Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | DIREITO DE PREFERÊNCIA ARRENDATÁRIO PROPRIETÁRIO LOCADOR VENDEDOR LOCATÁRIO CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA BEM IMÓVEL CONTRATO DE ARRENDAMENTO CONTRATO ATÍPICO CONTRATO DE COMPRA E VENDA SUBARRENDAMENTO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA | ||
Data do Acordão: | 11/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE | ||
Sumário : | O direito de preferência previsto no artigo 1091º, n.º 1, alínea a) do CC pressupõe que o proprietário alienante do imóvel arrendado seja simultaneamente o locador desse imóvel. Se o imóvel foi dado de arrendamento pelo locatário financeiro, o arrendatário não tem o direito de preferir na venda que o proprietário faça do imóvel (ao locatário financeiro ou a terceiro). | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3967/23.7T8BRG.G1.S1 Recorrente: “PI - CREATIVE STUDIO, Ldª” Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. PI CREATIVE STUDIO, Ldª propôs a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra A..., Lda., e NOVO BANCO, SA. Alegou, em síntese, ser arrendatária de três frações autónomas, e que a 2.ª ré vendeu à 1.ª ré aquelas frações sem ter comunicado a venda à autora para efeitos de exercício do direito de preferência. Terminou pedindo: «Deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência dela, serem os RR. condenados a reconhecer o direito de preferência da A. na alienação das frações “BP”, “HU”, “HX”, e “IA” do prédio acima referido, com a consequente transmissão do direito de propriedade sobre elas para si, e, bem assim, ser a R. A..., Lda. Rendimento condenada a restituir à A. todos os valores de rendas pagas desde dezembro de 2022 e até ao trânsito em julgado da sentença, tudo nos termos e com as legais consequências.» 2. A Ré A..., Lda., contestou, alegando, em síntese, não ser a autora arrendatária, já que o contrato existente não se subsume a essa figura, mas sim à de um contrato atípico ou inominado, inserindo-se o imóvel no âmbito de um centro de escritórios, devendo ser-lhe aplicado o regime dos contratos de lojistas em centro comercial. 3. O réu NOVO BANCO, SA, contestou, alegando, em síntese, que não ocorreu uma compra e venda para efeitos de direito de preferência, já que na base daquela compra e venda está um contrato de locação financeira, sendo que através da compra e venda o banco vendeu ao locatário financeiro o bem locado. Aderindo à tese da outra ré, afirmou também que não existia um contrato de arrendamento. 4. A autora respondeu propugnando pela qualificação do contrato como de arrendamento. Acrescentou que a compra e venda não se operou no âmbito do contrato de locação financeira, pois este foi resolvido pelas partes e posteriormente é que foi celebrado um contrato de compra e venda. 5. A primeira instância, decidindo no saneador-sentença, entendeu absolver as rés dos pedidos. 6. A autora interpôs recurso de apelação, tendo o TRL proferido a seguinte decisão: «(…) os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em, com os fundamentos acima expostos, julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão de mérito constante da parte dispositiva do saneador-sentença recorrido.» 7. Discordando dessa decisão, a autora apelante interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões: «1. Vem o presente Recurso interposto do douto aresto do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães que, julgando improcedente a apelação, mantém o despacho saneador-sentença que havia sido proferido em primeira instância – ainda que com recurso a fundamentação distinta – e que havia absolvido as RR. A..., Lda. e Novo Banco do peticionado pela A., aqui Recorrente. 2. Primeiramente, entende a Recorrente que enferma a douta decisão de um manifesto erro ao entender que está em causa nos presentes autos um contrato atípico, que afasta a aplicação do regime previsto para o contrato de arrendamento e, consequentemente, ao aplicar ao objeto do presente dissídio a norma geral, prevista no n.º 1 do artigo 405.º do Código Civil. 3. Não obstante o nomen que é dado ao contrato – juridicamente inócuo – o mesmo não tem nenhuma das especificidades que justificam o enquadramento enquanto “contrato de utilização em centro comercial”, pelo que de maneira nenhuma pode a Recorrente compadecer-se com o entendimento seguido pelo Mm. Juiz a quo que entende ser de afastar o regime do contrato de arrendamento por estarmos perante um “contrato atípico”. 