Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
200/06.0JAPTM.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PENAL
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI
REFORMATIO IN PEJUS
CORRUPÇÃO PASSIVA PARA ACTO ILÍCITO
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE QUANTO À MEDIDA DA PENA
Sumário :

I - No caso de recurso de decisão de tribunal da Relação, que julgou parcialmente procedente recurso interposto pelo MP, confirmando as penas aplicadas pelo tribunal do júri, em 15-01-09, (entre os 9 meses e os 4 anos de prisão), agravando de 8 para 9 anos a pena conjunta correspondente ao concurso de crimes por que o arguido foi condenado, a decisão que confirmou as diversas penas parcelares não é recorrível para o STJ, mas já o é a decisão que agravou a pena conjunta.
II - O facto de o arguido ter sido acusado da prática de crime de corrupção passiva para acto ilícito (art. 372.º, n.º 1, do CP) – crime que a actual redacção da al. m) do art. 1.º do CPP inclui no conceito de criminalidade altamente organizada – não impede o julgamento pelo tribunal do júri.
III - O julgamento dos crimes de corrupção passiva para acto ilícito, porque puníveis com prisão de 1 a 8 anos – art. 372.º, n.º 1, do CP – não estão incluídos na competência directa do tribunal do júri, tal como definida no art. 13.º, nºs. 1 e 2, do CPP. Mas, podendo a competência resultar da conexão de processos, o julgamento dos referidos crimes, nessa hipótese, também não está aí vedado.
IV -É o art. 207.º da CRP que exclui, em termos absolutos, a possibilidade de intervenção do tribunal do júri no julgamento de certas categorias de crimes: os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada. Mas, pese embora o conceito constitucional tenha tido por fonte a definição de criminalidade altamente organizada vazada no art. 1.º do CPP, não existe identidade conceptual entre os dois normativos.
V - Não custa aceitar que o crime de corrupção, pelo menos a alta corrupção, assente numa organização refinada, capaz de influenciar os diversos centros de decisão, possa ser incluído no conceito constitucional de criminalidade altamente organizada e, como tal, que o seu julgamento esteja vedado ao tribunal do júri. Não é esse, decididamente o caso da “corrupção miúda”, cometida pelo contacto directo entre duas pessoas, cujo propósito e execução nada têm de altamente organizado, e sem prejuízo de altamente lesiva.
VI -É neste último plano que se inscreve o crime que a acusação imputou ao arguido, não podendo, consequentemente, falar-se aqui e, a esse propósito, de criminalidade organizada e, ainda menos, em criminalidade altamente organizada, para efeitos do disposto no art. 207.º da CRP, sem embargo de se poder integrar o conceito da al. m) do n.º 1 do art. 1.º do CPP, para efeitos do que nele se dispõe, designadamente para efeitos do disposto nos seus arts. 202.º e 215.º. Trata-se de conceitos não coincidentes na sua dimensão, razão pela qual não há que falar, a esse propósito, de eventual inconstitucionalidade da norma de direito ordinário.
VII - Se o tribunal de julgamento avançar para a decisão do mérito, manda o art.º 368.º, n.º 2, do CPP, que o presidente enumere discriminada e especificadamente e submeta a deliberação e votação os factos alegados pela defesa (hipótese que no caso interessa) relevantes para a decisão. E o art. 372.º estatui que, concluída a deliberação e votação, é elaborada a sentença de acordo com as posições que fizeram vencimento, a qual, nos termos do n.º 2 do art.º 374.º, deve conter, além do mais, a enumeração dos factos que ficaram provados e dos que foram julgados não provados.
VIII - Em parte alguma se exige, designadamente neste conjunto de normas, que o tribunal arrume em um qualquer capítulo da sentença os factos alegados irrelevantes para a decisão da causa, as eventuais considerações factuais ou jurídicas tecidas pelo arguido a propósito da acusação, ou mesmo factos que estão em contradição com os que foram provados: a prova do facto positivo corresponde à não prova do facto negativo. O simples confronto da sentença com a contestação permite sindicar o cumprimento daqueles preceitos, designadamente o do n.º 2 do art.º 368.º.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA casado, militar da Guarda Nacional Republicana, nascido em França, em 01.02.74, filho de BB e de CC, residente na Urbanização............, Lote......, Armação de Pêra, foi julgado, com outro, pelo Tribunal do Júri do 1º Juízo da comarca de Silves e, a final, condenado:
- pela prática de um crime de falsificação, p. e p. pelo artigo 256º, nºs 1, alínea a) e 3, do CPenal, na pena de dois anos de prisão;
- pela prática de dois crimes de coacção agravada, p. e p. pelos arts. 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea d), ambos do CPenal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, por cada um deles;
- pela prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea d), ambos do CPenal, na pena de um ano de prisão;
- pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo artº 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, na pena de dois anos de prisão;
- pela prática de cinco crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382º do CPenal, na pena de nove meses de prisão, por cada um deles e,
- pela prática de um crime de violação, p. e p. pelo artº 164º, nº 1, alínea b), do CPenal, na pena de quatro anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de oito anos de prisão.
Na procedência parcial do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente CC , foi ainda condenando a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial.

Inconformados com esta decisão, dela recorreram para o Tribunal da Relação de Évora o Ministério Público e o Arguido que, pelo acórdão de 9 de Junho do corrente ano (fls. 2430):
- negou provimento ao recurso do Arguido e
- concedeu parcial provimento ao do Ministério Público, agravando para nove anos de prisão a pena conjunta aplicada ao primeiro.

Do acórdão do Tribunal da Relação recorre o Arguido, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões que se transcrevem:
«A. INCOMPETÊNCIA MATERIAL E FUNCIONAL DO TRIBUNAL DE JÚRI
1 - O Recorrente foi acusado e julgado, entre outros, por um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artº 372º, nº 1, CP.
2 - Estava, por isso, acusado e foi julgado por um crime incluído no conceito legal de "criminalidade altamente organizada" (al. m) do artº 1º).
3 - O artº 207º, nº 1, CRP exclui tais crimes da competência do Tribunal do Júri.
4 - As regras da conexão estabelecidas nos arts 25º e 27º a 31º impunham e impõem que o Arguido seja julgado de uma só vez pelos crimes constantes da acusação em cujo proémio foi requerida a intervenção do júri.
5 - A competência material e funcional do tribunal fixa-se no momento em que foi requerida essa intervenção, não estando, nem podendo estar dependente das vicissitudes posteriores do processo – v., por exemplo, o artº 31º.
6 - Assim sendo, e porque a incompetência material e funcional do tribunal cristaliza uma nulidade insanável – artº 119º, e) –, deve declarar-se inválido o despacho de fls. 1293 que declarou a competência do júri, bem como todos os actos subsequentes, incluindo o julgamento.
7 - O conjunto normativo formado pelos arts. 13º, 25º, 27º a 31º, 119º, e), e 122º, 1, CPP, é inconstitucional, por violar os arts 32º, 9, e 207°, 1, CRP, na interpretação segundo a qual a absolvição do arguido por um crime abrangido pela definição legal de "criminalidade altamente organizada" sana a incompetência material e funcional do tribunal do júri que o julgou por esse e por vários outros crimes.
8 - A decisão contrária por que optou o douto acórdão recorrido carece de fundamento, pelo que ficou exposto nos números antecedentes e ainda porque tem como ratio decidendi a declaração de inconstitucionalidade da ai. m) do artº 1º e dos nºs 1 e 2 do artº 13º do CPP, na interpretação que considera o Tribunal de Júri incompetente para julgar crimes de corrupção, declaração essa que não tem justificação face ao disposto no artº 207° CRP.
B. NULIDADE DO ACÓRDÃO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
9 - O arguido, na sua contestação de fls 1337 e segs, alegou um extenso rol de factos cuja apreciação se reveste de indiscutível importância e interesse para a boa decisão da causa em todas as vertentes descritas nas diversas alíneas do nº 2 do artº 368º.
10 - É completa a omissão do douto acórdão da primeira instância sobre esses factos, que não ficaram a constar do elenco dos factos provados nem do dos factos não provados, o que justifica em termos objectivos dúvidas objectivas sobre se os mesmos foram sequer analisados, discutidos e votados pelo tribunal.
11 - O douto acórdão da primeira instância e o douto acórdão recorrido que, o confirmou, incorreram, assim e por violação do nº 2 do artº 374º, na nulidade prevista na primeira parte da al. c) do artº 379º, que devia e deve ser declarada.
12 - Acresce que o douto acórdão impugnado se funda no entendimento de que o Tribunal da 1ª instância está dispensado de explicitar as razões pelas quais considera que os factos alegados pelo Arguido na contestação são irrelevantes ou inócuos, e considera que sobre o Recorrente impende o ónus de justificar a relevância de factos sobre os quais o Tribunal, de todo, se não pronunciou.
13 - O conjunto normativo formado pelos arts 368º, 2, 369º e 374º, 2, CPP, interpretado no sentido de que o Tribunal da primeira instância não tem de enunciar na sentença todos os factos alegados pelo Arguido na contestação, julgando-os provados ou não provados ou explicitando as razões por que os considera irrelevantes para a boa decisão da causa, e no sentido de impor, nessas circunstâncias, sobre o Arguido o ónus de, em recurso, argumentar as razões por que considera esses factos relevantes, é inconstitucional, por ofensa do disposto, entre outros, no artº 32º, 1, CRP.
C. ERRADA QUALIFICAÇÃO DO ARGUIDO COMO FUNCIONÁRIO PARA EFEITOS PENAIS
14 - O Arguido é militar da GNR, pelo que não pode ser incluído no conceito de funcionário para efeitos penais descrito no artº 386º CP.
15 - Não poderia, portanto, ser condenado em nenhum dos crimes de cujo tipo essa qualidade pessoal é elemento constitutivo, no caso, os crimes de coacção agravada, p. e p. pelos arts 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. d), e os crimes de abuso de poder p. e p. pelo artº 382º CP,
16 - crimes dos quais terá de ser absolvido.
17 - Ao decidir em sentido contrário, o douto acórdão recorrido violou as normas citadas nos números antecedentes.
18 - O artº 386º do Código Penal, interpretado no sentido que lhe atribuiu o douto acórdão recorrido de considerar os militares abrangidos por essa norma, é inconstitucional, por ofensa do princípio da legalidade consagrado no nº 1 do artº 29º CRP.
D. NÃO VERIFICAÇÃO DOS ELEMENTOS TÍPICOS DO CRIME DE AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO NA MODALIDADE DE AUXÍLIO À PERMANÊNCIA
18 [repetido no original] - Os factos provados nas alíneas T) a FF) do acórdão da primeira instância não são suficientes para preencher todos os elementos da factualidade típica do crime de auxílio à imigração, na modalidade de auxílio lucrativo à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros em Portugal, p. e p. pelo artº 134-A, nº 2, do DL 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do DL 34/2003, de 25 de Fevereiro.
19 - Desde logo, porque, para este efeito, não é possível equipar a permanência irregular com a permanência ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional.
20 - Depois, porque a mera referência à falta de vistos de entrada, de residência ou de trabalho é manifestamente insuficiente para que se considere ilegal aquele permanência,
21 - seja porque existem vários outros tipos de vistos além desses que conferem legalidade à permanência de estrangeiros em Portugal – veja-se, a tal respeito e por exemplo, o artº 27° do DL 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do DL 34/2003, de 25 de Fevereiro –,
22 - seja porque a autorização de permanência não tem correlação directa com aquele tipo de vistos – cfr., a propósito, os artigos 52º e segs do DL 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do DL 34/2003, de 25 de Fevereiro.
23 - Por outro lado, as cidadãs estrangeiras referidas neste processo têm nacionalidade brasileira e, considerando, além do mais:
- os arts 1º e 2º do Acordo entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil sobre a Facilitação de Circulação de Pessoas, assinado em Lisboa em 11 de Julho de 2003, e aprovado pelo Decreto nº 43/2003, que estabeleceu um regime de isenção e concessão de vistos cuja abrangência se não esgota naquela fórmula "visto de entrada, de residência ou de trabalho"; e
- o nº 2 do artº 6º e o artº 14º do Acordo entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil sobre a Contratação recíproca de Nacionais, assinado em Lisboa em 11 de Julho de 2003, e aprovado pelo Decreto nº 40/2003, de 19 de Setembro, (vulgarmente conhecido por "Lei Lula") que permitiu a legalização dos cidadãos brasileiros que passa uma esponja sobre a irregularidade e eventual ilegalidade da permanência em Portugal dos cidadãos portugueses que se encontrassem no nosso País desde antes do dia 11 de Julho de 2003, deixou de poder falar-se, quanto a esses cidadãos, em permanência ilegal, e, portanto, não ocorre o crime de auxílio, por falta de um dos pressupostos de punibilidade da conduta.
24 - De onde tenha de concluir-se, por último, que, não contendo a acusação nem o douto acórdão da primeira instância – como não contêm – quaisquer factos concretos que permitam subsumir a entrada em Portugal a qualquer das únicas hipóteses que a lei – artº 136º daquele diploma – integra, para este efeito, no conceito de "entrada ilegal", e nada dizendo – como nada dizem – sobre se as cidadãs brasileiras em causa permaneciam em Portugal desde antes ou depois do dia 11 de Julho de 2003 seja, de todo, impossível considerar que essa permanência é ilegal e, portanto, indemonstrado ficou também um dos elementos do tipo legal de crime em referência.
24 [repetido no original] - Acresce que os autos não contêm, quer na acusação, quer na decisão da primeira instância, factos suficientes para se considerar verificado o elemento típico "intenção lucrativa" exigido pelo crime de auxílio à imigração ilegal.
25 - No que diz respeito ao facto de o Recorrente ter arrendado às cidadãs brasileiras apartamentos para fins habitacionais, apenas se apurou que tinha sido fixada uma renda para esse efeito, sem que se saiba se essa contraprestação se situa acima ou abaixo dos valores correntes do mercado e, portanto, se era praticada com lucro ou com prejuízo.
26 - A afirmação da intenção lucrativa quanto a este facto implica, nestas circunstâncias, uma conclusão desenquadrada de premissas que a sustentem e, em especial, que permitam superar a dúvida que se repercute numa presunção favorável ao Arguido.
27 - O mesmo se dirá, mutatis mutandis, quanto à contratação das cidadãs para trabalhar, uma vez que, desconhecendo-se sequer o horário de trabalho por elas praticado, é impossível extrair conclusões seguras também nesta matéria.
28 - O não pagamento das contribuições para a segurança social e demais encargos fiscais e de qualquer outra natureza – pagamento esse que sempre seria impossível, suposta a impossibilidade de celebração de contratos de trabalho com cidadãos em situação irregular – é, quanto a esta matéria irrelevante.
29 - Desde logo, porque não foi alegado nem ficou provado o montante do salário pago pelo Arguido às trabalhadoras, não podendo, assim, excluir-se a possibilidade de esse salário compensar a falta de descontos para a segurança social e o preço do seguro.
30 - A inclusão na matéria de facto da alusão ao "lucro" do Arguido, sem esses elementos factuais, tem natureza conclusiva e não constitui um verdadeiro facto.
31 - Em suma, os autos não contêm factos que permitam sustentar a conclusão a que chegou o douto acórdão de que o Recorrente agiu com intenção lucrativa, pelo que, no mínimo, se violou o princípio in dubio pro reo no julgamento desta parte da matéria de facto.
32 - Não estão preenchidos os elementos do tipo legal de crime que, nesta parte lhe foi imputado, pelo que sempre deveria e deverá ser absolvido.
33 - Ao confirmar a decisão da primeira instância, o douto acórdão recorrido ofendeu, entre outros, o artº 134-A, nº 2, do DL 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do DL 34/2003, de 25 de Fevereiro.
E. MEDIDA DA PENA
34 - O douto acórdão recorrido agravou para nove anos de prisão a pena de oito anos que lhe fora aplicada na primeira instância.
35 - Pelas razões que expendeu nos números anteriores, quando não deva anular-se o julgamento ou absolver-se o Arguido de todos os crimes por que foi condenado, a pena a aplicar-lhe terá de ser fixada num quantum muito inferior aos oito anos de prisão que lhe foram cominados na primeira instância.
36 - De acordo com os critérios estabelecidos pelo artº 71º do Código Penal e considerando os factos provados quanto às suas condições pessoais, sociais e económicas, com relevo particular para a sua desvinculação da GNR, naquela eventualidade, a pena nunca deverá exceder, os quatro anos e seis meses.
37 - Pelos mesmos fundamentos, e mesmo na hipótese – que se repudia – de se manter a condenação do Recorrente por todos os crimes, não existe razão válida que justifique a agravação a que procedeu o douto acórdão recorrido,
38 - pelo que, nessa condição, a pena de oito anos deveria ser diminuída e nunca agravada, como foi,
39 - também aí se impondo a revogação do douto acórdão, sob pena de ofensa, entre outros, do artº 71º CP».

