com arma de fogo, cometido na forma tentada, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso.

São também muito elevadas as razões de prevenção especial, atendendo ao que se apurou em relação às condições de vida do recorrente e personalidade desajustada aos valores sociais e à comunidade em que se insere, manifestando indiferença pelos bens jurídicos violados, destacando-se os de natureza pessoal, como sucedeu, com o desprezo manifestado pelo bem supremo da vida humana.

Pondera-se igualmente o seu comportamento anterior aos factos (com antecedentes criminais, a revelar uma personalidade desconforme em relação ao direito), bem como o comportamento posterior (sendo que, entretanto, tem estado preso preventivamente).

De notar que cometeu o crime ora em apreciação, quando já tinha condenações (duas em penas de multa e uma em prisão cuja execução foi suspensa), o que evidencia que tem uma personalidade avessa ao direito e que não se deixou influenciar pelas condenações anteriores que sofreu.

Embora tendo como limite a medida da sua culpa, a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes é essencial, sendo que o tipo de crime cometido, na forma tentada, ora em análise, revela bem as carências de socialização do recorrente e sua personalidade propensa ao crime que cometeu.

Considera-se igualmente o que se apurou em relação às suas condições pessoais, familiares (nomeadamente toda a fase de crescimento e percurso que foi seguindo), profissionais e situação económica, as quais não o impediam de ter escolhido uma vida conforme ao direito.

Ainda se atenderá à respetiva idade (nasceu em ........1991), quer à data do cometimento do crime em análise (....04.2022), quer à data em que foi proferida a decisão da 1ª instância, ao tempo entretanto decorrido e, ao efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro.

Ao contrário do que alega em sede de recurso, pelo que resulta do texto do acórdão recorrido, tendo em atenção a sua idade, crime cometido e posicionamento em relação ao crime cometido (não havendo sequer sinais exteriores de arrependimento ativo), verifica-se que, além de manifestar indiferença pelo bem jurídico violado (bem vida) aqui em apreciação (tendo até se colocado em fuga, para parte incerta, após ter efetuado aquele disparo sobre a vítima), ainda não interiorizou o desvalor da conduta que praticou, não revelando sentido crítico.

Por outro lado, também não se vê que esteja a esforçar-se, designadamente no EP, para mudar o seu rumo de vida.

O facto de o tribunal não dar a mesma relevância que o arguido pretendia quanto às circunstâncias que se apuraram, não significa que tivesse sobrevalorizado a vertente punitiva em detrimento da vertente pedagógica.

O que se passou é que o arguido/recorrente parte de pressupostos errados e sobrevaloriza circunstâncias a seu favor indevidamente e de forma subjetiva, portanto, sem razão.

Também, considerando todas as circunstâncias apuradas, igualmente não transparece que estejamos perante qualquer caso especial que justifique uma atenuação especial da pena (cf. art. 72.º do CP) em relação ao recorrente.

Como ensina Jorge de Figueiredo Dias, «as situações a que se referem as diversas alíneas do nº 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena»13.

E, não é esse o caso dos autos (sendo de afastar qualquer atenuação especial da pena), como facilmente se alcança das considerações acima efetuadas, tendo presente os factos dados como provados.

De todo o modo, no âmbito da corrigida moldura abstrata aplicável ao crime cometido ora em análise, tudo ponderado, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido/recorrente, bem como aos princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena de 9 (nove) anos de prisão.

Na perspetiva do direito penal preventivo, essa pena de 9 (nove) anos de prisão, mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à elevada gravidade dos factos cometidos em apreciação, satisfazendo as finalidades das penas, tendo em atenção os critérios previstos nos arts. 40.º e 71.º do CP.

Aplicar pena inferior a essa (9 anos de prisão) pelo crime ora em apreciação, era desajustado perante as gravosas circunstâncias do caso concreto e comprometiam irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo sequer comunitariamente suportável.

Resta, agora, avaliar se a medida da pena única é ou não excessiva.

Argumenta o recorrente que a pena única imposta (que foi de 10 anos e 3 meses de prisão) é excessiva, por estar distante do limite mínimo da respetiva moldura abstrata, pelo que deve ser revogada e a que lhe for aplicada não deve ultrapassar 5 anos.

Vejamos então.

Neste caso concreto, a pena aplicável (a moldura abstrata do concurso de penas, conforme o art. 77.º, n.º 2, do CP) tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso (ou seja, 9 anos e 4 meses de prisão que corresponde à soma das penas de prisão individuais aplicadas) e como limite mínimo a mais elevada das penas individuais concretamente aplicadas aos mesmos crimes em concurso (neste caso 9 anos de prisão), o que significa que a pena única terá de ser encontrada na moldura abstrata entre 9 anos de prisão e 9 anos e 4 meses de prisão.

Repare-se que está em causa o concurso de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma de fogo, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), todos do Código Penal e ainda nos termos do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro e um crime de falsas declarações, na forma consumada, p. e p. no artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal, devendo ter-se presente que o arguido já tinha antecedentes criminais, que o não motivaram a alterar o seu comportamento, como se viu pelo que se apurou nos factos dados como provados.

O desvalor das condutas do recorrente, o seu desprezo perante pautas mínimas de convivência societária, o facto de ter cometido o conjunto dos crimes em apreciação nestes autos no período indicado nos factos provados (intervalo de cerca de 2 meses), apesar do que se apurou quanto às suas condições de vida (particularmente condições pessoais, familiares, laborais, sociais e económicas), revelam bem como o ilícito global agora em apreciação foi determinado pela sua propensão ou tendência criminosa, aliada à sua personalidade avessa ao direito.

