Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ÓNUS DE ALEGAÇÃO RECURSO DE APELAÇÃO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA DUPLA CONFORME AÇÃO EXECUTIVA EMBARGOS DE EXECUTADO | ||
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Data do Acordão: | 07/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
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Sumário : |
I. Tendo a Relação confirmado a decisão da primeira instância, sem alteração na fundamentação, mas com antecedente rejeição da impugnação da decisão de facto, por alegado incumprimento dos ónus previstos no art.º 640.º do CPC, fica aberto o caminho para a interposição de revista, tendo por objeto a mencionada rejeição da impugnação da decisão de facto. II. O STJ tem defendido que nesta matéria a substância deve prevalecer sobre a forma, a busca da verdade material não deve ser tolhida com exigências formalistas desproporcionadas, posto que estejam reunidos os requisitos mínimos que permitam, ao tribunal recorrido e à parte contrária, identificarem os pontos de facto alvo de discordância por parte do recorrente, qual o sentido propugnado para a decisão de facto e quais os elementos de prova que justificam a alteração da decisão de facto. III. Embora a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado de prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos, sejam precisamente as mesmas, essa indicação seja dirigida, em bloco, a toda essa factualidade. Necessário é que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. AA deduziu embargos de executado contra BB alegando para tanto, e em síntese, que nunca declarou nem pretendeu declarar dever a quantia inscrita na letra dada à execução, a qual nunca preencheu nem deu autorização para preencher, nem viu preenchida, a não ser quando foi citado para a execução. Desconhece se a letra foi assinada pelo exequente. O que pode ter conexão, ainda que indireta, com a letra foi que o embargante, juntamente com o filho do exequente, no ano de 2006, constituiu uma sociedade, inicialmente denominada C... - Equipamentos Metálicos, Lda., posteriormente alterada para C... - Sistemas Metálicos, Lda,. O filho do exequente, CC, namorava a irmã do executado, com quem acabou por casar. Com o estreitar das relações familiares e sendo o exequente pessoa com meios financeiros e experiência no ramo, sendo ele próprio, também com um cunhado, sócio de uma outra sociedade do mesmo ramo, acabou por se interessar e acompanhar o início da sociedade constituída, querendo ajudar a mesma, admitindo até a possibilidade de para ela entrar. Contudo não o podia fazer às claras, já que estava sujeito a limitações proibições de intervir noutras sociedades de atividade similar ou conexa, como era o caso da C... - Sistemas Metálicos, Lda, Assim, injetou dinheiro nesta sociedade, através do filho e do ora embargante, que para o efeito foram meros testas de ferro, pensando o embargante que nada lhe devia. O exequente entendeu, e o embargante achou razoável que reconhecesse que aquele entrou com dinheiro para a C... - Sistemas Metálicos, Lda, e que esta lho devia, tendo sido acordado entre todos documentar a situação com a assinatura de uma letra absolutamente em branco, que serviria apenas para garantir o acordo de todos, pelo que reconhece como sua a assinatura aposta na letra, no local destinado ao aceite. No entanto, não aceitou dever ou assumir a obrigação de pagar o que quer que fosse ao exequente. À data, o embargante não sabia sequer o que era uma letra, ou uma livrança e qual o significado de se assinar a mesma num ou noutro local, mas sabe que nunca pretendeu reconhecer dever o que quer fosse ao exequente. Na C... - Sistemas Metálicos, Lda, era o CC, filho do exequente, quem se ocupava, em exclusivo, da parte administrativa, financeira e comercial da sociedade e mais tarde ficou esclarecido que o exequente não entraria para a sociedade, devendo esta restituir-lhe os montantes financiados, do que ficou encarregado o referido CC. O ora embargante desempenhava atividade técnica de preparação dos materiais na oficina e direção do pessoal, colocação do material em obra, direção e execução das obras nos respetivos locais das mesmas. No escritório da C... - Sistemas Metálicos, Lda, trabalhava a mulher do embargante, como trabalhadora subordinada, e apercebeu-se de que, pelo menos desde 2015, o CC passou a praticar descontos de 3% às sociedades AM... e AL..., apesar de estas empresas efetuarem os pagamentos a 30 e 60 dias. Os descontos não iam indicados nas faturas, sendo estas sociedades quem, unilateralmente, o deduziam no documento representativo do pagamento. A C... - Sistemas Metálicos, Lda,, mediante notas de crédito, passou a conceder à AM... e à AL..., por cada período de 3 meses de faturação, descontos (rappel) também não inferiores a 3%. Durante o período em que DD foi gerente da C... - Sistemas Metálicos, Lda,, com o consentimento do CC, foi prática corrente a sobrefaturação da C... - Sistemas Metálicos, Lda, àquelas sociedades, com transferências destas para pagamento de faturas emitidas pela C... - Sistemas Metálicos, Lda,, mas que não correspondiam a qualquer fornecimento ou prestação de serviços, sendo aquelas quantias devolvidas em dinheiro ao Sr. DD. As saídas de caixa da C... - Sistemas Metálicos, Lda, iam mascaradas com o pagamento de falsas faturas emitidas por terceiro à C... - Sistemas Metálicos, Lda,, criando a falsa aparência de um aumento de faturação a favor da AM... e da AL..., quando na verdade se travava de operações tendentes à saída de valores de circuito contabilístico e financeiro daquelas sociedades. Por indicação destas sociedades, a C... - Sistemas Metálicos, Lda, efetuou a favor delas descontos nunca inferiores a 3% sobre saldos devedores ou sobre faturas inseridas em contas correntes pendentes entre aquelas empresas. Estes factos foram trazidos para a ação declarativa de anulação de deliberações sociais, com o n.