Autos de Recurso Penal
Proc. n.º 1063/19.0GCALM.L2.S1
5ª Secção
acórdão
Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I. relatório.
1. O Tribunal Colectivo do Juiz 5 do Juízo Central Criminal de Almada procedeu ao julgamento em audiência prevista no art.º 472º do Código de Processo Penal (CPP) do arguido AA, condenando-o, por acórdão de 28.5.2021, na pena única de prisão de 9 anos, em cumulação superveniente das seguintes sanções:
─ Penas decretadas neste PCC n.º 1063/19…, em acórdão transitado em 30.9.2020 e por factos praticados em 13.9.2019:
─ 3 anos de prisão, por um crime de furto qualificado, tentado, agravado pela reincidência, p. e p. pelos art.os 203º n.º 1 e 204º n.º 1 al.ª e), do Código Penal (CP); e
─ 3 anos e 3 meses de prisão, por um crime atentado à segurança de transporte rodoviário, agravado pela reincidência, p. e p. pelo art.º 290º do CP.
Penas estas cumuladas nos termos do art.º 77º do CP na pena única de 4 anos e 2 meses de prisão.
─ Penas decretadas no PCC n.º 81/15.... do Juiz ... do mesmo Juízo Central Criminal, por acórdão transitado em 6.1.2020, por factos praticados em 2016:
─ 3 anos de prisão, por cada um de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos art.os 203º e 204º n.os 1 al.ª e) e 2 al.as a), f) e g) do CP;
─ 3 anos de prisão, por cada um de quatro crimes de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art.º 368º-A n.os 1, 2 e e do CP;
─ 3 anos e 6 meses de prisão, por um crime de dano qualificado p. e p. pelo art.º 213º n.os 1 al.ª c) e 2 do CP; e
─ 3 anos e 8 meses de prisão, por um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. e p. pelo art.º 272º n.º 1 al.ª b) do CP.
Penas estas cumuladas nos termos do art.º 77º do CP na pena única de 5 anos e 10 meses de prisão.
2. Discordante desse acórdão – doravante, Acórdão Recorrido –, dele recorre o arguido – doravante Recorrente –, rematando a motivação com as seguintes conclusões e pedido:
─ «A
No âmbito do processo comum coletivo n.° 1063/19…, do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Criminal - Juiz 5, realizada a audiência de cúmulo jurídico a que se reporta o artigo 472.°, n.° 2, do C.P.P., foi proferido o acórdão, cujo dispositivo se transcreve:
"Pelo exposto, delibera o Tribunal Coletivo, relativamente ao arguido/ condenado AA, efetuando o cúmulo jurídico das penas aplicadas nestes autos e no processo 81/15…, fixar a pena única global de 9 anos de prisão, a que serão descontadas as penas já extintas pelo cumprimento, nos termos do disposto no artigo 78.°, n.° 1, do Código penal.".
B
No acórdão recorrido, após teorização sobre a dosimetria da pena conjunta, motiva-se a respetiva individualização, expendendo:
"Considerando a descrição dos factos objeto das condenações em concurso, maioritariamente crimes contra o património de idêntica natureza, a ilicitude assume intensidade significativa, sendo que da ponderação conjunta dos mesmos em sede de concurso resulta agravada a ilicitude, impondo-se, no entanto, não perder de vista, que a maior parte dos crimes em concurso foi praticada num período de tempo limitado.
Releva, a favor do arguido, o bom comportamento em meio prisional, a consciência crítica manifestada e o arrependimento expresso, o investimento na autovalorização e o apoio familiar.
Julga-se adequado, considerando os elementos supracitados e as elevadas exigências de prevenção especial, fixar a pena única global de 9 anos de prisão.".
C
É assim, evidente a parcimónia da fundamentação da decisão nesta parte, sem especificado reporte ao concreto circunstancialismo fático e da personalidade do arguido, sem que tenham sido expostos os motivos porque se chegou àquela medida concreta.
D
Dispõe o artigo 205.°, da Constituição da República Portuguesa, o artigo 71.°, do Código Penal, artigo 97.°, n.° 5 e artigo 375°, n.° 1 do Código de Processo Penal, bem como a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça entende impor-se "um dever especial de fundamentação na elaboração da pena conjunta, que se, por um lado, não pode reconduzir-se à vacuidade de fórmulas genéricas, tabelares e conclusivas, desprovidas de razões de facto, por outro, dispensa a excessividade da exposição (...)".
E
A explanação dos fundamentos, que a luz da culpa e prevenção conduzem o Tribunal à formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer rutura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido.
F
Os factos que permitam traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da personalidade do arguido devem constar da decisão de aplicação de pena conjunta, que deve conter a fundamentação necessária e suficiente para se justificar a si própria, sem carecer de qualquer recurso a um elemento externo só alcançável através de remissões.
G
Deste modo, a mera enunciação dos tipos legais em que incorreu o arguido/condenado nada fornece sobre os elementos necessários à determinação da pena única e quem lê a decisão cumulatória fica sem saber o como e o porquê da dimensão punitiva aplicada, não ficando minimamente demonstrada a relação de proporcionalidade, da justa medida, entre a pena conjunta fixada e a avaliação conjunta dos factos e da personalidade do condenado.
H
No Acórdão de 20/11/2013 do Supremo Tribunal de Justiça, disponível in www.dgsi.pt, sustenta-se que "a conceção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, de modo a evitar que a medida da pena do concurso surja como um ato intuitivo, da ultrapassada arte de julgar, puramente mecânico e, por isso, arbitrário.
Aliás estabelece o n.° 3, do art.° 71., do CP que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
A determinação da pena do cúmulo exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação dos factos e a personalidade do condenado, de molde a poder valorar-se o ilícito global perpetrado.".
I
Da análise da decisão recorrida verifica-se que, relativamente a esse cúmulo jurídico de penas omite-se inteiramente os factos que determinaram a condenação do recorrente em tais processos, nada se dizendo sobre as circunstâncias em que esses crimes foram praticados, a eventual ligação entre eles ou entre os restantes crimes cometidos pelo arguido, os contornos de cada um, a concreta ilicitude dos factos, a concreta postura do arguido quanto a eles.
J
A determinação da pena do concurso exige, pois, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados. Esses factos são aqueles que foram apurados e provados e que estiveram na base da condenação do arguido em cada uma das penas parcelares englobadas no cúmulo jurídico, "aí cabendo, conforme se salienta no Acórdão de 16 de Maio de 2015 do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.° 471/11.... disponível in www.dgsi.pt, a concreta conduta do agente, o seu modo de atuar, de agir, o dolo com que praticou os factos, a sua postura perante os mesmos, de arrependimento ou indiferença, de confissão ou negação, a motivação, resultados do crime, indemnização das vítimas, enfim, todo o circunstancialismo que, de algum modo, permita a dita avaliação que deve ser estabelecida entre todos os factos concorrentes".
K
Importa ainda salientar que a pena conjunta encontrada - 9 anos de prisão - tem como limites uma moldura legal que se situa entre os 3 anos e oito meses (pena parcelar concreta mais elevada) e os 25 anos e, sendo assim, importaria conhecer também as razões de direito que, em função das razões de prevenção geral e especial indicadas, levam àquela pena e não a uma outra.
L
Na verdade, tal determinação não pode ser um ato eivado de discricionariedade, mas tem de estar resplanada em razões de natureza lógico jurídico que permita a sua compreensão.
M
O Tribunal "a quo" não fundamentou devidamente a medida concreta da pena aplicada nos autos, ignorando a necessária conexão exigida entre os artigos 71.°, n.° 3 e 77.°, n.° 1 e 78.°, n.° 1, todos do Código Penal.
N
Omitindo ainda qualquer referência aos artigos 70.° e 71.° do Código Penal, não aludindo às finalidades de prevenção geral e especial que devem presidir à fixação da pena conjunta.
O
Perante isto, o acórdão "a quo" não demonstrou, fundamentadamente, que ponderou e avaliou o conjunto dos factos concretos praticados pelo arguido e a sua relação com a personalidade deste, nem tão pouco que sopesou as concretas necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso concreto, em particular estas últimas.
P
Na falta de tal fundamentação de facto e de direito, a decisão recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 379.°, n.° 1, al. a), do Código de Processo Penal.