De facto, considerando a sua idade e o seu comportamento (anterior e contemporâneo aos factos), vista a natureza dos crimes cometidos (como decorre da globalidade dos factos em conjunto), modo como os executou e período de tempo em que desenvolveu a globalidade dos factos em apreciação, podemos afirmar que há uma adequação da sua personalidade aos factos cometidos, manifestada igualmente na indiferença que mostrou pelos bens jurídicos violados, reveladora de uma certa tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais cometidos.

A conexão entre os crimes em concurso, é grave, tendo de ser vistos no seu conjunto, considerando o espaço de tempo da sua atuação e a personalidade do arguido (avessa ao direito), que se mostra adequada aos factos cometidos, revelando tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais que executou, bem como não esquecendo, relativamente ao ilícito global, as elevadas exigências de prevenção geral (para reafirmar, perante a comunidade, a validade das normas violadas) e de prevenção especial (considerando todo o seu percurso de vida, apesar das oportunidades que foi tendo, mas que foi desaproveitando), sendo certo que nem sequer chegou a reparar os prejuízos causados, apesar das consequências gravosas causadas à vítima.

E, no juízo de prognose a fazer pelo tribunal, considerando as suas carências de socialização, entende-se como adequada, ajustada e proporcionada a pena única de 9 (nove) anos e 3 (três) meses de prisão (que não ultrapassa a medida da sua culpa, que é elevada), a qual não é impeditiva da sua reintegração social, sendo conveniente e útil que vá interiorizando o desvalor da sua conduta, adote uma postura socialmente aceite e faça um esforço no sentido da sua auto-ressocialização.

Da consideração global de todos os factos apurados e da personalidade do arguido/recorrente não se extrai que se possa formular um juízo mais favorável.

A pretendida redução da pena única mostra-se desajustada e não era comunitariamente aceitável.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a)- Rejeitar o recurso do arguido AA, por inadmissibilidade legal, na parte em que foi impugnado o Acórdão da Relação, quanto à decisão sobre a matéria de facto, já decidida definitivamente (face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.ºs 2 e 3 e 434.º, do CPP);

b)- Julgar parcialmente provido o mesmo recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, condená-lo:

-pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal, e agravado nos termos do disposto no artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 9 (nove) anos de prisão;

- em cúmulo jurídico, com a pena que lhe foi imposta pela prática do crime de falsas declarações, na forma consumada, na pena única de 9 (nove) anos e 3 (três) meses de prisão.

c)- No mais mantém-se o decidido no acórdão recorrido.

d)- Sem custas.

*

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 11.09.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Horácio Correia Pinto (Adjunto)

Antero Luís (Adjunto)

Proc. n.º 236/22.3PBLRS.L1.S1

3ª Secção

Ac. 11.09.2024

Descritores: recurso ordinário; inadmissibilidade de recurso; poderes de cognição; circunstâncias modificativas da moldura penal; concurso entre circunstâncias agravantes e atenuantes e determinação da moldura penal

Sumário

I. Neste caso concreto, uma vez que se trata de recurso de acórdão da Relação que decide recurso de decisão de tribunal de coletivo da 1ª instância, os poderes de cognição do STJ, visto o disposto no art. 434.º do CPP, limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, o que significa que as questões que o recorrente colocou (e tal como as colocou) relativas à decisão da matéria de facto estão definitivamente decididas pela Relação, não cabendo na esfera de cognição do STJ pronunciar-se sobre essas questões relativas à decisão da matéria de facto da qual discorda (v.g. quanto à invocada violação do in dubio pro reo e errada apreciação da prova - violação do art. 127.º do CPP).

II. No caso aqui em apreciação, não sendo a decisão recorrida acórdão proferido pela Relação em 1ª instância, nem estando em causa recurso direto para o STJ de acórdão proferido em 1ª instância, por tribunal do júri ou coletivo, mas antes tratando-se de recurso de acórdão da Relação que decidiu recurso anterior do arguido de decisão da 1ª instância, como se assinala no ac. do STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito) “nada foi legislativamente alterado no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”. Com efeito, as únicas exceções introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21.12 à regra geral do recurso para o STJ visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, são (como estabelecido na parte final do art. 434.º do CPP) as previstas nas als. a) e c) do n.º 1, do art. 432.º do CPP, dois casos em que, como tem sido decidido, nomeadamente, no citado acórdão deste STJ de 15.02.2023 “trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo (o que justifica a diferente solução legislativa).”

III. Concorrendo duas ou mais circunstâncias modificativas da moldura penal, sendo umas agravantes e outras atenuantes, funcionam primeiro as agravantes e só depois as atenuantes. Assim, a moldura penal abstrata do crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma de fogo, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), todos do Código Penal e ainda nos termos do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro é de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão, pois é a que resulta da moldura do tipo legal do homicídio qualificado de 12 (doze) anos a 25 (vinte e cinco) anos de prisão, agravada primeiro nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da lei n.º 5/2006, de 23.02, para a de 16 (dezasseis) anos a 25 (anos) de prisão, limite máximo este inultrapassável por força do artigo 41.º, n.º 2 e n.º 3, do CP, incidindo, depois, sobre esta moldura a atenuação especial decorrente da tentativa, fixando-a naquela apontada medida, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, als. a) e b), do CP.