4. O contrato de exploração de loja num centro comercial trata-se de um tipo contratual inominado, que se caracteriza pela cedência do gozo de um espaço – uma loja –, para o exercício de uma atividade comercial ou de prestação de serviços. As lojas objeto destes contratos encontram-se inseridas num complexo imobiliário coletivo, composto por diversas lojas, com comércios e serviços variados, e por espaços comuns de lazer, o que determina a sujeição a uma organização coletiva, com regras de funcionamento gerais do próprio centro comercial. 5. Ao invés, já no que se refere ao contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, o mesmo é regulado por disposições imperativas, e as frações objeto do contrato são exploradas individualmente, como é o caso do que acontece no Pólo de Negócios de .... 6. Assim, no entendimento perfilhado pela Recorrente, resulta ostensivamente prejudicado o decidido na douta decisão recorrida, sendo insofismável a qualificação do edifício e da sua administração como um típico condomínio e da relação entre a Recorrente e C... e A..., Lda. como um claro arrendamento para fins não habitacionais, com todas as legais consequências daí emergentes. 7. Por escrito datado de 16.12.2022, a C... declarou transmitir para a A..., Lda. a posição contratual de locatária no contrato de locação financeira que mantinha com o Novo Banco e que tinha por objeto, entre outras, as frações “dadas” de arrendamento à Recorrente, há bem mais de 2 anos. Na sequência desta cessão da posição contratual, financeira a A..., Lda. tomou a posição da C... nos contratos de arrendamento em vigor sobre aquelas frações, tendo notificado a Recorrente (arrendatária), que lhe deveria passar a pagar a si a contrapartida financeira pela utilização das 4 frações. 8. Subsequentemente, por documento particular autenticado, outorgado a 30.12.2022, a então locatária A..., Lda. e o locador financeiro, Novo Banco, declararam resolver o contrato de locação financeira em crise. Uma vez resolvido o contrato, o Novo Banco declarou vender à A..., Lda. Rendimento 175 frações autónomas, incluindo as frações arrendadas pela Recorrente. 9. Mais, é claro que a transmissão dos imóveis para a A..., Lda. não ocorreu ao abrigo do exercício da opção de compra no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária! A compra e venda foi celebrada APÓS a rutura da relação contratual entre o Novo Banco – na qualidade de vendedor (antes, locador financeiro) – e a A..., Lda. – na qualidade de compradora (antes, locatária financeira). 10. Aqui chegados, importa atentar nos termos do disposto no n.º 1, alínea a) do artigo 1091.º do Código Civil, que estatui que o arrendatário tem direito de preferência: “a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos (…). 11. Contudo, em manifesto desrespeito pelo estatuído na norma transcrita, nem o vendedor Novo Banco, nem a adquirente A..., Lda., procederam à notificação da Recorrente para, querendo, exercer o direito legal de preferência que lhe assistia na venda das frações autónomas de que é arrendatária! Direito que, estando em tempo, manifestou a Recorrente pretender exercer por via da ação que instaurou e que deu origem aos presentes autos. 12. Conclui o douto decisório recorrido o seu caminho de desresponsabilização dos Recorridos asseverando que: “não se verificam os requisitos legais do art. 1091º, n.º 1, al. a) do CC para lhe ser conferido o direito legal de preferência prevista nessa disposição legal, porquanto, o proprietário das frações (o apelado Novo Banco, S.A.) não celebrou com aquela qualquer contrato de arrendamento.” 13. Para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, a Recorrente vê o seu direito à preferência na aquisição ser preterido e, consequentemente, fica coartada na possibilidade de adquirir as frações de que é arrendatária, em manifesta oposição àquilo que vem previsto no artigo 1091.º n.º 1 do Código Civil, pese embora preencha os dois requisitos impostos pela dita norma. 14. Não obstante a Recorrente seja a arrendatária, o Tribunal a quo considera que, uma vez que o vendedor não é o senhorio, deve ser à inquilina – aqui Recorrente – ser vedada a possibilidade de preferir na alienação das frações, o que comporta um manifesto atentado contra o instituto do direito de preferência. 15. Salvo o muito respeito que é devido, o Venerando Tribunal Recorrido posterga, por completo, esta relevantíssima questão: quando os RR. alienaram as frações em causa, fizeram-no bem sabendo que as frações se encontravam oneradas com um contrato de arrendamento. 