Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
189/23.0PAVPV.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRAFICANTE-CONSUMIDOR
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
CONCURSO DE INFRAÇÕES
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Impugnando as penas parcelares e a pena única, recorre o arguido da decisão da 1.ª instância que aplicou a pena única de 5 anos e 8 meses de prisão por crimes de violência doméstica agravada, na pessoa de seu pai, de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida.

II. O crime de «traficante-consumidor» (artigo 26.º do DL 15/93), requer dois pressupostos que, no caso, não se verificam: que o agente tenha por finalidade exclusiva conseguir as substâncias ou preparações para uso pessoal (n.º 1) e que a quantidade destas não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias (n.º 2) ou de dez dias se, conforme alguma jurisprudência, por virtude do art.º 2.º, n.º 2 , da Lei n.º 30/2020, de 29.11, se dever considerar alterado o prazo referido no n.º 2 do artigo 26.º, não obstante a caducidade da Proposta de Lei n.º 33/VIII, de 15.6.2000, que visava tal alteração.

III. Como resulta dos factos provados, o arguido dedicava-se à produção e à venda direta aos consumidores que o procuravam, atividade que se desenvolveu-se «ao longo de todos os dias da semana», pelo menos desde dezembro de 2022 a março de 2023.

IV. O comportamento anterior aos crimes (antecedentes criminais), ao longo de anos, o desinteresse e a incapacidade para alterar esse comportamento, dominado pela toxicodependência, nomeadamente pela aplicação de penas de prisão suspensas na sua execução, insuficientes para evitar a repetição de atos de idêntica natureza, e a reiteração e intensidade das condutas, em grave violação dos deveres de respeito e solidariedade inerentes à relação com a vítima, seu pai, «aproveitando-se da idade avançada» deste, «pessoa indefesa» que o protegia, lhe dava abrigo, alimentação e dinheiro que utilizava para sustentação da toxicodependência revelam uma personalidade desvaliosa, projetada nos factos.

V. De acordo com as regras de punição do concurso, a pena única deve fixar-se entre 5 anos (pena mais elevada) e 8 anos e 9 meses de prisão (correspondente à soma das penas aplicadas).

VI. Identifica-se uma forte conexão entre os crimes praticados, prolongados e repetidos no tempo, em violação de bens jurídicos diversos, no mesmo contexto espacial e de relação familiar com a vítima dos crimes de violência doméstica, com reiterada e grave violação de deveres impostos ao arguido na sua relação com esta e o conjunto dos factos praticados evidencia insensibilidade às penas anteriormente aplicadas e manifesta falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita, sendo elevadas as necessidades de prevenção especial.

VII. Tendo em conta as molduras das penas aplicáveis, na consideração do n.º 2 do artigo 40.º do CP, dos critérios estabelecidos no artigo 71.º do CP, relevando por via da culpa e da prevenção, e na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do arguido (77.º, n.º 1, do CP), não se encontra fundamento que justifique a alteração das penas parcelares e da pena única, mostrando-se esta fixada em medida próxima do seu limite mínimo, sem ofensa dos critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua determinação.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de ...-...-2024, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Cível e Criminal de ... - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, que o condenou pela prática, em concurso, de:

a) Um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB, seu pai, pelo período de 2 (dois) anos;

b) Um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela II-B anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.;

c) Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido art.º 86.º n.º 1, alínea d), por referência aos art.ºs 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, nºs 1 e 2, alíneas g) e ab), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) meses de prisão (por respeito à detenção de um bastão com cordel preso no punho e de um punhal com 11,7 cm de lâmina); e

Em cúmulo, pela prática dos referidos crimes, na pena única de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB, seu pai, pelo período de 2 (dois) anos.

2. Discordando do decidido, quer quanto às penas singulares, quer quanto à pena única, apresenta motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

«a) Discorda o recorrente da decisão do Tribunal a quo de o ter condenado nas penas: de 3 anos e 7 meses de prisão (crime de violência doméstica); 5 anos de prisão (crime de estupefacientes) e 2 meses de prisão (detenção de arma proibida), e em cúmulo jurídico na pena de 5 anos e 8 meses de prisão;

b) É certo que o arguido regista condenações criminais, nomeadamente por tráfico, motivado pelo facto de ser viciado no consumo de estupefacientes;

c) O arguido é pessoa com fraca instrução, e vive no limiar da pobreza;

d) Antes de ser preso preventivamente à ordem deste processo, era o progenitor que lhe dava habitação e alimentação;

e) O arguido, por vezes fazia uns biscates de ...;

f) O progenitor do arguido, visita-o no E. P. de ..., e ajuda-o monetariamente;

g) O progenitor do arguido, há muito que perdoou o arguido dos ilícitos criminais que cometeu e de que foi vítima;

h) Pois um pai é poderoso para o perdão e não para o castigo…;

i) O arguido é toxicodependente desde tenra idade, e para consumir drogas teve de recorrer ao fabrico das mesmas de forma rude, para poder autofinanciar o seu consumo, o que muitas vezes não conseguia e por isso pedia abusivamente dinheiro ao progenitor;

j) O arguido confessou os factos, mostra-se arrependido e pretende arrepiar caminho, e quando livre, viver uma vida correcta e normal;

k) Provou-se que o arguido é muito pobre, não tem contas bancárias e ou outros sinais exteriores de riqueza, para se concluir ser um traficante que possa ser condenado pelo artigo 21.º, n.º 1, da Lei da Droga;

l) O arguido desde que se encontra preso tem feito tratamento da toxicodependência, com substituição por metadona;

m) O arguido cometeu foi um crime de traficante/consumidor, p. e p. pelo artigo 26.º, da Lei da Droga;

n) Assim, ponderando adequadamente todas as supracitadas circunstâncias, estão reunidos todos os pressupostos previstos no artigo 48.º, do C. P., para lhe ser reduzidas as penas de prisão, nos termos acima propostos, e em cúmulo jurídico na pena única de 3 anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, mediante regime de prova, nomeadamente continuar com o tratamento da toxicodependência, não habitar com o pai, pois será mais do que suficiente para afastar o arguido da prática de delitos;

o) Pelo que antecede, foram violados na sentença recorrida, os seguintes artigos, 48.º e 70.º do C. P.; 410.º, do C. P. P. e artigo 21.º, do DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro, pelo que a mesma deve ser revogada na parte em que condena o recorrente em cúmulo jurídico, em 5 anos e 8 meses de prisão, substituída por uma pena de 3 anos de prisão, mediante regime de prova (continuar o tratamento da toxicodependência, não consumir mais estupefacientes e não habitar com o pai…) suspensa na sua execução por igual período de tempo (…)»

3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, apresentou resposta, concluindo que:

«(…)

III. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que em nada do alegado deverá levar a alterar a qualificação jurídico-penal.