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1. Transcrição, mas sem negritos, nem sublinhados.

2. Na decisão ora sob recurso consignou-se no ponto II.2.3. a seguinte Motivação (transcrição) da decisão da 1ª instância: «IV. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

  O Tribunal formou a sua convicção através da análise conjugada das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo ofendido, FF, bem como pelas testemunhas EE, DD, II, JJ e KK, a última indicada pelo demandante.

  O Tribunal considerou, ainda, o teor de fls. 17 (auto de notícia), 108 (auto de busca e apreensão), 122 (auto de diligência externa), 136 a 140 (reportagem fotográfica), 144 (auto de reconhecimento pessoal), 93 a 103 (relatório de exame pericial), 214 a 216, 400 a 402, 494 a 497 (relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal), 226 a 228, 253 a 264, 418 a 421, 462 a 472, 506 (documentação clínica do Hospital Beatriz Ângelo) e 576-577 (faturas Hospital Beatriz Ângelo).

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  O arguido, fazendo uso da faculdade que lhe é concedida pelo artigo 61.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, permaneceu em silêncio, não tendo prestado quaisquer declarações sobre os factos em audiência de julgamento.

  Ouvidas as declarações prestadas pelo mesmo em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, declarou aquele que estava lá nesse dia e que teve uma discussão com a EE, que estava a vender bebidas numas garrafas e deu-lhe 50 € para levar para casa duas garrafas. Quando se vinha embora ela ligou ao LL a dizer que tinha levado o dinheiro com ela e se podiam apanhá-la nas patameiras. Ela estava com o FF, outro rapaz e outra rapariga. Foi então lá ter, seguiu-os até à zona da ..., saiu do carro e viu-a toda pálida e nua e disse ao motorista do carro que a levassem para descansar. Aí é que o FF veio atrás e chamou-o filho da puta e que não vinha ir ali dizer o que faço ou que temos de fazer. Trocaram palavras e ele começou a lutar com o arguido, foram separados e quando estava a tentar recolocar o braço que se havia deslocado e sentiu um disparo. O LL disse para irem para casa porque já estavam ali a acontecer coisas. Não sabe quem é que disparou. Estava lá um outro carro com quem o FF e os amigos iam também ter. Quando saiu do carro disse à EE, “então o meu dinheiro”. Não sabe porque é que lhe atribuíram a si o disparo. O LL era a pessoa que lhe deu boleia e quem conduzia era um amigo dele. Quando ouviu o disparo já estavam separados, o arguido e o ofendido.

  O ofendido, FF, referiu que os factos ocorreram em ... de ... de 2022 e que, antes de acontecerem, em ........2023, saiu com o seu amigo GG e foram para a discoteca referida na acusação. Ali encontraram muitas pessoas conhecidas, nomeadamente a testemunha EE. Disse que, quando eram cerca de 5 horas e 30 minutos, 6 horas, as pessoas da discoteca pediram para saírem porque ia fechar. Quando chegou à porta da discoteca encontrou o arguido a discutir com a EE, tendo perguntado à EE o que se passava. A EE disse que o arguido estava a dizer que lhe tinha dado 20 € para uma bebida, porque ela faz cocktails, mas ela disse que isso não era verdade. Então, referiu, chamou o AA à parte, que já conhecia de vista do ... e disse-lhe que não valia estarem ali com aquelas coisas, tendo-lhe dito que lhe dava os 20 €, mas ele disse que não aceitava o dinheiro dele e insistiu que a EE tinha de lhe dar. Explicou que, então disse à sua amiga EE para ir para o carro para a levar a casa, explicando que no carro iam os dois e o seu amigo GG, tendo a EE dado indicações sobre o caminho para a sua casa.

  A certa altura, quando pararam num sinal luminoso, parou um carro ao lado daquele em que seguiam e do mesmo saiu o arguido que bateu no vidro e tentou abrir a porta do lado da EE, tendo-lhe dito para parar. A EE ficou no carro a olhar para ele e o arguido dizia de novo que ela tinha de dar dinheiro, reiterando aquela que não tinha recebido dinheiro nenhum dele. Então o arguido foi tentar outra porta, a testemunha foi dizer ao arguido para parar de bater no carro. Confirmou as expressões constantes dos pontos 12. e 13. da acusação, nomeadamente que o arguido disse que ia dar-lhe um tiro. Quando ele disse isso, o GG tentou pará-lo porque percebeu que ia haver problemas. O arguido dirigiu-se então ao carro dele, tirou uma arma do seu interior e chegou ao pé de si com ela, motivo pelo qual conseguiu vê-la. De imediato, o arguido deu-lhe um tiro na zona da barriga, tendo a testemunha ficado em pânico, achou que ia morrer começou a chorar e pediu aos seus amigos para tomarem conta da mulher porque tinha uma filha com 8 meses. Referiu que foi tudo muito rápido, esclarecendo que ainda tentou correr para o outro lado depois de ter levado o tiro. Depois de o atingir com aquele tiro, o arguido pegou no carro com o “BB”, que conduzia o carro onde o arguido vinha e saíram dali. O seu amigo DD e o CC que tinham vindo no carro do arguido, bem como o GG levaram-no ao Hospital Beatriz Ângelo, onde foi logo atendido. Referiu ter estado internado durante 21 dias e que ficou muito tempo com problemas saúde, ainda hoje sentindo dores geradas pela atuação do arguido. O médico disse que não era possível tirar a bala do seu corpo, atento o sítio em que ficou alojada. Referiu que isto terá ocorrido por volta das 6 horas da manhã. Ficou a sangrar muito, porque o arguido cortou-lhe o intestino delgado, intestino grosso e a bexiga. Referiu que teve de lhe ser colocado um saco de colostomia até que conseguissem fazer uma cirurgia de reconstrução, tendo estado sujeito a esse saco durante quase um ano. Explicou que, já no decurso do presente ano, em ... de ... de 2023 foi sujeito a nova intervenção cirúrgica que lhe permitiu deixar de usar o saco de colostomia. Confirmou que quando batia no vidro do carro do lado da EE dizia que ela estava a fingir que dormia. Saiu do carro e veio dizer-lhe para não bater no carro porque era seu. Depois de lhe tentar dar de novo os 20 €. O arguido disse à testemunha que se estava a defender a EE o problema ia para ele, na sequência do que a testemunha lhe disse que já eram dois homens, podiam ter uma conversa os dois. Depois de serem separados pelo GG, o arguido disse que ia dar-lhe um tiro e foi para o carro e voltou com uma pistola, tendo-lhe dado um tiro de frente à distância de cerca de 6-7 metros. Acrescentou, ainda, que a EE estava um pouco alcoolizada e acabou por adormecer no carro. Referiu que conhecia o AA há cerca de 3 anos, mas que não eram amigos, nem conviviam um com o outro. Mais, explicou que ficou claro que o arguido estava alcoolizado quando disparou um tiro na direção da testemunha. Declarou pretender que lhe seja arbitrada uma indemnização pois teve uma grande perda de rendimento durante todo o período em que esteve de baixa.

