Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
657/22.1JAVRL-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
RECURSO
INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 10/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A prisão preventiva está sujeita aos prazos de duração máxima prevista no artigo 215.º do CPP, a contar do seu início, findos os quais se extingue, devendo o arguido ser posto em liberdade.
II. Tendo em consideração os crimes por que o peticionante se encontra acusado – em que se inclui o crime de associação criminosa (artigo 299.º, n.º 2, do Código Penal), que se compreende no conceito de criminalidade altamente organizada, na aceção da al. m) do artigo 1.º do CPP –, a prisão preventiva extinguir-se-ia decorridos dez meses ou um ano e seis meses, sobre aquela data, sem ser proferida decisão instrutória ou sem haver condenação em 1.ª instância (artigo 215.º, n.º 1, al. b) e c), e n.º 2, do CPP); tendo sido declarada a especial complexidade do processo, estes prazos elevam-se para um ano e quatro meses e dois anos e seis meses, respetivamente (artigo 215.º, n.º 3, do CPP).
III. Deduzida acusação, a ela não se seguiu a fase de instrução, que deveria terminar com a decisão instrutória dentro de um ano e quatro meses; o processo, rejeitada a abertura de instrução, seguiu imediatamente para a fase de julgamento, passando, pois, a ser de observar o prazo limite de duração da prisão preventiva de dois anos e seis meses.
IV. A circunstância de, em cumprimento do acórdão da Relação que revogou a decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução, o processo ter regressado à fase de instrução, anterior à fase do julgamento em que na ocasião se encontrava, não determina o renascimento de um prazo já ultrapassado e durante o qual o ato relevante (decisão instrutória) não poderia já ser praticado.
V. A coerência ou congruência dos atos do processo e a unidade do prazo da medida de coação não suportariam uma tal ideia de retroatividade fulminadora de destruição da validade de atos regularmente praticados com implicações de ilegalidade da privação da liberdade que, entretanto, se subordinou legalmente a um prazo cuja duração máxima se elevou por virtude da passagem à fase processual seguinte, de que a condenação passou a constituir novo termo final.
VI. Como se tem afirmado em jurisprudência constante, de acordo com um princípio de unidade processual do prazo das medidas de coação, este é um prazo contínuo e único num mesmo processo, a contar da data da aplicação da prisão preventiva, que se dilata («eleva», na terminologia da lei) à medida que o processo passa à fase seguinte, praticados os atos processuais que a lei impõe como condição dessa ampliação; mesmo que o processo tenha de regressar a fase anterior (de instrução), o termo do prazo a observar é o que a lei impõe pela passagem do processo à fase seguinte (do julgamento).
VII. Mostra-se, assim, que a prisão se mantém atualmente dentro deste prazo fixado por lei, estando ainda longe de ser atingido o respetivo termo, pelo que não se verifica o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido com identificação nos autos, preso preventivamente, alegando encontrar-se atualmente em prisão ilegal, apresenta petição de habeas corpus, subscrita por advogado, nos seguintes termos:

«1.º - O Requerente foi detido em dia que agora não se consegue precisar, mas em Fevereiro de 2023 tendo sido sujeito à medida de coação de Prisão Preventiva, estando sujeito a tal medida de coação de forma ininterrupta até à presente data.

2.º - Nos autos foi decretada a extrema complexidade dos mesmos.

3.º - O Processo encontra-se agora em fase de instrução.

4.º - O prazo máximo de Prisão preventiva de acordo com a al. b) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 215.º do CPP é de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória.

5.º - Sem grandes matemáticas o prazo máximo de prisão preventiva a que pode o arguido estar sujeito era até Junho do presente ano.

6.º - Mas mantendo-se o arguido ainda detido preventivamente de forma ininterrupta desde Fevereiro de 2023 até à presente data.

7.º - Sendo assim neste momento manifestamente ilegal a sua prisão, impondo-se a sua imediata restituição à liberdade.

Pelo que

Em conclusão:

a) O Requerente foi detido em Fevereiro de 2023 tendo sido sujeito à medida de coação de Prisão Preventiva, estando sujeito a tal medida de coação de forma ininterrupta até à presente data.

b) Nos autos foi decretada a extrema complexidade dos mesmos e o Processo encontra-se agora em fase de instrução.

c) O prazo máximo de Prisão preventiva de acordo com a al. b) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 215.º do CPP é de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória.

d) O prazo máximo de prisão preventiva a que pode o arguido estar sujeito era até Junho do presente ano, mas mantendo-se detido preventivamente de forma ininterrupta desde Fevereiro de 2023 até à presente data.

e) Sendo assim neste momento manifestamente ilegal a sua prisão, impondo-se a sua imediata restituição à liberdade.