16. No que ao direito de preferência concerne, não obstante estarmos perante uma faculdade que encontra a sua razão de ser na lei, o sujeito da relação jurídica que vigora num contrato de arrendamento e que, em concreto, fundamenta a existência do direito de preferência é o próprio arrendatário. O que não é de somenos importância, uma vez que o que a norma pretende acautelar é precisamente a posição do arrendatário, pelas características inerentes à sua qualidade, na celebração de novos negócios sobre o locado. 17. Debruçando-se sobre esta matéria, Maria Olinda Garcia – in “O Arrendamento Plural-Quadro Normativo e Natureza Jurídica”, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 161 – conclui que, através do exercício do direito de preferência, o arrendatário procura adquirir o direito de propriedade sobre o local arrendado. Assim, através do exercício da preferência, o arrendatário tem “o acesso imediato à propriedade plena do imóvel” e, desta forma, ganha a estabilidade que nunca teria se continuasse a gozar do locado por força de um vínculo de base contratual! 18. Chegamos, pois, à conclusão de que o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) visa facultar ao arrendatário uma via, facilitada, de obtenção da titularidade do imóvel sobre o qual já exerce o direito de gozo há algum tempo, tendo a oportunidade de robustecer o vínculo pelo qual o faz. 19. Aqui chegados, ressalta uma questão essencial: o decisório sob sindicância posterga por completo a qualidade de arrendatária da Recorrente, e os direitos a ela inerentes, unicamente porque o contrato de arrendamento foi celebrado entre a Recorrente e a A..., Lda. e quem vende o locado é o Novo Banco. 20. Ora, salvo o devido respeito que é devido, não pode o julgador sobrepor-se à letra da lei e, fazendo-o, desconsiderar a ratio da norma que pretende salvaguardar a posição jurídica do arrendatário. 21. Aliás, em bom rigor, os autos evidenciam uma paradigmática situação em que os Recorridos se escusam à possibilidade de aquisição findo o contrato de locação financeira e antecipam a venda sem observância dos formalismos necessários: a possibilidade de exercício do direito de preferência da Recorrente! 22. Sempre salvo o muito respeito que é devido, é um flagrante erro e um fator gerador de uma clara injustiça, coartar a possibilidade da Recorrente preferir na alienação por se entender que o vendedor não seria o senhorio no contrato de arrendamento, em detrimento da apreciação da qualidade de arrendatária da recorrente e, portanto, detentora do direito de preferência na compra e venda das frações em causa. Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão: Deve ser, por V.ªs Ex.ªs, dado provimento ao presente recurso, alterando-se o douto decisório recorrido, com as legais consequências.» 8. A recorrida “A..., Lda.” apresentou contra-alegações, que sintetizou nos seguintes termos: «1. Concluiu o tribunal a quo que a qualificação do empreendimento “Polo de Negócios de ...” como realidade económica e social similar a um centro comercial e a qualificação do contrato (e respetivo aditamento) celebrado entre aquela e a sociedade C..., Lda. como contrato atípico (cujo regime jurídico, à semelhança do contrato de utilização de loja em centro comercial, ficou submetido ao regime jurídico acordado entre os contratantes), operado no saneador-sentença, revelou-se efetivamente prematura, perante a facticidade de contra exceção que permanece controvertida e que foi alegada pela mesma nas respostas às contestações. 2. Ainda assim, pese embora o tribunal recorrido considerasse que o estado do processo não permitia ao julgador, sem necessidade de mais provas, qualificar o contrato como atípico, afastando-o do regime do arrendamento, e que conheceu no saneador-sentença proferido na primeira instância, também conclui que o mesmo não significava que, independentemente do referido, não pudesse desde conhecer nele do pedido, por este, atenta a relação jurídica delineada pela Recorrente na petição inicial (causa de pedir), ser manifestamente improcedente. 3. Isto é, considerou o tribunal a quo, analisando as diversas soluções de direito aplicáveis ao caso que, considerando a forma como a Autora/Recorrente configurou ação, isto é, a causa de pedir, poderia o tribunal e primeira instância, no saneador-sentença, ter julgado o pedido improcedente, porquanto, mesmo que se admitisse que o contrato celebrado pela Recorrente configurava um contrato de arrendamento, este não foi celebrado com o Novo Banco, S.A., mas com a então C..., Lda., pelo que nunca poderia aquela entidade bancária ser obrigada a conceder à Recorrente um direito de preferência na venda das frações que veio a realizar, porque não teve intervenção naquele contrato. 