IV. Não resultando da factualidade dada como assente que o arguido produzia produto estupefaciente (metanfetaminas) exclusivamente para seu consumo, ao invés, foi dado como que se dedicava à produção e venda de metanfetaminas a consumidores, tal facto impede a integração da sua conduta na figura do traficante consumidor, crime previsto e punido nos termos do artigo 26.º. do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

V. Pressuposto da verificação do crime de traficante-consumidor existe, quando os atos previstos no artigo 21.º, do mencionado diploma legal são praticados com o objetivo exclusivo em adquirir produto estupefaciente para consumo próprio.

VI. Ora, tal facto não consta da factualidade dada como provada.

VII. Com efeito e em suma, não tendo ficado provado que o arguido praticou os factos que integram o tipo de ilícito previsto no artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro com a exclusiva finalidade de conseguir plantas, substâncias, preparações ou qualquer outro tipo de produto estupefaciente considerado nas tabelas anexas, fica imediatamente afastada a incriminação pelo crime previsto e punido pelo artigo 26.ºdo mencionado diploma legal.

VIII. Da factualidade dada como provada, não suscitam dúvidas que a conduta do recorrente preenche o tipo legal do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/ 93, de 22 de janeiro, pelo que, nenhum reparo há a fazer ao douto acórdão proferido.

IX. A medida da pena, face aos factos apurados, mostra-se criteriosa e adequada ao caso concreto submetido a juízo, uma vez que está de acordo com os critérios legais.

X. O Tribunal a quo aplicou escrupulosamente os critérios legais, fornecidos pelos artigos 40.º, 71.º, 77.º e 78.º do Código Penal, na determinação das penas parcelares aos crimes pelos quais o arguido foi condenado, bem como na pena única.

XI. E nem se diga que o Tribunal a quo imprime um carácter marcante na medida da pena, quer por referência às necessidades de prevenção geral, quer especial, pois se tivermos em conta a moldura penal do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, de 4 a 12 anos de prisão, com a expressão que representa o perigo de tal crime, na modalidade de produção de metanfetaminas, constatamos que a pena de 5 anos aplicada se circunscreve muito próximo do mínimo legal.

XII. É certo que no que respeita ao crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alínea d), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, a expressividade já foi mais acentuada, tendo o arguido sido condenado na pena de 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão, no entanto, não passou do terço mínimo da respetiva moldura, tendo o arguido já anteriormente sido condenado pela prática de três crimes de violência doméstica, conforme decorre do certificado de registo criminal e dos factos dados como provados 34 e 36.

XIII. Com efeito, encontram-se corretamente definidos e aplicados os parâmetros dentro dos quais tem lugar a fixação da medida concreta da pena não se vislumbra qualquer razão para, no que concerne às penas parcelares, colocar em causa a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

XIV. O mesmo se diga no que respeita à pena única aplicada de cinco anos e oito meses de prisão.

XV. Do exposto, face à pena única aplicada, à qual nada há a apontar, resulta que não se mostra legalmente viável o equacionamento da aplicação da pena de substituição, suspensão da execução da pena.

XVI. Todavia, face às condenações averbadas ao seu certificado de registo criminal, claramente se concluiria que não interiorizou o sentido das condenações e a necessidade de alterar profundamente a sua vida.

XVII. Id est, ainda que a pena única permitisse a ponderação pela pena de substituição, face à factualidade dada como assente, não seria possível formular um juízo de prognose favorável em ordem a uma pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.

XVIII. Ante o exposto, a decisão recorrida não nos merece qualquer reparo e o recorrente não logrou demonstrar nenhum desacerto do Tribunal a quo, ao não aplicar uma pena de única de prisão igual ou inferior a cinco anos e, concomitantemente, não formular a seu respeito um juízo de prognose social favorável, que consinta a opção por suspensão da execução da pena.»

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido parecer de concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, no sentido da improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi apresentado à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

Factos provados

7. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. O arguido AA nasceu em .../.../1977 e é filho de BB e de CC, nascidos a .../.../1944 e .../.../1949, respetivamente.

2. Após o divórcio do arguido, em períodos diferentes e em datas não concretamente apuradas, mas de há cerca de oito anos a esta data, alegando não ter onde ficar, o arguido, pede ao seu pai, BB, para pernoitar em sua casa, ao que este acede.

3. O arguido pede dinheiro ao pai, em quantias que variam entre €20 a €30 por semana ou por dia, sendo que, quando o pai recusa entregar-lhe tais quantias, o arguido torna-se agressivo, começa aos gritos, exigindo-lhe a entrega das quantias em dinheiro, o que o pai, por medo das reações violentas do arguido seu filho, cede entregando o dinheiro.

4. Em data não concretamente apurada, mas em momento em que o pai não tinha a quantia solicitada pelo arguido, este, dirigiu-se ao pai e proferiu as seguintes expressões: “filho da puta, corno, vai para o caralho, ladrão, eu mato-te velho filho da puta”.

5. Em data não concretamente apurada, mas entre os anos de 2016 e 2017, numa moradia contigua à do pai e propriedade também deste, depois do almoço, iniciou-se uma discussão entre o pai e o arguido devido a um berbequim.

6. No decorrer da discussão, o arguido agarrou num tubo de ferro, com cerca de um metro e agrediu o pai com uma pancada no braço direito.

7. No dia 28 ou ... de ... de 2023, depois da hora de almoço, quando o pai do arguido se encontrava no interior da sua viatura a circular na estrada ..., com o arguido, e no decorrer de uma discussão por motivos relacionados com dinheiro, este agarrou num pau que o pai tinha na viatura e desferiu-lhe uma pancada na zona das costelas ao mesmo tempo que proferia seguinte expressão intimidatória: “quando chegarmos a casa vamos falar melhor”.

8. Nesse mesmo dia, pelas 19h00, o pai do arguido encontrava-se no seu quarto, quando o arguido entrou e lhe exigiu dinheiro.

9. Perante a recusa do pai, o arguido agarrou numa catana que o pai possuía junto a uma mesinha de cabeceira e proferiu a seguinte expressão: “era dar-te com esta catana”, desferindo duas pancadas com a mesma, na cama, aterrorizando o ofendido.