Termos em que se requer a V. Exas seja o presente pedido concedido, com as legais consequências, determinando-se a imediata libertação de AA.»

2. Da informação prestada pelo Senhor Juiz de instrução criminal, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, CPP, sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a prisão, consta o seguinte (transcrição):

«1 – Por despacho judicial datado de 23 de fevereiro de 2023, foi aplicada ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva (cfr. fls. 1030 a 1056).

2 – Tal estatuto processual coativo veio a ser renovado e mantido integralmente (cfr. fls. 1200, 1556, 1910, 2446).

3 - Em 21 de fevereiro de 2024, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos BB, CC, DD, EE, FF, AA, GG, HH e II, imputando, além do mais, ao arguido AA, juntamente com os arguidos JJ, BB, EE, FF, HH e II, a prática de um crime de associação criminosa, previsto e punível pelos artigos 26.º e 299.º, n.º 2 e 5 do Código Penal, um crime de branqueamento de capitais, previsto e punível pelos artigos 26.º, 368.º-A, n.º 1, alíneas b), c) e d), n.º 2 e n.º 3 (na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, em vigor à data dos factos), tendo por base os crimes, previstos e puníveis pelos artigos 299.º, n.º 1, n.º 3 e n.º 5 e 221.º, n.º 1 e n.º 5, alínea b) do Código Penal e, ainda, os artigos 2.º, alínea a) e 3.º, n.º 1 a 3 da Lei do Cibercrime, na redação da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, um crime de falsidade informática, previsto e punível pelos artigos 26º do Código Penal e 2º, alíneas a) e b) e 3º, n.º 1 a 3 da Lei do Cibercrime, na redação da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e um crime de burla informática, previsto e punível pelos artigos 26.º e 221.º, n.º 1 e n.º 5, alínea b), ex vi artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal, nos termos constantes da acusação de fls. 2382 verso a 2438, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4 – Por despacho datado de 27 de julho de 2023, foi declarada a especial complexidade dos autos (cfr. fls. 1470).

5 – O arguido GG apresentou um requerimento de abertura de instrução, o qual veio a ser rejeitado em 20 de maio de 2024 (cfr. fls. 2758 a 2762).

6 – Inconformado, o arguido GG interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que revogou o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução, por douto acórdão datado de 26 de setembro de 2024 (cfr. referência ......49 dos autos principais).

7 – Atualmente, mantém-se a execução da medida de coação de prisão preventiva imposta ao arguido AA, conforme o despacho constante da referência .....31 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


*


Para instruir o presente translado, extraía certidão das folhas 1030 a 1056, 1200, 1470, 1556, 1910, 2446, 2382 a 2438, 2758 a 2762, acórdão constante da referência 40533049 dos autos principais e despacho constante da referência .....31 dos autos principais.

Remeta-se de imediato a petição de “habeas corpus”, acompanhada da presente informação e da aludida certidão ao Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para os devidos efeitos.»

3. O processo veio instruído com a seguinte documentação, referente:

a. Ao auto de interrogatório de arguido detido, iniciado no dia 23 de fevereiro de 2023 e concluído no dia seguinte, 24 de fevereiro de 2023 (cfr. certidão junta, fls. 1032 do processo principal);

b. Ao despacho de aplicação da medida de prisão preventiva, que ocorreu no dia 24 de fevereiro de 2023, na sequência do interrogatório judicial iniciado no dia anterior (por lapso manifesto, consignou-se em despachos subsequentes de manutenção da prisão preventiva que a aplicação desta ocorreu a 24.3.2023 e a 23.2.2023 – cfr. certidão junta, fls. 1053-1054, 1200, 1556-A e 2446v.º do processo principal);

c. Ao despacho de 27.7.2023, que declarou a especial complexidade do processo – certidão junta, fls. 1470-1471 do processo principal (ref. Citius .....02);

d. Ao despacho de acusação, proferido a 21 de fevereiro de 2024 – certidão junta, fls. 2382-2438 do processo principal (ref. Citius .......73);

e. Ao requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pelo arguido GG e ao despacho de 20 de maio de 2024 que o rejeitou – certidão junta, fls. 2758-2762 do processo principal (ref. Citius .....18);

f. Ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de setembro de 2024, que revogou o despacho de rejeição do RAI e determinou que fosse substituído por outro que o admitisse e declarasse aberta a instrução – fls. 62 a 93 da certidão junta (ref. Citius ......97 do processo principal);

g. Ao despacho de 8.10.2024 do juiz de instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal que, em cumprimento do ordenado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, admitiu o RAI do arguido GG, declarou aberta a fase de instrução, apreciou a situação de prisão preventiva dos arguidos que se encontram nessa situação, incluindo a do agora requerente, e designou o dia 5 de novembro de 2024 para interrogatório, seguido de realização de debate instrutório – fls 94-95 da certidão junta (ref. Citius .....31).