4. Com efeito, a Recorrente alegou na petição inicial que as frações “BP”, “HU”, “HX” e “IA” destes autos lhe foram dadas (pretensamente) de arrendamento pela sociedade C..., Lda., enquanto locatária financeira, no âmbito de um contrato de locação financeira que celebrou com o Banco Espírito Santo, Ldª. Tendo em consideração essa causa de pedir, invocada pela Recorrente para sustentar o direito de preferência na compra e venda das ditas frações vendidas pelo Recorrido Novo Banco, S.A. à Recorrida A..., Lda., facilmente se conclui que a qualidade de arrendatária de tais frações não lhe advém de qualquer contrato de arrendamento que tivesse celebrado com o apelado Novo Banco, S.A. ou com o antecessor deste (Banco Espírito Santo, S.A.”, proprietário das frações. 5. Com efeito, o art.º 1091.º do Código Civil, que confere ao arrendatário um direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos,ao pretender salvaguardara posição jurídica do arrendatário, fá-lo por oposição ao que será a posição jurídica do senhorio, senhorio esse que não é a Recorrente A..., Lda., nem o Recorrido Novo Banco, S.A. 6. Assim,uma vez que o contrato de arrendamento,talcomo vemdeterminado no art.º 1022.º do Código Civil, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, isto é, tem efeitos meramente obrigacionais, as obrigações dele decorrentes, nomeadamente, as relativas ao exercício do direito de preferência, que decorrem do art.º 1091.º do Código Civil, apenas vinculam as partes contratantes, isto é, o arrendatário e o senhorio. 7. O Novo Banco, S.A., que era o proprietário e vendedor das ditas frações,conforme a própria Recorrente indicou na petição inicial, não celebrou qualquer contrato de arrendamento com a Recorrente, antes figurava como locador financeiro, sendo que a qualidade de senhorio, nas palavras da própria Recorrente, era assumida pela C..., Lda., pelo que, sempre seria o Recorrido Novo Banco, S.A. um terceiro nesse contrato de arrendamento, e como tal, desse contrato nunca lhe adviria a obrigação de conferir essa preferência à Recorrente, nem a mesma lhe pode ser oponível. 8. A Recorrente não celebrou qualquer contrato de arrendamento que a vinculasse ao Recorrido Novo Banco, S.A., não pagou quaisquer rendas ao mesmo, não beneficiou do gozo das frações objeto dos presentes autos por via de qualquer relação negocial que a vinculasse ao Recorrido Novo Banco, S.A., pelo que nunca o tribunal a quo poderia ter considerado essa pretensa factualidade na apreciação que fez do direito aos factos. 9. A isto acresce que, efetivamente, o que resulta da decisão recorrida, foi a impossibilidade de se qualificar o contrato celebrado entre a Recorrente e a C..., Lda., isto é, o tribunal a quo, considerou que a qualificação do contrato como de arrendamento ou atípico revestia matéria controvertida e não foi realizada prova que permitisse, de forma segura, configurá-lo de um modo ou de outro. 10. Partindo dessa impossibilidade, o percurso lógico-jurídico adotado na decisão recorrida foi o de, não qualificando o contrato, mas equacionando a tese vertida na causa de pedir da Recorrente como uma das soluções de direito possíveis, indagar se dela decorria o pretenso direito de preferência a que a Recorrente se arroga. 11. Assim, e ainda que sem qualificar o contrato como de arrendamento, por falta de elementos factuais, o tribunal a quo sustentou-se na configuração da ação trazida aos autos pela Recorrente na petição inicial, onde esta invoca a existência de um contrato de arrendamento, a verdade é que, bem, o tribunal recorrido – à semelhança do que sucedeu com a primeira instância – conclui que nunca a Recorrente poderia impor a terceiros, como é o caso do Recorrido Novo Banco, S.A. – proprietário dos imóveis –, não foi parte (senhorio) em tal pretenso contrato de arrendamento, direitos que lhe advêm da qualidade de alegada arrendatária, como é o caso do direto de preferência. 12. Por outrolado, oconhecimento ou desconhecimento da existência de umcontrato de arrendamento em nada contende com a impossibilidade de estender a eficácia obrigacional do mesmo a terceiros, e não tornar, como é evidente, o proprietário das frações num senhorio, a verdade é que, uma vez mais, em face da forma como foi configurada a ação, nunca poderia o tribunal a quo, ler, entender ou interpretar, e muito menos julgar, para além da factualidade que ali está vertida. 