Respondeu o Senhor Procurador-geral Adjunto do Tribunal a quo que suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso «no concernente a cada um dos crimes que integra o concurso e punidos qualquer deles com pena de prisão inferior a oito anos», porquanto, argumenta, essas penas parcelares foram confirmadas pela Relação.
Quanto ao segmento do recurso relativo à medida da pena conjunta, entende que deve ser rejeitado por manifesta improcedência, porque a motivação não enuncia «quaisquer fundamentos minimamente sérios, atendíveis e consequentes».
Pugna, assim, pela confirmação do acórdão recorrido.

O Senhor Procurador-geral Adjunto do Supremo Tribunal de Justiça reconhece que o entendimento subjacente à questão prévia suscitada pelo seu Colega é o que vem sendo seguido por este Tribunal, mas coloca-lhe reservas.
Alega, com efeito, que:
- essa jurisprudência não leva em consideração o princípio do conhecimento amplo dos recursos estabelecido no nº 1 do artº 402º do CPP e a distinção que se impõe entre normas que definem a admissibilidade do recurso e as que traçam o seu âmbito;
- «a focada visão atomística da pluralidade dos crimes pelos quais o arguido foi condenado não se mostra em conformidade com a necessidade de consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido, com vista à fixação da pena conjunta»;
- «se se compreende e aplaude que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, seja reservada aos casos mais graves, o critério seguido pelo legislador de 2007, para alcançar esse objectivo suscita as mais sérias reservas», pois [e invoca o voto de vencido exarado no acórdão do STJ, de 26.06.2003, Pº 03P1797] «não parece razoável, … até do ponto de vista constitucional do eficaz direito ao recurso, condicionar a sua existência, afinal, ao concreto entendimento das instâncias que, para o bem e para o mal, teriam ao seu alcance o poder imenso de decidir, em última instância (!) da recorribilidade ou não da decisão por elas proferida». Assim, «se ao duvidoso e errado caminho seguido pelo legislador de 2007, quanto ao critério de recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, adicionarmos a interpretação restritiva que vem sendo feita pelo Supremo, quanto ao âmbito do recurso, conhecendo apenas das penas parcelares superiores a 8 anos de prisão, confirmadas em recurso pelas Relações, seremos conduzidos a uma restrição desrazoável e desproporcionada do direito ao recurso, do mesmo passo que, ao dar prioridade às questões de forma, em detrimento da solução justa, o Supremo Tribunal de Justiça poderá ficar confinado a uma intervenção limitada que em nada se coaduna com o seu importantíssimo e fundamental papel enquanto Tribunal Supremo».
E conclui pela improcedência daquela questão prévia.

Quanto ao mérito do recurso entende que:
- no caso concreto, nada obstava ao julgamento pelo tribunal do júri;
- o acórdão recorrido deu integral cumprimento ao disposto no artº 374º, nº 2, do CPP;
- é pacífica na jurisprudência a qualificação dos militares da GNR como funcionários, para efeitos penais;
- os factos provados integram todos os elementos típicos do crime de auxílio à imigração clandestina, p. e p. pelo artº 183º, nº 2, da Lei 23/2007, de 4 de Julho;
- tanto as penas parcelares como a pena única se mostram «equilibradas e ajustadas»;
- enfim, improcedem as nulidades e inconstitucionalidades arguidas.

Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do CPP, o Arguido veio dizer, em síntese, que:
- subscreve o parecer do Senhor Procurador-geral Adjunto quanto à questão prévia da irrecorribilidade suscitada na resposta do seu Colega do Tribunal da Relação;
- existindo, como existe, norma expressa – a da alínea m) do nº 1 do artº 1º do CPP – que integra os crimes de corrupção no elenco da criminalidade altamente organizada, o Tribunal não pode recusar a sua aplicação, sem justificar essa opção ab-rogativa;
- e, se a considera inconstitucional, deve declará-lo, «sem esconder o problema sob a capa duma hipotética inversão de planos do percurso hermenêutico;
- não convence, só por si, o argumento de autoridade retirado «das parcas decisões jurisprudenciais que enquadram os militares no âmbito do artº 386º CP»;
- mantém, quanto ao mais, tudo o que alegou na sua motivação.