º 285/19.8... que correu termos no Juízo do Comércio de ...– Juiz ..., que terminou por transação. O exequente afirmava perante amigos e familiares de uns e outros que o embargante nada lhe devia. Acresce que a C... - Sistemas Metálicos, Lda, pagou ao embargado tudo o que lhe devia, através da atuação do CC, que passava pela utilização de uma conta no Millennium BCP, a que só este tinha acesso e que só ele movimentava. O embargante saiu da C... - Sistemas Metálicos, Lda,, vendendo a sua quota, tendo o exequente deixado de falar consigo nessa altura e intentado a presente execução. A data aposta na letra no campo destinado ao seu vencimento é de 15.12.2007, quase 1 ano após a sua emissão, data coincidente com a venda da quota do embargante. O exequente nunca interpelou o embargante. Mais alega que a letra exequenda é falsa, não sendo título executivo válido, sendo a execução infundada e resultando de um comportamento abusivo do exequente, já que o embargante não deu autorização para o seu preenchimento. Acresce que o contrato de mútuo subjacente à emissão da letra é nulo por falta de forma. 2. Admitidos liminarmente os embargos de executado, o exequente apresentou contestação. Alegou, em síntese, que a sociedade atualmente designada por C... - Sistemas Metálicos, Lda, foi constituída em 2006 entre o embargante e o seu filho, CC. À época, o embargante trabalhava numa empresa criada por alguns ex-trabalhadores de uma outra empresa que falira, auferindo um salário baixo. Vivia na altura com a sua companheira, a sua atual esposa, que se encontrava desempregada, e o embargante possuía um clube de vídeo, que não estava a correr bem, tendo contraído encargos junto da banca, que estavam em incumprimento. O filho do exequente, CC, à data namorava com a irmã do embargante, com a qual viria a casar, e sabia da sua situação económica, mostrando-se disponível para ajudar, embora não dispusesse de meios financeiros para tal. O embargante e o CC constituíram a empresa C... - Sistemas Metálicos, Lda,, tendo o projeto sido ideia do ora embargante. Como não dispunham de capital suficiente para lançar a empresa, tentaram obter financiamento bancário, o que se frustrou, pelo que procuraram financiamento junto do exequente, que acabou por ceder, deixando claras as condições para lhes conceder um empréstimo. Em 2007, comunicaram ao exequente o valor exato de que necessitavam para o arranque da empresa, a saber, 125.000,00€, e o exequente procedeu à transferência bancária de 62.500,00€ para a conta de cada um (embargante e CC), em 11.01.2007. Em consonância com o que havia sido acordado, o embargante entregou-lhe a letra de câmbio dada à execução, devidamente assinada por si, parcial e previamente preenchida pela sua companheira e atual mulher, nomeadamente no que concerne aos itens da importância, nome, n.º de contribuinte e morada do sacado. A letra destinava-se a ser substituída à medida que fossem ocorrendo pagamentos da mesma no futuro ou a ser completado o seu preenchimento pelo exequente e posta a circular ou ser executada, caso o embargante não procedesse ao pagamento. Tanto assim, que os mutuários daqueles empréstimos transferiram para a sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, as quantias que receberam do exequente, a título de suprimentos, que enquanto sócios lhe fizeram, celebrando os respetivos contratos em 11.01.2007. Cerca de um ano depois, a C... - Sistemas Metálicos, Lda, decidiu adquirir um pavilhão, financiando-se na banca para esse efeito, tendo ficado como garantia do empréstimo concedido pelo BPI, SA para esse efeito, depósitos a prazo de que o exequente era titular, no valor de 150.000,00€. Por essa ocasião, o embargante e o CC reuniram com o exequente, pedindo que o prazo para o início do pagamento dos empréstimos pessoais fosse prorrogado em 4, 5 anos, pois pretendiam afetar todos os recursos no pagamento do financiamento do pavilhão, ao que acedeu. Mais alega que o objeto social da C... - Sistemas Metálicos, Lda, não é coincidente com o da F... e que nunca teve interesse em ser sócio da C... - Sistemas Metálicos, Lda,. Até 2017, o seu filho CC trabalhou ininterruptamente na F..., deslocando-se à C... - Sistemas Metálicos, Lda, em regime pós-laboral, de forma descontinuada e esporádica ou quando era chamado para assinar alguma documentação enquanto gerente, sendo, até ali, a administração da mesma assegurada pelo embargante e a sua mulher. Nega ter recebido o pagamento da quantia titulada pela letra dada à execução, fosse diretamente pelo embargante ou por um terceiro, não resultando dos e-mails juntos aos autos que o embargante nada lhe devia. Quando o seu filho CC foi trabalhar a tempo inteiro para a C... - Sistemas Metálicos, Lda,, a relação entre os sócios crispou-se, tendo o exequente intervindo para apaziguar a situação, daí a troca de correspondência junta com o articulado de embargos de executado, junta como doc. 7, não resultando daí que nada lhe fosse devido. Acresce que interpelou o embargante por várias vezes, verbalmente, recebendo a invariável resposta de que a empresa passava por dificuldades, para aguentar mais uns tempos, até que teve conhecimento de que alienou a sua quota na sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, por cerca de 60.000,00€, e em que lhe teriam sido restituídas as quantias entregues a título de suprimentos, enviou interpelação por carta registada em 20.11.2019, recebendo como resposta que nada lhe era devido. Mais alega que a nulidade do contrato de mútuo por falta de forma não afeta a obrigação cambiária, pelo que dispõe de título executivo válido. 