10. Com muito medo de que o arguido o atingisse com a catana, o seu pai entregou-lhe todo o dinheiro que possuía na carteira.

11. No dia ... de ... de 2023, pelas 03h00, quando o pai do arguido se encontrava no seu quarto deitado na cama, o arguido entrou e pediu-lhe o cartão da sua conta para efetuar pagamentos em dinheiro, ao que o pai acedeu, com receio de ser agredido.

12. No dia ... de ... de 2023, por volta da 01h00, o arguido pediu novamente o cartão da conta do pai, para efetuar novos pagamentos de dinheiro, tendo este entregue o dito cartão, por receio das agressões do arguido.

13. No dia ... de ... de 2023, após o almoço, ao chegar a casa, o pai do arguido deu um pequeno toque com a sua viatura na entrada do seu prédio, tendo-se deslocado, de seguida, para uma barraca que possui nas traseiras da sua residência.

14. O arguido ao ver o sucedido, foi atrás do pai e já no interior da barraca, e no decurso da discussão que se iniciou entre ambos, empurrou o pai, tendo este caído desamparado no solo.

15. O pai do arguido levantou-se com a ajuda de um bordão, tendo o arguido agarrado o referido bordão, retirou-o das mãos do seu pai e desferiu uma pancada no muro, partindo-o e com isso aterrorizando o seu pai.

16. De seguida, agarrou numa pedra com cerca de um palmo de diâmetro e atirou na direção do muro junto do qual se encontrava o seu pai, tendo a pedra atingido o muro, que fez ricochete e atingiu o pai do arguido no terço inferior da perna direita.

17. Ato continuo, agarrou no bordão partido e desferiu uma pancada no braço esquerdo do pai.

18. No dia ... de ... de 2023, o arguido detinha na sua posse, no interior do bolso das calças 0.41 gramas de haxixe e, no interior do seu quarto, um bastão com cordel preso no punho e um punhal com 11,7 cm de lâmina.

19. Desde data não concretamente apurada, mas, pelo menos, desde ... até ... de ... de 2023, o arguido AA, utilizando a residência do seu pai, onde coabita, (sita na Rua ... (...), lote 59, ... ...), como laboratório, dedica-se à produção e venda de estupefacientes metanfetaminas, em quantidade não concretamente apuradas.

20. Para o efeito da produção das metanfetaminas, o arguido usou:

- Duas navalhas.

- Duas caixas de fósforos Rio Bravo,

- Uma ponção,

- Um alicate,

- Uma tesoura,

- Uma colher de sopa,

- Uma caixa de cinquenta mortalhas,

- três tubos de papel de alumínio,

- um frasco de vinagre de 250 ml,

- uma lamela de comprimidos actifed vazia (que usou),

- Uma espátula,

- Uma caixa de plástico contendo no seu interior dois cachimbos e duas seringas,

- Dois pirex, três tubos de borracha, dois pratos de cerâmica com resíduos de lixa de fósforo,

- Um fogão elétrico, um jarro de vidro de 1 l, um copo de vidro de 500ml,

- Uma garrafa de desentupidor de canos,

- Três garrafas de plástico com diluente,

- Uma garrafa de vidro com vestígios de diluente,

- Uma balança digital de precisão,

- Uma caixa de plástico transparente,

- Um frasco de comprimidos de marca dinaxil vazio (que usou),

- Um frasco de plástico com vestígios de iodo,

- Uma lixa, três caixas de lâminas x-ato de 18 mm,

- Um copo de vidro de 500ml.

21. O arguido AA conhecia a natureza e as características estupefacientes da substância que produziu (metanfetaminas), com o propósito concretizado de consumir e ceder a terceiros.

22. O arguido AA sabia que a detenção, cedência, distribuição, transporte ou comercialização de produto estupefaciente é proibida e punida por lei penal e, não obstante, dedicava-se à sua produção, conforme acima descrito, com intuito de consumir e ceder a terceiros, o que conseguiu.

23. A atividade de produção e venda de estupefacientes, sobretudo metanfetaminas pelo arguido AA, desenvolvia-se ao longo de todos os dias da semana, sendo abordado por consumidores de estupefacientes, sabedores de que este era produtor/vendedor de metanfetaminas, tais como:

a) DD que é consumidor de estupefacientes heroína, haxixe e metanfetaminas, que, pelo menos, desde dezembro de 2022 até abril de 2023, comprou ao arguido AA "Tweak" (metanfetaminas) que este produzia comprando-lhe doses no valor de 10 e 20 euros, uma a duas vezes por semana, consoante o tinha que dinheiro disponível e pagava sempre em dinheiro.

Adquiria o estupefaciente combinando previamente os encontros com o arguido por telemóvel (SMS, messeger, Watsap) quer em casa do arguido nas ..., quer em locais determinados da ....

Chegou também em diversas ocasiões ao longo desse tempo a consumir os ditos produtos na companhia do arguido e cedidos por este;

Por vezes trocava haxixe que tinha na sua posse por “Tweak” produzido pelo arguido AA.

Em regra, trocavam mensagens a combinar a entrega do estupefaciente.

O arguido AA enviava a seguinte mensagem ##já tens aquilo para mim##, sendo que «aquilo» significava «dinheiro» para comprar as metanfetaminas.

b) EE, que é consumidor de estupefacientes metanfetaminas e, pelo menos, desde dezembro de 2022 até março de 2023, comprou quatro vezes por mês ao arguido AA "Tweak" (metanfetaminas) que este produzia, pagando-lhe em serviços de ... e, por duas vezes, comprando-lhe doses no valor de 10 e 20 euros, consoante o dinheiro que tinha disponível.

Era em regra o arguido quem o contactava por telefone a avisar que já tinha metanfetaminas para venda.

Por vezes as aquisições eram feitas na residência do arguido AA, outras vezes era este quem se deslocava à oficina de ... denominada A... ......., sita na ..., pertencente a EE.

O pagamento era em regra feito em dinheiro, mas, por vezes o pagamento era efetuado através da prestação de serviços de ... pela testemunha ao arguido.

c) FF que foi consumidor de estupefacientes metanfetaminas, sabia que o arguido AA "Tweak" (metanfetaminas) que este produzia e vendia. Atualmente já não consome, mas emprestou o telemóvel a amigos para este combinarem com o arguido a aquisição de metanfetaminas, o que ocorreu, pelo menos, entre dezembro de 2022 e março de 2023. Comprava ao arguido doses de €20.00.

d) GG, usa o perfil do Messenger «GG».