2. Tudo visto, cumpre decidir.

2.1. É do seguinte teor a decisão sobre a matéria de facto, tal como fixada no acórdão recorrido:
«Factos provados
Produzida a prova, resultaram provados os seguintes factos:
A – O arguido AA é soldado da Guarda Nacional Republicana e presta serviço no posto de Armação de Pêra desde 13.09.1997.
B – No início do ano de 2004, o arguido emprestou a DD quantia na ordem dos €20.000, tendo este se comprometido a pagá-la, acrescida de juros, em meados do ano de 2004, o que não veio a acontecer.
C – Em finais de 2004, o arguido fabricou num dos computadores do posto da
Guarda Nacional Republicana de Armação de Pêra um documento em tudo idêntico a um ofício do Tribunal Judicial de Silves, colocando no mesmo o selo da República, o timbre do Tribunal, um número de processo como sendo o 1834/04.9TBSLV, do 1º Juízo, ali escrevendo que se trataria de um processo de execução, no qual era executado “Auto-Táxis S....R....Lda”
D – Ali colocou ainda como destinatário o Comandante do posto da GNR – Armação de Pêra, e redigiu o seguinte texto, solicitando a apreensão de dois veículos – táxis – de matrículas..-..-.. e ..-..-.., “(…) em virtude de este Tribunal ter recebido um auto de notícia do Ofendido AA, através do contrato de empréstimo realizado em 15.01.2004 assinado por DD, na referida altura que o contrato foi realizado e assinado o acusado ainda pertencia a referida firma, cujo montante de empréstimo é de € 30.000 (…) Solicitamos caso um dos representantes da firma não assine a referida notificação, que os veículos abaixo mencionados sejam apreendidos e entregues a este tribunal em 15.11.2004, caso um dos mesmos assine e resolva efectuar o pagamento em dívida até 19.11.2004, fica esta notificação a aguardar despacho do Ofendido se ainda pretende procedimento criminal”.
E – Na posse deste documento, que elaborou, em Armação de Pêra, o arguido dirigiu-se a EE, pai de DD e legal representante da mencionada firma de táxis e mostrou-lhe aquele documento que EE reconheceu como sendo de um tribunal e disse-lhe que lhe ia tirar os táxis porque tinha uma ordem de apreensão das viaturas.
F – Quis o arguido, ao mostrar aquele documento a EE, convencê-lo de que iria ficar sem os veículos da firma a ele pertencente e desta forma forçá-lo a entregar-lhe a quantia de € 30.000.
G – Sabia que tais veículos constituíam ferramentas de trabalho e meios de subsistência de EE e sua família.
H – Sabia o arguido que EE não tinha para com ele aquela dívida, pelo que quis obter, com a ameaça de ficar com os seus veículos e, logo, com os meios de angariar a sua subsistência uma vantagem patrimonial no valor de € 30.000, a que sabia não ter direito.
I – O arguido fez aquele documento a imitar um ofício do Tribunal Judicial de Silves, sabia que os dados que ali introduzira eram falsos, que aquela acção não existia e que o tribunal não havia dado qualquer ordem de apreensão dos táxis pertencentes a “Auto-Táxis S.....R... Lda.”, com o que quis obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, através do temor que causava ao apresentar tal documento, pretensamente vindo de uma autoridade judicial.
J – Tal documento foi elaborado no posto da Guarda Nacional Republicana de Armação de Pêra, com meios informáticos pertencentes a esta força militar, aos quais o arguido apenas teve acesso por ser um militar a prestar serviço naquele posto.
L – Entre inícios de 2005 e até Julho de 2007 o arguido, bem sabendo que DD não tinha meios monetários para proceder ao pagamento da dívida acima mencionada, optou por abordar e pressionar EE para a pagar, dizendo-lhe que, caso não pagasse a dívida do filho, penhoraria bens da família para garantir esse pagamento.
M – Com tais pressões e por receio de vir a perder os meios para prover à sua subsistência e da sua família, EE assinou, e fez com que a sua mulher, FF, assinasse, a 11.01.2007, duas declarações de reconhecimento de dívida, no valor de €18.750 cada uma, que se comprometeu a pagar até 25.02.2007; e, em 25.03.2007, não tendo pago, EE emitiu e entregou ao arguido um cheque no valor de €37.500, que também não foi pago.
N – Quis o arguido forçar, com ameaças de penhora dos seus bens, EE a assumir uma dívida que não era dele e, com isso, quis obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito.
O – No verão de 2004, o arguido AA no exercício das suas funções profissionais interveio numa operação de fiscalização de trânsito rodoviário em Alcantarilha.
P – No decurso desta mandou parar o condutor GG, pessoa que já conhecia.
Q – Em finais de 2004, princípios de 2005, o arguido HH, com o objectivo de obrigar GG a pagar-lhe a quantia de €3.300, dirigiu-se a Albufeira, juntamente com outros dois indivíduos, e disse àquele primeiro que lhe bateriam caso não lhes entregasse a carrinha Toyota, de matrícula ..-...-.., ao mesmo pertencente, o que este fez, entregando-lhes a chave da mesma, com receio de vir a ser molestado fisicamente.
R – Na posse desta viatura, o arguido HH entregou-a ao arguido AA em Armação de Pêra, o qual telefonou a GG para a vir buscar, o que este fez.
S – O arguido HH quis, com esta actuação, causar em GG receio de vir a ser molestado e receio de ficar sem os seus bens para assim o obrigar a efectuar a entrega da quantia de €3.300, o que só não ocorreu por razões alheias à sua vontade.
T – O arguido AA, para além de militar da Guarda Nacional Republicana, exerce profissionalmente, pelo menos desde 2003, actividade de arrendamento de apartamentos que lhe foram entregues para esse fim pelos respectivos proprietários, apartamentos esses sitos em Armação de Pêra, nas Torres Castelo, São Gabriel, Baleeira, Oura, Galé, São Rafael.
U – Para além de proceder aos arrendamentos, o arguido AA é responsável pela limpeza de tais apartamentos, para o que contrata terceiros para a efectuar.
V – Assim, para esse efeito, o arguido AA colocou ao seu serviço, para efectuar limpezas nos apartamentos, pelo menos, três cidadãs brasileiras, as quais se encontravam em situação irregular em território português, não sendo portadoras de visto de entrada, de residência ou de trabalho, facto de que estava bem ciente, o que lhe permitia não formalizar contratos de trabalho, pagar descontos para a segurança social ou seguros de acidentes de trabalho.
X – Para essas pessoas que contratou e para, pelo menos, outras duas cidadãs brasileiras que se encontravam irregularmente em território nacional (facto que o arguido conhecia), igualmente lhes forneceu um apartamento para residirem situado nas acima referidas Torres, sem que por esses arrendamentos fizesse contratos escritos.
Z – Assim, o arguido AA:
i) em Janeiro de 2007, arrendou a HH, cidadã brasileira, um apartamento para morar, no ..M da Torre São Gabriel, pelo qual pagava €400 por mês, quantia que entregou ao arguido todos os meses até à data do detenção deste, altura em que lhe foi pedido que abandonasse o apartamento, o que se recusou a fazer;
ii) em Maio/Junho de 2007, o arguido AA contratou a mesma II para efectuar limpezas nos apartamentos das Torres acima referidas, tendo sido despedida logo após a detenção do arguido;
iii) em Setembro de 2006, arrendou a III (e KK), cidadã brasileira, um apartamento para morar, no....A da Torre Oura, pelo qual pagou €375 ou €400 por mês, quantia que entregou ao arguido todos os meses;
iv) de Janeiro a Junho de 2007, o arguido arrendou à mesma III o apartamento sito no ................Galé, pela quantia mensal de €250, que aquela lhe entregou todos os meses e, em Julho de 2007, arrendou-lhe pelo mesmo valor mensal o apartamento do... da Torre São Rafael;
v) em Fevereiro de 2007, o arguido AA solicitou a III que passasse a trabalhar para ele na limpeza dos apartamentos das Torres, o que esta aceitou, tendo ficado acordado o pagamento de € 2,50 por hora;
vi) no ano de 2007, arrendou a KK (e III), cidadã brasileira, um apartamento para morar na Torre Oura, pelo qual pagou €375 ou €400 por mês, quantia que entregou ao arguido todos os meses; em Dezembro de 2007 continuava a residir num apartamento arrendado ao arguido AA, na Torre São Rafael;
vii) em Junho de 2007 o arguido contratou para fazer limpezas nos mencionados apartamentos sitos nas Torres em Armação de Pêra, LL, cidadã brasileira em situação irregular no território nacional, por não ter visto de entrada, de residência ou de trabalho; pelos serviços prestados, o arguido pagou à mesma a quantia de €250/300 mensais, durante 4/5 meses, não tendo reduzido a escrito tal contrato, não tendo feito seguro de trabalho e não efectuando os legais descontos para a Segurança Social;
viii) em Maio de 2007 arrendou a MM, cidadã brasileira, um apartamento para morar na Torre São Rafael, pelo qual pagou €350 por mês, quantia que entregou ao arguido por uma vez, tendo deixado o apartamento em Junho do mesmo ano.
AA – O arguido AA quis, relativamente II, III,KK, LL e MM, ao contratá-las para trabalhar, ao pagar-lhes um vencimento mensal e ao arrendar-lhes os apartamentos para residir, criar-lhes as condições básicas e necessárias para que conseguissem permanecer em Portugal, apesar de saber perfeitamente que aqui haviam entrado e se encontravam sem serem detentoras de visto para tanto.
BB – E, ao fazê-lo, quis obter um lucro a que sabia não ter direito porquanto, valendo-se de irregularidade das mesmas, não efectuou contratos de trabalho, não efectuou descontos para a segurança social nem contratou seguros de acidente de trabalho para as mesmas.
CC – Para além do mais, o arguido AA é militar da Guarda Nacional Republicana pelo que sabia ser seu dever funcional, ao tomar conhecimento de que as cidadãs II, III,KK, LL e MM estavam em situação irregular no território português, proceder à respectiva detenção, comunicação ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e apresentação ao juiz do Tribunal da comarca.
DD – Não obstante, em todas as situações referidas, não o fez, com o fito de obter os lucros ilícitos acima aludidos e de as mesmas poderem continuar a residir e trabalhar em Portugal apesar de tal lhes estar vedado.
EE – No Verão de 2006, o arguido AA, conhecedor de queKK havia sido notificada para abandonar voluntariamente Portugal no prazo de 20 dias e que, para além disso, havia sido apresentada no posto de Armação de Pêra uma queixa criminal contra ela, disse-lhe para se ausentar da vila por algum tempo para evitar “chamar a atenção”, sugestão que a mesma acatou.
FF – Quis, ao actuar desta forma, ajudá-la a permanecer em Portugal, criando as condições para obstar à sua detenção e expulsão do país, apesar de bem saber que a mesma se encontrava no país em situação irregular. Sabia, igualmente, que a sua actuação era contrária aos deveres do cargo de militar da Guarda Nacional Republicana, deveres esses que o obrigavam a, decorrido o prazo de 20 dias proceder à detenção da mesma.
GG – No dia 14 de Maio de 2007, pelas 13h00, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento de bar “QB”, em Armação de Pêra e, após entrar no mesmo acompanhado de CC, fechou a porta do estabelecimento e pediu-lhe um beijo, tendo esta recusado.
HH – Insistiu então, dizendo “deixa-me dar-te eu um beijo nas tuas mamas”, começando de imediato a desabotoar os botões da camisa de CC e a dizer que ela era “uma mulher quente e boa” e que tinha de fazer amor com ele.
II – Nesta altura, CC apercebeu-se de que o arguido já tinha o seu pénis à vista e erecto pelo que o empurrou e disse “eu não quero nada contigo”.
JJ – O arguido continuou a insistir, dizendo “vá lá, não sejas difícil, tu deves ser uma mulher quente, já vais, isto é rápido”, quando de repente o arguido lhe levantou a saia, baixou as meias juntamente com as cuecas, rasgando-as e tentou introduzir o pénis na vagina de CC, o que não conseguiu, tendo CC conseguido afastar-se.
LL – Novamente, o arguido a voltou a agarrar, encostando-a a uma parede e dizendo-lhe “não faças força, abre as pernas”, tendo MM começado a chorar e conseguindo o arguido, então, introduzir o seu pénis na vagina da mesma, altura em que CC o empurrou, fazendo bastante força com as pernas, o que o conseguiu afastar um pouco.
MM – De novo o arguido a agarrou, virou-a de costas para si, fez com que a mesma se debruçasse sobre um banco e novamente tentou introduzir o seu pénis na vagina de CC, mas desistindo devido ao choro e aos pedidos daquela.
NN – O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, querendo e conseguindo manter relações sexuais com CC, com o intuito de satisfazer os seus desejos carnais, sabendo que o fazia sem o consentimento e contra a vontade daquela, utilizando a força física para vencer a recusa e a impossibilitar de oferecer resistência.
OO – Em todas as actuações supra descritas, os arguidos agiram livre, deliberada e conscientes de serem proibidas as suas condutas.
Mais se apurou que:
PP – Em data não concretamente apurada, mas compreendida no período referido em L) supra, o arguido AA emprestou a EE e DD a quantia de €15.000.
QQ – O arguido HH trabalhou para GG, reclamando o pagamento da quantia referida em Q) supra a título de salários.
RR – Em consequência dos factos referidos em GG) a OO), CC sofreu angústia e ansiedade, evidenciando, ao nível do funcionamento sexual, alterações relativamente ao padrão funcional anterior (ausência de desejo/prazer sexual), associadas a sintomatologia depressiva.
SS – Após a ocorrência de tais factos, CC apresenta um quadro clínico caracterizado por humor marcadamente triste, com importante componente ansioso, má qualidade de sono, medo difuso e desconfiança relativamente aos comportamentos dos outros, sendo tal quadro compatível com o diagnóstico de “perturbação pós stress traumático”, segundo os critérios de classificação das doenças psiquiátricas internacionalmente aceites – tal quadro patológico requer abordagem terapêutica especializada.
TT – Por ser o arguido AA militar da GNR e também dono da casa onde habitava CC, esta temeu represálias da parte do arguido que pudessem por em causa a sua subsistência – o que a levou a protelar a formulação de queixa-crime contra o mesmo.
Provou-se ainda que:
UU – O arguido, de 34 anos de idade, é casado e, antes de preso, vivia com a sua mulher e a sua sogra, em casa própria, de tipologia T4, com boas condições de habitabilidade, cujo valor patrimonial foi pelos serviços de finanças fixado em €362.400,00.
VV – Proveniente de um contexto familiar estruturado e sem conflitos, o arguido efectuou um percurso escolar regular, concluindo com sucesso o 12º ano de escolaridade, após o que ingressou na Guarda Nacional Republicana, instituição onde se encontra desde 1996.
XX – Tendo em vista dedicar-se em exclusivo à actividade imobiliária, o arguido solicitou, em Fevereiro de 2007, licença sem vencimento, que lhe foi negada e, posteriormente, solicitou a sua desvinculação do serviço da Guarda Nacional Republicana.
ZZ – Enquanto soldado da GNR, o arguido aufere um vencimento de cerca de € 1.050 mensais; a sua mulher, funcionária administrativa num empreendimento turístico, aufere um vencimento de € 750; a actividade da “Vandamar” rende ao agregado cerca de €50.000/ano.
AAA – O agregado familiar do arguido suporta encargos com o pagamento de diversos créditos bancários e leasing imobiliário, que representam uma responsabilidade mensal de, pelo menos, €3.416,98.
BBB – AA responsabiliza terceiros pelas queixas-crime contra si apresentadas, não assumindo qualquer desvalor das suas condutas.
CCC – Do certificado de registo criminal do arguido AA “nada consta”.
DDD – O arguido HH, de 58 anos de idade, é natural da Ucrânia e exercia, em Portugal, actividade na construção civil.
EEE – Do certificado de registo criminal do arguido HH “nada consta”.
Factos não provados
E nada mais se provou com interesse para a decisão, designadamente, não se provou que:
a) Na posse do documento referido em D) supra, o arguido AA se tenha, ou não, dirigido a DD, mostrando-lhe o mesmo, ou que lhe tenha, ou não, dito que “tinha prazo senão tirava a firma dos táxis e ficava com aquilo”.
b) Nas circunstâncias referidas em E) supra, o arguido se encontrasse, ou não, fardado e em exercício de funções de policiamento.
c) Os veículos referidos em D) supra fossem, ou não, as únicas ferramentas de trabalho de EE.
d) O arguido soubesse, ou não, que o valor da dívida que DD tinha para consigo nunca seria superior a € 25.000 ou que, com tal actuação tenha querido obter um lucro a que sabia não ter direito, por saber que DD, perante a ameaça do seu pai ficar sem os táxis, se veria forçado a pagar.
e) O arguido tenha, ou não, pressionado directamente FF ou que tenha, ou não, exigido a assinatura desta nas declarações de dívida mencionadas em M) supra.
f) O arguido tenha, efectivamente, obtido qualquer vantagem patrimonial em consequência da sua actuação para com EE e mulher.
g) Nas circunstâncias referidas em O) e P) supra, o arguido soubesse, ou não, que GG não tinha seguro de responsabilidade civil da viatura que conduzia.
h) No decurso da fiscalização referida em O) e P) supra, o arguido AA tenha, ou não, solicitado os documentos da viatura e pessoais de GG, que os tenha, ou não, guardado consigo, ou que tenha, ou não, solicitado àquele a entrega de dinheiro, que este não deu.
i) O arguido se tenha, ou não, apropriado dos documentos de GG, por forma a obrigá-lo à entrega de dinheiro, não tendo, por outro lado, elaborado auto de contra-ordenação pelo falta de seguro de responsabilidade civil da viatura, como lhe competia, e bem assim que não tenha procedido à apreensão da mesma, como sabia ser obrigatório.
j) Em finais do ano de 2004 princípios de 2005, o arguido AA tenha, ou não, combinado com o arguido HH que este último se iria apoderar duma carrinha Toyota de matrícula..-..-.., pertencente a GG, no valor de cerca de €12.000, ou que depois iria entregar tal veículo a casa do primeiro em Armação de Pêra, para desta forma obrigar GG a entregar a quantia de €3.000 ao AA.
l) O arguido HH pretendesse obter de GG quantia a que sabia não ter direito.
m) No primeiro trimestre de 2007, o arguido AA tenha, ou não, arrendado a NN e a OO ambas cidadãs brasileiras, um apartamento para morarem, no 6°A da Torre Castelo, pelo qual pagavam €350 por mês, quantia que entregaram ao arguido todos os meses até à data da detenção deste, altura em que lhes foi pedido que abandonassem o apartamento, o que fizeram.
n) Em Maio de 2007, o arguido AA tenha, ou não, contratado a mesma NN para efectuar limpezas nos apartamentos das Torres São Gabriel, São Rafael, Galé, Castelo e Baleeira, pagando-lhe a quantia de €250 mensais por 5 horas de trabalho por dia, durante 6 dias por semana.
o) O arguido tenha, ou não, pago vencimentos inferiores aos devidos a II, III, KK, LL ou MM.
p) Os factos referidos em GG) a OO) supra se tenham prolongado por cerca de 20/30 minutos.
q) Em consequência de tais factos a assistente tenha ficado em absoluto impedida de viver uma vida normal.
s) Em alguma ocasião o tenente Bengala, superior hierárquico do arguido AA, se tenha dirigido a este, dizendo-lhe “’tá tramado!” ou “que tinha ouvido umas coisas graves sobre ele e que não o deixaria em paz até verificar a veracidade das mesmas” ou, ainda, que após ter formulado o pedido de desvinculação da Guarda, o arguido tenha sofrido “pressões e perseguições na GNR”.
Não se provaram também quaisquer outros factos que com os provados estejam em contradição».