3. Procedeu-se à realização da audiência prévia, depois de findo o período de confinamento do ano de 2021, onde foi identificado o objeto do litígio, identificados os temas da prova e designada data para a realização da audiência de julgamento. Depois de juntos aos autos os elementos probatórios admitidos em sede de audiência prévia, procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do legal formalismo. Depois de proferida sentença, a mesma foi revogada pela decisão singular proferida no recurso de apelação em separado, que correu termos no apenso G, tendo ali sido determinada a reabertura da audiência de julgamento com vista à produção de declarações de parte por parte do embargante. 4. Procedeu-se como superiormente determinado, tendo sido reaberta a audiência de julgamento, realizando-se a produção de declarações de parte, com observância do legal formalismo. 5. Em 31.3.2023 foi proferida nova sentença, em que se decidiu nos mesmos termos que a primeira, isto é, julgou-se parcialmente procedentes os embargos, determinando-se o prosseguimento da execução para pagamento da quantia devida a título de capital, acrescida dos juros de mora vencidos, contados à taxa legal de 4% a partir da citação para a execução e até efetivo e integral pagamento, com custas a cargo de ambas as partes, na proporção de 95% para o embargante e 5% para o exequente. 6. O embargante/executado apelou da sentença, impugnando a decisão de facto e a decisão de direito; por acórdão proferido em 25.01.2024 a Relação do Porto, após rejeitar a impugnação da decisão de facto, por o recorrente não ter cumprido os respetivos pressupostos, julgou a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida. 7. O embargante/executado interpôs revista do aludido acórdão, formulando as seguintes conclusões: “I. Na sua minuta de apelação, recorrendo da douta Decisão de Facto proferida em 1.ª Instância, o ora Recorrente cumpriu de forma aceitável e com utilidade para a apreciação da matéria em discussão os ónus estabelecidos no Artigo 640.º do CPC, designadamente, na alínea b) do seu n.º 1, II. Pelo que, no seu modesto entender, o douto Acórdão ora recorrido, ao afirmar e decidir em contrário, por isso rejeitando a impugnação da douta Decisão de Facto da 1.ª Instância, foi, salvo sempre o devido respeito, rigorista em excesso, exponenciando aqueles ónus, assim violando o princípio da proporcionalidade; III. Desta forma, no douto Acórdão recorrido violaram-se os normativos enunciados naquele Artigo, IV. Devendo revogar-se a douta Decisão de rejeição da apreciação da impugnação da douta Decisão de Facto proferida na 1.ª Instância constante do douto Acórdão recorrido, ordenado se proceda à apreciação da apelação nessa parte, V. E, bem assim, devendo igualmente revogar-se a douta Decisão de confirmação da douta Decisão de direito da douta Sentença proferida em 1.ª Instância, por depender integralmente da revogação ou da validação da douta Decisão de Facto, nessa parte devendo igualmente revogar-se o douto Acórdão recorrido. VI. Mas, mesmo que assim não venha a ser decidido, igualmente deverão ser julgados procedentes os embargos em sede de revogação da douta Decisão de Direito, pois VII. Está formalmente provada a inexistência de qualquer dívida por força da prova plena emergente dos documentos que o Exequente juntou aos Autos com a sua douta contestação sob os números 20 e 22, VIII. Porquanto, tratando-se de documentos particulares assinados pelo Recorrente e não tendo sido impugnados de falsidade pelo Exequente, que os juntou e deles se quis servir, IX. Tais documentos fazem prova plena das declarações do Recorrente que deles constam e na parte em que são contrárias aos interesses do Exequente, X. Nos termos do disposto nos Artigos 376.º, n.ºs 1 e 2, e 360.º, ambos do C.Civil, estando plenamente provado o teor daqueles documentos, dos quais resulta a inexistência da relação subjacente invocada pelo Exequente, XI. O que não foi nem podia ser contrariado por prova testemunhal, não admitida pelo disposto no n.º 2 do Artigo 393.º do C.Civil, nem resultou contrariado por confissão, pois o Recorrente nunca confessou tal facto. XII. Por consequência, está plenamente provado por documento que, pelo menos à data daqueles documentos n.ºs 20 e 22 — 28 de Novembro de 2019 e 03 de Dezembro de 2019 — a dívida invocada pelo Exequente já estava extinta, assim inexistindo fundamento para o preenchimento da letra dada à execução, que foi abusivo, bem como inexistia fundamento para a sua utilização como título executivo, nem para a execução dos Autos Principais. Termos em que, e melhores de direito, que desde já se consideram proficientemente supridos, pede seja o presente recurso julgado procedente, em consequência se revogando o douto Acórdão recorrido para se aprecie a impugnação da douta Decisão de Facto da 1.ª Instância, seguidamente se decidindo de Direito em conformidade com a douta Decisão que vier a ser proferida relativamente àquela impugnação, em qualquer caso se declarando procedentes os embargos por estar provada por documento particular com força probatória plena a extinção da dívida subjacente e causa do preenchimento, que foi abusivo, da letra dada à execução.” 8. Não foram apresentadas contra-alegações. 9. Foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. A Relação julgou a apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida. Porém, nesse percurso, a Relação começou por rejeitar a impugnação da decisão de facto, que integrava o objeto do recurso, por considerar que o recorrente não havia, nesse âmbito, cumprido o ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC. Neste aspeto está-se perante questão que foi apreciada, em primeiro grau, pela Relação, pelo que não lhe é aplicável o obstáculo, de dupla conformidade decisória, previsto no art.