  EE, amiga de longa data do ofendido referiu conhecer o arguido só do dia dos factos. Explicou que naquele dia tinha bebido um pouco a mais e, por isso, não se recorda de muito do que se passou. Explicou que naquele dia foi sair à discoteca ..., onde estava com o FF e ele viu o estado em que estava e insistiu que a levava a casa, tendo aceitado ir com ele. Quando saíram da discoteca era quase de manhã. Explicou que faz umas bebidas caseiras para os amigos, sendo que o arguido diz que lhe tinha prometido fazer uma bebida e que era para ir até à sua casa e ele seguia o carro onde ela ia com o FF. Referiu que, a certa altura do percurso, pararam o carro, acordaram-na e alguém fechou a porta do carro, apenas se tendo apercebido de alguma coisa quando houve o tiro, por causa do barulho que ouviu. Disse que ouviu o barulho e olhou e viu o FF a correr. Disse, ainda, que viu o arguido com a arma na mão empunhando-a contra o FF, ele atirou e depois viu o FF a correr. Ficou o tempo todo no carro porque lá fora estava muita confusão. Sabe que o FF foi socorrido pelo GG que era seu amigo e que outro rapaz que conhece pela alcunha de LL também ajudou a levar o FF ao hospital. Não verificou as lesões que o ofendido tinha. Nessa altura foi para casa de táxi. Esclareceu que ouviu o barulho do tiro quando viu o arguido com o braço no ar. Não sabe se o arguido também estava embriagado. Não sabe quem ia a conduzir o carro do FF, só sabe que seguia no lugar do pendura.

  DD, referiu ser apenas conhecido do arguido e que conhece o FF há muitos anos, sendo ambos grandes amigos. Referiu já não se lembrar da data, nem da hora, mas disse que estavam na discoteca ..., em ... e, como já não via o FF há muito tempo, conversaram e aquele ofereceu-se para pagar um copo, deu-lhe 20 €, 10 para si e 10 € para pagar a outra pessoa. Como não tinha como ir para casa pediu ao boleia ao arguido. O arguido lembrou-se que tinha comprado uma bebida à EE (que conhece há muito tempo) e disse que ia primeiro buscar a bebida a casa da EE e depois levava-o a casa. Nessa altura, a EE já estava a ir embora. Explicou que o AA lhe disse que ligou à EE e que combinou com ela na ..., para ele ir lá ter para ir buscar a bebida. A EE estava com o FF e outros rapazes que não sabe identificar, não a tendo visto a entrar no carro do FF. Quando ia de boleia com o arguido, pararam na morada em que a EE disse que ia buscar a bebida. Pararam o carro atrás do carro em que ia a EE. Não sabe muito bem o que se passou porque ficou dentro do carro, apenas tendo saído do carro quando o arguido e o FF começaram a brigar, desconhecendo quem é que começou a luta. Foram para os separar, a testemunha e outro rapaz que conhece e que estava com o FF e que tinha vindo a conduzir o carro do FF, que conhece por MM. Depois o FF e o arguido separaram-se e depois houve um tiro que não sabe de onde veio. Esclareceu que estavam quatro pessoas nesse dia no carro do arguido, o CC, o BB, a testemunha e o arguido. Não viu quem é que deu o tiro, sabendo que depois do disparo o FF começou a fugir, depois o MM, o CC e a testemunha foram atrás dele e levaram-no para o hospital. Só viu sangue na t-shirt do FF na zona da barriga. Não viu o que o AA fez a seguir. Disse que a discoteca fecha às 6 horas- 6 horas e 30 minutos e que o sucedido entre o arguido e o FF ocorreu entre as 6 e as 7 horas. Referiu conhecer o arguido há mais de 3 anos, não o conhecendo como sendo violento. Explicou que não se apercebeu de o arguido ter ido ao carro e voltado, porque provavelmente estaria a falar com alguém, sem estar virado para o que aconteceu, por isso é que viu. Sabe que o arguido é conhecido pela alcunha “AA”.