2.2. Da questão prévia
O Senhor Procurador-geral Adjunto do Tribunal da Relação de Évora, tendo presente a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, por um lado, o direito ao recurso se rege pela lei em vigor à data da decisão recorrida ou, pelo menos, à data da sua interposição e, por outro, que, com a reforma de 2007, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se o tribunal da relação confirmar decisão da primeira instância que tenha aplicado pena de prisão não superior a oito anos, concluiu que, no caso concreto, o recurso interposto pelo Arguido deve ser rejeitado «no concernente a cada um dos crimes que integra o concurso», porque qualquer deles foi punido com prisão inferior a oito anos e essa pena foi confirmada pela Relação – alínea f) do artº 400º do CPP, na redacção agora vigente.
O seu Colega deste Tribunal, como vimos, põe sérias reservas ao entendimento do Supremo sobre a irrecorribilidade de tais decisões, no que é acompanhado pelo Arguido.

Ora bem.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2009 de 18.02.09, publicado no DR, 1ª Série, de 19.03.09 fixou jurisprudência no sentido de que, em matéria de recursos penais, no caso de sucessão de leis processuais penais, é aplicável a lei vigente à data da decisão proferida em 1ª instância.
O acórdão do Tribunal do Júri do 1º Juízo da comarca de Silves foi proferido em 15 de Janeiro de 2009 (fls. 2087).
Nessa data estava já em vigor a versão Código de Processo Penal resultante das alterações que nele foram introduzidas pela Lei nº 48/07 de 29 de Agosto, como decorre do seu artº 7º.
Essa versão do Código é, pois, a aqui aplicável.
Posto isto, importa esclarecer qual o sistema dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça ali estabelecido.
É o artº 432º do CPP que define a recorribilidade das decisões penais para o Supremo Tribunal de Justiça. De forma directa, nas alíneas a), c) e d), do seu nº 1; de modo indirecto, na alínea b) do mesmo número, através da referência às decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do nº 1 do artº 400º.
Estando aqui em causa um recurso interposto de um acórdão de um tribunal da relação proferido em recurso, perante um recurso em segundo grau, portanto, a norma a ter em conta é a daquela alínea b) – “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça … b) das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pela relações, em recurso, nos termos do artº 400º”.
Ora, o Tribunal da Relação de Évora, na procedência parcial do recurso que havia sido interposto pelo Ministério Público, do mesmo passo que confirmou as penas parcelares fixadas pelo Tribunal do Júri (entre os 9 meses de prisão, por cada um dos cinco crimes de abuso de poder, e os 4 anos de prisão, pelo crime de violação), agravou de 8 para 9 anos de prisão a pena conjunta correspondente ao concurso de crimes por que o Arguido foi condenado. Como assim, a alínea b) do nº 1 do artº 432º remete-nos para a alínea f) do nº 1 do artº 400º.
A Lei nº 48/07 alterou substantivamente esta disposição legal: se antes, era a pena aplicável o pressuposto (um dos pressupostos) da (ir)recorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, agora esse pressuposto passou a ser o da pena concretamente aplicada.
No caso de concurso de crimes, pena aplicada é tanto a pena parcelar cominada para cada um dos crimes como a pena conjunta.
Por isso que, como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça, no seguimento aliás da jurisprudência largamente dominante firmada no período de vigência do regime agora alterado (embora, então, com referência à pena aplicável e não, como agora, à pena concretamente aplicada), no caso de concurso de crimes, só sejam para si recorríveis as decisões das relações que, incidindo sobre cada um dos crimes e das correspondentes penas parcelares, ou sobre a pena conjunta, apliquem ou confirmem pena de prisão superior a 8 anos.
No caso sub judice, o Tribunal da Relação de Évora, além de ter agravado a pena conjunta, fixando-a acima dos oito anos de prisão, também decidiu confirmar as penas parcelares, todas elas inferiores a esse limite.
Na lógica do que vem exposto, a decisão que confirmou as diversas penas parcelares não é recorrível.
Mas já o é a decisão que agravou a pena conjunta.

Diz o Senhor Procurador-geral Adjunto, no seu parecer, que este entendimento jurisprudencial não leva em conta o princípio do conhecimento amplo do recurso estabelecido no nº 1 do artº 402º, do CPP e a distinção que se impõe entre normas que definem a admissibilidade e o âmbito do recurso.
Aquele princípio e a distinção sublinhada, não nos oferecem quaisquer dúvidas. Aceitamo-los sem quaisquer reticências.
Mas, salvo o devido respeito, a questão não é essa. O problema do âmbito do recurso – desprezada, naturalmente, a possibilidade da sua limitação pelo próprio recorrente, designadamente por força do artº 403º do CPP – metodologicamente só se coloca depois de decida a questão da sua admissibilidade. Se a decisão não admite recurso ou só em parte o admite, o princípio do conhecimento amplo ou não chega a colocar-se ou só se coloca, obviamente, em relação à parte recorrível.
Ora, o que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo a este propósito é que, no caso de concurso de crimes, a (ir)recorribilidade se afere separadamente pelo conteúdo de cada uma das decisões que incide sobre cada um dos crimes e das correspondentes penas parcelares, por um lado, e sobre a pena conjunta, por outro.
E não vemos obstáculo processual que repila esse entendimento, sabido como é que o sistema português de punição do concurso de crimes é o da pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico – o tribunal fixa, em primeiro lugar, a pena que concretamente cabe a cada um dos crimes, como se de crimes singulares se tratasse; de seguida constitui a moldura penal do concurso, nos termos do artº 77º, nºs 2 e segs., do CPenal e, finalmente, determina a pena conjunta dentro daqueles limites, em função naturalmente das exigências gerais de culpa e de prevenção, mas tendo em conta o critério especial do nº 1 do mesmo artigo: “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” –, sistema esse em que as penas parcelares, muito embora não venham, em princípio, a ser elas próprias efectivamente executadas, conservam a sua autonomia e a que estão associados efeitos específicos, de natureza substantiva e processual. (cfr. Figueiredo Dias, “ As Consequências Jurídicas do Crime”, 285 e Jescheck, “Tratado…”, II, 1029 e Acórdão deste Tribunal de 16.04.09, Pº nº 491/09-5ª Secção).
Aliás, no caso de determinação superveniente do concurso, está definitivamente afastada a possibilidade de, por via do recurso interposto do acórdão que fixou a pena conjunta, sindicar as decisões que incidiram sobre cada um dos crimes e respectivas penas, mesmo daquela(s) que eventualmente tenha(m) sido proferida(s) no mesmo processo. E, nem por isso o tribunal deixa (pode deixar) de proceder à avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente. Conhecidas as contingências que podem levar ou obstar ao julgamento conjunto dos diversos crimes cometidos pelo mesmo agente – artº 24º, nº 2, do CPP –, não se nos afigura razoável ou mesmo conforme ao princípio da igualdade, fazer depender a (ir)recorribilidade de uma decisão de um tribunal da relação, proferida em recurso sobre um crime integrante de um concurso de infracções, que tenha confirmado pena de prisão inferior a 8 anos da circunstância, pode dizer-se aleatória, de o julgamento desse crime ter sido feito em conjunto com os outros crimes do concurso ou separadamente. Em nossa opinião, as possibilidades de recurso, os graus de recurso admissíveis, hão-de ser os mesmos, em ambas as hipóteses. De outro modo, teríamos o Supremo Tribunal de Justiça a rever condenações por crimes que, quando isoladamente apreciados, nunca poderiam a ele ter acesso (os crimes da competência do tribunal singular, por exemplo).
Por isso, também não temos por procedente a crítica de que «a focada visão atomística da pluralidade dos crimes pelos quais o arguido foi condenado não se mostra em conformidade com a necessidade de consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido, com vista à fixação da pena conjunta». Os factos são os fixados pelas instâncias, em cuja definição o Supremo Tribunal de Justiça não pode intrometer-se, e constam ou hão-de constar do acórdão. A consideração, em conjunto, desses factos e da personalidade do agente, em ordem a definir a gravidade do ilícito global e perscrutar sobretudo se os mesmos são expressão de uma tendência ou mesmo de uma «carreira» criminosa ou se, pelo contrário, se trata de delitos ocasionais, sem conexão, não exige, com efeito, tal como no caso de conhecimento superveniente do concurso, a sindicância prévia de cada uma das decisões sobre cada um dos crimes e de cada uma das penas parcelares. A determinação das penas singulares e a da pena conjunta são, com efeito, actos separados e perfeitamente autónomos, sem embargo de a moldura da segunda se estabelecer em função das primeiras.
Estas considerações parecem-nos também suficientes para afastar a ideia de que a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a fazer da norma da alínea f) do nº 1 do artº 400º do CPP, no caso de concurso de crimes, conduz «a uma restrição desrazoável e desproporcionada do direito ao recurso».
A crítica trouxe-nos à memória as palavras de Cunha Rodrigues, proferidas, é certo, noutro contexto, de que «os recursos incrustaram-se em muitos sistemas como meios de refinamento jurisprudencial. A ideia de “quem mais acerta” ou (porque não?) o sentimento um tanto ou quanto supersticioso de que “às três é de vez” tornaram incompreendida a função dos recursos, em prejuízo da unidade dos tribunais como poder. O novo Código toma claramente partido nesta questão. O julgamento em que é legítimo apostar como instrumento preferencial de uma correcta administração da justiça é o da primeira instância. Como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão…) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma “melhor justiça”.» (“Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal”, 386). De qualquer modo, o Arguido viu o seu direito ao recurso, aliás constitucionalmente consagrado, garantido com a possibilidade de discutir, como efectivamente discutiu, a decisão da primeira instância em todas as suas vertentes e com a amplitude que entendeu. Não se nos afigura, por isso, “desrazoável e desproporcionado” que o segundo grau de recurso lhe seja concedido apenas para apreciação da condenação pelo concurso de crimes, numa pena que o Tribunal da Relação agravou e fixou em 9 anos de prisão. Este “aliviar da carga” do Supremo Tribunal de Justiça visado pela Reforma de 2007, na senda da linha já antes trilhada pela Reforma de 1998, parece-nos que em nada colide com o papel fundamental que lhe está reservado de uniformizador da aplicação do direito. E, como se escreveu no Acórdão de 08-01.09, Pº 2153/08-5ª Secção, «seria um contra-senso, na perspectiva da restrição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, acentuada pela aludida reforma, que o legislador, ao falar de pena aplicada em concreto, em vez de pena aplicável em abstracto, como anteriormente, pretendesse levar o Supremo Tribunal de Justiça a conhecer de todos os crimes que formam um concurso de infracções, mesmo que tais crimes correspondam àquela noção que normalmente se designa de criminalidade bagatelar ou que, tendo já passado pelo crivo da Relação, e não sendo crimes de bagatela, viram as respectivas condenações confirmadas por aquela, até um limite de gravidade tido como razoável (na opção legislativa, 8 anos de prisão), a partir do qual se justifica a revisão do caso pelo Supremo Tribunal de Justiça»