4. Por determinação do relator foram extraídas e juntas cópias dos seguintes atos do processo principal:

a. Do despacho de 20.5.2024, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução do arguido GG (ref. Citius .....18), e ordenou a remessa do processo para julgamento, nos seguintes termos: «Dada a natureza urgente do processo, remeta os autos para julgamento de imediato, ao Juízo Central Criminal de Lisboa, fase em que poderá ser dada continuidade à tramitação de constituição de assistentes e admitido qualquer recurso que venha a ser interposto da presente decisão, o qual, em qualquer caso, terá efeito meramente devolutivo nos termos da lei. Notifique.»;

b. Do termo de 28.5.2024 do qual consta que o processo foi remetido ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Criminal - Núcleo de ..., para julgamento («finalidade: Distribuição») – ref. Citius .....18;

c. Do despacho de saneamento do processo, de 18.6.2024, nos termos do artigo 311.º do CPP, e que ordenou a notificação dos arguidos, nos termos do artigo 311.º-A do CPP, para apresentação de contestação (ref. Citius .......26);

d. Da notificação deste despacho, por via postal, com a data de 19.06.2024, ao mandatário do arguido AA (ref. Citius ........08);

e. Do despacho do juiz presidente do tribunal de julgamento de 30.9.2024, que, face ao decidido no acórdão da Relação de Lisboa de 26.9.2024, ordenou a devolução do processo ao Tribunal Central de Instrução Criminal, para cumprimento do decidido, com realização da instrução (ref. Citius .......52).

5. Convocada a secção criminal e notificado o Ministério Público e o defensor, realizou-se a audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

A secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

6. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade (n.ºs 1 e 2), excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, em que se inclui a prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos [n.º 3, al. b)]. Como se tem afirmado em jurisprudência reiterada, a prisão é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional (por todos, o acórdão de 4.6.2024, Proc. n.º 1/22.8KRPRT-K.S1, em www.dgsi.pt).

A prisão preventiva, de natureza excecional, só pode ser aplicada por um juiz, que, em despacho fundamentado, verifica a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, que a justificam (artigos 193.º, 194.º, n.ºs 1 e 5, e 202.º do CPP).

7. A prisão preventiva está sujeita aos prazos de duração máxima previstos no artigo 215.º do CPP, a contar do seu início, findos os quais se extingue, devendo o arguido ser posto em liberdade (artigo 217.º, n.º 1, do CPP).

Encontrando-se o processo em fase de inquérito, o prazo é de quatro meses até à dedução de acusação [artigo 215.º, n.º 1, al. a)]. Sendo deduzida acusação, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória e um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância.

Estes prazos são elevados, respetivamente, para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 215.º do CPP, em que, entre outros, se incluem terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime de furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos, de falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equipamentos ou da respetiva passagem, e de contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, previstos nos artigos 3.º-A e 3.º-B da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, de burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio, de branqueamento de vantagens de proveniência ilícita.

Na definição da al. j) do artigo 1.º, os crimes que constituem criminalidade violenta incluem as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. Na definição da alínea m) do mesmo preceito, constituem criminalidade altamente organizada as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação económica em negócio ou branqueamento.

Quando o procedimento se revelar de especial complexidade, por qualquer destes crimes, os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses e dois anos e seis meses, devendo a complexidade ser declarada por despacho fundamentado do juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvido o arguido e o assistente (n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo 215.º).

8. As decisões relativas à aplicação e ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva – reexame que deve ter lugar no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame e quando no processo for proferido despacho de acusação [artigo 213.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP] – podem ser impugnadas por via de recurso ordinário, nos termos gerais (artigos 219.º, n.º 1, e 399.º e segs. do CPP), sem prejuízo de recurso à providência de habeas corpus contra abuso de poder por virtude de prisão ilegal (artigos 31.º da Constituição e 222.º a 224.º do CPP), com os fundamentos enumerados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

9. Os motivos de «ilegalidade da prisão», que constituem fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado em jurisprudência constante, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível e ordenada por entidade competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (assim, por todos, o citado acórdão de 4.6.2024).

O habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, com referência ao momento em que a petição é apreciada, como também tem sido reiteradamente sublinhado (assim, por todos, o mesmo acórdão, com abundante citação de jurisprudência).

10. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos documentos dos autos resulta esclarecido, em síntese, que:

a. O arguido AA foi submetido a primeiro interrogatório de arguido detido, no dia 23.02.2023, fortemente indiciado da prática de crimes burla informática (221, n.º 1 e n.º 5, al. b), do Código Penal), falsidade informática (art.º 3.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 109/2009) e branqueamento de capitais (art.º 368.º-A, n.ºs 1 a 3 do Código Penal) e um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, al. a), do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.

b. Em ato seguido ao primeiro interrogatório judicial, por despacho do juiz de instrução proferido no dia seguinte – 24.02.2023 –, o arguido ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva, com fundamento no disposto nos artigos 191.º a 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, als. a) e d), e 204.º, al. a) a c), do CPP.

c. Por despacho do juiz de instrução de 27.07.2023 foi declarada a especial complexidade do processo, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 215.º do CPP.

d. Em 21.02.2024, no final do inquérito, foi deduzida acusação pelo Ministério Público imputando ao arguido a prática de:

• Um crime de associação criminosa p. e p. pelos artigos 26.º e 299.º, n.º 2 e 5, do Código Penal;

• Um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26.º, 368-A, n.ºs 1, alíneas b), c) e d), n.º 2 e 3 (na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12;

• Um crime de falsidade informática, p. e p. pelos artigos 26.º do Código Penal, artigo 2.º, alíneas a) e b) e artigo 3.º, n.º 1 a 3 da Lei do Cibercrime, na redação da Lei n.º 109/2009, de 15/09;

• Um crime de burla informática, p. e p. pelos artigos 26.º e 221.º, n.º 1 e 5.º, alínea b), ex vi artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal.

e. Por despacho da juíza de instrução de 22.02.2024 foi reexaminada e mantida a prisão preventiva do arguido.

f. Em 03.05.2024, o arguido GG requereu a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP.

g. O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado por despacho da juíza de instrução de 20.05.2024.

h. Nesse mesmo despacho de 20.05.2024 foi ordenada a remessa do processo ao tribunal de julgamento (Juízo Central Criminal de Lisboa).

i. O processo foi remetido ao Juízo Central Criminal de Lisboa, para julgamento, em 28.05.2024.

j. Em 18.6.2024 foi proferido despacho de saneamento do processo, nos termos do artigo 311.º do CPP, e ordenada a notificação dos arguidos, nos termos do artigo 311.º-A do CPP, para apresentação de contestação (notificação postal efetuada ao arguido AA, na pessoa do seu advogado, com a data de 19.06.2024).

k. Em 26.06.2024, o arguido GG interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho que não admitiu o requerimento de abertura de instrução.

l. O recurso foi admitido por despacho de 28.06.2024 com subida em separado, imediatamente e com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alínea b), 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1, 408.º a contrario, e 411.º, n.º 1, do CPP.

m. Por acórdão de 26.9.2024, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido GG e determinou que esse despacho fosse substituído por outro que o admitisse e declarasse aberta a instrução.

n. Por despacho do juiz presidente do tribunal de julgamento de 30.9.2024, face ao decidido no acórdão da Relação de Lisboa, foi ordenada a devolução do processo ao Tribunal Central de Instrução Criminal, para cumprimento do decidido, com realização da instrução.

o. Por despacho de 8.10.2024 o juiz de instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal, em cumprimento do ordenado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, admitiu o RAI do arguido GG, declarou aberta a fase de instrução, apreciou a situação de prisão preventiva dos arguidos que se encontram nessa situação, incluindo a do agora requerente, e designou o dia 5.11.2024 para interrogatório, seguido de realização de debate instrutório.

11. Perante o alegado pelo requerente, que convoca fundamento que se inscreve na previsão da al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, há que verificar se ocorre excesso do prazo da prisão preventiva.