º 671.º n.º 3 do CPC. Trata-se de jurisprudência uniforme deste STJ, conforme é bem apontado pelo recorrente (cfr., v.g., acórdão do STJ de 14.5.2024, processo n.º 4770/21.4T8VNF.G1.S1). Assim, constitui objeto desta revista a fiscalização da aplicação, pela Relação, do disposto no art.º 640.º do CPC e, consequentemente, dos poderes-deveres que lhe são atribuídos pelo art.º 662.º do CPC. 2. Na sentença deu-se como provada a seguinte Matéria de facto A) Foi dada a execução a letra, cujo original se encontra junto aos autos principais. B) A letra tem como local de emissão ..., data de emissão 11.01.2007, data de vencimento 15.12.2019, o valor de 62.500,00€, figurando como sacador BB e como sacado e aceitante AA. C) A sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, foi constituída em 14.11.2006, pelo embargante e o filho do exequente, CC. D) Inicialmente era denominada de C... - Equipamentos Metálicos, Lda. E) Naquela data o CC namorava com a irmã do embargante, com quem veio a casar. F) O exequente tinha recursos financeiros e experiência no mesmo ramo e atividade. G) O embargante era técnico em máquinas quinadoras e guilhotinas e tinha uma relação privilegiada com o proprietário de uma empresa sediada em ..., denominada A..., Lda., que o incentivou a criar a sua própria empresa, garantindo-lhe que se o fizesse lhe encomendaria trabalhos e serviços mais do que suficientes para lhe permitirem ter sucesso empresarial e pessoal. H) O CC, na divisão de pelouros na C... - Sistemas Metálicos, Lda,, era quem se ocupava da parte administrativa, financeira e comercial da sociedade. I) O ora embargante desempenhava atividade técnica de preparação dos materiais na oficina e direção do pessoal, colocação do material em obra, direção e execução das obras nos respetivos locais das mesmas. J) Dado que nem o embargante nem o filho do exequente dispunham do capital suficiente para lançar a empresa, tentaram primeiro obter financiamento bancário para a mesma e, face ao respetivo insucesso, decidiram tentar contrair um empréstimo junto de particulares, concretamente o exequente. K) Em encontro solicitado por aqueles com o embargado e em que lhe foi apresentado o projeto empresarial daqueles, o embargado recusou emprestar-lhes o dinheiro que lhe pediram para o mesmo (cerca de 125 mil euros para a aquisição de maquinaria), sobretudo por não desejar que o seu filho deixasse de trabalhar na F... e abandonasse essa empresa. L) Sucede que, uns tempos depois, o embargante e o filho do embargado voltaram a procurá-lo, dizendo já ter visto um armazém que poderiam arrendar para montar o negócio, tinham um cliente que lhes assegurava um montante de encomendas que lhes garantia o sucesso empresarial, que o filho do embargado, embora fosse sócio e gerente, não iria trabalhar na empresa, sendo a gestão assegurada pelo embargante e companheira, pelo que insistiram muito junto do embargado para que lhes emprestasse o dinheiro que nenhum dos dois dispunha (125 mil euros) para iniciarem o projeto. M) O exequente, em finais de 2006, decidiu emprestar o dinheiro que eles lhe solicitaram. N) O embargado impôs as seguintes condições para emprestar o dinheiro, que ambos aceitaram: - Deveriam informá-lo do valor exato e estritamente necessário para o início da laboração da empresa; - Emprestaria a quantia necessária não à sociedade, mas a cada um deles pessoalmente, metade a cada um; -Tal empréstimo seria feito gratuitamente, ou seja, não venceria juros, mas deveria começar a ser-lhe pago dois anos após a consumação dos dois empréstimos, à medida que a empresa começasse a distribuir entre eles lucros ou eles obtivessem por outras vias condições para tal; - Cada um deles aceitaria uma letra sacada pelo embargado, no valor do empréstimo feito a cada um deles, destinada ou a ser substituída à medida que fossem liquidando a dívida inicial ou a ser livremente completado o seu preenchimento pelo embargado e eventualmente por si executada em caso de incumprimento por algum deles. O) Algum tempo depois, o embargante e o filho do embargado comunicaram-lhe o valor exato que precisavam para o arranque da empresa (125 mil euros) e este concretizou, em 11/1/2007, a partir de uma conta de que era titular na CGD, dois empréstimos, por transferências bancárias, cada um no valor de 62.500,00€, um para conta bancária e a favor do embargante e outro também para conta bancária e a favor do seu filho CC. P) Em data não concretamente apurada, o embargante entregou-lhe a letra de câmbio dada à execução nos autos principais. Q) Tal letra de câmbio foi entregue assinada pelo embargante, parcial e previamente preenchida, nomeadamente no que concerne aos itens da importância, nome e morada do sacado e, finalmente, nº de contribuinte do sacado pela mulher daquele, EE. R) Os mutuários daqueles empréstimos transferiram, ato contínuo, paras a sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda,, as quantias que receberam do exequente, a título de suprimentos que, enquanto sócios dessa sociedade lhe fizeram, celebrando, com data de 11/1/2007, os respetivos contratos de suprimento. S) Ficou a constar daquele contrato que o embargante emprestou à sociedade ficando esta obrigada a restituir, sem juros a quantia mutuada (cl. 1ª); que o embargante procedeu ao pagamento de um conjunto de montantes em dívida pela sociedade e da exclusiva responsabilidade desta (cl. 2ª); que o montante mutuado pelo embargante à sociedade ascendeu ao valor de 62.500,00€ e foi entregue à sociedade por transferência bancária diretamente