  II, inspetor da Polícia Judiciária, referiu conhecer o arguido dos factos e por ter feito a recolha de prova testemunhal e por ter participado na busca a casa do arguido e na sua detenção. No dia das buscas, quando entravam na casa dele, ele saltou pela janela e fugiu, sendo que, realizada a busca à residência, não foi feita nenhuma apreensão. Explicou que alguns dias mais tarde, receberam uma chamada de alguém que disse que o arguido que procuravam estava ali. Deslocaram uma equipa e, no local, viram que era dele, pediram-lhe a identificação e ele disse um nome diferente do seu, contendo o nome “HH”, pensa. Já quando estavam a chegar à Polícia Judiciária o arguido tentou fugir, tendo havido necessidade de o manietar e algemar. Afirmou que quando abordaram o arguido identificaram-se perante ele como polícias. Seria HH, mas não se lembra do resto. Afirmou, ainda, que o arguido também forneceu uma morada que não era a dele. Já nas instalações da Polícia Judiciária, depois de lhe dizerem qua não valia a pena mentir porque rapidamente iam descobrir a sua identidade, ele acabou por dizer quem era e que sabia porque é que estava ali. Precisou que o arguido terá sido localizado em ...de junho de 2022, no fim da tarde.

  JJ, companheira do ofendido, disse que um rapaz que conhece como “NN” disse-lhe naquela noite que tinha acontecido uma coisa com o FF e que iam com ele para o hospital, o que fez. Quando chegou ao Hospital falou com a polícia que lhe perguntou se não sabia o que tinha acontecido, tendo respondido negativamente, apenas sabendo o que lhe tinham dito. Sabe que o tiro sofrido pelo ofendido, seu companheiro, afetou o intestino e a bexiga daquele e que, quando saiu do hospital teve de usar um saco, tendo permanecido assim durante cerca de um ano. O período da sua recuperação foi muito difícil, nomeadamente ao nível das despesas familiares. Referiu que o ofendido fez a última cirurgia já este ano, tendo corrigido a questão da colostomia. O ofendido não trabalhou desde abril de 2022, apenas tendo começado a trabalhar há cerca de 3 meses.

  KK, funcionária dos serviços financeiros do Hospital de Loures, referiu ser quem emite as faturas que são entregues aos pacientes, tendo confirmado que as faturas juntas com o pedido de indemnização civil deduzido pelo Hospital de Loures e que lhe foram exibidas são as faturas emitidas pelo Hospital Beatriz Ângelo, referentes ao ofendido FF, as quais ainda não se encontram pagas.

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  Analisada conjugadamente a prova produzida nos autos, mormente testemunhal, logrou este Tribunal Coletivo convencer-se da prática pelo arguido dos factos que na acusação lhe vinham imputados, embora em alguns aspetos de pormenor alguns dos factos vertidos na acusação tenham sido julgados não provados sem qualquer interferência, porém, naqueles que são os factos cuja prática pelo arguido consubstancia a prática pelo mesmo, nomeadamente, dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas, e de falsas declarações.

  Desde logo, o ofendido prestou declarações de forma serena e objetiva, sem qualquer evidência de pretender exagerar ou empolar os factos sucedidos, mostrando-se credível relativamente às declarações que prestou sobre os mesmos. Na verdade, constata-se mesmo que alguns dos factos que na acusação se mostravam descritos resultaram não provados pelo facto de o mesmo os ter negado ou não tê-los conseguido confirmar, nos casos em que os mesmos não foram, igualmente, confirmados por nenhuma das demais testemunhas inquiridas.

  Ora, não poderá duvidar-se de que o ofendido é a pessoa que maior e mais direto conhecimento dos factos podia revelar ao Tribunal como, efetivamente, revelou.

  Com efeito, foi o ofendido que, por duas vezes, interagiu com o arguido, no sentido de conseguir apaziguar a situação que aquele criara com a sua amiga EE, oferecendo-se por essas duas vezes para entregar ao arguido os 20 € que aquele insistentemente pediu a EE por diversas vezes.

  Das duas vezes que a sua amiga foi interpelada pelo arguido, o ofendido dirigiu-se ao mesmo, tentando colocar aquela a salvo das investidas do arguido e resolver a questão que as motivava tendo, como tal, um contacto direto com o arguido que lhe permitiu, entre outras coisas, tomar conhecimento do motivo pelo qual o arguido tentava importunar EE.

  Já num segundo momento, quando o seu amigo GG imobilizou o veículo em que seguiam na ..., logrou o ofendido relatar a troca de palavras que se gerou entre si e o arguido, bem como o confronto físico entre ambos que se seguiu. Mais, logrou o ofendido aperceber-se de que, após o envolvimento físico, enquanto se deslocava para o carro onde tinha sido transportado para o local em causa, o arguido lhe dirigiu a expressão “vou dar-te um tiro”, sendo que logo de seguida viu o arguido trazer do referido veículo uma arma de fogo de características não concretamente apuradas, a qual observou em primeira mão, pois que o arguido, trazendo-a do interior do seu veículo, logo se aproximou do ofendido, dirigindo a referida arma na sua direção, disparando de seguida, atingindo-o na zona do abdómen.