Termos em que, por não ser admissível, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432º, alínea b) e 400º, nº 1, alínea f), do CPP, se rejeita o recurso, na parte em que incide sobre a decisão da Relação que confirmou as penas parcelares, aplicadas pelo Tribunal do Júri.

2.3. Do recurso admissível
A decisão recorrível é, portanto, apenas a que incidiu sobre a pena conjunta correspondente ao concurso de crimes por que o Arguido foi condenado.
E tem por objecto, nos termos das conclusões da motivação:
a) a questão da incompetência material e funcional do tribunal do júri, porque, muito embora a alegada incompetência tenha como fundamento a circunstância de o Arguido ter sido acusado e julgado pela prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, do qual, aliás, foi absolvido – razão por que, nessa parte o recurso não seria admissível –, a excepção, a ser procedente, inquinará de forma irremediável todo o acórdão, atento o disposto nos arts. 119º, nº 1, alínea f) e 122º, nº 1, do CPP;
b) a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, porque, procedendo, poderá ter reflexos na apreciação da gravidade do ilícito global e na própria conexão dos factos com a personalidade do Arguido e, daí, a sua influência na medida da pena conjunta;
c) a medida da pena conjunta.

Apreciemos então cada uma destas questões:

2.3.1. Da incompetência do Tribunal do Júri
Alega o Recorrente, em síntese, que, tendo sido acusado da prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito (artº 372º, nº 1, do CPenal) – crime que a alínea m) do artº 1º do CPP inclui no conceito de criminalidade altamente organizada – não podia ter sido julgado, como foi, pelo Tribunal do Júri, uma vez que o artº 207º, nº 1, da CRP exclui tal categoria de crimes da competência desse Tribunal.
O despacho que declarou a competência do Tribunal do Júri (o despacho que deferiu a intervenção do júri) deve, assim, declarar-se inválido, bem como todos os actos subsequentes, incluindo o julgamento.
A questão já foi suscitada, nos mesmos termos, no recurso para o Tribunal da Relação que a julgou improcedente e desatendeu a nulidade arguida (fls. 2506 e segs.).
Com efeito, depois de transcrever os arts. 207º, nº 1 da CRP, 13º do CPP e 111º da LOFTJ, sobre a intervenção/competência do tribunal do júri, e de identificar a «polémica» trazida ao recurso pelo Recorrente, o Tribunal recorrido centrou a sua atenção no conceito de “criminalidade altamente organizada” usado naquele preceito da Lei Fundamental e na definição que consta da alínea m) do artº 1º do CPP para se questionar sobre se o conceito por este definido «afronta ou não conceito idêntico constante da Constituição».
E respondeu, em parte transcrevendo um trecho da fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 450/08, de 24.09.08, DR, 2ª Série, de 28.10.08, fls. 43816 e segs. que versa sobre a matéria
[«Através da Lei Constitucional n.° 1/97, de 20 de Setembro, o legislador constituinte aditou ao actual artigo 207° da Lei Fundamental a referência aos crimes "de criminalidade altamente organizada ", vedando expressamente a constituição de tribunais de júri quanto a tais crimes.
Conforme notado por ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO e MÁRIO JOÃO FERNANDES (in "Comentário à IV Revisão Constitucional", Lisboa, 1999, p. 465):
"À excepção do crime de terrorismo foi aditada à da «criminalidade altamente organizada». A CRP não fornece elementos quanto a uma definição constitucional deste tipo de criminalidade, porém, pensamos que o critério da sua determinação deve atender ao tipo de crime, e não ao grau de organização dos criminosos. Um caso típico que pode ser encontrado na lei é o das associações no âmbito do tráfico de estupefacientes (art° 28° do decreto-lei n° 15/83, de 22 de Janeiro). "
Com efeito, através desta relevante alteração, o legislador constituinte pretendeu garantir que a especial garantia de imparcialidade do tribunal penal que julga crimes de terrorismo fosse estendida a crimes não expressamente tipificados pelo actual artigo 207° da Constituição como de "criminalidade altamente organizada". Com esta limitação, visa-se garantir a imparcialidade e independência dos jurados não magistrados, evitando que aqueles possam vir a ser pressionados pelos titulares dos interesses que sustentam aquele tipo de criminalidade altamente organizada, designadamente, mediante ameaças à sua vida e integridade física. No mesmo sentido se pronunciaram, mais recentemente, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (in "Constituição Portuguesa Anotada ", Coimbra, 2007, pp. 94 e 95):
"A Constituição determina casos em que a constituição ou mera previsão legal do tribunal de júri está excluída. São os casos de terrorismo ou de criminalidade «altamente organizada». A razão de ser desta exclusão, constitucionalmente imposta, deriva de uma presunção inilidível - à luz da Constituição - de que os juízos leigos não têm, nestes casos, a capacidade para administrar a Justiça, face ao grau de ameaça ou de intimidação que o julgamento de tais casos poderia comportar. Sendo estas razões fundadas, os conceitos restritivos a que a norma apela, suscitam algumas dificuldades, nomeadamente, no caso de «criminalidade altamente organizada». Com efeito, esta exclusão pressupõe que se determine exactamente o que seja «criminalidade altamente organizada», tal qual estava subjacente à «mente» do legislador constituinte (ou seja, de acordo com o conceito do Código de Processo Penal, entretanto «redefinido» pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que revê o CPP. "
Estando, pois, assente que o artigo 207° da Constituição impede a previsão legal e a constituição efectiva de tribunais de júri para efeitos de julgamento de crimes "altamente organizados", importa, porém, determinar quais os crimes que, à luz da Constituição, se revestem dessa mesma qualidade.
Bem entendido, a mera circunstância de a recente Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, ter procedido a uma definição legal de "criminalidade altamente organizada ", através do aditamento da alínea m) do artigo 1 ° do CPP, não se afigura apta a evidenciar o critério preconizado pelo legislador constitucional. Ainda que a referida alínea m) do artigo 1 ° do CPP qualifique os crimes de "tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas " como tal, essa opção legislativa ordinária não é bastante para concluir pela inclusão daqueles crimes no conceito jus-constitucional de "criminalidade altamente organizada ". Fazer o contrário seria interpretar a Lei Fundamental à luz da lei ordinária, ao invés daquilo que impõe a Ideia de Garantia da Constituição, enquanto parâmetro de validade das demais normas»], para concluir que «o elemento fundamental para a integração do conceito constitucional de criminalidade altamente organizada deve ser encontrado na garantia da imparcialidade e nos casos em que a intervenção do júri possa fazer perigar esse valor».
Alias, acrescenta, «a dimensão normativa que inclui o crime de corrupção nesse conceito, independentemente do carácter altamente organizado da actividade em que se inseriu o seu cometimento, é na realidade inconstitucional, como acentua Paulo Pinto de Albuquerque em Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição actualizada, pag. 40 a 41, onde expõe as razões de ser da inclusão de tal previsão que têm a ver com a prisão preventiva e não com o julgamento por tribunal de júri. E, como se menciona no citado acórdão do Tribunal Constitucional as normas de direito ordinário devem ser interpretadas de acordo com o direito constitucional, não podendo ser estas a determinar o conteúdo da Constituição (cfr. artigo 18º da CRP e a anotação a tal preceito de Jorge Miranda, Rui Medeiros em Constituição Portuguesa anotada, Tomo I)».
Nesta conformidade, «porque o crime de corrupção imputado ao arguido/recorrente não pode considerar-se integrado no conceito constitucional de criminalidade altamente organizada, [decidiu que] nada obstava ao julgamento por tribunal de júri, não se verificando a nulidade invocada».

O Senhor Procurador-geral Adjunto subscreveu este entendimento.