efetuada por ele (cl. 2ª); e declarando ainda a sociedade que se financiou junto do embargante, tendo aceite as quantias que recebeu e lhe foram entregues por ele, confessando-se devedora dessa mesma quantia ao embargante o que, tudo, este último aceitou (cl. 3ª). T) Cerca de um ano depois do início da laboração da sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda,, os respetivos sócios confidenciaram ao embargado que estavam a enfrentar algumas dificuldades e que, designadamente, a renda do pavilhão arrendado para o seu funcionamento representava um peso excessivo que sufocava a empresa. U) O que o embargado concordou, sugerindo até que o embargante e o seu filho CC indagassem junto da banca da possibilidade da sociedade contrair um empréstimo para comprarem tal pavilhão (no valor aproximado de 150 mil euros) pois certamente o valor da prestação que ficariam a pagar ao banco seria bem menor do que a renda que vinham pagando, além de incrementarem o património da sociedade. V) Na sequência dessas conversas, já em 2008, o embargante e o CC voltaram a falar com o embargado dizendo-lhe ter encontrado condições favoráveis para tal financiamento junto do BPI, SA, mas que o banco estava a exigir garantias para tal empréstimo que eles não podiam suportar, solicitando a sua ajuda. W) Na sequência das negociações havidas, o embargado acabou por aceitar intervir como garante do empréstimo que iria ser pedido àquele banco, utilizando para o efeito depósitos a prazo de que era titular naquele banco, no valor de 150 mil euros, que ficaram a caucionar o referido empréstimo. X) Por ocasião da concretização do mencionado empréstimo, o embargante e o CC reuniram com o embargado, tendo-lhe pedido que o prazo previsto para o início do pagamento dos empréstimos pessoais que este lhes fizera (dois anos) fosse prorrogado em 4 ou 5 anos. Y) Uma vez que o embargado também tinha interesse próprio no pagamento do empréstimo bancário, acabou por anuir ao pedido que lhe foi feito pelo embargante e pelo filho. Z) Posteriormente a essa data, sempre que o embargado interpelava verbalmente os devedores, nomeadamente o embargado, em vista do início do pagamento da quantia mutuada, recebia a resposta que a empresa estava em dificuldades ou que não estava a libertar lucros para distribuir aos sócios, de tal forma que ainda não tinha completado o pagamento do empréstimo ao banco referente à aquisição do pavilhão ou pedidos e súplicas para que aguentasse mais uns tempos. AA) No que o embargado foi condescendo - por cortesia ou favor e também até por razões familiares. AB) Em 2019 o embargante moveu contra a sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, a ação declarativa de anulação de deliberações sociais, com o n.º 285/19.8... que correu termos no Juízo do Comércio de ...– Juiz .... AC) Tal ação terminou com celebração de transação entre as partes. AD) No momento em que soube que o embargante cedeu a sua posição na sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda,, em finais de 2019, por uma avultada quantia e em que lhe terão sido restituídas, pelo menos nessa ocasião, todas as quantias entregues à sociedade a título de suprimentos, interpelou-o por carta registada, com aviso de receção, datada de 20.11.2019. AE) Nessa carta, o exequente dizia o seguinte:“(…) Em janeiro de 2007, fui contactado por si, informando-me que gostava de se estabelecer como industrial, juntamente com outra pessoa. Tinham ambos muita vontade, mas um problema que era a falta de capital e se eu poderia financiar este projeto. Na sequência deste contacto, resgatei no dia 11 de janeiro de 2007 um depósito a prazo de 165.000 euros que tinha na Caixa Geral de Depósitos. Neste mesmo dia transferi para a conta indicada por si, com o numero ...30 da Caixa Geral de Depósitos a importância de 62.500,00 euros (sessenta e dois mil e quinhentos euros), e um montante de igual valor para o seu sócio. Este empréstimo foi titulado por uma letra assinada por si e devidamente aceite, com o valor igual ao empréstimo, a qual está em meu poder. Ora, acontece que, tendo já efetuado várias tentativas para receber este valor, não me foi entregue absolutamente nada a título de amortização ou de qualquer outra espécie. É neste sentido que venho por este meio informar que vou aguardar mais oito dias para que a dívida seja paga. Se tal não se verificar, iniciarei de imediato todas as diligências necessárias, incluindo as judiciais, com vista a ser reembolsado do empréstimo que lhe efetuei. (…)” AF) O embargante respondeu por carta registada com aviso de receção, nos seguintes termos: “(…) Fiquei extremamente chocado com a S/ Carta em referência, desde logo, pela diferença de tratamento, pois sempre me tratou amistosa e paternalmente por "tu", invocando e colocando (até por escrito) acima de tudo a preservação da amizade e os valores do bom relacionamento familiar - para agora, ao invés e inexplicavelmente, me tratar por "você" e ao meu ex-consócio por "outra pessoa", quando se trata do seu estimado Filho e meu prezado Cunhado CC, uma vez que é casado com a minha irmã. Além disso, postergando toda a amizade e concórdia familiar que sempre enfatizou, explicita agora pretensão e intenções que bem sabe não corresponderem à verdade e carecerem de qualquer fundamento. Finalmente, logo em seguida à solução consensual de todos os dissídios que ocorreram no âmbito da "C... - Sistemas Metálicos, Lda,", vem colocar seriamente em risco os valores da estabilidade e paz familiares, o que também faz muito perigosamente, pois, fruto da sua experiência empresarial, sabe perfeitamente que deste modo pode provocar a necessidade de voltar a remexer-se no pó e ressuscitar questões que ficaram enterradas, mas que