13. Desta forma, é seguro dizer-se que os direitos e obrigações de que a Recorrente alega ser titular, decorrem da relação contratual que alegadamente estabeleceu com a C..., S.A., mas não com o então proprietário do imóvel, que assumia apenas essa qualidade e a de locador financeiro na relação jurídica que tinha com a C..., Lda., mas não a de senhorio, pelo que o mesmo é totalmente alheio à pretensa relação de arrendamento, e como tal, os direitos e obrigações que decorrem da mesma não lhe são oponíveis. 14. Assim, facilmente se evidencia que o tribunal a quo, ainda que não qualificasse o contrato como de arrendamento, cuidou de analisar se, em virtude da qualidade de arrendatária de que a Recorrente alegava ser titular e em que fundava a sua causa de pedir – vulgo, num contrato de arrendamento celebrado com a C..., Lda. e em que esta figurava como senhoria -, concluindo que, não concentrando o proprietário do imóvel, também, a qualidade, de senhorio, não estava obrigado a dar cumprimento ao disposto no art.º 1091.º do Código Civil, isto é, não sendoparte no contratode arrendamento, não poderia contra o mesmo ser oponível este direito de preferência. 15. De resto, a questão de saber se houve uma resolução do contrato de locação financeira ou se o contrato de compra e venda foi celebrado entre a A..., Lda. e o Novo Banco, S.A. ao abrigo da opção de compra antecipada por parte da locatária ora Recorrida – o que o tribunal considerou que sempre seria matéria controvertida – é irrelevante, uma vez que, em qualquer cenário, a Recorrente não encontraria acolhimento jurídico para exercer junto dos Recorridos, o direito de preferência a que se arroga, uma vez que o mesmo continuava a figurar apenas como proprietário e nunca como senhorio. 16. Nenhuma censura merece a decisão recorrida, pelo que deve a mesma manter-se nos seus integrais termos, e, concomitantemente, deverá julgar-se o recurso totalmente improcedente. Termos em que, dever-se-á julgar o recurso interposto pela Recorrente totalmente improcedente, assim se fazendo, como habitualmente, justiça.» 9. O recorrido “Novo Banco S.A.” apresentou contra-alegações, que sintetizou nas seguintes conclusões: «O Tribunal a quo teve como prematuro o conhecimento de mérito da decisão ao abrigo do saneador-sentença, tal como proferido, por entender que permanece controvertida toda a matéria que a Apelante alegou como contra excepção à excepção peremptória alegada pelas Apeladas, a qual releva para a questão decidenda, de acordo com as várias soluções de direito plausíveis quanto à qualificação jurídica do contrato celebrado pela Apelante. 2. Não obstante, a Recorrente alegou na petição inicial que as frações lhe foram dadas (pretensamente) de arrendamento pela sociedade C..., Lda., enquanto locatária financeira, no âmbito de um contrato de locação financeira que celebrou com o Banco Espírito Santo, Lda.. 3. Logo, atendendo a tal causa de pedir, poderia o saneador-sentença ter julgado improcedente o pedido, na medida em que, mesmo que se admitisse que o contrato celebrado pela Apelante fosse de arrendamento, não foi o mesmo celebrado com o ora Recorrido, pelo que não cabia a este conceder àquela qualquer preferência na venda das fracções que veio a efectuar. 4. Com efeito, o contrato de arrendamento tem efeitos meramente obrigacionais, pelo que as obrigações dele decorrentes, nomeadamente as relativas ao exercício do direito de preferência, apenas vinculam as partes contratantes, entre as quais não se conta o ora Recorrido, vendedor das fracções. 5. Assim, mesmo que se afastasse a caducidade do pretenso contrato de arrendamento invocado pela Recorrente, o mesmo não lhe conferiria qualquer direito de preferência oponível ao ora Recorrido, solução jurídica que decorre da própria causa de pedir configurada por aquela e que sempre imporia a improcedência do pedido a ser decidida em sede de saneador-sentença. 6. Não assiste razão à Recorrida ao alegar que o Tribunal recorrido incorreu em erro ao qualificar o contrato em causa como um contrato atípico, porquanto o que o Tribunal recorrido fez foi apenas clarificar que, ao contrário do alegado por aquela, o Tribunal de primeira instância não havia qualificado o contrato como contrato de utilização de loja em centro comercial, nem equiparado o Pólo de Negócio de ... a um centro comercial incorrendo, sim, num exercício meramente comparativo para concluir por uma mera similitude que justifica a sua atipicidade. 