Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
279/24.2JELSB-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO
EXCECIONAL COMPLEXIDADE
ACUSAÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 01/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
Declarada que foi a especial complexidade, o prazo de prisão preventiva até à dedução de acusação é de um ano, por força do disposto no nº 3 do art. 215º do Código de Processo Penal, porquanto o crime indiciado é um dos previstos no nº 2 da mesma norma (“crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos”).
Decisão Texto Integral:

Acordam em audiência no Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

AA, preso preventivamente à ordem dos autos acima identificados veio ”nos termos e para os efeitos dos artigos 222º e 223º do Código de Processo Penal, apresentar pedido de HABEAS CORPUS”, com os seguintes fundamentos:

«1.º O arguido foi sujeito à Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido, tendo sido determinada a aplicação da medida de coação mais gravosa, de prisão preventiva, prevista no artigo 202º do C.P.P., por Decisão Judicial proferida no dia 28/06/2024, que considerou existirem fortes indícios da prática de crimes.

2.º O arguido invoca a presente providência de Habeas Corpus, por forma a ver tutelado o seu direito à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental do cidadão e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais.

3.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, razão pela qual não pode, igualmente, ser mantido a privação da liberdade com base em uma ordem de prisão ilegal, que desrespeite o devido processo legal.

4.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos assegura especificamente que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a detenção ou prisão arbitrárias, que só poderia ser mitigado se fundamentado por lei e desde que respeitados os procedimentos legalmente estabelecidos.

5.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal a toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de prisão ilegal, deve ordenar a sua liberdade.

6.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal.

7.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31º, a providência do Habeas Corpus como sendo uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, a ser decidida no prazo de 08 (oito) dias.

8.º Quanto à competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam quaisquer dúvidas de que tal incumbência recai ao STJ, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222º do CPP.

9.º Nesse sentido, o arguido reivindica através deste remédio excepcional a intervenção do poder judicial para imediatamente fazer cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notórios abusos de autoridade, razão pela qual pretende ver restituída a sua liberdade, pois encontra-se ilegalmente privado da sua liberdade física.

10.º Sucede que até a presente data, a Acusação ainda não foi apresentada, situação que viola o disposto no artigo 215º, n.º 2 do CPP, que prevê um prazo máximo de duração da prisão preventiva de 06 (seis) meses, tampouco ocorreu a atribuição de excepcional complexidade aos presentes autos.

11.º Portanto, já transcorreu o prazo máximo de 06 meses e considerando que ainda não foi proferida a Acusação, a prisão preventiva extingue-se, por estar configurada notória ilegalidade, em virtude do excesso de prazo.

12.º Tendo sido extrapolado o prazo máximo da prisão preventiva e estando excedido o limite legalmente instituído, o arguido apresenta o presente Habeas Corpus e requer seja determinada a sua libertação imediata.

13.º Ora bem, o artigo 215º do CPP determina que:

"1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido;

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos."

14º Assim, o prazo da prisão preventiva acabou por atingir o seu prazo máximo de duração, pois extrapolou o limite de 06 (seis) meses desde que a sua determinação.

15.º Nos presentes autos, jamais foi atribuída excepcional complexidade, razão pela qual as Autoridades não beneficiam de qualquer dilação ou ampliação dos prazos para encerrar o inquérito.

16.º Logo, o prazo máximo da prisão preventiva, nos presentes autos, acabou por ser ultrapassado, situação que determina a conclusão de que a medida de coacção mais severa tornou-se ilegal, por excesso de prazo.

17.º Mesmo que o recebimento da acusação venha ainda a ser realizado, o facto é que revestirá de evidente ilegalidade, isso porque será extemporâneo, situação que determina, na mesma, a ilegalidade da manutenção da medida de prisão preventiva.

18.º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 22º do CPP, que determina que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”

19.º Considerando que o prazo máximo da prisão preventiva restou ultrapassado, concluímos que a manutenção da reclusão do Arguido no Estabelecimento Prisional ..., representa um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, é ilegal e inconstitucional, na forma do Artigo 22º nº 2 alínea c) do CPP.

20.º Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2o, 20º nº 4, 27º nº 2, 28º nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que o Arguido não pode ser privado da sua liberdade quando tenham esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que vigora a presunção de inocência.

CONCLUSÃO:

Diante do exposto, resta configurada a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do Arguido, razão pela qual requer à Vossas Excelências, o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a imediata libertação do Arguido, isso porque o prazo legalmente previsto para a prisão preventiva encontra-se ultrapassado, diante do excesso de prazo de 06 meses, sem que tenha sido deduzido o Despacho de Acusação.

Foi prestada informação judicial a que alude o art. 223º nº 1 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:

«1. Aquando da realização do Primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado a 28 de junho de 2024, foi aplicada ao arguido AA, a medida de coação de prisão preventiva.

2. O arguido está indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefaciente previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B.

3. Por despacho de 29 de outubro de 2024 foi declarada a excecional complexidade dos autos.

O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

Composto o Tribunal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 223º do Código de Processo Penal.