12. Como se viu, a prisão preventiva iniciou-se com a sua aplicação, no dia 24 de fevereiro de 2023.

Tendo em consideração os crimes por que o requente se encontra acusado – de associação criminosa, da previsão do artigo 299.º, n.º 2, do Código Penal, que se compreende no conceito de criminalidade altamente organizada, na aceção da al. m) do artigo 1.º do CPP; de branqueamento, a que corresponde a pena de prisão até 12 anos; e de burla informática, a que corresponde a pena de 2 a 8 anos de prisão – a prisão preventiva extinguir-se-ia decorridos dez meses ou um ano e seis meses, sobre aquela data, sem ser proferida decisão instrutória ou sem haver condenação em 1.ª instância (artigo 215.º, n.º 1, al. b) e c), e n.º 2, do CPP – supra, 7).

Tendo sido declarada a especial complexidade do processo, estes prazos elevam-se para um ano e quatro meses e dois anos e seis meses, respetivamente (artigo 215.º, n.º 3, do CPP, id.).

Pelo que, na alegação do requerente, verificados estes pressupostos, tendo sido deduzida acusação, estando o processo na fase de instrução e não tendo havido decisão instrutória, excedido se mostraria o prazo máximo de prisão preventiva, de um ano e quatro meses, desde 24 de junho de 2024.

Porém, assim não sucede.

13. Com efeito, vista a tramitação do processo, não foi esta – inquérito, instrução e julgamento – a sequência observada.

Como se viu, deduzida acusação, a ela não se seguiu a fase de instrução, que deveria terminar com a decisão instrutória dentro de um ano e quatro meses. O processo, rejeitada a abertura de instrução, seguiu imediatamente para a fase de julgamento, passando, pois, a ser de observar o prazo limite de duração da prisão preventiva de dois anos e seis meses, imposto pelo artigo 215.º, n.ºs 1, al. c), 2 e 3, do CPP.

A circunstância de, por força e em cumprimento do acórdão da Relação, o processo ter regressado à fase de instrução, anterior à fase do julgamento em que na ocasião se encontrava – o que, nota-se, ocorreu já depois de ter terminado o referido prazo de um ano e quatro meses em que teria de ser proferida a decisão instrutória se a instrução tivesse tido lugar antes do envio do processo para julgamento –, não determina o renascimento de um prazo já extinto e durante o qual o ato relevante (decisão instrutória) não poderia já ser praticado. A coerência ou congruência dos atos do processo e a unidade do prazo da medida de coação não suportariam uma tal ideia de retroatividade fulminadora de destruição da validade de atos regularmente praticados com implicações de ilegalidade da privação da liberdade que, entretanto, se subordinou legalmente a um prazo máximo que se elevou por virtude da passagem à fase processual seguinte, de que a condenação passou a constituir novo termo final.

Como se tem afirmado em jurisprudência constante, de acordo com um princípio de unidade processual do prazo das medidas de coação, este é um prazo contínuo e único num mesmo processo, a contar da data da aplicação da prisão preventiva, que se dilata («eleva», na terminologia da lei) à medida que o processo passa à fase seguinte, praticados os atos processuais que a lei impõe como condição dessa ampliação (neste sentido, de entre os mais recentes, os acórdãos de 12.12.2019, proc. 47/18.0PALGS-C.S1, de 6.7.2022, proc. 707/19.9PBFAR-G.S1, de 18.1.2024, proc. 262/22.2JELSB-B.S1, e de 20.6.2024, proc. 128/22.6GDSNT-N.S1, em www.dgsi.pt). Mesmo que o processo tenha de regressar a fase anterior, o termo do prazo a observar é o que a lei impõe pela passagem do processo à fase seguinte.

Nesta conformidade, o prazo a ter em conta, por virtude da elevação resultante dos n.ºs 2 e 3 do artigo 215.º do CPP, é, agora, de dois anos e seis meses a contar da data da aplicação da medida de prisão preventiva em 24 de fevereiro de 2023.

14. Mostra-se, assim, que a prisão se mantém atualmente dentro deste prazo fixado por lei, estando ainda longe de ser atingido o respetivo termo.

Pelo que não se verifica o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Acresce que a privação da liberdade, por aplicação da medida de prisão preventiva, foi ordenada por um juiz, que é a entidade competente, e foi motivada por facto pelo qual a lei a permite, não ocorrendo também, por conseguinte, qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

15. Termos em que se conclui pela improcedência do pedido, que se indefere por falta de fundamento bastante, nos termos do artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.

III. Decisão

16. Pelo exposto, acorda-se em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo arguido AA por falta de fundamento bastante.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 16 de outubro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Jorge Raposo

Carlos Campo Lobo

Nuno António Gonçalves