Ora bem.
O conceito de «criminalidade altamente organizada» plasmado na alínea m) do artº 1º do CPP, vale, como no próprio preceito se diz, «para efeitos do disposto no presente Código» (cfr., por exemplo, os arts. 202º, nº 1-b) e 215º, nº 2).
O julgamento dos crimes de corrupção passiva para acto ilícito, porque puníveis com prisão de 1 a 8 anos – artº 372º, nº 1, do CPenal – não estão incluídos na competência directa do tribunal do júri, tal como definida no artº 13º, nºs 1 e 2, do CPP.
Mas, podendo a competência resultar da conexão de processos – cfr. designadamente o artº 27º também do CPP –, o julgamento dos referidos crimes, nessa hipótese, também não lhe está aí vedado.
É o artº 207º da CRP que exclui, em termos absolutos, a possibilidade de intervenção do tribunal do júri no julgamento de certas categorias de crimes: os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada. A Constituição determina aí os casos em que a constituição ou a mera previsão legal do tribunal do júri está excluída, sendo a sua razão de ser «a presunção inilidível – … – de que os juízes leigos não têm, nesses casos, a capacidade para administrar a justiça, face ao grau de ameaça ou de intimidação que o julgamento de tais casos poderia comportar (Jorge Miranda e Rui Medeiros, “A Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo III, 94)
A primeira categoria de crimes, os de terrorismo, não interessa à solução do nosso caso.
A segunda, integra um conceito sobre cuja extensão e exactos contornos a Lei Fundamental não nos esclarece de todo.
Como vimos, o Recorrente integra-o por recuso à definição daquela alínea m).
Mas, como disse o Tribunal Constitucional no acórdão acima referido, a circunstância de o legislador ordinário ter procedido a essa definição «não se afigura apta a evidenciar o critério preconizado pelo legislador constitucional». É a lei ordinária que tem de ser interpretada conforme a Constituição e não o contrário.
Pois bem.
Na sua fundamentação, o Tribunal Constitucional socorreu-se, «enquanto mero instrumento auxiliar interpretativo», dos trabalhos preparatórios das sucessivas revisões constitucionais que delimitam o conceito de criminalidade organizada, de que nos parece importante reter as seguintes informações:
No âmbito da Comissão Eventual de Revisão da Constituição de 1997, foi proposta, por deputados do PSD, a que aderiu o PS, a revisão do actual artº 207º da CRP, no sentido de estender a proibição constitucional de formação de tribunal de júri aos casos de criminalidade altamente organizada.
Na discussão da especialidade, perante a dúvida acerca desse conceito relativamente indeterminado, se o Deputado Marques Guedes, do PSD, referiu que «o conceito … está hoje, …, conceptualizado no artigo 1º do Código de Processo Penal..», já o deputado José Magalhães, do PS, acentuou que o conceito resultou de uma reflexão «tendente a isolar um conceito que recorte certos tipos de criminalidade de especial gravidade, em que os elementos de organização e, logo, de eficácia e perigosidade são elementos relevantes» (sublinhado nosso). E esclareceu, reportando-se ao conceito do então nº 2 do artº 1º do CPP, que «não estamos a constitucionalizar este segmento normativo do Código de Processo Penal, não estamos a importar para a Constituição este exacto recorte normativo. O legislador ordinário é livre de desenhar noutros termos o que seja a criminalidade altamente organizada e pode fazê-lo, com uma limitação: é que o que prima aqui são precisamente os elementos da organização e da especial gravidade das infracções que essa organização visa perpetrar» (voltamos a sublinhar).
Quer dizer, muito embora o conceito constitucional tenha tido por fonte a definição vazada naquela norma do CPP (repete-se, a do então vigente nº 2 do artº 1º do CPP), não existe identidade entre os dois. O conceito constitucional pressupõe, como concluiu o Tribunal Constitucional, um elevado grau de organização do processo criminoso, por um lado, e uma especial lesividade das condutas criminosas, por outro.
De qualquer modo, considerando a redacção então em vigor do citado nº 2 – «para efeitos do presente Código, apenas podem considerar-se como casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que: a) integrarem os crimes previstos nos artigos 299º, 300º ou 301º do Código Penal; ou b) dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos» – o conceito não era susceptível de abranger os crimes de corrupção que, de facto, não encaixam nem na alínea a) nem na alínea b).
A conclusão mantém-se se considerarmos que o legislador constitucional não podia ter deixado de ter em consideração a norma, também então vigente, do artº 53º do DL 15/93, de 2 de Janeiro, nos termos da qual «para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com o nº 2 do artigo 1º do mesmo Código, consideram-se equiparadas aos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes previstos nos artigos 22º a 25º e 28º desta lei».
O conceito constitucional foi posteriormente actualizado pela Lei Constitucional 1/2001 que, alterando o nº 3 do artº 34º, veio autorizar a entrada durante a noite no domicilio de qualquer pessoa, ainda que sem o seu consentimento, «em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes» – o que parece significar que além dos crimes elencados outros poderão ser qualificados como criminalidade altamente organizada, desde que preencham aqueles dois requisitos acima apontados: um elevado grau de organização do processo criminoso e uma especial lesividade das condutas criminosas. Paulo Pinto de Albuquerque, porém, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, pág. 41, afirma que não foi propósito do legislador constituinte incluir no conceito de criminalidade altamente organizada o crime de corrupção (bem como o de tráfico de influência).

O fenómeno da corrupção tem estado muito em foco entre nós e é apresentado não poucas vezes como estando na origem da perda de credibilidade das instituições democráticas e como causa mesmo do atraso sócio-económico do país.
No preâmbulo da Convenção da ONU contra a corrupção alude-se aos problemas que a corrupção coloca à estabilidade e segurança das sociedades, na medida em que mina as instituições e os valores da democracia, os valores éticos e a justiça e à ligação existente entre a corrupção e outras formas de criminalidade, em especial a criminalidade organizada.
Também na exposição de motivos dos Projectos de Lei nºs 306/X e 341/X, apresentados à AR em 27.07.06 e 19.01.07 por João Cravinho (o segundo em co-autoria com outros deputados do PS), se diz que «a corrupção corrói os alicerces de um Estado de Direito Democrático, fragiliza as estruturas da República, …» e que a «disseminação da corrupção na sociedade, ao perverter os princípios da transparência, da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da boa-fé, que têm de orientar e parametrizar a actuação do titular do cargo público e do funcionário, debilita a confiança do cidadão na “república” e causa insanáveis prejuízos na consciência e exercício da cidadania».
Boaventura de Sousa Santos, afirmou, por sua vez, que «Portugal está afogado numa maré negra de corrupção» (“Visão” de 12.12.2002)
Não custa aceitar por isso, em virtude do falado efeito corrosivo, que o crime de corrupção, pelo menos a alta corrupção, assente numa organização refinada, capaz influenciar os diversos centros de decisão, possa ser incluído no conceito constitucional de criminalidade altamente organizada e, como tal, que o seu julgamento esteja vedado ao tribunal do júri.
Não é esse, decididamente o caso da “corrupção miúda” cometida pelo contacto directo entre duas pessoas, cujo propósito e execução nada têm de altamente organizado, sem embargo de ser altamente lesiva e contribuir para aquele afogamento.
É nesse plano que se inscreve o crime que a acusação imputou ao arguido – e, note-se, é a acusação que define o crime a submeter a julgamento, em função do qual é designado o tribunal para o efeito competente –, em cuja actuação, tal como foi aí descrita, está totalmente ausente qualquer procedimento que possa sequer sugerir alguma proximidade com criminalidade altamente organizada. O Arguido – nos termos da acusação, repete-se – actuou sozinho, por sua conta e risco, “valendo-se da farda”, não havendo quaisquer indícios de que tenha obedecido a qualquer plano previamente organizado ou de que estivesse integrado em qualquer grupo, rede ou organização, incipiente que fosse.
Não pode, consequentemente, falar-se aqui e, a esse propósito, de criminalidade organizada e, ainda menos, em criminalidade altamente organizada, para efeitos do disposto no artº 207º da CRP, sem embargo de se poder integrar o conceito da alínea m) do artº 1º do CPP, para efeitos no que nele se dispõe designadamente para efeitos do disposto no seu artº 202º e 215º. Trata-se, em nosso entender, de conceitos não coincidentes na sua dimensão, razão por que não há que falar, a esse propósito, de eventual inconstitucionalidade da norma do direito ordinário.

O recurso improcede, pois, nesta parte.

2.3.2. Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia´
O Recorrente alega, em resumo:
- na contestação arrolou «um extenso rol de factos» com relevo para a decisão da causa;
- o acórdão da 1ª instância é completamente omisso sobre tais factos, que não ficaram a constar nem no elenco dos factos provados nem do dos factos não provados.
- o acórdão da 1ª instância e o acórdão agora recorrido, que o confirmou, incorreram, por violação do nº 2 do artº 374º, na nulidade da 1ª parte da alínea c) do artº 379º, ambos do CPP.
E, acrescenta:
- o acórdão recorrido funda-se «no entendimento de que o Tribunal da 1ª instância está dispensado de explicitar as razões pelas quais considera que os factos alegados pelo Arguido na contestação são irrelevantes ou inócuos, e considera que sobre o Recorrente impende o ónus de justificar a relevância de factos sobre os quais o Tribunal, de todo, se não pronunciou»;
- «o conjunto normativo formado pelos arts 368º, 2, 369º e 374º, 2, CPP, interpretado no sentido de que o Tribunal da primeira instância não tem de enunciar na sentença todos os factos alegados pelo Arguido na contestação, julgando-os provados ou não provados ou explicitando as razões por que os considera irrelevantes para a boa decisão da causa, e no sentido de impor, nessas circunstâncias, sobre o Arguido o ónus de, em recurso, argumentar as razões por que considera esses factos relevantes, é inconstitucional, por ofensa do disposto, entre outros, no artº 32º, 1, CRP».

O Senhor Procurador-geral Adjunto entende, no entanto, que o acórdão recorrido cumpriu, de forma completa, o programa traçado pelo nº 2 daquele artº 374º e que não procede a pretensa inconstitucionalidade.

Vejamos, então.

O acórdão que está em recurso, é bom frisar, é o acórdão da Relação.
O acórdão do Tribunal do Júri já foi escrutinado no anterior recurso.
Deste modo, só nos cabe apreciar e julgar a questão suscitada enquanto reportada àquele acórdão, isto é, verificar se este padece ou não da nulidade arguida ou se o julgamento que fez está ou não em conformidade com a lei.