Sem conceder,
Q
A condenação do arguido numa pena única decorre do disposto, conjugadamente, nos artigos 77.° e 78.°, ambos do Código Penal.
R
Nos termos do artigo 77.°, nºs. 1 e 2 do CP., para determinação da pena única a aplicar ao Arguido, deverá atender-se, conjuntamente, aos factos e à personalidade do mesmo, sendo que os limites da pena aplicável têm como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos.
S
Os fatores que o Tribunal "a quo" decidiu ponderar, em concatenação, para determinar a medida da pena a aplicar pareceram concentrar-se nos pontos mais desfavoráveis ao arguido, esquecendo alguns outros aspetos que militam claramente a favor do mesmo.
T
Do acórdão ora recorrido, conste que a maior parte dos crimes em concurso foi praticada num período de tempo limitado.
U
Relativamente à prevenção especial, o aqui recorrente entende que não foi devidamente valorizado o seu percurso em contexto prisional, porquanto há que ter em conta que o arguido desempenha atualmente, no estabelecimento prisional onde se encontra, atividade laboral de carácter regular, sendo de frisar também o seu investimento na melhoria das condições de empregabilidade para o futuro, através do aumento das habilitações académicas e qualificações profissionais, uma vez que frequenta a escola para conclusão do 12° ano de escolaridade.
V
É de considerar também que o arguido mostrou vontade da mudança e aderindo já ao apoio dos familiares e que apresenta uma atitude de autocrítica face às suas condutas que motivaram a presente situação jurídico-penal.
W
Todo este processo de reeducação que o arguido impôs a si próprio certamente o tornou menos permeável a influências, contextos ou oportunidades criminais.
X
No que diz respeito à ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva), há que atentar que o recorrente, uma vez em liberdade, poderá contar com apoio familiar da sua companheira, que tem vida estruturada, sendo que o arguido aparenta capacidade para avaliar as situações sociais em que se envolve e aptidões para conseguir atingir os objetivos a que se propõe caso se encontre em contexto socialmente estruturado.
Y
O arguido poderá, igualmente, contar com as novas competências académicas e profissionais que tem vindo a adquirir para estruturar devidamente a sua vida em sociedade.
Z
Logo, as perspetivas de ressocialização do condenado são, assim, muito positivas e assentam em fatores que indiciam que a mesma se dará com sucesso e sem percalços.
AA
Ao demonstrar arrependimento, o arguido revela sentido autocrítico e a assunção de responsabilidades pelos seus atos, o que demonstra que é, hoje em dia, um homem diferente.
AB
A autocrítica e a evolução psicossocial positiva acima referidas são provas de que as exigências de prevenção especial em relação a este caso concreto não são tão altas que justifiquem uma pena única de prisão tão elevada, sendo que uma pena de prisão em menor grau será certamente suficiente para que o arguido assimile a advertência que a condenação que sofreu implica.
AC
Para determinação da medida concreta da pena, há que atender, de acordo com o n.° 2, do artigo 71.°, do Código Penal, às circunstâncias do crime, nomeadamente à ilicitude e à gravidade das consequências do facto; a intensidade do dolo; os sentimentos manifestados pelo agente e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente; a personalidade do agente e a sua conduta anterior e posterior ao crime.
AD
Propondo-se o legislador sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto, em caso de cúmulo jurídico de infrações, é de concluir que o agente é punido pelos factos individualmente praticados, não como um mero somatório, em visão atomística, mas antes de forma mais elaborada, dando atenção àquele conjunto, numa dimensão penal nova, fornecendo o conjunto dos factos e a gravidade do ilícito global praticado, tendo-se em conta exigências gerais de culpa e de prevenção tanto geral, como de análise de efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
AE
Como se sumariou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 21/11/2012, "III. com a fixação da pena conjunta (se) pretende(-se) sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente."(Proc. 86/08…, disponível in www.dgsi.pt.).
AF
Sem esquecer, contudo, que a pena única também "deverá respeitar os princípios da proporcionalidade, ... necessidade, adequação e proibição do excesso." (Acórdão do STJ, de 25/03/2015, sumário publicado na C.J. acórdãos do STJ, tomo I, ano 2015.).
AH
Embora não se desconheçam as exigências de prevenção geral subjacentes ao tipo de ilícitos aqui em discussão, mas é notório que resulta claramente excessiva uma pena de prisão de 9 (nove) anos para que a prevenção geral adequada a este caso concreto opere na comunidade.
Al
Apesar da gravidade social dos crimes cometidos pelo recorrente, o mesmo cometeu apenas crimes contra o património e não contra a vida, não tendo os mesmos gerado um alarme social acima da média.
AJ
Uma pena de prisão demasiado longa não será certamente benéfica para a necessária ressocialização do condenado.
AK
Manter a inserção do arguido no sistema prisional por um período superior a 7 (sete) anos é manifestamente excessivo e desproporcional, dados os efeitos terrivelmente adversos que tal acarreta para o condenado.
AL
O Tribunal "a quo" deveria ter norteado a sua decisão à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação face aos factos e à personalidade do agente, o que manifestamente não fez, com isso violando as normas ínsitas no n.° 1 do artigo 77.° do Código Penal, bem como no n.° 1 do artigo 40.° do mesmo Código.
AM
O Tribunal "a quo" interpretou essas normas de forma errada, ao aplicar uma pena de prisão ao arguido em medida demasiado elevada, e, por conseguinte, desadequada em relação aos factos e à personalidade do agente em presença, bem como não acautelando devidamente a reintegração do agente na sociedade.
AN
As normas acima referidas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas de forma diferente, aplicando-se uma pena que não ultrapassasse a medida da gravidade dos factos e adequada à personalidade do agente, bem como às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.
AO
Na determinação da medida da pena, deveria o Tribunal "a quo" ter tido mais em atenção as condições pessoais do recorrente, nomeadamente todos os progressos que alcançou desde que se encontra preso, bem como o arrependimento demonstrado.
AP
No entendimento do recorrente e com o devido respeito por opinião diversa e sem descurar a gravidade dos fatos praticados por este, relativamente à avaliação da personalidade unitária do recorrente o conjunto de fatos praticados por este não é reconduzível a uma tendência criminosa.
AQ
Considerando os factos e a personalidade do agente, bem como as exigências de prevenção do caso, deverá ser aplicada ao arguido uma pena mais reduzida, respeitando-se aí também a própria reintegração do agente na sociedade e com isso respeitando-se as normas dos artigos 77.°, n.° 1 e 40.°, n.° 1, ambos do Código Penal.
AR
Assim, face ao explanado, entende-se que a pena única aplicada ao arguido de 9 (nove) anos de prisão viola os princípios da adequação à gravidade dos factos e à personalidade do agente, bem como o princípio da proporcionalidade.
AS
Por todos os motivos acima enunciados, deve ser aplicada ao arguido uma pena nunca superior a 7 (sete) anos de prisão, pena essa suficiente para que se cumpram as exigências aplicáveis ao caso, quer em termos de prevenção geral, quer em termos de prevenção especial, "tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre o mesmo.
Nestes termos e nos demais de direito deve o presente recurso ser recebido por tempestivo, considerado procedente por provado e em consequência:
A) Ser o Douto Acórdão recorrido declarado nulo, nos termos do artigo 379.°, n.° 1, al. a) do Código de Processo Penal, por violação do dever de fundamentação, estatuído pelo artigo 374.°, n.° 2, do C.P.P., sem conceder,
B) Deve revogar-se o Douto Acórdão, substituindo-se o mesmo por outro que condene o arguido em cúmulo numa pena única de 7 (sete) anos de prisão, fazendo a costumada JUSTIÇA!».
3. Não obstante dirigido a este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso foi admitido para o Tribunal da Relação de Lisboa, para subir imediatamente, nos autos e com efeito suspensivo.