Era através desse perfil com que estabelecia contacto com o arguido para combinar as aquisições de estupefaciente.

A aquisição do estupefaciente era sempre feita na residência do pai do arguido AA, sita na ..., ....

Desde, pelo menos, dezembro de 2022 até março de 2023, comprou ao arguido estupefacientes metanfetaminas e heroína uma ou duas vezes por semana a preços entre €10,00 e €20,00.

e) HH é consumidor de estupefacientes heroína, e metanfetaminas.

Comprou ao arguido, através de um amigo, por duas vezes metanfetaminas produzidas pelo arguido AA "Tweak" (metanfetaminas), pagando o preço de €20.00 por cada uma das doses que este produzia comprando-lhe doses no valor de 10 e 20 euros, entre, pelo menos, dezembro de 2022 e abril de 2023.

f) II que é consumidor de estupefacientes heroína, haxixe e metanfetaminas.

Conheceu o arguido AA há cerca de cinco anos atrás através de amigos em comum ficando aí a saber quer o mesmo produzia e vendia metanfetaminas “Tweak”.

Entre, pelo menos, dezembro de 2022 e abril de 2023, começou a comprar ao arguido AA "Tweak" (metanfetaminas) que este produzia comprando-lhe doses no valor de 10 e 20 euros.

Comprou, pelo menos, duas vezes metanfetaminas ao arguido.

Os contactos com vista à aquisição do estupefaciente eram feitos por telefone (SMS, Messenger e Watsap).

g) JJ é consumidor de estupefacientes heroína, haxixe e metanfetaminas e conhece o arguido AA, como produtor/vendedor de “Tweak” há cerca de oito anos.

Comprava “Tweak” (metanfetaminas) ao arguido AA, pois sabia que o mesmo se dedicava á produção desse estupefacienete.

Comprava doses no valor de 20 e os 40 euros, o que fazia em média duas vezes por semana, durante pelo menos dois meses até abril de 2023.

Os contactos com vista à aquisição do estupefaciente eram feitos por telefone (SMS, Messenger e Watsap).

24. O arguido quis maltratar física e psicologicamente o seu pai, sabendo que, com tal conduta, lhe causava dor física, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que o mesmo se sentisse menorizado e humilhado, o que assim logrou, bem sabendo que o afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-lo na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.

25. O arguido praticou tais factos na privacidade da residência, aproveitando-se da idade avançada de seu pai, pessoa indefesa.

26. Devido à sua idade e às dificuldades de locomoção (caminha com o apoio de um bordão), BB, pai do arguido, não tem forma de se defender, nem como colocar o arguido fora da sua casa.

27. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde do seu pai, estado psíquico e pelo seu bem-estar, sabendo que as suas condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei e não se inibiu da sua realização.

28. O arguido não se encontrava legitimado para deter o punhal e o bastão acima descritos, tendo perfeito conhecimento da natureza e características dos referidos objetos, bem sabendo que se trata de objetos sem qualquer aplicação definida, que podem ser utilizados como arma de agressão, não tendo justificado a sua posse.

29. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo a natureza e as características estupefacientes dos produtos que produzia, detinha e comercializava e do efeito nocivo para o corpo humano que as metanfetaminas tinham, sabendo que não dispunha de autorização que o habilitasse a produzi-las e detê-las sob qualquer forma, estando consciente que a sua produção, aquisição, detenção, cedência e/ou venda, sem as necessárias autorizações, eram proibidas e punidas por lei penal.

30. O estupefaciente e todas as substâncias e materiais detidos pelo arguido AA (heroína, metanfetamina, pseudoefedrina, ácido clorídrico, canabis) destinavam-se (o material e princípios ativos) à produção para venda de metanfetaminas.

31. O arguido AA sabia que todos os seus comportamentos, acima descritos, não lhe eram permitidos, porquanto proibidos e punidos por lei, mas, apesar de o saber, quis atuar da forma descrita, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente.

Do certificado do registo criminal do arguido AA.

32. Por sentença transitada em julgado em 19/11/2007, proferida no Processo Comum Singular nº 539/05.1..., que correu termos no Tribunal Judicial de ..., 2.º Juízo, referente a factos cometidos em 29/05/2005, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203.º, nº 1, do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, o que perfaz o total de € 440,00, cujo pagamento foi autorizado em quatro prestações mensais, tendo a pena de multa sido declarada extinta pelo pagamento por despacho de 14/04/2008 (boletins nºs 1 e 2 de Registo Criminal).

33. Por sentença transitada em julgado em 06/10/2010, proferida no Processo Sumaríssimo nº 145/09.1..., que correu termos no Tribunal Judicial da ..., referente a factos cometidos em 05/07/2008, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos art.ºs 292.º, nº 1, e 69.º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 7, o que perfaz o total de € 420,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, tendo a pena de multa sido declarada extinta pelo pagamento por despacho de 27/11/2014 e a pena acessória sido declarada extinta pelo cumprimento por despacho de 10/02/2011 (boletins nºs 3, 4 e 5 de Registo Criminal) .

34. Por sentença transitada em julgado em 30/05/2016, proferida no Processo Comum Singular nº 376/15.5..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, juízo local criminal da ..., referente a factos cometidos em 28/10/2015, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeitando a suspensão a regime de prova, a incidir especialmente no controlo do consumo de produtos estupefacientes, e à condição de o arguido não contatar, por qualquer meio, presencial ou à distância, com a ofendida KK, tendo a pena sido declarada extinta nos termos do art.º 57.º do Código Penal, por despacho de 30/11/2018 (boletins nºs 6 e 7 de Registo Criminal).

35. Por sentença transitada em julgado em 12/10/2016, proferida no Processo Sumaríssimo nº 803/13.6..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, juízo local criminal de ..., referente a factos cometidos em 10/10/2013, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203.º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 500,00, a qual foi convertida em 66 dias de prisão subsidiária, tendo a pena de multa sido declarada extinta pelo pagamento por despacho de 10/07/2017 (boletins nºs 8, 9, 10 e 11 de Registo Criminal).

36. Por sentença transitada em julgado em 19/02/2018, proferida no Processo Comum Singular nº 133/16.1..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, juízo local criminal da ..., referente a factos cometidos em 12/03/2016, o arguido AA foi condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo art.º 152.º, nº 1, al. d), e nº 2, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e à condição de o arguido não contatar, por qualquer meio, presencial ou à distância, com os ofendidos LL e MM contra a vontade dos mesmos, tendo a pena sido declarada extinta pelo cumprimento, por despacho de 11/03/2022 (boletins nºs 12 e 13 de Registo Criminal).