A tese do Recorrente é a de que o acórdão recorrido (como, de resto, o acórdão da 1ª instância) é nulo por omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do artº 379º, por violação do nº 2 do artº 374º, um e outro do CPP.
Porém, estando em causa um acórdão proferido, em recurso, por um tribunal da relação, a norma primária a ter em consideração é a do nº 4 do artº 425º do CPP, nos termos da qual «é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos, em recurso, o disposto nos artigos 379º e 380º…»
A remissão para o artº 380º não tem interesse para o caso.
Por sua vez, o artº 379º prescreve, na alínea a) e 1ª parte da alínea c) do seu nº 1, que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo 374º, nºs 2 e 3 e quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (as hipóteses da alínea b) e a da 2ª parte da alínea c) não são aqui aplicáveis).
A omissão de pronúncia, prevista, repete-se, na alínea c) do artº 379º – a norma invocada tanto no corpo da motivação como nas suas conclusões, embora ali apenas apareça referida ao acórdão da 1ª instancia – não tem conexão com o nº 2 do citado artº 374º. Decorre da circunstância de o tribunal de recurso ter deixado de se pronunciar sobre questão que validamente lhe foi colocada.
No recurso para o Tribunal da Relação, o Arguido alegou efectivamente que, na contestação, tinha arrolado «um extenso rol de factos cuja apreciação se reveste de indiscutível importância e interesse para a boa decisão da causa», sobre os quais é completa a omissão do acórdão da 1ª instância – razão por que, concluiu, havia incorrido na nulidade prevista na 1ª parte da alínea c) do nº 1 do artº 379º, por violação do artº 374º, nº 2, ambos do CPP.
Vê-se, porém, da leitura de fls. 2511 a 2517 do acórdão agora em recurso que o Tribunal da Relação dedicou a essa questão detalhada análise, apreciando pormenorizadamente a contestação oferecida pelo Recorrente e, no final, julgou improcedente a nulidade arguida.
Para dissipar quaisquer dúvidas a este respeito que possam surgir no espírito dos destinatários desta decisão, designadamente dos que não tiveram acesso ao processo, e no cumprimento do princípio da suficiência a que têm de obedecer as decisões judiciais, transcrevemos essa parte do acórdão recorrido.
É do seguinte teor:
«Invoca o arguido/recorrente que na sua contestação de fls. 1337 e segs. alegou um extenso rol de factos cuja apreciação se reveste de indiscutível importância e interesse para a boa decisão da causa em todas as vertentes descritas nas diversas alíneas do artigo 368º, nº 2 do Código de Processo Penal, sendo o acórdão recorrido omisso sobre esses factos que não constam dos factos provados nem dos factos não provados.
Conclui que o acórdão recorrido, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, incorre na nulidade prevista no artigo 379º, alínea c) do Código de Processo Penal.
Omite, porém, o recorrente, quer na motivação, quer nas conclusões, a indicação concreta dos factos que na sua perspectiva se revestiam de interesse para a boa decisão da causa e sobre os quais o Tribunal a quo não se pronunciou.
Vejamos em primeiro lugar as disposições legais que delimitam os deveres de cognição do Tribunal no âmbito da matéria de facto.
Começando pelo disposto no artigo 374º do Código de Processo Penal que se refere aos requisitos da sentença, preceitua o seu número 2 "Ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas."
Pergunta-se que factos provados e não provados devem constar da sentença/acórdão e a resposta deve ser encontrada no artigo 368º, nº 2 do Código de Processo Penal. Resulta desse normativo que o tribunal deve pronunciar-se sobre "os factos alegados pela acusação e pela defesa, e bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões a saber", elencadas nas alíneas a) a f), se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido actuou com culpa, se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa, se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança, se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento de indemnização.
Para além do exposto, resulta ainda do preceituado no artigo 369º do Código de Processo Penal a obrigação de o tribunal averiguar e pronunciar-se sobre todos os factos que sejam relevantes para a determinação da sanção que venha a aplicar, independentemente de alegação.
Em suma, destas disposições legais resulta que o tribunal deve pronunciar-se sobre todos os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão e a relevância para a boa decisão da causa afere-se pela resposta positiva ou negativa sobre se o facto é relevante para a decisão tal como configurada nas alíneas do artigo 368º e no artigo 369º.
Já suposto é, do mencionado, que a sentença não seja um mero exercício de cópia da acusação e da contestação e que, quando dê como provado facto positivo, não tenha que reproduzir o facto negativo que em contrário tenha sido alegado, posto que a resposta positiva elimina por natureza o facto negativo correspondente.
Do mesmo modo logo se concluirá que na sentença não devem ser reproduzidos factos instrumentais que tenham sido alegados como meio de alcançar eventual dúvida sobre os factos relativos à incriminação, ainda que estes tenham sido dado como provados, posto que eles próprios não respondem às enunciadas questões.
Mas vejamos o teor da contestação.
Nos artigos 1º a 45º o recorrente começa por negar os crimes imputados contrapondo o seu bom desempenho profissional, expõe que terá sido vítima de "pessoas mal intencionadas", que foi objecto de processos disciplinares que foram arquivados, relata o que na sua perspectiva é a falta de prova neste processo no período inicial e a existência de prova posterior, desde que a investigação passou para a GNR de Silves e respectivo comandante, começando a ser alvo de perseguição profissional e pessoal bem como outros seus colegas, acções do Tenente ........ no sentido de o intimidar, bem como a decisão que por força dessas perseguições tomou de abandonar a GNR tendo primeiro pedido licença que foi negada e depois pedido a desvinculação, também negada. Continua afirmando que as perseguições na GNR se intensificaram e, contra o teor de cartas anónimas que lhe atribuem sinais de riqueza, expõe a sua situação financeira com referência às suas fontes de rendimento, das pessoas próximas e empréstimos obtidos.
Tece finalmente considerações sobre a prova, sobre o requerimento de realização de julgamento com intervenção de júri, sobre a competência dos jurados (matéria não factual).
De todo esse arrazoado parece-nos evidente que o Tribunal a quo não se teria de pronunciar sobre a exposta "teoria da conspiração e perseguição" contra o arguido. Na verdade o que se discute no processo penal é a verdade ou mentira de uma acusação. Esse tipo de defesa encontra compreensão como suporte instrumental para eventualmente descredibilizar a factualidade acusatória, para sustentar uma tese de falsidade da prova que parece ser o objectivo pretendido, mas por si não serve para responder às questões atinentes à existência e caracterização do crime e circunstâncias juridicamente relevantes para a determinação da sanção.
Apenas se podendo revelar útil para a boa decisão da causa os factos alegados sobre a situação económica do arguido, ainda assim, na medida da prova sobre os crimes imputados.
Nesta parte o Tribunal considerou provados factos extraídos da contestação relativos à situação pessoal e económica do arguido nas alíneas UU), XX), ZZ) AAA) BBB) e não provado s) relativamente ao alegado comportamento do Tenente Bengala para com o arguido, este último em rigor desnecessário.
Depois o recorrente nos artigos 49º a 107º invoca factos relativos aos crimes de falsificação de documento e de extorsão que lhe são imputados de que são ofendidos DD, EE e FF no sentido de os negar (para além de tecer algumas considerações jurídicas).
Nem todos os factos imputados neste domínio foram considerados provados, sendo nessa parte manifesta a irrelevância para a boa decisão da causa do relato efectuado, sendo certo que na parte em que ocorreu prova positiva dos factos, irrelevante seria consignar que não se provou a versão do arguido, simplesmente porque a prova positiva exclui a prova negativa.
Nos artigos 108º a 159º da contestação o recorrente alega factos relativos a crime de corrupção passiva e a crime de extorsão atinentes a episódios em que intervém GG, pormenorizando factos relativos à forma como conheceu GG e o co-arguido no crime de extorsão e ao relacionamento que entre eles ocorreu, alegações dirigidas à negação da prática desses crimes.
Também neste caso manifesta é a irrelevância para a decisão da causa das circunstâncias em que o arguido conheceu tais pessoas, tanto mais que a versão da acusação não foi objecto de prova positiva.
Nos artigos 160º a 175º o recorrente alegou factos tendentes a negar a prática do imputado crime de auxílio à emigração ilegal, pormenorizando como agia na firma " V........... e a forma como eram arrendados apartamentos e contratadas cidadãs brasileiras para prestar serviços de limpeza, sempre no sentido de negar os factos, ou seja, contrapondo o seu desconhecimento de que se encontravam ilegais.
Tendo-se provado o conhecimento por parte do arguido de que as pessoas envolvidas nos arrendamentos e que foram contratadas para limpezas [se] encontravam irregularmente em Portugal, despiciendo seria consignar como não provados os factos contrários, como acima se acentuou quanto aos factos negativos.
Finalmente nos artigos 176º a 238º o recorrente alega factos no sentido de negar a prática do crime de violação imputado que atribui a circunstâncias persecutórias, historiando circunstâncias da vida da ofendida, a relação entre a sua família e a da ofendida, as circunstâncias que o levaram no dia dos factos a deslocar-se ao snack-bar da ofendida, pessoas que encontrou imediatamente antes de depois, pessoa que o acompanhou, os pormenores da conversa com a ofendida antes de entrar e depois de entrar no bar (solicitação do pagamento de uma dívida de 2 meses de renda do estabelecimento) a sua saída e passos que deu posteriormente, novo encontro com a ofendida no mesmo dia para receber o pagamento das rendas, a conversa tida a esse propósito, a existência de dívida da ofendida e do marido, fiscalização do estabelecimento pela GNR em 15 de Maio de 2007 e outros acontecimentos posteriores, nomeadamente pondo em causa a actuação do Tenente Bengala que associa à invenção da história da violação por parte da ofendida.
Em suma, os factos alegados pelo arguido sobre os acontecimentos do dia da violação tem significado apenas instrumental no sentido de demonstrar a sua tese de não cometimento do crime, nomeadamente no que concerne à pormenorização das horas e das pessoas que encontrou bem como da pessoa que o acompanhou.
Tendo o tribunal considerado provados os factos relativos a tal crime que constavam da acusação, a prova positiva ou negativa desses factos nenhuma influência poderia ter na resposta às questões em causa e, por consequência, não tinham que constar do acórdão recorrido, como efectivamente não constam.
Concluindo, ou porque irrelevantes, ou porque em contradição com os factos provados, os factos em causa não tinham que ser elencados nos factos provados ou não provados do acórdão recorrido, não se vislumbrando por isso que tenha sido cometida a nulidade alegada, sendo certo que o recorrente não empregou qualquer esforço argumentativo no sentido de alegar que factos eram, em concreto, na sua perspectiva, relevantes e porque o eram».

Não tem, pois, qualquer suporte legal ou factual a conclusão de que o acórdão recorrido omitiu pronúncia sobre a alegada nulidade do acórdão da 1ª instância.
Consequentemente, improcede a arguida nulidade.

Nota-se, porém, que, no corpo da motivação, o Recorrente não ataca o acórdão recorrido por essa via. Pelo menos em termos substantivos.
Com efeito, depois de recordar a motivação do recurso para a Relação, o Arguido passa à “Análise da fundamentação do acórdão recorrido” (o da Relação), onde proclama que dela discorda por assentar em pressuposto que reputa de erróneo, onde afirma que o Tribunal da Relação não pode substituir-se à 1ª instância na decisão sobre a relevância ou irrelevância dos factos para a justa decisão da causa, sob pena de lhe retirar o direito de recurso dessa decisão, e onde conclui que o conjunto normativo formado pelos arts. 368º, nº 2, 369º e 374º, nº 2, todos do CPP, na interpretação que entende ter-lhe sido dado pela Relação é inconstitucional, por ofensa, «entre outros», do artº 32º, nº 1, da CRP.
Por aqui se vê que é o julgamento feito pela Relação que realmente pretende impugnar e não a falta dele.
De facto, se se discorda da fundamentação da decisão que recaiu sobre determinada questão ou se se reputa de inconstitucional um conjunto normativo que se entende aplicado em determinado sentido, é porque o tribunal… se pronunciou sobre essa questão.
Então, não pode alegar-se ter havido omissão de pronúncia sobre a mesma.
Por outro lado, a invocação do artº 374º nº 2, a propósito do acórdão da Relação, não se mostra, no caso, pertinente.
Nos termos do nº 4 do artº 425º, é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, a norma do artº 379º que, por sua vez, na alínea a) do seu nº 1, declara nula a sentença que não contiver as menções referidas no artº 374º, nº 2.
Reza este preceito que, «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal»
Como vem sendo pacificamente entendido por este Tribunal, a norma do nº 2 artº 374º, quando aplicada aos referidos acórdãos, não tem aplicação em toda a sua extensão, desde logo porque, recaindo sobre uma anterior decisão e não contendo um novo julgamento, há menções que perdem razão de ser. Basta pensar num acórdão confirmatório da decisão sobre a matéria de facto para ver que não haverá lugar ao exame crítico das provas.
Ora, cotejando o acórdão recorrido com o citado normativo, não podemos deixar de concluir que dele constam as menções por ele exigidas: porque não alterou a decisão de facto, reproduziu a tirada pelo Tribunal do Júri; está suficientemente fundamentado, de facto e de direito; relativamente à pretendida omissão de pronúncia, analisou de forma completa a contestação, por referência ao conjunto de factos relacionados com cada um dos crimes de que o Arguido ia acusado, e fundamentou a decisão que tirou.
Também por esta via não vislumbramos que o acórdão recorrido padeça de nulidade.