continuam a ser de fácil prova documental, testemunhal e pericial- o que, de todo, cumpre evitar, também para preservação da situação de outras pessoas inseridas num âmbito mais alargado de "familla". Com todo o respeito: o Sr. BB sabe perfeitamente que não tem razão. Fico muito crente e na muito forte expectativa de que a experiência pessoal e profissional do Sr. BB vai sobrepor-se e vencer alguma réstia de azedume ainda emergente da conflitualidade que antecedeu a solução consensual do dissídio anterior, para que todos (em que se incluem, além dos demais intervenientes e interessados, o seu estimado Filho e eu próprio) possam prosseguir o seu caminho no maior respeito pelos compromissos de confidencialidade formalmente assumidos e que só poderão ceder para defesa de valores e interesses mais altos - como será o caso de eu ser forçado a defender-me de ofensas graves, injustas e infundadas.(…).” AG) O exequente respondeu ao embargante através de carta registada com aviso de receção datada de 03.12.2019, nos seguintes termos: (…) Acuso a recepção da sua carta de 28/11/2019. Sobre a mesma, apenas posso estranhar os argumentos que evoca, citando que o meu pedido não tinha qualquer fundamento e por isso não tinha razão em pedir o resgate do empréstimo que lhe efetuei. Como bem sabe, fiz várias tentativas para que a dívida fosse paga. Nunca tive qualquer sucesso, porque sempre argumentava que não tinha ainda disponibilidade financeira. Agora, que tive conhecimento da venda da sua quota, este argumento já não serve. Por isso, irei hoje mesmo contactar um advogado, para que inicie de imediato todas as diligências necessárias para que a dívida seja paga. (…).” AH) O embargante, enviou carta ao exequente, registada e com aviso de receção, datada de 09.12.2019, dizendo o seguinte: “(…) De posse da referenciada carta do Sr. BB, mantenho o teor da minha carta anterior. A persistência do Sr. BB, que não pode ignorar a falta de fundamento para aquilo que escreve, designadamente, pela proximidade e íntimo relacionamento com o Seu Filho/meu Cunhado e ex-consócia, no par de próximo e íntimo relacionamento do Sr. BB com outros seus parentes e afins, radica em mim a convicção de que tudo isto estará inserido uma estratégia com pluralidade de interessados, porventura mal contentes com a solução consensual a que se chegou e que augurava possibilitava um promissor futuro profissional e empresarial para todos. Oxalá me engane, mas afigura-se-me que não será bom levantar novamente a poeira que, julgava eu (pelo menos, na parte que me toca) estava definitivamente assente. Mas sou muito novo e inexperiente, quando comparado com a Sr. BB, na mão de quem tudo fica, sendo o Sr. BB quem vai dizer como será o futuro. Reafirmo estar muito crente e na muito forte expectativa de que a experiência pessoal e profissional do Sr. BB vai sobrepor-se e vencer alguma réstia de azedume ainda emergente da conflitualidade que antecede a solução consensual do dissidio anterior. (…).” Na sentença enunciou-se os seguintes Factos Não Provados: 1 – O embargante nunca deu autorização para o preenchimento da letra dada execução. 2 – O embargante nunca viu a letra preenchida a não ser quando foi citado para os termos da execução. 3 – O exequente chegou a admitir a possibilidade de entrar para a sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, 4 – O exequente injetou dinheiro na sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, através do filho e do ora embargante. 5 – À época o embargante não sabia o que era uma letra ou uma livrança e qual o significado de assinar num ou noutro local. 6 – Posteriormente ficou esclarecido que o exequente não entraria para a sociedade, devendo esta restituir-lhe os montantes financiados. 7 – E foi o CC quem ficou encarregado desse pagamento. 8 – Que realizou da seguinte forma: - passou a praticar descontos, que não concedia a nenhum outro cliente, não inferiores a 3% nos fornecimentos efetuados quer à AM..., quer à AL..., apesar de estas empresas, que nunca pagaram a pronto pagamento, efetuarem os pagamentos a 30 e a 60 dias; - eram a AM... e a AL... quem, unilateralmente mencionavam o desconto e o deduziam no documento representativo do pagamento; - a C... - Sistemas Metálicos, Lda,, mediante notas de crédito, passou a conceder à AM... e à AL..., por cada período de 3 meses de faturação, descontos, designados por rappel, também não inferiores a 3%, apesar de todas as faturas serem pagas a 30 e a 60 dias; - no período em que o Sr. DD foi gerente da sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda,, no interesse dele e concertado e com a aquiescência de CC, foi prática corrente a sobrefaturação da sociedade C... - Sistemas Metálicos, Lda, à AM... e AL..., com transferências destas para pagamento de faturas emitidas pela C... - Sistemas Metálicos, Lda,, mas que não correspondiam a qualquer fornecimento ou prestação de serviços, sendo aquelas quantias seguidamente devolvidas em dinheiro ao Sr. DD. As saídas da caixa social da C... - Sistemas Metálicos, Lda, eram mascaradas por pagamento de faturas falsas emitidas por terceiros a favor da C... - Sistemas Metálicos, Lda,, criando a falsa aparência de um aumento de faturação/venda de bens ou serviços da C... - Sistemas Metálicos, Lda, a favor da AM... e da AL..., com a correspondente falsa aparência de um aumento de faturação/venda de bens ou serviços da C... - Sistemas Metálicos, Lda, a favor daquelas sociedades por produtos ou serviços desta, tratando-se de saída de valores do circuito contabilístico e financeiro da AM... e da AL.... 9 – O exequente afirmou perante amigos e familiares que o embargante nada lhe devia. 