37. Por sentença transitada em julgado em 01/04/2019, proferida no Processo Sumaríssimo nº 221/15.1..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, juízo local criminal de ..., referente a factos cometidos em 05/07/2015, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203.º, nº 1, do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 750,00, a qual foi convertida em 100 dias de prisão subsidiária, tendo a pena de multa sido declarada extinta pelo pagamento por despacho de 22/01/2020 (boletins nºs 14, 15 e 16 de Registo Criminal).

38. Por sentença transitada em julgado em 05/05/2021, proferida no Processo Comum Singular nº 19/16.0..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, juízo de competência genérica da ..., referente a factos cometidos em 05/07/2016, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 25.º, al. a), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22/01, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tendo a pena sido declarada extinta nos termos do art.º 57.º do Código Penal, por despacho de 25/11/2022 (boletins nºs 17 e 18 de Registo Criminal).

39. Por sentença transitada em julgado em 23/11/2021, proferida no Processo Sumaríssimo nº 203/17.9..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, juízo local criminal de ..., referente a factos cometidos em 2013, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 25.º, al. a), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22/01, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e condicionada à frequência de programa, curso ou atividade relacionada com a dissuasão do consumo de estupefacientes e com a realização de tratamento de desintoxicação e/ou qualquer outro que a DGRSP tiver por indicados ao caso, a ministrar por esta ou por outra instituição por esta indicada (boletim nº 19 de Registo Criminal).

Da situação pessoal, social e económica do arguido AA.

40. Na data da aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva ocorrida em 5 de abril de 2023, o arguido residia com a companheira, relacionamento que decorria desde 2019, na habitação do progenitor, mantendo um estilo de vida pouco estruturado, dependendo do suporte económico daquele.

41. NN não exercia qualquer atividade profissional regular, sendo o progenitor a assegurar as necessidades básicas do arguido.

42. O casal beneficiou de apoio ao nível de rendimento social de inserção, que, contudo, lhe veio a ser cessado, com fundamento na reforma de que o pai do arguido é beneficiário.

43. O arguido encontrava-se desempregado e sem qualquer atividade estruturada.

44. NN encontrava-se integrado no Programa de tratamento da toxicodependência, com toma de metadona, a que deu continuidade em contexto prisional.

45. O arguido mantinha frequentemente o consumo paralelo de estupefacientes, nomeadamente haxixe e heroína, reconhecendo dificuldades em manter-se abstinente, mas desvalorizando o impacto de tais consumos no seu quotidiano.

46. NN é oriundo de um agregado familiar de mediana condição socioeconómica e cultural, sendo o mais novo de dois elementos.

47. O pai foi ..., atualmente está reformado, e a mãe era doméstica e faleceu há cerca de 6 anos.

48. NN tem, nos últimos anos, recorrido com frequência ao acolhimento na habitação do progenitor, sendo frequentes os conflitos com este.

49. NN concluiu o 6.º ano de escolaridade e integrou de imediato o mercado de trabalho.

50. O arguido trabalhou, maioritariamente, de forma precária, na área da construção civil, com frequentes períodos de inatividade e progressivamente com maiores dificuldades de inserção laboral, mantendo-se há vários anos desempregado.

51. Com 21 anos de idade, NN contraiu matrimónio com OO, tendo a sua rutura ocorrido em 2015, num ambiente de conflituosidade, vindo o arguido a ser condenado judicialmente por crimes de violência contra a ex-mulher e contra os filhos de ambos, atualmente com 23 e 17 anos respetivamente.

52. O arguido iniciou o consumo assíduo de canabinóides com 14 anos de idade.

53. Com cerca de 18 anos, NN iniciou consumos de heroína, tornando-se dependente daquela substância psicoativa.

54. Após a rutura do casamento, o arguido recaiu nos consumos de heroína e começou a consumir anfetaminas de forma intensa, mantendo, desde então, um percurso inconstante nos tratamentos de substituição opiácea que vai integrando e alternando com períodos de intensificação de consumo de produtos estupefacientes.

55. Socialmente, NN é associado a uma imagem de desorganização pessoal, dependência aditiva e desemprego.

56. O arguido tende a uma postura de vitimização, desvalorizando o seu percurso criminal e denotando acentuadas fragilidades em termos de avaliação crítica.

57. O arguido evidencia dificuldades de resolução de problemas, com um estilo de funcionamento impulsivo e uma perceção da sua situação autocentrada.

58. Preso preventivamente à ordem do presente processo desde abril de 2023, em contexto prisional mantém o tratamento da toxicodependência, com substituição por metadona, ainda que com dificuldades em manter-se abstinente.

59. Apresenta algumas dificuldades de cumprimento das regras internas, com registo de várias sanções disciplinares.

60. Inicialmente beneficiou do suporte da companheira, com visitas regulares, contudo ocorreu o fim da relação há cerca de 3 meses

61. O arguido beneficia de visitas e apoio económico regular do progenitor.»

Âmbito e objeto do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP), e limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocados vícios ou nulidades a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, de que cumpra conhecer [alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro].

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso, em vista da boa decisão de direito, dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017).

9. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir da qualificação jurídica do tráfico de estupefacientes e da adequação e proporcionalidade das penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) e da pena única, que o recorrente pretende ver reduzidas para medida não superior a 3 anos de prisão, com suspensão da execução da pena.

Quanto ao crime de tráfico

10. Alega o recorrente ter cometido um crime «de traficante/consumidor, p. e p. pelo artigo 26.º, da Lei da Droga» (Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro) e não um crime de tráfico da previsão do artigo 21.º do mesmo diploma.

Dispõe o artigo 26.º, sob a epígrafe «Traficante-consumidor»:

«1 - Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

2 - A tentativa é punível.

3 - Não é aplicável o disposto no n.º 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.»

E o artigo 21.º («Tráfico e outras actividades ilícitas»):

«1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

2 - Quem, agindo em contrário de autorização concedida nos termos do capítulo II, ilicitamente ceder, introduzir ou diligenciar por que outrem introduza no comércio plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.

3 - Na pena prevista no número anterior incorre aquele que cultivar plantas, produzir ou fabricar substâncias ou preparações diversas das que constam do título de autorização.

4 - Se se tratar de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV, a pena é a de prisão de um a cinco anos.»