4. O Ministério Público, pela pena do Senhor Procurador da República de ... respondeu ao recurso, em peça que concluiu pela seguinte forma:
─ «a ) O Colectivo para condenar o arguido / recorrente atendeu aos princípios fundamentais vigentes e procurou estabelecer uma pena justa, adequada e sensata;
b ) Na aplicação da medida da pena o Colectivo atendeu, de forma rigorosa, aos preceitos legais em vigor.
c ) Não padece a douta decisão recorrida de quaisquer vícios que levem à sua nulidade.
d ) Pode, no limite, concordar-se com a “parcimónia” da fundamentação mas não é menos verdade que o seu destinatário/arguido percebeu, de forma clara, que o Tribunal “a quo” foi particularmente benevolente [[1]] tendo em atenção a moldura penal abstracta aplicável ao caso concreto que se situava entre os 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão - a pena parcelar mais elevada – e 25 (vinte e cinco) anos.
e) O Tribunal “a quo” norteou (e bem) a sua decisão à luz desses princípios e, como já se deixou referir foi particularmente benevolente em relação ao arguido fixando a pena única global de 9 (nove) anos de prisão.
f ) Não nos merece, assim, o douto Acórdão recorrido, qualquer censura ou reparo.
g ) Pelo que não deve ser dado provimento ao recurso.
h ) E mantida a decisão da 1ª instância.».
5. Recebido o recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, lavrou o Senhor Desembargador Relator douto despacho a declinar a competência do seu tribunal para conhecer do recurso e a deferi-la a este STJ, nos termos das disposições conjugadas dos art.os 11º n.º 4 al.ª b), 427º, 432º n.º 1 al.ª c) e 434º do CPP [2].
6. Neste Supremo Tribunal, no momento previsto no art.º 416º n.º 1, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta proferiu proficiente parecer no sentido da improcedência total do recurso.
7. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação.
A. Âmbito-objecto do recurso.
8. O objecto e o âmbito dos recursos são os fixados pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 412º n.º 1, in fine –, sem prejuízo do conhecimento das questões oficiosas [3].
Tribunal de revista, de sua natureza, o Supremo Tribunal de Justiça conhece, em regra, apenas da matéria de direito – art.º 434º.
Não obstante, deparando-se com vícios da decisão de facto enquadráveis no art.º 410º n.º 2 ou com nulidade não sanada – n.º 3 da mesma norma – que inviabilizem a cabal e esgotante aplicação do direito, pode, por sua iniciativa, sindicá-los.
E, após a revisão operada pela Lei n.º 94/2021, de 21.12, pode, mesmo, fazê-lo a pedido, designadamente, em caso de recurso per saltum nos termos do art.º 432º n.os 1 al.ª c) e 2 – cfr., também, art.º 434º, parte final.
Sem embargo das restrições à aplicação imediata da nova lei de processo constantes do art.º 5º quando se trate de procedimento que transite do tempo da lei antiga.
Revisto o Acórdão Recorrido nada se detecta, porém, que suscite intervenção, a pedido ou oficiosa, em sede de fixação dos factos ou de validade do procedimento.
Estando, por isso, a matéria de facto definitivamente fixada.
E sendo as questões a apreciar apenas as que a Recorrente suscita e que extracta nas conclusões da motivação, a saber, por ordem de precedência lógica (art.º 608º do CPC e 4º):
─ Nulidade da falta de fundamentação nos momentos da determinação da pena única.
─ Medida concreta da pena única.
B. Mérito do recurso.
a. A nulidade da falta de fundamentação da pena única.
9. Não discute o Recorrente – e acertadamente! – a existência da relação de concurso entre os crimes enumerados em 1. justificativa da cumulação superveniente das respectivas penas, nos termos dos art.os 78º e 77º do CP.
Diz, porém, que a decisão sobre a pena única não se encontra devidamente fundamentada, ocorrendo nulidade nos termos dos art.os 379º n.º 1 al.ª a) e 374º n.º 2.
E assim – sustenta – pois que «Da análise da decisão recorrida verifica-se que, relativamente a esse cúmulo jurídico de penas omite-se inteiramente os factos que determinaram a condenação do recorrente em tais processos, nada se dizendo sobre as circunstâncias em que esses crimes foram praticados, a eventual ligação entre eles ou entre os restantes crimes cometidos pelo arguido, os contornos de cada um, a concreta ilicitude dos factos, a concreta postura do arguido quanto a eles»; que «A determinação da pena do concurso exige, pois, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados»; que «a pena conjunta encontrada - 9 anos de prisão - tem como limites uma moldura legal que se situa entre os 3 anos e oito meses (pena parcelar concreta mais elevada) e os 25 anos e, sendo assim, importaria conhecer também as razões de direito que, em função das razões de prevenção geral e especial indicadas, levam àquela pena e não a uma outra»; e que «O Tribunal "a quo" não fundamentou devidamente a medida concreta da pena aplicada nos autos, ignorando a necessária conexão exigida entre os artigos 71.°, n.° 3 e 77.°, n.° 1 e 78.°, n.° 1, todos do Código Penal […], omitindo ainda qualquer referência aos artigos 70.° e 71.° do Código Penal, não aludindo às finalidades de prevenção geral e especial que devem presidir à fixação da pena conjunta».
Veja-se.
10. «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão» – art.º 97º n.º 4.
«O dever de fundamentação das decisões judiciais é a forma conseguida pelo legislador de fazer sobrepor a lógica e a verdade decisórias ao capricho e ao arbítrio do seu autor, constituindo, assim, um instrumento de racionalização técnica da actividade decisória do tribunal, com um triplo objectivo: fornecer ao juiz um meio de autocontrole crítico, convencer as partes e garantir ao tribunal superior, em caso de recurso, um melhor juízo sobre a decisão de 1.ª instância. Esta a função endoprocessual da motivação; mas esta, superando aquela função, é também instrumento para o controle extraprocessual e geral sobre a justiça, controle exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada – art. 202.º, n.º 1, da CRP» [4].
Tratando-se de sentença ou de acórdão – isto é, de acto de juiz que conhece, a final, do objecto do processo [5] – o dever de fundamentação realiza-se através da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal» – art.º 374º n.º 2.
O dever de fundamentação não tem, todavia, sempre a mesma extensão, variando em função da natureza e do objecto da decisão, sendo, designadamente, mais exigente o da decisão final do que a da interlocutória [6], ou o do que respeita às penas parcelares do que à pena única [7].
No caso específico da decisão que, «verdadeira sentença» sequente à «audiência prevista no art.º 472.º do CPP, procede à realização do cúmulo jurídico por crimes em concurso, de conhecimento superveniente, nos termos do art.º 78.º n.os 1 e 2, do CP, com a finalidade específica de determinar a pena conjunta», a fundamentação, «para além de ter de observar os requisitos gerais […] previstos no art.º 374.º do CPP», deve conter «a indicação dos crimes objecto das várias condenações e das penas aplicadas, a caracterização dos mesmos crimes e todos os demais elementos que, relevando para demonstrar a existência de um concurso de crimes e a necessidade de imposição de determinada pena, interessem para permitir compreender a personalidade do arguido neles manifestada», impondo-se, para tanto, que «seja feita uma descrição sumária dos factos (não uma narrativa pormenorizada e exaustiva), focada numa abordagem global dos mesmos factos por forma a tornar-se possível captar e avaliar as conexões de sentido porventura existentes entre eles e a personalidade do agente que, emergente dos crimes cometidos, permita compreender, por um lado, se a prática dos mencionados crimes resulta de uma tendência criminosa ou, antes, constitui o fruto de uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, e, por outro lado, proporcionar ensejo para avaliar da exigibilidade relativa de que é reclamadora a conduta global e bem assim justificar a necessidade da pena», e sendo, ainda, necessário que «os ditos elementos de facto, que ponderam em sede de determinação da medida da pena conjunta, sejam objecto de devida laboração por forma a possibilitar que, deles se extraindo as consequentes ilações que hão-de reflectir-se na pena do concurso, se conheçam as razões que presidiram à sua determinação […].» [8].
A falta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, nos termos dos art.º 374º n.º 2 e 379º n.º 1 al.ª a), mesmo se só a sua «falta absoluta» ocasiona tal invalidade [9].
11. Isto dito em tese, confira-se o modo como o Acórdão Recorrido se desincumbiu do dever de fundamentação.
Assim:
12. No momento de coligir os factos e ocorrências processuais, o Acórdão Recorrido relevou os seguintes:
─ «II- FACTOS
Importa considerar que:
1. O arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 30/09/2020, neste processo 1063/19…, por um crime de furto qualificado na forma tentada e um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário previstos nos artigos 203°, n° 1 e 204°, n° 1, e) e 290° do Código Penal, praticados em 13/09/2019, nas penas, agravadas pela reincidência, de 3 anos e 3 anos e 3 meses de prisão, respetivamente, e, em cúmulo, na pena única de 4 anos e 2 meses de prisão.