10 – A sociedade procedeu ao pagamento ao exequente da quantia titulada pela letra dada à execução da forma descrita no facto não provado 8 e através de uma conta no Banco Millennium BCP a que só o CC tinha acesso e era por si movimentada. 3. O Direito Em regra, à exceção dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito (art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOSJ – Lei n.º 62/2013, de 26.8). Não assim as Relações, que em regra são os tribunais de segunda instância (art.º 67.º n.º 1 da LOSJ), conhecendo de facto e de direito. Assim, enquanto tribunal de recurso, nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Cumpridos os referidos ónus que impendem sobre a parte que impugne a decisão de facto, a Relação procederá à apreciação da decisão de facto recorrida, para o que deverá analisar os elementos probatórios (necessariamente constantes dos autos, incluindo o registo dos depoimentos gravados) indicados pelo recorrente e, se houver resposta ao recurso, pelo recorrido, assim como, oficiosamente, aqueloutros que para o efeito se mostrem relevantes (cfr. alínea b) do n.º 2 do art.º 640.º). No exercício desse poder-dever, a Relação deverá ordenar a renovação da produção de prova, se considerar haver “dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” (alínea a) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC). Deverá, também, ordenar a produção de novos meios de prova, se se deparar com “dúvida fundada sobre a prova realizada” (alínea b) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC). Para tal, a Relação atuará como tribunal de instância, que, conhecendo a matéria de facto, deve analisar criticamente as provas (art.º 607.º n.º 4 do CPC, ex vi art.º 663.º n.º 2 do CPC), apreciando-as livremente, segundo a sua prudente convicção, ressalvados “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial”, bem como “aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (n.º 5 do art.º 607.º do CPC), de tudo dando conta de forma especificada. Exige-se, assim, que, dentro do quadro delimitado pelo recurso, a Relação analise criticamente as provas, de forma a formular um juízo próprio acerca da matéria de facto em questão, assim confirmando ou infirmando, total ou parcialmente, a decisão de facto alvo do recurso, e disso dando conta, no julgamento do recurso. Conforme é jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, não corresponde ao padrão supra descrito uma mera declaração de adesão à fundamentação da decisão de facto recorrida, mesmo que acompanhada da asserção de que se apreciou a prova. Tal como se sumariou no acórdão do STJ, de 24.9.2013, processo 1965/04.9TBSTB.E1.S1, “[a]o afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise; [a] Relação não pode remeter para o juízo de valoração da prova feito na 1.ª instância, pois tem de fazer, com autonomia, o seu próprio juízo de valoração que pode ser igual ao primeiro ou diferente dele; [a] reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto; [s]e o aresto impugnado se limitou a aderir à decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância, sem proceder à indispensável análise crítica e respectiva fundamentação das respostas, de modo a justificar a sua própria e autónoma convicção, foi violado o art. 712.º, n.º 2, do CPC [CPC de 1961, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8, correspondente ao art.º 662.º do CPC de 2013], impondo-se a anulação do acórdão recorrido”. No mesmo sentido, cfr., v.g., o acórdão do STJ, de 11.02.2016, processo n.º 907/13.5TBPTG.E1S1 e o acórdão do STJ, de 26.5.2021, processo n.º 3277/12.5TBBLL2-F.E2.S1. A violação de tais deveres processuais, por parte da Relação, é fundamento de revista (uma vez verificados os requisitos gerais de recorribilidade), não havendo, nessa parte, dupla conforme obstativa do recurso, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC. Esse é entendimento uniforme do STJ (cfr., v.g., o citado acórdão de 11.02.2016 e o acórdão proferido em 28.9.2023, processo n.º 690/19.0T8VRL.G1.S1). Com efeito, cabe nas competências do STJ, nos termos do art.º 674.º n.º 1 alínea b), aquilatar se a Relação cumpriu os poderes-deveres que lhe são cometidos pelo art.º 662.º do CPC (cfr., neste sentido, v.g., os citados acórdãos do STJ, datados de 28.9.2023 e de 26.5.2021, e bem assim o acórdão datado de 10.9.2020, processo n.º 4794/16.3T8GMR.G1.S1). O legislador parte, assim, do pressuposto de que a Relação tem condições para fiscalizar a decisão de facto vinda da primeira instância, não enfermando, em princípio, de uma situação de inferioridade no acesso à prova, de um distanciamento que menorize a sua perceção da realidade processual relevante. A Relação tem capacidade para, em substituição da primeira instância, formar uma convicção probatória que, por provir de um painel de juízes mais experimentados, mais distantes da refrega da lide e munidos da reflexão acrescida vertida nas alegações do recurso, justificadamente prevalece na apreciação da causa. Posto isto, para o desencadeamento da fiscalização da decisão probatória, particularmente nos segmentos que estão sujeitos à livre e prudente apreciação do julgador, é necessária a iniciativa da parte que se considere prejudicada, por via do recurso da impugnação da decisão de facto. Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2, alínea a), do art.º 640.º do CPC). In casu, na apelação o recorrente defendeu que devia ser alterada a redação dos factos provados sob as alíneas J), R), S), AD), indicando a redação que reputava adequada. Mais pretendeu que se dessem como não provados os factos das alíneas K), L), M), N), O), P), Q), T), U), V), W), X), Y), Z) e AA). E, por sua vez, defendeu que se dessem como provados os factos que haviam sido dados como não provados sob os números 1 a 8. Assim, foi cumprido o estipulado nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC – o que, de resto, foi reconhecido no acórdão recorrido. Entendeu, porém, a Relação, que o apelante não havia cumprido o disposto na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 640.