11. Quanto à qualificação jurídica dos factos provados, o acórdão recorrido, estabelecendo a distinção entre os crimes da previsão dos artigos 21.º (tráfico), 24.º (tráfico agravado) e 25.º (tráfico de menor gravidade), sem fazer referência ao crime da previsão do artigo 26.º (traficante-consumidor) que o arguido agora convoca em recurso, considerou que se mostra preenchido o tipo de crime da previsão do artigo 21.º, fazendo-o nos seguintes termos:

«Estabelece o art.º 21.º, nº 1, do citado Dec.-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, sob a epígrafe «Tráfico e outras atividades ilícitas», que: [transcrição]

As metanfetaminas pertencem à Tabela II-B, anexa ao Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.

Neste crime formal de perigo comum de execução continuada, o bem jurídico protegido é, fundamentalmente, o da saúde pública, pelo que o tipo legal fica preenchido com a simples detenção de substâncias estupefacientes que, pelas suas qualidades, sejam nocivas para a saúde humana e estejam previstas na lei, pelo perigo que tal situação potencia, mas desde que fora dos casos previstos no art.º 40.º do mesmo diploma legal.

A respeito deste tipo de crime e da delimitação do seu âmbito de aplicação por confronto aos tipos de tráfico agravado (art.º 24.º do Dec.-Lei nº 15/93) e privilegiado (art.º 25.º do Dec.-Lei nº 15/93), leia-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 08/11/2017, (…) proferido no Processo nº 590/15.3T9SNT.L1-3 e disponível em www.dgsi.pt»,

dele citando, designadamente, que:

«(…) sabe-se que o mencionado DL 15/93 desenhou um tipo base ou fundamental de tráfico de estupefacientes - o descrito no seu Art.º 21.º - ao qual aditou certas circunstâncias atinentes à ilicitude, que agravam (Art.º 24.º) ou atenuam (Art.º 25.º) a pena prevista para o crime fundamental: o primeiro, destinado a cobrir os casos de média e grande dimensão; o segundo, para prevenir os casos de excepcional gravidade; o terceiro, para combater os de pequena gravidade, designadamente o pequeno tráfico de rua.

A avaliação da ilicitude de um facto criminoso como consideravelmente agravada ou especialmente atenuada envolve necessariamente uma avaliação global de todos os factos que interessam àquele elemento do tipo. (…)»

Concluindo:

«Os factos provados nºs 19 a 23, 29, 30 e 31 integram a prática pelo arguido de um crime de Tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo art.º 21.º, nº 1, do citado Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.

Os factos dados como provados permitem afastar a possibilidade de punir o arguido pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, porquanto revelam um grau de perigosidade elevado em termos de difusão das metanfetaminas, o que faz com que a ilicitude dos factos não se revele diminuída, mas médio-elevada.»

12. A questão da qualificação dos factos como crime de tráfico de «traficante-consumidor», nos termos do artigo 26.º, constitui, por conseguinte, uma questão nova, porque não apreciada no tribunal recorrido.

Como se tem notado (por todos, o acórdão de 25.10.2023, Proc. n.º 96/16.3T9ALD.C1.S1, em www.dgsi.pt), os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa, nem de questões não apreciadas na decisão recorrida, sem prejuízo do regime de suprimento de nulidades; constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, Castanheira Neves, «A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”», in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523ss, acórdãos de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, e jurisprudência e doutrina neles citada, em www.dgsi.pt). Verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objeto do conhecimento do recurso delimita-se pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão da causa.

É assim que o recurso se constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objeto de decisão do tribunal de que se recorre (cfr. também o acórdão de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt).

13. Tendo em conta os amplos poderes de conhecimento (oficioso) do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de direito, dir-se-á, todavia, que a decisão do tribunal a quo não merece censura.

Com efeito, o artigo 26.º requer dois pressupostos que, no caso, não se verificam: que o agente tenha por finalidade exclusiva conseguir as substâncias ou preparações para uso pessoal (n.º 1) e que a quantidade destas não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias (n.º 2) (cfr. acórdão de 9.2.2022, processo n.º174/16.9T9TVD.L1.S1, em www.dgsi.pt e jurisprudência nele citada, nomeadamente os acórdãos de 7.4.2008, processo n.º 08P571, e de 27.7.2006, processo n.º 06P2815, bem como no acórdão de 7.6.2017, processo n.º 15/16.7GTABF.E1.S1, este no sentido de que, por virtude do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2020, de 29.11, se deve considerar alterado, de cinco para dez dias, o prazo referido no n.º 2 do artigo 26.º, não obstante a caducidade da Proposta de Lei n.º 33/VIII, de 15.6.2000, que visava tal alteração (DAR II série-A, n.º 52, de 28.6.2000 e https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=6003).

Como resulta dos factos provados, o arguido dedicava-se à produção e à venda direta aos consumidores que o procuravam e desenvolveu-se «ao longo de todos os dias da semana» pelo menos desde dezembro de 2022 a março de 2023.

O que, excluindo a possibilidade de preenchimento da previsão da norma do artigo 26.º, determina a improcedência do recurso, nesta parte.

Quanto às penas aplicadas aos crimes em concurso (penas parcelares)

14. O acórdão recorrido concluiu que o arguido praticou três crimes, em concurso (artigo 30.º, n.º 1, do CP): um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, a que aplicou a pena de pena de 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão, um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela II-B anexa ao mesmo diploma legal, a que aplicou a pena de 5 (cinco) anos de prisão e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido art.º 86.º n.º 1, alínea d), por referência aos art.ºs 2.º, n.º 1, al. m) e 3.º, nºs 1 e 2, alíneas g) e ab), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que puniu com a pena de 2 (dois) meses de prisão (por respeito à detenção de um bastão com cordel preso no punho e de um punhal com 11,7 cm de lâmina).

Não subsistem questões relativas à qualificação jurídica dos factos, que fixa as molduras das penas a partir das quais é determinada a medida concreta da pena (“dentro dos limites da lei” – artigo 71.º, n.º 1, do CP), cujos fundamentos são expressamente referidos na sentença (artigo 71.º, n.º 3, do CP e 375.º, n.º 1, do CPP).

15. A determinação da medida das penas parcelares encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

«O crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art.º 152.º, nº 1, alínea d) e nº 2, do Código Penal, a que se aplica as penas acessórias previstas nos nºs 4 e 5 da mesma norma penal, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

O crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, é punido com pena de prisão de 4 anos a 12 anos.

O crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos art.ºs 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, por referência por referência aos art.ºs 2.º, nº 1, al. m) e 3.º, nºs 1 e 2, alíneas g) e ab) do mesmo diploma legal, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa de 10 a 480 dias.