O Tribunal reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código de Processo Penal), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão a decidir

A questão a decidir é se o prazo legalmente previsto para a prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação se encontra ultrapassado.

2. Factualidade e iter processual

A matéria de facto relevante para a decisão resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e dos elementos constantes do processo e disponíveis no CITIUS1, de que resultam os seguintes elementos de facto:

1. Ao arguido foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva no dia 28 de Junho de 2024, na sequência da realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por estar fortemente indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º nº 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1, com referência à tabela I-B.

2. Por despacho de 29 de outubro de 2024 foi declarada a excecional complexidade dos autos.

3. O processo está na fase de inquérito, ainda não tendo sido proferido despacho de encerramento do inquérito.

4. O arguido mantém-se em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional ....

3. O Direito

3.1 Habeas corpus

Todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança (art. 27º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa), exceptuando a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional.

O direito à providência de habeas corpus está assegurado constitucionalmente (art. 31º da Constituição da República Portuguesa).

Permite aos cidadãos um mecanismo expedito de reacção contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal e constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma e com fim cautelar, destinada a pôr termo no mais curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade2.

Exactamente por causa da sua natureza, a providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade e mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância. Para a análise e apreciação dessas questões estão previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos art.s 118º a 123º do Código de Processo Penal e por via de recurso para os tribunais superiores (art.s 399º e ss do Código de Processo Penal)3.

A concessão do habeas corpus pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada4, o que afasta a possibilidade do habeas corpus preventivo.

O habeas corpus não exclui o direito ao recurso, nem é subsidiário do recurso, no sentido de apenas poder ser utilizado após se esgotarem outras formas de reacção. Pode “coexistir”, com os demais meios judiciais comuns de reacção, como a arguição de invalidade, reclamação ou com o recurso5. Por isso, não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus, como refere o artigo 219º nº 2 do Código de Processo Penal.

O art. 222º do Código de Processo Penal, dando expressão ao art. 31º da Constituição da República Portuguesa, dispõe, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

Como se referiu, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de que o habeas corpus não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade: não tem o propósito de proceder à reanálise do caso, mas sim a constatação de forma expedita da ilegalidade, que por isso mesmo tem de ser patente e pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido.

E, bem assim, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das al.s do nº 2 do art. 222º do Código de Processo Penal, de enumeração taxativa.

Assim, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar, (a) se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial6.

3.2 Concretização

Concretizando, o Requerente fundamenta a sua pretensão na ilegalidade da prisão por entender que o prazo de prisão preventiva é de 6 meses.

Porém, declarada que foi a especial complexidade, o prazo de prisão preventiva até à dedução de acusação é de um ano, por força do disposto no nº 3 do art. 215º do Código de Processo Penal, porquanto o crime indiciado é um dos previstos no nº 2 da mesma norma (“crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos”).

Com este enquadramento, conforme jurisprudência constante deste Tribunal, é manifesta a improcedência do habeas corpus porquanto, a prisão preventiva foi ordenada por Juiz, está fortemente indiciada a prática de crime que admite essa medida de coação e não estão ultrapassados os prazos fixados pela lei, não se verificando qualquer erro grosseiro na determinação da medida de coacção, sendo evidente que bastaria uma análise sumária aos autos para que o Requerente constatasse que, ao contrário do que afirma, foi declarada a excecional complexidade dos autos por despacho de 29 de outubro de 2024, pelo que o prazo de prisão preventiva até à dedução de acusação é de um ano e não se mostra ultrapassado.

Em suma, a prisão preventiva em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida pelo juiz competente, a privação da liberdade encontra-se motivada por facto pelo qual a lei a admite e estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados por lei, pelo que não se verifica qualquer das situações a que se referem as alíneas a), b) e c) do nº 2 do art. 222º do Código de Processo Penal.

De tudo se conclui que a presente providência de habeas corpus carece manifestamente de base factual e legal que a suporte (art. 223º nº 6 do Código de Processo Penal).

III. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus apresentada por AA por manifesta falta de fundamento - artigo 223º nº 4 al. a) do Código de Processo Penal.

Condena-se o peticionante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais e na importância de 7 UC a título de sanção processual (art. 223º nº 6 do Código de Processo Penal).

Lisboa, 8 de Janeiro de 2025

Jorge Raposo (Relator)

Antero Luís (1.º Adjunto)

José Carreto (2.ª Adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

______


1. Referência citius ...02 quanto à notificação do arguido e análise do histórico do interveniente para verificação de que o Ilustre subscritor do pedido de habeas corpus só passou a ser notificado como mandatário do arguido em 19.12.2024.

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2021, proc. 156/19.9T9STR-A.S1.

3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1.

4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.3.2023, proc. 631/19.5PBVLG-MC.S1

5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.11.2020. proc. 7/19.4F9LSB-C.S1

6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TD PRT-A.S1