2. Ficando assente que:
a) No dia 13 de Setembro de 2019, pelas 02hl8, os arguidos AA e BB, juntamente com outros dois indivíduos não identificados, agindo em conjugação de esforços e de intentos, dirigiram-se ao posto de abastecimento de combustível da GALP, sito na A...3, Km 2.2., ..., em ..., no intuito de retirarem os objetos que encontrassem no seu interior, combinando previamente o que iriam fazer, designadamente que retirariam os extintores existentes no local os quais seriam colocados no veículo em que se faziam transportar a fim de serem usados, em caso de perseguição pela autoridade policial.
b) Aí chegados, introduziram-se no interior do estabelecimento, partindo, para tanto, o vidro, e forçando o gradeamento, ambos da porta principal, e retiraram e guardaram consigo: - um volume de tabaco West Silver, - um volume de tabaco Marlboro Gold, - oito maços de tabaco Break, - um volume de tabaco Lucky Strike, - um volume de tabaco JPS preto soft, - um volume de tabaco JPS preto lOOs, - cinco maços de cigarrilhas Break blue, - um volume de tabaco L&M vermelho, - quatro maços de tabaco Red, - dois volumes de tabaco Winston lOOs, - um volume de tabaco Winston, - dois volumes de tabaco Marlboro 23s, - dois volumes de tabaco Português Suave cápsula, - um volume de tabaco Marlboro pocket, - um volume de tabaco Marlboro, - dois volumes de tabaco L&M blue, - vinte cds de música de vários artistas, - um volume de tabaco Winston blue, - quarenta raspadinhas com o valor unitário de € 1,00, da SCM, - um volume de tabaco Chesterfield caps blue, - um volume de tabaco Rothmans red, - um volume de tabaco Rothmans blue, -nove maços de tabaco L&M blue, - um maço de tabaco Rothmans switch, -um volume de tabaco Português Suave amarelo, - um volume de tabaco Ventil gigante, - um volume de tabaco Ventil, - três sacos de tabaco de enrolar de cor vermelha, de marca Winston, com o valor unitário de 10,90 €, - três sacos de tabaco de enrolar de cores branca e vermelha, de marca L&M, com o valor unitário de 16,90 €, - duas caixas de tabaco de enrolar de marca Marlboro e o valor unitário de 10 €, - duas caixas de tabaco de enrolar de marca Chesterfield e o valor unitário de 9,75 €, - uma caixa de tabaco de enrolar de marca JP Special e o valor unitário de 8 €, - sete embalagens de tabaco de enrolar de marca Winston e o valor unitário de 7,60 €, - dez embalagens de tabaco de enrolar de marca West e o valor unitário de 7,70 €, - cinco embalagens de tabaco de enrolar de marca JP Special e o valor unitário de 7,90 €, - 5 maços de tabaco de marca L&M vermelho e o valor unitário de 4,60 €, - 6 maços de tabaco de marca L&M azul e o valor unitário de 4,60 €, -10 maços de tabaco de marca Ventil Caixa e o valor unitário de 4,70 €, - 8 maços de tabaco de marca Ventil Gigante e o valor unitário de 4,80 €,-11 maços de tabaco de marca Camel Azul e o valor unitário de 4,80 €,-15 maços de tabaco de marca Camel Amarelo Caixa e o valor unitário de 4,70 €, - 4 maços de tabaco de marca Camel Amarelo Pacote e o valor unitário de 4,50 €, - 5 maços de tabaco de marca Camel Activate White e o valor unitário de 4,80 6, - 30 maços de tabaco de marca Camel Activate Purpel e o valor unitário de 1,80 €, - 4 maços de tabaco de marca Camel Activate e o valor unitário de 4,80 €, - 9 maços de tabaco de marca Camel Double e o valor unitário de 4,80 €, - 19 maços de cigarrilhas de marca Chesterfield e o valor unitário de 2,80 €, - 8 maços de tabaco de marca Chesterfield Caps e o valor unitário de 4,80 €, -1 maço de tabaco de marca Chesterfield Blue e o valor unitário de 4,80 €, - 2 maços de tabaco de marca Chesterfíeld Black e o valor unitário de 4,50 €, -um volume de tabaco Lucky Strike, composto por 10 maços, cada qual com o valor de 4,50 €, - 16 maços de tabaco de marca Lucky Strike azul e o valor unitário de 4,50 €, - 15 maços de tabaco de marca Karelia verde e o valor unitário de 4,70 €, - 20 maços de tabaco de marca Karelia amarelo e o valor unitário de 4,70 €, - 3 maços de tabaco de marca Karelia vermelho e o valor unitário de 4,70 €,-11 maços de tabaco - cigarrilha de marca JP Special e o valor unitário de 1,80 €, - 8 maços de tabaco de marca JP Special Duo e o valor unitário de 4,50 €, - 2 maços de tabaco de marca JP Special Capsule e o valor unitário de 4,30 €, - 10 maços de tabaco de marca Português Suave vermelho e o valor unitário de 4,30 €, - 6 maços de tabaco de marca Português Suave amarelo e o valor unitário de 4,50 €, - 19 maços de tabaco de marca Português Suave Capsula e o valor unitário de 4,40 €,-12 maços de tabaco de marca West vermelho e o valor unitário de 4,20 €, - 4 maços de tabaco de marca West cinzento e o valor unitário de 4,20 €, - 20 maços de tabaco de marca Rothmans Switch e o valor unitário de 4,40 €, - 30 maços de tabaco de marca Rothmans Red e o valor unitário de 4,40 €, - 13 maços de tabaco de marca Rothmans Blue e o valor unitário de 4,40 €, - 1 maço de tabaco de marca Rothmans 100's e o valor unitário de 4,40 €,-11 maços de tabaco de marca Marlboro 100's e o valor unitário de 5,30 €, - 2 maços de tabaco de marca Marlboro Silver Blue e o valor unitário de 5,10 €, - 6 maços de tabaco de marca Marlboro Fuse Beyond e o valor unitário de 5,10 €, - 8 maços de tabaco de marca Marlboro Gold e o valor unitário de 5,10 €, - 6 maços de tabaco de marca Marlboro Gold 100's e o valor unitário de 5,30 €, - 12 maços de tabaco de marca Marlboro vermelho e o valor unitário de 5,10 €, - 6 maços de tabaco de marca Marlboro Pocket Pack e o valor unitário de 4,70 €, - 8 maços de tabaco de marca Marlboro red touch e o valor unitário de 4,80 €, -dois extintores de pó químico que se encontravam no exterior, bombas 2 e 4, do tipo ABC de 6 kgs, - vários artigos alimentares, designadamente, 7 embalagens de Chipicao mini-croissants, 3 embalagens de Donuts, 9 embalagens de Bolicao, 6 embalagens de Chipicao original, 8 embalagens de Chipicao maxi-croissants, 1 expositor completo de doces chupa- chups, 1 expositor completo de doces push-pop, 19 embalagens de doces Mentos, - um computador marca Fujitsu; - um computador marca HP, - uma torre de CPU com a marca Dell, - uma máquina de depósitos de numerário, contendo notas emitidas pelo BCE no seu interior, no valor total de 2.640 €, incluindo um cofre em ferro modelo ..., com o n.° de série 0.500....51, pertencentes à ...,
c) Todos os objetos acima elencados apresentavam valor concreto não apurado, mas superior a 1119,14 €, sendo propriedade da sociedade exploradora do posto de abastecimento, com exceção a máquina de depósitos em numerário, propriedade da ....
d) Foram encontrados na posse dos arguidos, desconhecendo-se o proprietário: - um par de luvas de luvas plásticas cor-de-rosa, - um par de luvas de tecido, de cor ..., - uma sweatshirt de cor ..., - uma marreta, com cabo de ferro, - uma bolsa com a marca ..., contendo no seu interior 1 chave multifunções .../..., 1 lanterna em alumínio, 1 dispositivo de diagnóstico para automóvel, 4 notas emitidas pelo BCE de 20 €, e 2 de 10 €, - 1 porta-chaves com os dizeres «adoro-te papá», - 1 chave de fendas de marca ..., - 1 pé de cabra em ferro, - 1 lençol ... com padrões ..., - 1 lençol ... com padrões ..., - 1 manta em lã de cor ....