Na determinação da medida concreta da pena de prisão a aplicar ao arguido, importa atender à culpa do agente e às exigências de prevenção - art.º 71.º, nº 1, do Código Penal -, sendo, nomeadamente, as circunstâncias gerais enunciadas no nº 2, deste artigo, relevantes quer para a culpa quer para a prevenção.

A culpa funciona como limite máximo da pena (art.º 40.º, n.º 2, do Código Penal), fornecendo a prevenção geral positiva – proteção dos bens jurídicos dignos de tutela penal – o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. É dentro destes limites que devem atuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente.

Desde modo, e concretizando a intervenção destes fatores com recurso, nomeadamente, às circunstâncias do art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal, há a considerar:

Quanto ao crime de violência doméstica agravada:

O grau de ilicitude dos factos é elevado, tendo em conta o tipo de agressões físicas e psíquicas infligidas pelo arguido ao seu pai, as zonas do corpo atingidas e os instrumentos utilizados (ex. bordão de madeira).

Na componente subjetiva da ilicitude, há ainda a considerar o dolo que foi direto.

A culpa do arguido no contexto do crime cometido é mediana, sendo que as agressões físicas e psíquicas infligidas no seu pai visavam forçá-lo a dar-lhe dinheiro para custear o consumo de estupefacientes de que é dependente.

As necessidades de prevenção geral são elevadas, atento o grande alarme que este crime provoca na comunidade.

O arguido apresenta antecedentes criminais pela prática de dois crimes de violência doméstica, facto que milita contra si (cfr. factos provados nºs 34 e 36).

O arguido reconheceu, na sua essência, os factos que lhe são imputados, o que milita a seu favor, contudo adotou uma postura autocentrada e de vitimização, revelando baixo juízo crítico sobre os factos cometidos, sendo consumidor de produtos estupefacientes desde os 14 anos de idade, revelando-se elevadas as necessidades de prevenção especial.

Tudo ponderado, o tribunal coletivo considera adequado condenar o arguido AA na pena de 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art.º 152.º, nº 1, alínea d) e nºs 2, 4 e 5, do Código Penal, e na pena acessória de proibição de contactos com BB, seu pai, pelo período de 2 (dois) anos.

Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes:

O grau de ilicitude dos factos é elevado, tendo em conta que se dedicava à produção e venda de metanfetaminas a consumidores.

Na componente subjetiva da ilicitude, há ainda a considerar o dolo que foi direto.

A culpa do arguido no contexto do crime cometido é mediana, tendo em conta que era consumidor dos produtos estupefacientes que produzia.

As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, atento o grande alarme que este crime provoca na comunidade, em face dos elevados efeitos nocivos e destrutivos do sistema nervoso central que o consumo de metanfetaminas origina, da criminalidade associada ao consumo de tais substâncias decorrente do seu elevado custo (ex. furtos e roubos) e do efeito devastador que tem junto das famílias que integram consumidores de produtos estupefacientes.

O arguido apresenta antecedentes criminais pela prática de dois crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, facto que milita contra si (cfr. factos provados nºs 38 e 39).

O arguido reconheceu, na sua essência, os factos que lhe são imputados, o que milita a seu favor, contudo adotou uma postura autocentrada e de vitimização, revelando baixo juízo crítico sobre os factos cometidos, sendo consumidor de produtos estupefacientes desde os 14 anos de idade, revelando-se elevadas as necessidades de prevenção especial.

Tudo ponderado, o tribunal coletivo considera adequado condenar o arguido AA na pena de 5 (cinco) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo art.º 21.º, nº 1, do Dec.-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, com referência à Tabela II-B, anexa ao mesmo diploma legal.

Quanto ao crime de detenção de arma proibida (detenção de um bastão com cordel preso no punho e um punhal com 11,7 cm de lâmina):

O grau de ilicitude dos factos é elevado, tendo em conta o elevado potencial lesivo da integridade física e da vida humanas do bastão com cordel preso no punho e do punhal que o arguido detinha no seu quarto.

Na componente subjetiva da ilicitude, há ainda a considerar o dolo que foi direto.

A culpa do arguido no contexto do crime cometido é mediana, detendo as armas para evitar que as pessoas (consumidores de estupefacientes) que frequentavam o seu quarto subtraíssem os seus pertences.

As necessidades de prevenção geral são elevadas, atento o grande alarme que este crime provoca na comunidade, em face do elevado potencial lesivo da vida e integridade física que o bastão com cordel preso no punho e o punhal com 11,7 cm de lâmina apreendidos ao arguido apresenta.

O arguido apresenta antecedentes criminais pela prática de dois crimes de violência doméstica, dois crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, três crimes de furto e um crime de condução em estado de embriaguez, facto que milita contra si (cfr. factos provados nºs 32 a 39).

O arguido reconheceu, quanto a este crime, todos os factos que lhe são imputados, o que milita a seu favor, contudo adotou uma postura autocentrada e de vitimização e invocando a necessidade da sua detenção para evitar que subtraíssem os seus pertences da parte dos consumidores de estupefacientes que frequentava o seu quarto, revelando baixo juízo crítico sobre os factos cometidos, revelando-se medianas as necessidades de prevenção especial.

Afastamos a aplicação da pena de multa ao arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, porquanto afigura-se-nos que, atento o grande potencial lesivo da vida e da integridade física humanas do bastão com cordel preso no punho e do punhal com 11,7 cm de lâmina que o arguido detinha e a ausência de juízo crítico pelo arguido quanto aos factos cometidos, a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, termos em que optamos pela aplicação ao arguido de uma pena de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida em apreço (cfr. art.º 70.º do Código Penal).

Tudo ponderado, o tribunal coletivo considera adequado condenar o arguido AA na pena de 2 (dois) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida (por respeito ao bastão com cordel preso no punho e o punhal com 11,7 cm de lâmina), previsto e punido pelo art.º 86.º n.º 1, alínea d), por referência ao art.ºs 2.º, n.º 1, al. m) e 3.º, n.ºs 1 e 2, alíneas g) e ab), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.»

16. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Como repetidamente se tem afirmado (por todos, o acórdão de 29.5.2024, Proc. n.º 600/22.8SXLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, que se segue), a determinação da medida da pena, dentro da moldura abstrata da pena correspondente ao tipo de crime preenchido pelos factos provados, que corresponde ao primeiro momento de determinação da pena, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (personalidade manifestada no facto) – fatores relativos à execução do facto, à personalidade e à conduta do agente, anterior e posterior ao facto –, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a seu favor ou contra ele considerando (artigo 71.º do Código Penal).