7. Após esta análise, o Tribunal recorrido concluiu que, existindo questões controvertidas que poderiam sustentar diferentes soluções de direito, deveria o tribunal de primeira instância ter abstido de proferir sentença de mérito no despacho saneador com os fundamentos com que o fez. 8. A Recorrente ignora, pois, todos os fundamentos da decisão recorrida no que respeita à falta de prova sobre factos controvertidos necessários para sustentar a qualificação jurídica do contrato em causa como sendo de arrendamento - como pode a Recorrente alegar que o Tribunal recorrido incorreu em erro de direito ao afastar o contrato do regime jurídico do arrendamento se nenhuma decisão foi tomada a esse respeito? 9. A decisão recorrida sustentou-se na delimitação da causa de pedir apresentada pela própria Recorrente em sede de petição inicial - e que aponta, precisamente, para a existência de um contrato de arrendamento – para dali extrair a acertada conclusão de que, mesmo se assim fosse, não poderia a Recorrente impor a terceiros, como é o caso do Recorrido que não foi parte em tal contrato, direitos que lhe advêm da qualidade de alegada arrendatária, como é o caso do direto de preferência. 10. Entende a Recorrente que aquando da venda das fracções pelo ora Recorrido à Recorrida A..., Lda., as partes intervenientes em tal negócio bem sabiam que as fracções se encontravam oneradas com contratos de arrendamento, mantendo a Recorrente a posição de arrendatária - uma vez mais, tal conclusão assenta no manifesto erro de raciocínio relativamente à qualificação jurídica de um contrato que não ficou definida em qualquer das decisões antecedentes. 11. É irrelevante saber se a venda das fracções ocorreu, ou não, ao abrigo do exercício da opção de compra que assistia à locatária – facto que sempre estaria controvertido - sendo certo que, mesmo afastando-se tal cenário, a Recorrente não encontraria acolhimento jurídico para a imposição ao Recorrente do direito de preferência a que se arroga. 12. A Recorrente não contesta o entendimento de que do contrato de arrendamento derivam efeitos meramente obrigacionais inoponíveis a terceiros. 13. O alegado e eventual conhecimento, pelo Recorrido, de que as fracções se encontravam oneradas com contratos de arrendamento, nada obsta à inoponibilidade que lhe assiste quanto aos efeitos obrigacionais derivados de tal relação jurídica. 14. Não é o facto de o Recorrido, proprietário das fracções saber, ou não, que as fracções foram objecto de contratos de arrendamento ao abrigo do contrato de locação financeira celebrado com o comprador das fracções – qualificação jurídica que nem sequer está consolidada -, que o coloca na posição de, não tendo sido parte naqueles contratos, estar vinculado a actuar como se de um verdadeiro senhorio se tratasse, concedendo o direito de preferência na compra à suposta arrendatária com quem nunca manteve qualquer relação contratual e, consequentemente, de quem nunca recebeu qualquer renda. 15. Donde, o vasto leque de direitos, obrigações e deveres acessórios que a Recorrente invoca, terá tido origem na relação contratual que a mesma estabeleceu com a C..., S.A., mas não com o ora Recorrido, motivo pelo qual lhe são os mesmos inoponíveis. 16. O Recorrido era, pois, locador apenas e só no âmbito da relação jurídica de locação financeira estabelecida com a C..., S.A., a quem sucedeu a Recorrida A..., Lda., nunca tendo tido tal qualidade perante a Recorrente. 17. O Tribunal a quo não posterga por completo a qualidade de arrendatária da Recorrente, sendo precisamente a partir dessa qualidade que o Tribunal recorrido fundamenta a sua decisão ao concluir que, invocando a Recorrente a existência de um contrato de arrendamento em que o Recorrido não é parte, jamais aquele direito de preferência poderia ser contra este exercido. 18. Ainda que o art.º 1091.º do CC pretenda salvaguardar a posição jurídica do arrendatário, fá-lopor oposição ao que será a posição jurídica do senhorio, senhorio esse que não é o Recorrido, pelo que a decisão recorridas não merece censura, devendo manter-se. Termos em que se requer que seja julgado improcedente o recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida e, consequentemente, a absolvição do ora Recorrido do pedido.» * II. ADMISSIBILIDADE E FUNDAMENTOS 1. Admissibilidade e objeto do recurso O acórdão recorrido confirmou a decisão da primeira instância, no sentido da improcedência da ação, embora não tivesse percorrido, na essência, o mesmo caminho de fundamentação. Efetivamente, afirma-se no acórdão recorrido: «embora com fundamentos distintos dos que foram sufragados pela 1ª Instância, impõe-se concluir pela improcedência da presente apelação e, em consequência, confirmar a decisão de mérito constante do saneador-sentença recorrido». Não se verifica, portanto, o obstáculo da denominada dupla conforme, prevista no artigo 671º, n.º 3 do CPC, pelo que a revista é admissível, nos termos do n.