  Refira-se que a divergência resultante de distâncias diferentes a que o arguido se encontrava do ofendido quando disparou sobre aquele, pois que o ofendido falou em 6-7 metros de distância, tendo também sido referida em audiência de julgamento a distância de 1,5-2 metros, m nada releva no sentido de alterar os factos praticados pelo arguido relativamente ao ofendido.

  No que se refere aos pontos 14. a 16. constantes da factualidade provada, o Tribunal considerou o relatório pericial de avaliação do dano corporal em Direito Penal de fls. 214 a 216, 400 a 402, 494 a 497, que conjugou com os elementos clínicos juntos aos autos a fls. 226 a 228, 253 a 264, 418 a 421, 462 a 472, 506, bem como com as declarações prestadas pelo ofendido e pela sua companheira, JJ, as quais complementaram o que resulta daquela documentação.

  Os cuidados médicos prestados ao ofendido e seu respetivo custo referidos em 26. da factualidade provada resultaram da análise dos documentos juntos aos autos pelo Hospital Beatriz Ângelo a fls. 576-577 conjugada com a das declarações prestadas em audiência de julgamento.

  O ponto 13. da factualidade provada, resultou assim através das declarações a esse respeito pelo ofendido, pela testemunha DD e pela testemunha EE.

  Atenta a não confirmação e mesmo negação por parte do ofendido dos factos que se mostravam descritos nos pontos 7., 8. e 9. da acusação, bem como a descrição de factos semelhantes mas com diferentes interlocutores por parte, nomeadamente, da testemunha EE e do próprio arguido, que referiu ter sido a EE a ligar para um amigo seu que consigo vinha no carro, de alcunha “LL” para irem ter com ela para lhe dar a bebida, julgou o Tribunal não provados aqueles, realçando-se mais uma vez que tal juízo em nada contende com os factos julgados provados e que consubstanciam, nomeadamente, a prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas, tratando-se estes factos não provados de factos que em nada contribuem para a apreciação da conduta do arguido tendo por finalidade o preenchimento dos elementos do tipo de crime que ao arguido vinha imputado (homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo uso de arma de fogo).

  Por outro lado, através da análise conjugada das declarações prestadas pelo ofendido e pela própria testemunha DD, ficou o Tribunal convencido de que, aquando do confronto físico entre arguido e ofendido, apenas aquele DD e o amigo do ofendido, GG se interpuseram entre os mesmos com vista a fazer cessar o confronto, julgando assim não provada a participação nestes factos de BB e CC.

  No ponto 1. da factualidade provada, julgou o Tribunal provado que foi o ofendido que ofereceu boleia para casa a EE e não esta que lhe solicitou tal boleia, porquanto tal foi coerentemente referido pelos dois, ofendido e sua amiga EE.

  De referir que os demais factos não provados foram assim julgados atenta a ausência de prova cabal quanto aos mesmos.

  No que se refere aos factos constantes dos pontos 17. a 20. da factualidade provada, considerou o Tribunal as declarações prestadas pela testemunha II, inspetor da Polícia Judiciária, que interveio nos autos quer na realização da busca ordenada a casa do arguido, quer na detenção do mesmo, transporte para as instalações da Polícia Judiciária e sua identificação.

  O referido em 21. dos factos provados não pode deixar de constatar-se tratarem-se de factos que, de acordo com regras de razoabilidade e experiência comum são do conhecimento de qualquer homem comum médio, não podendo o arguido deixar de saber tudo o que no referido ponto se descreve.

  Quanto ao descrito nos pontos 22. a 24. dos factos provados, tratando-se de factos atinentes à atuação do arguido ao nível subjetivo, ou intencional, resultaram os mesmos da conjugação dos restantes factos provados nos autos.

  Com efeito, sendo o dolo um facto interior que pertence exclusivamente à mente do arguido, de acordo com diversos autores e variada jurisprudência, a prova indiciária torna-se a prova mais utilizada na prática para delimitar os processos mentais em que o mesmo assenta.

  Esta ideia é sustentada em diversos arestos jurisprudenciais, dos quais podemos referir, a título de exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra, de 3.03.2010, de acordo com o qual “o meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo mas a aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente provados e que constituem a premissa".

  Ainda, neste sentido, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 18.04.2007, este apontando no sentido de que "existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica”.

  Esta ideia é também confirmada através do mais recente acórdão da Relação de Coimbra de 28.01.2015, disponível em www.dgsi.pt, no qual se refere que “a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se de factos externos, objetivos, revelados pela conduta do agente” (sublinhado nosso).

  Ainda na doutrina, Germano Marques da Silva refere que "os actos interiores (ou “factos internos” como lhes chama Cavaleiro de Ferreira), que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores” (Curso de Processo Penal, Vol. II, 5.ª edição, Edições Verbo, Lisboa, pág. 149).

  Concluindo, de referir apenas o facto de o arguido nas declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial de arguido detido ter confirmado a sua presença no local, data e hora dos factos descritos na factualidade provada (Avenida ..., pelas 7 horas de ....04.2022), bem como ter-se confrontado fisicamente com o ofendido referindo, nessa sequência, o disparo de um tiro, sendo certo que negou ser o mesmo da sua autoria. Mais, confirmou que, após o disparo, saiu de imediato do local com o seu amigo “Du” que conduzia o veículo em que aquele se fazia transportar.