Como acima dissemos, o que o Recorrente materialmente parece ter pretendido impugnar foi o julgamento da Relação sobre a nulidade que perante ela arguiu, apontada ao acórdão da 1ª instância, por ter omitido o «extenso rol de factos» que arrolou na contestação.
A parte do acórdão que recaiu sobre essa questão e que atrás transcrevemos é muito clara quanto às razões por que refutou essa conclusão.
Embora sejam as conclusões da motivação que fixam o objecto do recurso – artº 412º, nº 1, do CPP – entendemos dever apreciar o recurso também naquela perspectiva, suprindo assim a falta do pedido de esclarecimento que o seu confronto com o corpo da motivação exigia (cfr. artº 417º, nº 3, do CPP).
Vejamos, então.
Se o tribunal de julgamento avançar para a decisão do mérito, manda o artº 368º, nº 2 do CPP que o presidente enumere discriminada e especificadamente e submeta a deliberação e votação os factos alegados pela defesa (a hipótese que nos interessa) relevantes para a decisão.
E o artº 372º estatui que, concluída a deliberação e votação, é elaborada a sentença de acordo com as posições que fizeram vencimento, a qual, nos termos do nº 2 do artº 374º deve conter, além do mais, a enumeração dos factos que ficaram provados e dos que foram julgados não provados.
Em parte alguma se exige, designadamente neste conjunto de normas, que o tribunal arrume em um qualquer capítulo da sentença os factos alegados irrelevantes para a decisão da causa, as eventuais considerações factuais ou jurídicas tecidas pelo arguido a propósito da acusação, ou mesmo os factos que estão em contradição com os que ficaram provados: a prova do facto positivo corresponde à não prova do correspondente facto negativo.
O simples confronto da sentença com a contestação permite sindicar o cumprimento daqueles preceitos, designadamente o do nº 2 do artº 368º.
E nem por isso o arguido vê limitado o seu direito de defesa. Quando entender ter sido violado o dever de apreciação dos factos da contestação relevantes para a decisão da causa, tem ao seu dispor o direito ao recurso.
Mas o recurso, ainda que se limite à arguição da nulidade por omissão de pronúncia sobre a contestação ou parte dela, tem de ser motivado, nos termos do artº 412º: o recorrente tem de apresentar as razões da sua arguição, o que implica a indicação dos factos que julga relevantes para a decisão da causa, acompanhada da demonstração da sua relevância.
O Recorrente não só não cumpriu esse ónus como agora afirma que não tinha de o cumprir. Apesar disso, o acórdão recorrido conheceu do recurso e, com os fundamentos conhecidos, negando ter sido cometida a nulidade arguida, tem implícito o juízo de que foram ponderados os factos relevantes.
Esse julgamento não nos merece formalmente reparo.
Alega ainda o Recorrente que o Tribunal da Relação não pode substituir-se à primeira instância na decisão sobre a relevância ou irrelevância dos factos para a justa decisão da causa, sob pena de retirar ao Arguido o direito de recorrer dessa decisão.
O argumento, porém, não procede.
O Tribunal da Relação não se substituiu ao Tribunal do Júri nessa tarefa. Confirmou, isso sim, em recurso interposto pelo Arguido, o julgamento deste. O direito ao recurso, como se vê, não foi retirado nem limitado. De qualquer modo, sempre se dirá que, no caso de impugnação da sentença por omissão de pronúncia, sendo o recurso interposto para o tribunal da relação, o respectivo julgamento realiza-se, em princípio, segundo o modelo de substituição, nos termos do artº 715º do CPC. Não foi esse o caso, porém, porque o Tribunal da Relação não confirmou a nulidade arguida.

Finalmente, quanto à inconstitucionalidade invocada, julgamos já ter dito o necessário para evidenciar a sua improcedência.
De facto, e repetindo-nos, a parte da fundamentação do acórdão recorrido aqui em causa de modo algum indicia que o Tribunal a quo interpretou os textos legais aplicados com o sentido radical que o Recorrente lhe atribui. O que da decisão muito claramente resulta é, no essencial, que o Tribunal entendeu que só os factos relevantes para a decisão da causa são objecto de escrutínio e só esses, enquanto provados ou não provados, têm de ser mencionados na sentença. Porque irrelevantes, entendeu ainda o Tribunal, não terem de ser ali arrolados os factos negativos contrários a outros julgados provados.
Por outro lado, o ónus de o recorrente ter de motivar o seu recurso – no caso, de ter de explicar as razões por que entende que factos desconsiderados, por não constarem da sentença como provados ou não provados, são relevantes para a decisão da causa – decorre directamente dos artº 412º e 417º nº 3 cuja conformidade com a Constituição, designadamente com as garantias de defesa consagradas no seu artº 32º, não pode seriamente ser posta em causa.
Também nesta parte o recurso não procede

2.3.3. Da medida da pena conjunta
O Senhor Procurador-geral Adjunto do Tribunal da Relação entende que, nesta parte, o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência por não «enunciar quaisquer fundamentos sérios, atendíveis e consequentes».
O seu Colega deste Tribunal não foi tão radical. Concluiu pela improcedência do recurso, por a pena conjunta se mostrar ajustada.

O Recorrente alega, em síntese, que, não devendo o julgamento ser anulado ou o Arguido ser absolvido de todos os crimes, então a pena conjunta não só não devia ter sido agravada, por não existir razão válida que o justifique, como até deve ser fixada em quantum muito inferior aos 8 anos decretados pela 1ª instância. «De acordo com os critérios estabelecidos pelo artº 71º do Código Penal e considerando os factos provados quanto às suas condições pessoais, sociais e económicas, com relevo particular para a sua desvinculação da GNR, naquela eventualidade, a pena nunca deverá exceder os quatro anos e seis meses», conclui.

É verdade que a fundamentação do recurso quanto à medida da pena conjunta se queda em generalidades. No entanto, a invocação das condições pessoais, sociais e económicas bem como a saída da GNR, relevantes que são, e efectivamente foram, para a determinação pelas instâncias, tanto das penas parcelares como da pena única, não autoriza a rejeição do recurso por manifesta improcedência.

No caso de concurso de crimes, o arguido é condenado numa pena única.
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo, no entanto, ultrapassar os 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.
Na medida concreta da pena única, para além das exigências gerais da culpa e da prevenção, tal como previsto no artº 71º, são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Esta a doutrina consagrada no artº 77º do CPenal.
No caso sub judice, a pena aplicável ao concurso de crimes por que o arguido foi condenado é a de 4 anos (a pena cominada ao crime de violação, a mais grave das penas parcelares sofridas pelo Arguido) a 17 anos e 9 meses de prisão (correspondente à soma de todas as penas parcelares).
O Tribunal do Júri fixou a pena em 8 anos de prisão, atendendo, por um lado, à «elevada dimensão» do grau de culpa, à «acentuada gravidade» da ilicitude, às fortes exigências de prevenção, ao facto de o Arguido poder contar com o apoio da família – circunstância que facilitará a sua futura reinserção social – e ao diminuto relevo da ausência de antecedentes criminais. Considerou, por outro lado, a sua personalidade, evidenciada no conjunto dos factos, onde «avulta o desrespeito pelas regras da sociedade e, sobretudo, pela instituição em que se achava inserido e pelas funções que lhe foram confiadas – sem olvidar a soberba com que tratou os seus semelhantes que claramente encara como objectos para a satisfação dos seus interesses».
No recurso interposto desse acórdão, o Ministério Público pediu, a par da agravação das penas referentes a cada um dos crimes de abuso de poder, a agravação da pena conjunta para 12 anos e 9 meses de prisão.
O Tribunal da Relação julgou improcedente a primeira pretensão e parcialmente procedente a segunda, fixando a pena em 9 anos de prisão que justificou nos seguintes termos:
«…
Este preceito legal [o artº 77º, nº 1, do CPenal] determina que "na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a determinação da pena a aplicar em cúmulo jurídico exige uma ponderação conjunta dos factos, com avaliação dos bens jurídicos ofendidos e da intensidade das ofensas realizadas em concreto e em que medida indicam uma personalidade desfasada do respeito por tais valores.
Nessa perspectiva valorativa que não se confunde com a avaliação de um acto isolado, verificamos, como foi salientado no acórdão recorrido, que o arguido empreendeu conduta de violação sistemática de valores que profissionalmente devia defender, desvirtuando a imagem de autoridade pública em que se encontrava investido de forma persistente e continuada. Por outro lado, a sua actividade criminosa não se ficou pelos delitos ligados à sua actividade profissional e que esta propiciou, registando-se ainda a prática de um crime de violação que se situa numa dimensão de ofensa de bem pessoal de gravidade acentuada. E a co-existência deste crime demonstra uma dimensão mais acentuada das exigências globais de prevenção especial na medida em que indicam uma mais generalizada indiferença ao direito que o previsível fim do exercício da actividade profissional que propiciou a prática dos restantes crimes não pode atenuar.
Embora sejam estes os critérios a objectivar, que não se podem moldar em fórmulas matemáticas, tendemos a concordar com o recorrente no sentido de também afirmarmos que o conjunto dos factos e a personalidade que reflectem, exigem a aplicação de pena de maior dimensão, entendendo como ajustada a pena de nove anos de prisão…».

Reflectindo sobre os factos praticados pelo Arguido, constatamos o seguinte:
- os factos integradores dos crimes de falsificação e de coacção grave, que ocorreram em fins de 2004 e entre o início de 2005 e Julho de 2007, inscrevem-se todos eles no propósito de obter o pagamento do empréstimo, empolado, é certo, concedido a DD;
- Os factos concretizadores dos crimes de auxílio à imigração ilegal e de abuso de poder, praticados entre o Verão de 2006 e Junho de 2007, são complementares entre si e destinaram-se a criar às cinco cidadãs brasileiras com permanência irregular no País «as condições básicas e necessárias para que conseguissem permanecer em Portugal». Procurou ainda explorar lucrativamente, em seu proveito, essa situação de permanência ilegal relativamente às três que contratou para a execução de serviços de limpeza dos apartamentos a seu cargo.
- Pelo meio, mais concretamente em Maio de 2007, praticou o crime de violação que, na economia da decisão sobre a matéria de facto, surge sem qualquer ligação com os anteriores.

Não cremos, assim, que os factos provados permitam concluir, como concluiu o acórdão recorrido, que o Arguido «empreendeu conduta de violação sistemática de valores que profissionalmente devia defender» (sublinhamos). Desvirtuou, sem dúvida, como ali também se refere, «a imagem de autoridade pública em que se encontrava investido», mas apenas, ao que nos informa o processo, em relação à situação concreta daquelas cinco cidadãs brasileiras. Não consta, com efeito, que se tenha valido das suas funções para praticar os crimes de coacção e de violação. E, se o crime de falsificação foi por elas facilitado, não vemos que as tivesse usado para atingir os objectivos que através dele se propôs.
Não descortinamos, de resto, qualquer conexão entre as três diferenciadas condutas criminosas do Arguido nem vemos que o conjunto dos factos seja reconduzível a qualquer tendência ou carreira criminosa. A situação configura, em nosso entender, um caso de “pluriocasionalidade”, ainda assim limitada, no essencial, a três condutas criminosas, desgarradas entre si.
Também não encontramos na decisão sobre a matéria de facto apoio para a conclusão desvaliosa de que o Arguido tratou «com soberba os seus semelhantes que claramente encara como objectos para satisfação dos seus interesses». Se, no caso da violação, se poderá falar em sentimentos empedernidos, em elevada insensibilidade perante os rogos e choros da sua vítima – o que, de certo modo, até já está compreendido no tipo legal –, já no caso do «auxílio» às cidadãs brasileiras em situação de permanência irregular, nos parece não justificada a asserção. Apesar de aí se poder dizer que agiu com o intuito de obter lucros ilícitos e eticamente reprováveis, na medida em que se locupletou com as importâncias que, numa actuação legal, teria de desembolsar para pagar as correspondentes contribuições para a Segurança Social e os prémios de seguro, assim as privando das prestações sociais a que cada trabalhador tem direito, nem por isso se pode falar em «soberba» e em «objectos», tanto mais que não está demonstrado que as tenha explorado económica e/ou socialmente enquanto inquilinas ou como prestadoras de serviços de limpeza. Quanto aos crimes de coacção o problema nem sequer se coloca.
Nesta conformidade, considerando, por outro lado, que o Arguido era, à data dos factos, soldado da GNR e que, por esse motivo, o seu comportamento global se revela muito desvalioso, além de, naturalmente, ter causado forte alarme social, e que mostrou não ter assumido «qualquer desvalor das suas condutas» (facto provado da alínea BBB) – o que exige algum rigor, quando apreciadas as exigências de prevenção especial, muito embora, esteja afastada a possibilidade de reincidência em relação aos crimes facilitados ou praticados por ser soldado da GNR, por entretanto, ter abandonado a corporação, entendemos que a pluralidade de crimes praticados não assume, no caso, especial efeito agravativo. Daí que julguemos mais adequada à conduta conjunta do Arguido a pena única de 7 (sete) anos de prisão
Nesta parte, o recurso procede parcialmente.
3. Em conformidade com o exposto, acordamos em:
3.1. rejeirar o recurso na parte que incide sobre os crimes integrantes do concurso e as correspondentes penas parcelares,
3.2. julgá-lo improcedente quanto às alegadas incompetência do Tribunal do Júri e nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;
3.3. julgá-lo parcialmente procedente quanto à medida da pena conjunta, que fixamos em 7 (sete) anos de prisão;
3.4. Confirmar, no mais, o acórdão recorrido
Sem custas (artº 514º, nº 1, do CPP)

Lisboa, 12 de Novembro de 2009

Sousa Fonte (Relator)
Santos Cabral