e) Em execução do plano comum gizado, os arguidos foram, no entanto, surpreendidos pela GNR, que acorreu ao local, e ainda no interior do referido estabelecimento, com os artigos na sua posse.
f) Ato contínuo, os arguidos, juntamente com os outros dois indivíduos não identificados, colocaram-se em fuga no aludido veículo de matrícula ...-GM-..., marca ..., Modelo ..., de cor ..., seguindo ambos os arguidos na parte traseira do veículo.
g) Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e já no interior do referido veículo, um dos indivíduos que acompanhava os arguidos iniciou marcha, imprimindo ao veículo uma velocidade não inferior a 150 km/h, utilizando para tanto a autoestrada A.…, durante cerca de 14,7 Km, que culminou na saída de ..., na rotunda aí existente, na qual embateram, vindo a ser detidos circulando já a pé, em fuga, após imobilização do veículo na via, numa zona de mato próxima.
h) Durante a perseguição aos arguidos movida pela GNR, que nunca os perdeu de vista, alguma ou algumas das pessoas que seguiam no veículo arremessou/arremessaram na direção do veículo de matrícula L-...., propriedade do Estado português, devidamente caracterizado com a identificação da GNR dois extintores e, bem assim, descarregaram o seu pó químico na direção dos militares da GNR e das estradas que percorreram, no intuito de dificultarem o seu encalce, pondo em perigo quer os militares da GNR que os seguiam;
i) O veículo propriedade da GNR sofreu inúmeros estragos, no valor de 459,25 €, por ter sido atingido por um dos extintores lançados pelos arguidos durante a perseguição e ficou inoperacional após a mesma.
j) Ao atuarem da forma descrita, os arguidos representaram e quiseram introduzir se naquele estabelecimento comercial e daí retirarem os objetos que estavam no seu interior, bem como levá-los consigo, com o propósito de os fazerem seus, o que não lograram conseguir, por terem sido surpreendidos pela GNR no local, cientes de que não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade do seu proprietário.
k) Com a conduta descrita, os arguidos alteraram as condições físicas em que se processava a circulação rodoviária, através do derrame das substâncias componentes dos extintores e dos próprios extintores nas estradas pelas quais passaram, atentando contra a segurança de transporte rodoviário, tendo praticado atos dos quais poderiam resultar desastres, o que quiseram e conseguiram. De igual forma, ao atuarem da forma descrita, arremessando dois extintores na direção do veículo da GNR, e pó químico, no intuito de dificultarem a sua detenção, quiseram os arguidos inutilizar o mesmo, o que veio efetivamente a suceder, bem sabendo que o mesmo pertencia ao Estado português.
3. O arguido foi condenado, no Processo 81/15...., deste juízo central criminal J..., por acórdão transitado em julgado em 06/1/2020, pela prática, em 2014, de dois crimes de furto qualificado previsto nos artigos 203° e 204°, n° 1 e) e n° 2, a), f) e g) do Código Penal na pena de 3 anos de prisão por cada um, quatro crimes de branqueamento de capitais previstos no artigo 368° do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão por cada um, um crime de dano qualificado previsto no artigo 213°, n° 1, c) e n°2, a) do Código Penal na pena de 3 anos e 6 meses de prisão e um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas previsto no artigo 272°, n°1, b) do Código Penal, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão e, em cúmulo, a pena única de 5 anos e 10 meses de prisão.
4. Ficando assente que:
1. No dia 13 de Maio de 2016, cerca das 04H22, os arguidos AA, CC, DD e EE, dirigiram-se ao Terminal ATM pertencente ao Novo Banco instalado no complexo das ..., edificadas no cruzamento das ... e FF, naquela localidade, com o intuito de retirarem e fazerem seu todo o dinheiro acondicionado no interior da Caixa ATM (Automated Teller Machine) ali instalada, após se certificarem que a máquina tinha sido recentemente carregada com notas.
2. Os arguidos fizeram-se transportar na viatura de marca ... e de cor ... e a matrícula ...-...-RE, subtraída ao legítimo proprietário entre as 21:30 horas de 10 e as 07:15 horas de 11/05/2016, na Rua ... - ... -... -..., e propriedade de GG.
3. Para se apropriarem da referida viatura, os arguidos recorreram ao estroncamento dos canhões da porta-do-condutor e da respectiva ignição com recurso a um objecto em tudo semelhante a uma chave de fendas de grandes dimensões e subsequente neutralização do mecanismo imobilizador associado à chave do veículo, mediante utilização de descodificador electrónico próprio para o efeito.
4. Uma vez ali, os arguidos, encapuçados e munidos de arma de fogo de cano longo, de cor ..., com a coronha e os canos serrados, acercaram-se da Caixa ATM e, através do orifício de saída das notas, introduziram-lhe uma determinada quantidade de mistura gasosa deflagrável e procederam à subsequente ignição por via eléctrica.
5. Como consequência da explosão, o local onde se encontrava instalado o terminal ATM ficou parcialmente destruído, com danos no valor de €8.250.
6. Em acto continuo os arguidos apropriaram-se de 62 870, 00 € (sessenta e dois mil euros, oitocentos e setenta) em notas do BCE que, na ocasião, valor que se encontrava nas gavetas dispensadoras da Máquina MB.
7. Como consequência da explosão, os arguidos destruíram parte das instalações desportivas, quanto na própria estrutura do Terminal ATM, cujos danos permanecem ainda por apurar.
8. Posteriormente, na manhã do dia 21 de maio de 2016, os arguidos largaram a viatura tendo sido recuperada pela GNR ..., com danos no canhão da fechadura e ignição, cuja reparação ascendeu os €214,79.10
9. Atuaram os arguidos com o propósito concretizado de se apropriarem do montante em numerário que existia no interior da caixa ATM, o que lograram conseguir.
10. Mais actuaram os arguidos AA, CC, DD e EE com o propósito concretizado se apropriarem da viatura ... e matrícula ...-...-RE, bem sabendo que actuavam contra a vontade do legítimo proprietário, o que lograram conseguir.
11. Dos furtos de ATM's praticados pelos arguidos resultou um locupletamento total cifrado na quantia de 597.462,04 € (quinhentos e noventa e sete mil, quatrocentos e sessenta e dois euros e quatro cêntimos) [[10]].
12. Na posse da parte do dinheiro obtido nos ilícitos o arguido AA procedeu à compra do motociclo de marca e modelo ... de marca e modelo ... de cor ... e matrícula ...-DF-...
13. Para que não fosse detectado na sua posse pelas autoridades solicitou ao arguido HH que o registasse em seu nome pessoal, com o fim de dissimular a sua origem ilícita e evitar que o mesmo fosse perseguido criminalmente.
14. No entanto o referido motociclo nunca saiu da esfera de disposição do arguido AA, podendo o mesmo dispor dele sempre que assim entendeu.
15. Na posse da parte do dinheiro obtido nos ilícitos o arguido AA procedeu à compra da viatura de marca e modelo ... com o número-de-chassis ...90 e a matrícula ...-DD-….
16. Para que não fosse detectado na sua posse pelas autoridades solicitou ao arguido II que o registasse em seu nome pessoal, com o fim de dissimular a sua origem ilícita e evitar que o mesmo fosse perseguido criminalmente.
17. No entanto tal viatura nunca saiu da esfera de disposição do arguido AA, podendo o mesmo dispor dele sempre que assim entendeu.
18. Na posse da parte do dinheiro obtido nos ilícitos o arguido AA procedeu à compra da viatura de marca e modelo ... de cor ... com o número-de-chassis ...45 e a matrícula ...-...-UL e ... com o número-de-chassis ...51 e a matrícula ...-...-PG.
19. Para que não fosse detectado na sua posse pelas autoridades solicitou à arguida JJ que registasse tais bens em seu nome pessoal, com o fim de dissimular a sua origem ilícita e evitar que o mesmo fosse perseguido criminalmente.
20. No entanto tais viaturas nunca saíram da esfera de disposição do arguido AA, podendo o mesmo dispor dele sempre que assim entendeu.»