  *

  O Tribunal considerou, ainda, as declarações do arguido, bem como o relatório social junto aos autos com a referência n.º ......67, de 2.11.2023, quanto às suas condições pessoais e o certificado de registo criminal com a referência n.º ......67, de 2.11.2023 2023 quando às condenações anteriores sofridas pelo arguido.»↩︎

3. Ver, entre outros, acórdãos deste STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito), de 21.02.2024 (Lopes da Mota) e de 17.04.2024 (M. Carmo Silva Dias), todos publicados no site da dgsi.↩︎

4. No acórdão da Relação transcreveu-se, do seguinte modo, o que constava da decisão recorrida da 1ª instância:

  II.2.5. Sob a epígrafe «Da medida concreta da pena» foram tecidas no acórdão as seguintes considerações (transcrição):

  «VI. DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

  Apreciadas as condutas do arguido e feito o enquadramento jurídico-penal das mesmas, cumpre agora determinar a medida concreta da sanção a aplicar-lhe.

  O crime de homicídio qualificado pelo qual o arguido vai condenado é punível com pena de prisão compreendida entre 12 e 25 anos, sendo que, de harmonia com o disposto no artigo 23.º, n.º 2, do Código Penal, a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada.

  Por outro lado, o crime de falsas declarações é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.

  *

  Nos termos do artigo 70.º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

  Referindo-se a este artigo, diz o acórdão da Relação de Lisboa, de 17/01/1996, in CJ, 1996, tomo I, que “I - A escolha da pena, nos termos do artigo 70º do Código penal revisto, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial...”.

  Segundo Germano Marques da Silva, “o artigo 70º servirá tão-só para afirmar um critério orientador para a escolha das penas, dando o legislador preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar a recuperação social do delinquente e as particulares exigências de prevenção que não imponham a aplicação de pena privativa da liberdade...” (cfr. Germano Marques da Silva, DPP, III, 1999).

  A pena de prisão apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção.

  Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.

  No caso dos presentes autos, deve atender-se a que as exigências de prevenção geral são pouco elevadas no que se refere ao crime de falsas declarações, tal como oportunamente expusemos.

  Por outro lado, há que atender a que, nos presentes autos, o arguido praticou um crime de homicídio qualificado na forma tentada, sendo certo que tal crime é punível de forma severa pelo nosso ordenamento jurídico, apenas com pena de prisão.

  Atento o exposto, entende o Tribunal que a aplicação de uma pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral positiva ou de reafirmação contrafáctica das normas violadas e de prevenção especial positiva ou de socialização, devendo o arguido ser condenado em pena de prisão pela prática do crime de falsas declarações por que vai condenado.

  Feita a opção pela pena de prisão, há que procurar determinar agora a sua medida concreta, dentro dos limites estabelecidos pela moldura penal aplicável e que se compreende entre um mês e um ano de prisão (cfr. artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal).

  Ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, é aplicável a moldura penal compreendida entre 2 anos, 4 meses e 24 dias e 16 anos e 8 meses (cfr. artigos 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 132.º, n.º 1, ambos do Código Penal) a qual, agravada nos termos do n.º 3 do artigo 86.º da Lei das Armas, tem como limite mínimo 3 anos, 2 meses e 12 dias e como limite máximo 22 anos, 2 meses e 20 dias.

  *

  Nos termos do artigo 71.º, n. º 1, do Código Penal, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei.

  Tal artigo consagra assim o princípio que representa a pedra de toque do Direito Penal português, o princípio da culpa. Com efeito, segundo tal princípio, toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, princípio que encontra desde logo consagração no artigo 13.º do Código Penal, que apenas prevê a punibilidade do facto praticado a título de dolo, ou em casos especialmente previstos na lei, a título negligente.

  Na verdade, não só não há pena sem culpa, como é também a culpa que decide a medida da pena (artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1, do Código Penal).

  Quanto à prevenção, a pena tem dois tipos de finalidades: por um lado, uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, visando a defesa da ordem jurídico-penal tal como é interiorizada pela consciência coletiva (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8/10/1997, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt) e, por outro lado, a prevenção especial positiva ou de socialização, a qual pressupõe que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá, no futuro, outro crime (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1/07/1998, cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt).

  Culpa e prevenção ocupam assim papéis primordiais na determinação da medida da pena. A propósito do papel de ambas, diz o acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/1996, in CJ, 1996, tomo I, pág. 38 “...III - Quanto à culpa, o facto ilícito é prevalentemente decisivo, devendo antes de tudo o mais, ser valorado em função do seu efeito externo (ataque ao objeto em particular, designadamente os danos ocasionados, a extensão dos efeitos produzidos). IV – Quanto à prevenção, constitui um fim, relevando para a determinação da pena necessária, em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo, acabando por fornecer, em último termo, a medida de pena....”.

  Tendo em conta a frequência com que são cometidos crimes violentos contra as pessoas geradores de grande alarme social, como é o caso do crime de homicídio qualificado, as necessidades de prevenção geral são muito elevadas quanto aos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, sendo medianas quanto ao crime de falsas declarações praticado pelo arguido.