Para a medida da gravidade da culpa, de acordo com o artigo 71.º, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências e intensidade do dolo ou da negligência), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram e o grau de violação dos deveres impostos ao agente [als. a), b) e c)], bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto, e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. d), e), f)].

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto (v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves, comportamento anterior e posterior ao crime (com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. a) e) e f)]. O comportamento do agente [als. e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

É na determinação e consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação, constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição; assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit.).

17. Em síntese, o arguido funda a sua discordância na convocação, a seu favor, de fatores relacionados com as suas condições pessoais, económicas e familiares, em particular nas circunstâncias de ser «pessoa com fraca instrução», viver «no limiar da pobreza», sendo o seu progenitor, a vítima do crime de violência doméstica quem «lhe dava habitação e alimentação», de ter sido perdoado por este, que o visita na prisão, ser «toxicodependente desde tenra idade», ter de recorrer ao fabrico de drogas que vendia para financiar o seu consumo, o que «muitas vezes não conseguia e por isso pedia abusivamente dinheiro ao progenitor», ter confessado os factos, mostrar-se arrependido e pretender «arrepiar caminho, e quando livre, viver uma vida correta e normal».

Estas circunstâncias encontram-se, de um modo geral, refletidas nos factos provados e na fundamentação da determinação das penas, que o acórdão recorrido considera autonomamente em relação a cada um dos crimes. Ponderadas em conjunto com as circunstâncias relativas aos factos, quer por via da culpa, quer por via da prevenção, não se mostram, todavia, de considerável valor favorável ao arguido.

O comportamento anterior aos crimes, revelado pelos antecedentes criminais, ao longo de anos, o desinteresse e a incapacidade para alterar esse comportamento, dominado pela toxicodependência, nomeadamente através de penas suspensas na sua execução, que não foram suficientes para evitar a repetição de atos de idêntica natureza, e a reiteração e intensidade das condutas, em grave violação dos deveres de respeito e solidariedade inerentes à relação familiar com a vítima, seu pai, «aproveitando-se da idade avançada» deste, «pessoa indefesa» que o protegia, lhe dava abrigo, alimentação e dinheiro, que utilizava para sustentação da dependência das drogas, revelam uma personalidade particularmente desvaliosa, projetada em cada um desses factos.

As circunstâncias relativas aos factos e às condições pessoais do arguido militam severamente contra o arguido, por via da culpa, sendo elevado o grau de censurabilidade, e evidenciam acentuadas necessidades de socialização (prevenção especial), a prosseguir por via da aplicação da pena.

Assim sendo, na ponderação de todos estes fatores, e tendo em conta as molduras das penas aplicáveis, não se identifica fundamento que justifique a conclusão de que as penas aplicadas se encontram fixadas em desconformidade com o estabelecido no artigo 71.º do CP, em violação dos limites impostos pela culpa (artigo 40.º do CP) e, em consequência, uma intervenção corretiva fundada em inobservância do critério de proporcionalidade constitucional e legalmente imposto.

Termos em que, nesta parte, improcede o recurso.

Quanto à pena única

18. Realizando o cúmulo jurídico das penas aplicadas aos crimes em concurso, o tribunal a quo aplicou a pena única de 5 anos e 8 meses de prisão.

Fundamentou sumariamente a decisão de determinação da pena nos seguintes termos:

«Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas (cfr. art.º 77.º do Código Penal), o tribunal coletivo considera adequado, tendo em conta, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido e que a pena a aplicar terá de situar-se entre o mínimo de 5 (cinco) anos de prisão (pena parcelar mais elevada) e o máximo de 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de prisão (correspondente ao somatório das penas parcelares, atento o disposto no art.º 77.º, nº 2, do Código Penal), condenar o arguido AA, na PENA ÚNICA de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB, seu pai, pelo período de 2 (dois) anos.»

19. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção atrás mencionados (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, como critério especial, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S, cit. e de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1).

Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça e o que se tem consignado em acórdãos anteriores, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”, na sua complexidade), sendo importante, na avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

Há que atender ao «fio condutor» presente na «repetição criminosa», às relações entre os factos praticados reveladas pelas circunstâncias destes e pelas circunstâncias pessoais relativas ao agente que permitam identificar caraterísticas da personalidade com projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração, nomeadamente, a natureza destes e a identidade, semelhança e conexão entre os bens jurídicos violados, «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» (assim, o acórdão de 26.6.2024, Proc. 14/22.0GBBRG.G1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele mencionada).

«Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 291).

20. No essencial, a favor da pretensão da redução da pena única, invoca o recorrente os argumentos já anteriormente indicados quanto às penas parcelares.

21. É manifestamente escassa a fundamentação, nela não se surpreendendo uma justificação autónoma da decisão de determinação da pena única.

Considera-se, porém, que os factos provados contêm os elementos necessários à verificação do respeito pelos critérios legais de determinação da pena única.

22. O conjunto dos crimes em concurso é, como se viu, constituído por três crimes, um de violência doméstica, um de tráfico de estupefacientes e outro de detenção ilegal de arma.

De acordo com as regras de punição do concurso, a pena única deve fixar-se entre 5 anos (pena mais elevada) e 8 anos e 9 meses de prisão (correspondente à soma das penas aplicadas).

Identifica-se uma forte conexão entre os crimes praticados, prolongados e repetidos no tempo, em violação de bens jurídicos diversos, no mesmo contexto espacial e de relação familiar com a vítima dos crimes de violência doméstica, com reiterada e grave violação de deveres impostos ao arguido na sua relação com esta.

O conjunto dos factos praticados revela, como se disse, uma personalidade desvaliosa, evidenciando insensibilidade às penas anteriormente aplicadas e manifesta falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita e, em consequência, elevadas necessidades de prevenção especial.

Assim, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do arguido (artigos 71.º e 77.º, n.º 1, do Código Penal), também não se encontra fundamento que justifique a alteração da pena única, fixada em medida próxima do seu limite mínimo, sem ofensa dos critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua determinação.

Pelo que improcede também o recurso nesta parte.

23. A confirmação da pena única, de 5 anos e 8 meses de prisão, obsta ao conhecimento da questão da suspensão da sua execução, por a isso se opor o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que apenas a admite relativamente a penas de medida não superior a cinco anos.

Quanto a custas

24. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

25. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de setembro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (Relator)

Horácio Correia Pinto (Adjunto)

Antero Luís (Adjunto)