5. Do seu certificado de registo criminal constam outras condenações:
a) No âmbito do processo n.° 773/08…, que correu termos na Instância Central ..., por Acórdão proferido em 22 de junho de 2009, transitado em julgado em 31 de agosto de 2010, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de roubo, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
b) No âmbito do processo n.° 22/14…, que correu termos no Tribunal Judicial ..., por Acórdão proferido em 22 de dezembro de 2014, transitado em julgado em 30 de julho de 2015, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 2 anos de prisão.
c) Foi proferido Acórdão Cumulatório no âmbito do processo n.° 152/08…, transitado em julgado em 2 de maio de 2013, que abrangeu as condenações aplicadas nos procs. 773/08…, 1015/06…, 44/08...., 11/08...., e 152/08...., tendo a pena única sido reformulada para 6 anos e 2 meses de prisão.
***
6. O arguido assumiu comportamento demonstrativo de arrependimento.
***
7. AA é o único filho de um casal de precária condição sócio económica.
8. Por volta dos dois anos de idade vivenciou a separação dos pais, ficando o arguido a viver com o pai e avós paternos.
9. O pai trabalhava como operador de máquinas na empresa S.…, e a situação económica dos avós era estável, proporcionando ao arguido um crescimento num ambiente estável e normativo.
10. Mantinha contatos pontuais com a progenitora, sofrendo esta de uma anorexia nervosa.
11. Por volta dos seus 7 anos de idade ocorreu a morte do pai, vítima de um acidente de trabalho, sendo esta uma fase muito difícil a nível psicológico.
12. Este foi um marco significativo na sua vida, uma vez que algum tempo depois foi viver com a progenitora a pedido desta, o que o próprio não aceitou de bom grado por não desejar afastar-se dos avós, que viveram, tal como ele, com muita angústia e sofrimento a morte do filho.
13. A mãe desenvolvia atividade laboral como empregada de limpezas em casas particulares, passando ambos por dificuldades económicas.
14. Contudo o arguido manteve com a mãe um bom relacionamento, sendo uma criança obediente e afetiva.
15. Terá sido a partir de então que revelou as primeiras dificuldades na adaptação à escola e à aprendizagem.
16. Passado um ano a viver só com a mãe, esta constituiu novo agregado, existindo uma filha desta relação.
17. O novo companheiro da mãe estabeleceu com o arguido uma relação gratificante em termos afetivos que se mantém ainda hoje, sendo descrito como um amigo, por quem nutre sentimento de respeito e afeto.
18. Apresenta um percurso escolar pouco investido, com fraco rendimento e registo de diversos insucessos, optando por abandonar os estudos com 14 anos, sem conseguir concluir o 5o ano de escolaridade.
19. Logo após abandonar a escola integrou o mercado de trabalho no ramo da construção civil; nos dois primeiros anos auxiliou o padrasto como ladrilhador e posteriormente conseguiu vínculo laboral para empresas de cedência de trabalhadores como "R.…" e "A.…".
20. Posteriormente dedicou-se com um familiar (tio paterno) à pesca e venda de pescado/marisco.
21. Ainda na adolescência, por volta dos 17 anos de idade iniciou uma relação afetiva, com KK, na sequência da qual nasceu uma filha.
22. O casal conseguiu organizar-se de forma autónoma e adquirir casa em ..., com recurso a empréstimo bancário.
23. Contudo, após 4 anos de vida em comum o arguido ficou desempregado, se a relação do casal tornou-se conflituosa, ficando ainda mais complexa quando AA iniciou uma relação extraconjugal com JJ, que culminou com a separação do casal.
24. Desde então tem mantido a relação com esta companheira, existindo dois filhos menores desta nova relação.
25. Foi neste contexto de desestruturação pessoal e social que integrou grupo de pares conotados com práticas criminais e que sofreu a sua primeira condenação em prisão, com 21 anos de idade (em 2008), acusado de um crime de roubo.
26. Posteriormente a sua vida foi marcada pelas sucessivas situações de reclusão e períodos em liberdade, demonstrando dificuldade em organizar-se sempre que restituído ao meio livre.
27. Em outubro de 2013 saiu em liberdade condicional aos 5/6 da pena e fixou residência em ... com a companheira JJ, cumprindo as obrigações inerentes a esta medida, cujo termo estava previsto para 6 de novembro de 2014.
28. Contudo, deu continuidade à atividade criminal e em janeiro de 2014 surgiu um novo processo judicial, sendo constituído arguido no Proc. 22/14..., ficando sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
29. Numa fase inicial desta medida viveu com a companheira, filho e o sogro, tendo a companheira engravidado do segundo filho do casal.
30. Posteriormente o casal e filhos fixaram residência na casa que ele havia adquirido em ..., sendo este o contexto habitacional, familiar e social que mantém na atualidade.
31. Em 16/09/2015 deu entrada no E.P. ... para cumprir o Proc....4..., pena que terminou em janeiro de 2016, sendo novamente detido preventivamente em novembro de 2016.
32. À data da atual prisão, AA mantinha residência em casa própria em ..., com a companheira JJ e os dois filhos do casal de menor idade.
33. Permanecia desempregado, coadjuvando o tio na pesca, que lhe permitia obter algum rendimento, embora a maior parte das despesas fossem asseguradas pela companheira que exercia atividade profissional regular no comércio.
34. Projeta, uma vez colocado em liberdade, voltar a integrar o agregado constituído e manter trabalho na atividade piscatória junto do tio, mas em simultâneo trabalhar para a empresa "C.…".
35. No que diz respeito às suas características e competências pessoais e sociais, aparenta dificuldades na resolução de problemas e antecipação das consequências perante situações vividas como problemáticas, perdendo, nesse contexto, algum sentido jurídico, podendo assumir comportamentos fora do normativo social.
36. Em meio prisional o seu comportamento tem-se pautado pela estabilidade, com registo de apenas uma infração em 16/6/2020, alegadamente por posse de telemóvel.
37. Ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena, encontrando-se colocado em regime comum.
38. Está laboralmente inserido como faxina há cerca de dois meses e frequenta a escola para conclusão do 12° ano.
39. Mantém apoio e visitas da companheira e filhos.
40. De um modo geral, AA revela capacidade para reconhecer os valores ético-jurídicos em causa nos crimes praticados, mas apresenta lacunas ao nível da descentração face ao impacto emocional/psicológico causado nas vítimas.
[…].»
E em sede de motivação da convicção probatória, exarou-se no Acórdão Recorrido o seguinte:
─ «A factualidade assente resulta da análise das certidões dos acórdãos condenatórios considerados.
Atendeu-se ainda ao certificado de registo criminal atualizado do arguido.
Relativamente às condições pessoais, atendeu-se às próprias declarações do arguido, que expressou arrependimento credível e cuja credibilidade não foi abalada e ao teor do relatório social atualizado junto aos autos.».
Já quando cuidaram de justificar a decisão no plano do direito, o Senhores Juízes do Tribunal Colectivo discretearam como segue:
─ «III- FUNDAMENTO FÁCTICO-CONCLUSIVOS E JURÍDICOS:
Dispõe o art.º 77.º, n.º 1 do Código Penal que deve ser aplicada uma única pena quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitada em Julgado a condenação por qualquer deles. A tal não obsta a circunstância de tal sucessão de crimes apenas se tornar conhecida após uma condenação transitada em julgado, nos termos do artigo 78.°, n.° 1 do Código Penal. Porém, estas hipóteses de conhecimento superveniente pressupõem a existência de uma real situação de concurso, considerando a previsão do referido artigo 77.°, n° 1 do Código Penal.
Estabelece o mencionado normativo que estão em relação de concurso as penas aplicadas por crimes praticados antes do trânsito em julgado da última condenação.
Esta norma é igualmente aplicável nos casos previstos no artigo 78.°, n° 1 do Código Penal, que estabelece os pressupostos do conhecimento superveniente do concurso mas não regras próprias para a aferição da existência do mesmo, pelo que deverá ser tida em conta a data do trânsito em Julgado em julgado e não a data da condenação (neste sentido, por todos, L. Moutinho, Da Unidade à Pluralidade de Crimes no Direito Penal Português, Universidade Católica Editora 2005, especialmente p. 1241 e seguintes.)