  Na determinação concreta da pena, tem o tribunal de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente os critérios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

  Assim, no caso dos autos, devem atender-se aos seguintes critérios, ao abrigo daquele artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal:

  - Atendendo ao modo como o arguido atuou atentando contra a vida do ofendido, o que fez através de uma arma de fogo, a ilicitude é muito elevada quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, sendo inferior à média no que se refere ao crime de falsas declarações;

  - O dolo do arguido é direto quanto a ambos os crimes que cometeu;

  - Do relatório social com a referência n.º ......67, de ........2023, resulta que:

  i. Em contexto prisional, o arguido tem apresentado um comportamento conforme às regras, mantendo-se inativo em termos formativo-laborais, apesar de demonstrar interesse em ocupar-se, recebendo visitas regulares da companheira, que continua a apoiá-lo;

  ii. Antes de ser preso à ordem destes autos, o arguido vivia em união de facto com a companheira desde 2017, em habitação arrendada, descrita como detendo as condições de habitabilidade, sendo o relacionamento afetivo caracterizado por adequação e assente em entreajuda e afetividade, sendo AA valorizado nas interações que estabelece nos diferentes contextos e no papel que mantém neste agregado constituído;

  iii. Profissionalmente, antes de ser preso, o arguido mantinha-se inativo, tendo antes exercido funções a partir de ........2021, com contrato de trabalho como ajudante de ... na empresa "E..., Lda". Na sequência de um acidente de trabalho esteve de baixa médica entre ... .01.2022 e ... .03.2022, tendo comparecido depois ao trabalho apenas nos dias 5, 6 e 7 de abril de 2022, não justificando as ausências posteriores;

  iv. A subsistência do agregado dependia anteriormente sobretudo dos rendimentos auferidos pela companheira do arguido, responsável do turno da noite das encomendas online do hipermercado continente, não sendo referidos constrangimentos a este nível;

  v. Natural da ... e filho único, o arguido provém de um enquadramento familiar diferenciado, mas desfavorável, caracterizado por comportamentos de violência doméstica agravados pela problemática de alcoolismo do pai, ..., na relação conjugal, sendo a mãe parteira;

  vi. De modo a evitar a exposição de AA a esse ambiente negativo e, decorrente da separação dos pais, ocorrida quando ele tinha cerca de sete anos, um dos seus tios paternos, engenheiro da construção civil, acolheu-o no seu agregado constituído junto do cônjuge, ..., e dos descendentes, num clima relacional harmonioso e normativo;

  vii. Posteriormente, aos 15 anos, integrou o agregado materno junto da mãe e dos irmãos uterinos, e cerca de um ano depois integrou o agregado paterno até aos 17 anos, altura em que foi para o ... para ingressar no ensino superior;

  viii. No ..., o arguido prosseguiu os estudos na Faculdade no ..., na área de ..., habilitando-se ao fim de dois anos com o curso de técnico superior;

  ix. Regressando novamente à ... e, após adquirir formação específica, AA iniciou funções laborais como ... contra incêndios aéreos no Aeroporto, aos 22 anos, tendo também realizado formação como ...nos ..., atividade que manteve até se deslocar para Portugal em 2017 para realização de tratamentos médicos;

  x. O arguido tem um filho com 6 anos de idade, que vive com a mãe em ...;

  xi. No Estabelecimento Prisional, o arguido recebe visitas da sua mãe, da companheira e da mãe desta;

 - O arguido já foi condenado pela prática:

  i. Em 12.08.2017, de um crime de condução sem habilitação legal, por decisão proferida em 12.09.2018, transitada em julgado em 11.01.2019, na pena de 80 dias de multa;

  ii. Em 1.01.2017, de um crime de tráfico de estupefacientes e menor gravidade, por decisão de 24.05.2019, transitada em 24.06.2019, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 6 meses;

  iv. Em 3.08.2020, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, um crime de detenção ou tráfico de armas proibidas e um crime de condução sem habilitação legal, por decisão de 27.04.2021, transitada em julgado em 27.04.2021, na pena de 450 dias de multa;

  v. Em 10.01.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, por decisão de 13.04.2023, transitada em julgado em 15.05.2023, na pena de 230 dias de multa; e

  vi. Em 15.07.2020, de um crime de condução sem habilitação legal e dois crimes de falsificação de documento, por decisão de 7.03.2023, transitada em julgado em 17.04.2023, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa por igual período.

  *

  Ponderando os vários elementos supra expostos, entende o Tribunal que relevam de forma superior à média as exigências de prevenção especial positiva no caso concreto mormente no que se refere ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, sendo inferiores à média no que se refere ao crime de falsas declarações.

  Termos em que, O TRIBUNAL DECIDE CONDENAR O ARGUIDO NAS PENAS PARCELARES DE:

  - 10 ANOS de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas; e

  - 4 MESES de prisão pela prática do crime de falsas declarações.

  *

  Cumpre agora apurar a pena única em que o arguido será condenado, em face dos critérios contidos no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal.

  Ora, somando as penas parcelares aplicáveis aos crimes que o arguido cometeu, obtém-se o limite superior da moldura penal aplicável: 10 anos e 4 meses de prisão. O limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas, ou seja, 10 anos de prisão.

  Encontrando-se apurada a moldura abstrata, a pena única é determinada de acordo com a parte final do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, ou seja, considerando em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo esta última determinante para a aferição da pena unitária.

  Ora, considerando o já referido em sede de apreciação dos critérios elencados no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, a ausência de manifestação por parte do arguido de qualquer arrependimento pelos graves factos que praticou, revelando total ausência de crítica relativamente às condutas ilícitas que perpetrou e atendendo, ainda, à personalidade do arguido espelhada nos factos que cometeu, o tribunal decide condenar o arguido na pena única de 10 anos e 3 anos de prisão.»

5. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

6. Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p.198.

7. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.

8. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.

9. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.

10. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, Editorial Verbo, 1999, p. 167 e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p. 291. Acrescenta este último Autor que “tudo se deve passar como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só, a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

11. Ver Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 291.

12. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 208.

13. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 302.