º 1 deste artigo. O objeto da revista é o de saber se à autora assiste o direito de preferência previsto no artigo 1091º, n.º 1, alínea a). * 2. A factualidade provada As instâncias deram como assente a seguinte factualidade: «1- No âmbito de um acordo denominado de contrato de locação financeira imobiliária, cujo teor aqui se dá por reproduzido, o Banco Espírito Santo, S.A. adquiriu e deu em locação à sociedade “C..., Lda.” diversas frações autónomas que integram o prédio urbano, constituído no regime da propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...28, da freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...22.º, tendo locado a esta última, inicialmente pelo prazo de dez anos, e depois, até 20.9.2029, por documento autenticado outorgado a 26.6.2012, objeto de dois aditamentos, entre outras, as frações “BP”, “HU”, “HX” e “IA”. 2- Na sequência das deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 e 11 de agosto de 2014, o Novo Banco, S.A. sucedeu ao Banco Espírito Santo, S.A. na posição de proprietário dos imóveis e locador financeiro. 3- O teor do acordo, entre autora e C..., denominado de contrato de cedência de espaço, de 22-4-2015, que aqui se dá por reproduzido, inclusive o aditamento de 26-12-2019. 4- Por escrito datado de 16.12.2022, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a C... declarou transmitir para a R. A..., Lda., que declarou tomar, a posição contratual de locatária no supra denominado contrato de locação financeira acima referido. 5- O teor da escritura denominada de compra e venda, entre as Rés, de 30-12-2022, que aqui se dá por reproduzido, sendo que, nesse documento, antes de declararem a compra e venda a R. A..., Lda. e o Novo Banco, S.A. declararam resolver o supra denominado contrato de locação financeira.» * 3. O direito aplicável 3.1. A questão a decidir na presente revista é a de saber se à autora-recorrente cabe o direito de preferência previsto no artigo 1091º, alínea a) do Código Civil. Para sustentar a sua pretensão no sentido de lhe ser reconhecido esse direito, a autora invocou a sua qualidade de arrendatária dos imóveis que foram alvo do contrato de compra e venda celebrado entre as rés recorridas. As rés contestaram a natureza do contrato por meio do qual a autora acedeu ao gozo dos imóveis, afirmando não se tratar de um contrato de arrendamento, mas sim de um contrato atípico de cedência de espaço numa área comercial. A primeira instância, decidindo a questão no despacho saneador, não chegou a produzir prova que permitisse, inequivocamente, apurar qual a efetiva natureza do contrato que as partes haviam celebrado (um contrato de arrendamento urbano ou um contrato atípico). Todavia, atendendo ao teor do contrato junto aos autos, a primeira instância concluiu que tal contrato, sendo equiparável a um contrato de instalação de lojistas num centro comercial, não conferia à autora o direito de preferir na aquisição do imóvel arrendado. Este foi o raciocínio seguido no plano decisório. Porém, no plano hipotético, a primeira instância não deixou de equacionar a possibilidade de se tratar de um contrato de arrendamento. Em rigor, tratar-se-ia de um subarrendamento, dado que o senhorio seria o locatário financeiro do imóvel, pelo que à arrendatária também não assistiria o direito de preferência, porque o imóvel havia sido vendido por quem não tinha a qualidade de locador neste contrato de subarrendamento. O Tribunal da Relação, censurando a primeira instância por esta ter assumido uma qualificação do contrato que assentava em matéria ainda controvertida (por sobre ela não se haver produzido prova final), dado que a decisão foi proferida no saneador-sentença, discorreu sobre as duas teses plausíveis quanto à questão da qualificação do contrato e concluiu, em síntese, que, quer na tese das rés (existência de contrato atípico), na tese da autora (existência de um contrato de arrendamento), não caberia a esta última a referida preferência legal, porque o alegado contrato de arrendamento não teria sido celebrado entre a autora e a proprietária do imóvel, mas sim com a locatária financeira. 3.2. Pode, desde já, afirmar-se que as instâncias decidiram de forma acertada ao concluírem pela não aplicação do artigo 1091º, n.º 1, alínea a) do CPC. Efetivamente, nenhuma dúvida existe de que o obrigado à preferência é sempre o locador (e não o simples proprietário quando não foi ele a dar de arrendamento), pois o artigo 1091º, na sua globalidade, regula direitos e deveres das partes do contrato de arrendamento quanto ao surgimento e ao modo de exercício desse direito legal de preferência. Dispõe esta norma: «O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;» No seu n.