º. Segundo o acórdão recorrido, o apelante limitou-se a fazer a transcrição parcial de múltiplos meios de prova gravados e a formular afirmações genéricas, convocando uma série de documentos que identifica para serem reapreciados, mas omitindo qualquer referência aos concretos factos impugnados que visa impugnar com cada um dos concretos documentos e depoimentos, isto é, o apelante não formulou “um juízo crítico circunstanciado e concreto sobre a prova produzida e sobre a valoração da mesma por parte do tribunal a quo que permita a este Tribunal da Relação concluir pela violação pelo tribunal recorrido das regras da lógica ou da experiência, sendo que esta análise crítica da prova produzida é uma exigência que tem vindo a ser reconhecida quer pela doutrina quer pela jurisprudência”. Vejamos. A admissibilidade da impugnação da decisão de facto não se confunde com a sua procedência. Isto é, discorda-se do tribunal a quo quando, para fundar a rejeição do recurso da decisão de facto, afirma que o apelante não formulou “um juízo crítico circunstanciado e concreto sobre a prova produzida e sobre a valoração da mesma por parte do tribunal a quo que permita a este Tribunal da Relação concluir pela violação pelo tribunal recorrido das regras da lógica ou da experiência”. Para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto o recorrente tem de indicar quais os pontos de facto sobre os quais incide a sua crítica, qual o sentido que, no seu entender, deve ter a decisão de facto e, bem assim, identificar os meios probatórios que sustentam o seu entendimento. Isto feito, o tribunal ad quem fica por sua conta, podendo ou não seguir o mesmo caminho de avaliação proposto pelo recorrente e, se for o caso, pelo recorrido, discordando ou aquiescendo com os reparos efetuados pelas partes, colmatando lacunas ou enriquecendo a análise com a apresentação de perspetivas de interpretação e detalhes do que está documentado nos autos ou foi dito pelos depoentes que, na sua visão, releva para a decisão de facto. Essencial é que se entenda, com suficiente clareza, do que se queixa o recorrente no que diz respeito à recolha dos factos tidos por relevantes, e em que base probatória se suporta o recorrente para fundamentar o seu inconformismo. Este é o pressuposto fundamental para desencadear a atuação do tribunal de recurso e para possibilitar o exercício do contraditório pela parte contrária. Assim, o STJ tem defendido que nesta matéria a substância deve prevalecer sobre a forma, a busca da verdade material não deve ser tolhida com exigências formalistas desproporcionadas, posto que estejam reunidos os requisitos mínimos que permitam identificar os aspetos acima referidos, desencadeadores da fiscalização da decisão de facto por parte da Relação. Veja-se, por todos, com menção de pertinentes acórdãos deste Alto Tribunal, sobre esta temática, o acórdão do STJ, de 14.5.2024, processo n.º 1408/17.8T8OLH-H.E1.S1. Ora, voltando ao caso sub judice, o recorrente indicou, com precisão, os pontos de facto cuja reapreciação pretendia e, bem assim, o sentido dessa reapreciação. Pese embora a extensão do número de factos apontados, facilmente se entende que são factos atinentes às duas questões essenciais controvertidas: 1.º Se o título executivo tinha subjacente um empréstimo do exequente concedido ao executado, isto é, se efetivamente o exequente emprestou ao executado a quantia de € 62 500,00; 2.º Se o executado subscreveu a letra com conhecimento do alcance desse gesto, tendo autorizado o exequente a, oportunamente e se fosse o caso, completar o seu preenchimento e dá-la à execução. E, para fundamentar o seu inconformismo quanto ao juízo de facto do tribunal a quo o recorrente transcreveu as passagens dos depoimentos que reputou relevantes e indicou os documentos que entendeu que importavam. A isso o recorrente aditou o seu juízo crítico quanto a esses documentos e, bem assim, quanto aos depoimentos prestados, dando a conhecer a sua avaliação acerca dos mesmos, tanto quanto ao seu conteúdo quanto à forma como foram prestados, ajuizando da respetiva credibilidade. O que se estende por quase nove páginas (n.ºs 9.1. a 9.40. da alegação da apelação), que por economia processual, aqui se não irão transcrever. Conforme se aduziu no acórdão do STJ de 14.01.2021, processo n.º 1121/13.5TVLSB.L1.S1, “[e]mbora a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado de prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos, sejam precisamente as mesmas, essa indicação seja dirigida, em bloco, a toda essa factualidade. Necessário é, que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado”. In casu, o apelante indicou especificadamente os pontos de facto questionados e o sentido da decisão pretendida para cada um e, além disso, também concretizou os meios de prova que, no seu entender, relevavam para a decisão de facto, tecendo a respetiva análise crítica em moldes suficientes para suscitar a reapreciação da decisão de facto por parte da Relação. A revista é, pois, procedente. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que os autos retornem à Relação recorrida, a fim de que aí se aprecie a impugnação da decisão de facto, nos termos supra expostos, e se aplique o direito em conformidade. As custas da revista, na vertente das custas de parte, são a cargo do recorrido, que nela decaiu (artigos 527.º n.º s 1 e 2, 533.º, do CPC). Lx, 09.7.2024
Jorge Leal (Relator) Henrique Antunes Jorge Arcanjo |