Assim, constitui pressuposto essencial da cumulação penal a prática de uma pluralidade de crimes anteriormente à condenação, com trânsito em julgado, por qualquer deles (artigo 78°, n°2 do Código Penal).
Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que fixou jurisprudência no sentido de que "O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso" — Acórdão 9/2016, publicado no DRI Série, de 09.06.2016.
Na interpretação do referido artigo 77.°, n.° 1, relativamente aos crimes praticados anteriormente ao trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, deve entender-se que se deve atender à decisão que transitar em julgado em primeiro lugar para, a partir daí, fixar as penas em concurso, sendo que, quanto às penas a integrar no cúmulo, os factos praticados em qualquer um dos processos a integrar terão sido praticados antes de ter transitado em Julgado a decisão condenatória proferida em qualquer desses processos [i.e., cada facto deve ser anterior ao trânsito em julgado de cada uma das condenações a integrar no cúmulo]. Esta interpretação é a única que se ajusta à teleologia do instituto (efetuar cúmulo das penas que poderiam ter sido cumuladas ab inítio) e à distinção legal que decorre dos pressupostos formais da reincidência (que vai abranger os crimes praticados após o trânsito de anteriores condenações).
***
No caso em apreço, considerando as datas de prática dos ilícitos e do trânsito em Julgado das respetivas condenações, existe relação de concurso, certo que os factos são todos anteriores ao trânsito em Julgado da condenação por qualquer deles.
Deve considerar-se, na fixação das penas unitárias, a soma das penas concretas, a natureza dos factos penalmente ilícitos e dolosos praticados e a personalidade do agente (artigos 77°, 41° e 47° do Código Penal).
Há que atender a uma moldura penal abstrata entre 3 anos e 8 meses de prisão (a pena parcelar mais elevada) e 25 anos, uma vez que a soma aritmética das penas parcelares (31 anos e 7 meses) ultrapassa a pena máxima legalmente aplicável (artigos 41°, n° 2 e 77.°, n.° 2 do Código Penal).
Deve considerar-se, na fixação das penas unitárias, a soma das penas concretas, a natureza dos factos penalmente ilícitos e dolosos praticados e a personalidade do agente (artigos 77°, 41° e 47° do Código Penal).
Como disse Figueiredo Dias, em sede de cúmulo, impõe-se considerar a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização), (in "Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime", p. 291).
Considerando a descrição dos factos objeto das condenações em concurso, maioritariamente crimes contra o património de idêntica natureza, a ilicitude assume intensidade significativa, sendo que da ponderação conjunta dos mesmos em sede de concurso resulta agravada a ilicitude, impondo-se, no entanto, não perder de vista, que a maior parte dos crimes em concurso foi praticada num período de tempo limitado.
Releva, a favor do arguido, o bom comportamento em meio prisional, a consciência crítica manifestada e o arrependimento expresso, o investimento na autovalorização e o apoio familiar.
Julga-se adequado, considerando os elementos supracitados e as elevadas exigências de prevenção especial, fixar a pena única global de 9 anos de prisão.
[…].»
Ora:
13. Tendo, então, o dever legal de fundamentação a compreensão delineada em 10. supra e acabados de ver os moldes em que o Acórdão Recorrido lhe deu concretização, bem se concede que, como acusa o Recorrente, a fundamentação, mais do que parcimoniosa, seja claramente insuficiente, em termos de implicar a comissão da nulidade prevista no art.º 374º n.º 2 e 379º al.ª a).
É certo que, no plano facto-procedimental, o Acórdão Recorrido enunciou os dados de facto e os momentos dos procedimentos relevantes, nessa medida cumprindo a obrigação de indicar os «crimes objecto das várias condenações e das penas aplicadas, a caracterização dos mesmos crimes e todos os demais elementos que, relevando para demonstrar a existência de um concurso de crimes e a necessidade de imposição de determinada pena, interessem para permitir compreender a personalidade do arguido neles manifestada» .
É igualmente certo que, já no plano do direito, justificou a existência da relação de concurso entre os ilícitos que, nos termos do art.º 78º n.º 1 e 77º n.º 1 do CP, impunha a cumulação superveniente das penas.
E é certo, ainda, que enunciou, em abstracto, os pressupostos, finalidades e o próprio critério específico da determinação da pena única enunciado na parte final do art.º 77º n.º 1 do CP – «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» – e que, de algum modo, aferiu a conduta global em função da ilicitude e da culpa nela reveladas, como aconselha a (boa) doutrina que citou.
Esqueceu, porém, o momento fundamental da dinâmica da determinação da pena, a verdadeira pedra-de-toque desta, qual seja a relacionação da mencionada conduta com a personalidade (unitária) do Recorrente, em termos de ocasionalidade ou de tendência.
Como, tudo, melhor resulta do segmento que, por assim dizer, culmina a fundamentação que, não obstante já transcrito supra, aqui se recorda de novo:
─ «Considerando a descrição dos factos objeto das condenações em concurso, maioritariamente crimes contra o património de idêntica natureza, a ilicitude assume intensidade significativa, sendo que da ponderação conjunta dos mesmos em sede de concurso resulta agravada a ilicitude, impondo-se, no entanto, não perder de vista, que a maior parte dos crimes em concurso foi praticada num período de tempo limitado.
Releva, a favor do arguido, o bom comportamento em meio prisional, a consciência crítica manifestada e o arrependimento expresso, o investimento na autovalorização e o apoio familiar.
Julga-se adequado, considerando os elementos supracitados e as elevadas exigências de prevenção especial, fixar a pena única global de 9 anos de prisão.».
E como, tudo, melhor evidenciarão as considerações que, em aferição da medida concreta da pena única, se vão seguir.
14. Acaba, então, de se ver que o Acórdão Recorrido não se desincumbiu cabalmente da obrigação de fundamentar, incorrendo na comissão da nulidade prevista nos art.º 374º n.º 2 e 379º n.º 1 al.ª a) que vem acusada no recurso.
Nulidade que, circunscrita às operações de determinação da pena única e ao específico aspecto da relacionação do facto global com a personalidade do agente, apenas se projecta sobre esse segmento decisório, invalidando-o.
E nulidade que, dispondo este Tribunal de recurso de todos os elementos necessários para o efeito, será suprida neste mesmo acto, o que acontecerá no uso dos poderes conferidos pelo art.º 379º n.º 2 e por ocasião da apreciação, que imediatamente segue, da questão relativa à medida concreta da pena conjunta.
b. A medida concreta da pena única de prisão.
15. Sustenta, ainda, o Recorrente que, em qualquer circunstância, a medida da pena única de 9 anos de prisão é excessiva.
Alega, em suma, que o Tribunal não considerou devidamente as circunstâncias de a maior parte dos factos ter ocorrido num período de tempo limitado; de desenvolver actividade laboral no Estabelecimento Prisional e de ter investido na sua formação académica e profissional em vista de potenciar a sua empregabilidade futura; de contar com apoio familiar; de estar arrependido de ter praticado os factos; e de não denotar tendência criminosa.
Sustenta que tudo evidencia a um prognóstico favorável à sua reinserção em sociedade.
Aponta violação das normas dos art.os 71º, 40º e 77º do CP e alerta para a ideia da proporcionalidade da sanção decorrente do art.º 18º da CRP.
Remata pedindo que a medida da pena seja reduzida, não ultrapassando os 7 anos de duração.
Veja-se.
16. Nos termos do art.º 77º n.º 1 do CP, «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
Já o n.º 2 do preceito dispõe que «a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».
E o n.º 3 estipula que «[s]e as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores».
A medida concreta da pena do concurso é determinada, tal como a das penas singulares, em função da culpa e da prevenção – art.os 40º e 71º do CP –, mas levando em linha de conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente (art.º 77.º, n.º 1, segundo segmento, do CP).
O que significa que à visão atomística inerente à determinação das penas singulares, sucede, nesta, uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a sopesar a gravidade desse ilícito global enquanto enquadrada na personalidade unitária do agente, «tudo devendo passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique» [11].
E sendo que nessa «avaliação da personalidade – unitária – do agente» releva «sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», que só primeira, que não a segunda, tem «um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» [12].