º 5 diz-se: «É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º (…)» E o artigo 416º do CC (complementado pelo disposto no n.º 4 do art.º 1091º) estabelece o conteúdo da obrigação de informação que o obrigado à preferência deve observar, quando pretende vender a coisa que é objeto da preferência. Deste modo, é inequívoco que coincide no mesmo sujeito a qualidade de obrigado à preferência e de proprietário da coisa arrendada projetada vender (pois só o proprietário tem legitimidade para a vender – art.º 892.º). Se o direito à preferência emerge do regime legal que disciplina o contrato de arrendamento, o obrigado a dar preferência só pode ser o sujeito que tem a qualidade de locador nesse contrato. Ao conferir ao arrendatário o direito de preferência na venda que o locador faça do imóvel arrendado, o legislador dá-lhe a possibilidade de converter um gozo temporário, baseado no contrato de arrendamento (e por isso, mais frágil) num acesso definitivo à propriedade desse bem, pagando o mesmo valor que um terceiro estaria disposto a pagar ao locador. Objetivo este que só é alcançável quando a qualidade de locador do imóvel arrendado coincide com a de proprietário desse imóvel. 3.3. No caso dos presentes autos, como a própria autora afirma na sua petição inicial, e como se encontra provado, quem lhe cedeu o gozo dos imóveis relativamente aos quais invoca o direito de preferência não foi o proprietário desses imóveis (o Novo Banco, que sucedeu ao Banco Espírito Santo), mas sim o locatário financeiro (C..., Lda., que transmitiu a sua posição contratual a A..., Lda.. O contrato pelo qual a autora acedeu ao gozo dos imóveis em causa não foi designado pelos contratantes como “contrato de arrendamento”, mas sim como “contrato de cedência de espaço”. É certo que o nome que as partes atribuem ao contrato não é, por si só, decisivo para a respetiva qualificação. Tal qualificação será revelada, em termos definitivos, pelo conteúdo do contrato, ou seja, pelo conjunto dos direitos e deveres convencionados, cuja prova será feita em tribunal quando tal qualificação assuma caráter litigioso. No caso concreto, essa prova não foi feita. Todavia, seria desnecessária a continuação do processo na primeira instância para produção de prova sobre a natureza do contrato por via do qual a autora acedeu ao gozo dos imóveis, pois ainda que se provasse a tese da autora, essa tese não lhe seria favorável. Por outras palavras, caso se provasse que o contrato pelo qual a locadora financeira cedeu o gozo dos imóveis à autora era, efetivamente, um contrato de arrendamento, sempre esse acordo teria a natureza de um subcontrato relativamente à proprietária desses imóveis. Embora, em termos gerais, um locador financeiro possa ter legitimidade para dar de arrendamento o imóvel que é objeto da locação financeira, dado que tal constitui um ato de administração ordinária (art.º 1024º do CC), não terá esse sujeito legitimidade para vender a coisa a terceiro (art.º 892º do CC). Em tal hipótese nunca existirá, portanto, coincidência entre a posição de senhorio no contrato de arrendamento e a de alienante da coisa locada. Por outro lado, se é o próprio sujeito que deu de arrendamento quem vem posteriormente a adquirir o imóvel, seja no âmbito do regime do contrato de locação financeira, seja fora dessa hipótese, é óbvio que ao arrendatário não assiste o direito de preferência nessa compra, pois a venda nem é feita por quem tem a qualidade de senhorio no contrato de arrendamento (o senhorio é, precisamente, o comprador), nem é feita a terceiro. Em resumo, sendo o artigo 1091, nº 1, alínea a) uma norma específica do regime do arrendamento urbano, ela não teria aplicação caso se provasse, no caso concreto, a tese das rés sobre a natureza do contrato em causa, ou seja, que se tratava de um contrato atípico (e não de um contrato de arrendamento). Por outro lado, caso se provasse a tese da autora no sentido de ter celebrado um contrato de arrendamento, também essa qualificação não lhe aproveitaria, pois não sendo o senhorio o proprietário do imóvel (mas sim um locatário financeiro), não se verificaria a hipótese prevista no artigo 1091º, n.º 1, alínea a) do CC, que pressupõe a coincidência entre a qualidade de locador e de proprietário alienante do imóvel. * DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando o acórdão recorrido. Custas pela recorrente. Lisboa, 12.11.2024 Maria Olinda Garcia (Relator) Luís Correia de Mendonça Ricardo Costa |