E nela assumindo especial importância «a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» [13], em que são de considerar «múltiplos factores entre os quais: a amplitude temporal da atividade criminosa; a diversidade dos tipos legais praticados; a gravidade dos ilícitos cometidos; a intensidade da atuação criminosa; o número de vítimas; o grau de adesão ao crime como modo de vida; as motivações do agente; as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo» [14].
Servindo, como já dito, as finalidades exclusivamente preventivas da protecção de bens jurídicos – prevenção geral positiva ou de integração – e da reintegração do agente na sociedade – prevenção especial positiva ou de socialização –, devem elas «coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possível» na pena única, «porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros» [15].
Finalidades – e também culpa – que, tendo intervindo, já, na determinação da medida das penas parcelares, operam aqui por referência ao «conjunto dos factos e à apreciação geral da personalidade», o que «não se confunde com a ponderação das circunstâncias efetuada relativamente a cada crime, que é necessariamente parcelar» e não envolve, por isso, violação do princípio da dupla valoração [16].
E pena única que, também ela, deve respeitar os princípios da proporcionalidade, necessidade, adequação e proibição de excesso decorrentes do art.º 18º da CRP.
17. Presentes os critérios e finalidades que se acabam de recordar e conferindo, então, a necessidade, adequação e proporcionalidade da pena única de 9 anos de prisão decretada, tem-se, em primeiro lugar, que, intermediando, como afirmado, entre os crimes por que o Recorrente foi parcelarmente condenado a relação de concurso superveniente prevista nos art.os 78.º e 77º n.º 1 do CP, se justifica, de facto, a cumulação jurídica das correspondentes penas e havendo a pena única de ser de prisão, por serem dessa natureza todas as penas em presença – art.os 77º n.º 3, a contrario sensu, do CP –, e encontrada – art.º 77º n.º 2 do CP – no intervalo de 3 anos e 8 meses a 25 anos.
Depois, e olhando para a gravidade do ilícito global, não se pode deixar de concluir ser bem relevante:
─ No conjunto dos crimes recenseados, predominam os de elevada criminalidade – incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas furto qualificados, punível com prisão de 3 a 10 anos; furtos qualificados, puníveis com prisão de 2 a 8 anos; dano qualificado, punível com prisão de 2 a 8 anos; branqueamentos, puníveis com prisão de 30 dias a 12 anos –, a que se junta um de média/elevada criminalidade – atentado à segurança de transporte rodoviário, punível com prisão de 1 a 5 anos.
─ O crime de explosões é qualificado de criminalidade especialmente violenta pelo art.º 1.º al.ª l); os de branqueamento, de criminalidade altamente organizada pelo termos art.º 1º al.ª m); e o de atentado à segurança de transporte rodoviário, de criminalidade violenta pelo art.º 1.º al.ª j).
─ É significativo o número de ilícitos praticados – 10.
─ São vários e de diversa índole os bens jurídicos penais (primacialmente) atingidos: a propriedade, nos crimes de furto; a propriedade pública, no crime de dano; a realização da justiça na vertente da perseguição e do confisco dos proventos da actividade criminosa, nos crimes de branqueamento; a vida, a integridade física e o património de outrem, nos crimes de explosões e de atentado à segurança de transporte rodoviário.
─ O grau de violação dos bens jurídicos não é minimamente desprezível em qualquer um dos casos.
Depois, ainda, a culpa do Recorrente, lato sensu, é bem elevada, denotando a imagem global dos factos firme e prolongada intenção de delinquir, sendo, ainda, que nos crimes dos presentes autos o Recorrente foi condenados como reincidente.
Na sua relação com a personalidade unitária do Recorrente, o conjunto dos factos em concurso revela traços de propensão criminosa, com predominância para a prática de ilícitos contra a propriedade e interesses eminentemente pessoais, juntando-se, ainda, condenações anteriores por crimes de roubo – por que cumpriu pena de prisão – e de condução perigosa de veículo rodoviário.
18. O quadro que se desenha é, pois, de culpa acentuada – a suscitar forte censurabilidade da conduta –, de ilicitude significativa – a exigir decidida reafirmação por via das penas dos valores penais infringidos – e de resistência do Recorrente ao dever-ser jurídico-penal e de necessidade de contramotivação criminógena – a reclamar pena única que efectivamente o reaproxime do respeito daqueles valores.
Ainda assim, afigura-se que o comportamento, e atitude, do Recorrente posterior aos factos indicia que já encetou algum daquele caminho, mantendo ocupação laboral em meio prisional e investindo na sua formação académica e profissional.
Sendo que, de outro lado, assumiu «comportamento demonstrativo de arrependimento», beneficia de apoio de familiares e da actual companheira e manifesta intenção de, quando em meio livre, voltar a trabalhar.
O que, tudo, autorizando um prognóstico (relativamente) favorável à sua reintegração em meio familiar, laboral e social, mitiga as exigências da prevenção de socialização e, por via delas, a necessidade da pena.
E é essencialmente em função da moderação – ainda assim, não mais do que (muito) relativa – destas exigências que, na moldura abstracta de 3 anos e 8 meses a 25 anos – limite a que fica reduzida a baliza superior, que em soma material atingir-se-iam 31 anos e 5 meses –, se entende poder a pena única ser fixada um pouco aquém da que vem da 1ª instância, concretamente, em 8 anos de prisão.
Pena essa que já se afasta suficientemente do limite inferior da moldura abstracta de molde a responder por forma minimamente satisfatória às exigências de prevenção geral, que se situa em medida suficientemente distante do limite máximo de modo a consentir, e facilitar, a reinserção social do Recorrente e que, de modo algum, ultrapassa o marco imposto pela culpa.
19. Pena essa que, assim, aqui vai decretada, nessa parte e medida procedendo o recurso.
III. Decisão.
20. Termos em que, decidindo, acordam os juízes desta 5ª Secção em, julgando parcialmente procedente o recurso, condenar o Recorrente na pena única de 8 anos de prisão.
Sem custas.
*
Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).
*
Supremo Tribunal de Justiça, em 19.5.2022.
Eduardo Almeida Loureiro (Relator)
António Gama
Helena Moniz
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[1] [Nota 8 no original] O arguido esteve envolvido na explosão da “ATM” colocada no complexo das piscinas municipais do ..., donde resultou a destruição de parte das instalações desportivas.
Mais resulta daqueles autos que os arguidos se apropriaram de € 62.870,00 (sessenta e dois mil, oitocentos e setenta euros).
[2] Diploma a que pertencerão os preceitos que se vieram a citar sem menção de origem.
[3] Cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in D.R. I-A, de 28.12.1995.
[4] AcSTJ de 16.1.2008 - Proc. n.º 07P4637, in www.dgsi.pt.
[5] Art.º 97º n.º 1.
[6] Assim, v. g., o AcSTJ de 9.9.2015 - Proc. n.º 13395/11.1TDPRT.P1.S1, in SASTJ: «O despacho judicial que decida uma questão interlocutória, por mais relevante que ela seja, não se encontra sujeito às mesmas exigências de fundamentação de facto e de direito de um acórdão que avalie, em primeira mão, toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, que pondere, em toda a extensão, os argumentos apresentados pela acusação e pela defesa e que decida a causa sob o ponto de vista jurídico […] ».
[7] Assim, v. g., o AcSTJ de 17.3.2016 - Proc. n.º 1180/10.2JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt: «O dever de fundamentação da pena única não tem que assumir nem o rigor nem a extensão exigidos para a fundamentação das penas parcelares, sendo que só a falta absoluta de fundamentação, embora referida ou aos fundamentos de facto ou aos fundamentos de direito, é que conduz à nulidade da decisão.».
[8] Ac. STJ de 9.4.2015 - Proc. n.º 1397/09.2PBGMR.S1, in www.dgsi.pt
[9] Ac. STJ de 17.3.2016 referido.
[10] [Valor global apropriado pelo conjunto dos arguidos
[11] Figueiredo Dias, "Consequências Jurídicas do Crime", 1993, p. 291 e 292.
[12] Idem, ibidem, nota anterior.
[13] Idem, ibidem, notas anteriores.
[14] Ac. STJ de 9.10.2019 - Proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1, in SASTJ.
[15] Figueiredo Dias, "Temas Básicos de Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 105 e ss.
[16] AcSTJ de 16.5.2019 - Proc. n.º 790/10.2JAPRT.S1, in www.dgsi.pt.