Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
299/21.9T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: IMPUGNAÇÃO EM BLOCO
ACIDENTE DE TRABALHO
NULIDADE
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

Não cumpre os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, o Recorrente que para um extenso bloco de factos cuja decisão pretende impugnar, remete para um conjunto de depoimentos, deixando ao Recorrido e ao Tribunal o encargo de ter que ouvir as respetivas gravações, em alguns casos na totalidade, para tentar individualizar as eventuais afirmações pertinentes relativamente a cada um dos factos impugnados.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 299/21.9T8CTB.C1.S1


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


1. Relatório


AA intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra Tramapi Transformação de Madeiras de Pinho, Lda., requerendo o seguinte:


“Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa, deve a ação ser julgada procedente por provada e em consequência, ser dado como provado e a ré condenada a reconhecer:


a) A relação de natureza laboral que existia com o autor/sinistrado à data de 5/1/2019 com a retribuição elencada no artigo 18º.


b) A existência de acidente de trabalho nas circunstâncias de lugar, tempo e modo descritas na P.I.


c) O nexo de causalidade entre as lesões e o acidente.


d) O resultado da perícia médico legal que determinará o grau de incapacidades do sinistrado, tanto temporária como permanente bem como a incapacidade absoluta para o trabalho habitual.


Devendo em consequência a ré ser condenada a pagar ao autor:


a) O montante de pelo menos 27.958,97€ (vinte sete mil novecentos e cinquenta e oito euros e noventa e nove cêntimos) de indemnização por incapacidade temporária relativa ao período entre 5/01/2019 e 02/07/2021.


b) Pelo menos a pensão anual e vitalícia de 4.105,05€, com início a 2/07/2021 ou aquela que vier a ser fixada na sequência da Junta médica.


c) Despesas hospitalares no valor de pelo menos 16.385,50€ (dezasseis mil trezentos e oitenta e cinco euros e cinquenta cêntimos) e aquelas que se vencerem no futuro em virtude de outras intervenções, em consequência do acidente.


d) Juros de mora devidos e tudo o mais nos termos legais.


Para tanto requer-se a citação da ré para, querendo contestar a presente ação, nos termos e sob a cominação legal.”.


A Ré contestou.


Foi realizada audiência de julgamento.


Foi proferida Sentença em 22.06.2023 com o seguinte dispositivo:


“Assim sendo, e tendo em conta os considerandos tecidos, decide-se julgar parcialmente procedente a ação e, em consequência, decide-se:


I – Condenar a ré a reconhecer:


a) A relação de natureza laboral que existia com o autor/sinistrado à data de 5/1/2019;


b) A existência de acidente de trabalho nas circunstâncias de lugar, tempo e modo descritas nos autos;


c) O nexo de causalidade entre as lesões e o acidente.


d) O resultado da perícia médico legal que determinou o grau de incapacidades do sinistrado, tanto temporárias como permanente bem como a incapacidade absoluta para o trabalho habitual.


II - Em consequência condena-se a ré a pagar ao autor:


a) O montante de 18.040,06 € a título de indemnização por incapacidade temporária relativa ao período entre 5/01/2019 e 02/07/2021.


b) A pensão anual e vitalícia no montante de € 6.201,82€ a que acresce juros, à taxa legal, contabilizados desde a data da alta, em 02.07.2021, até integral pagamento, a satisfazer adiantada e mensalmente até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual. São também devidos os Subsídios de férias e de natal, cada qual no montante correspondente a 1/14 da pensão referida, a satisfazer nos meses de Junho e Novembro;


c) O subsídio por elevada incapacidade permanente no valor de €5.172,62, a que acresce juros, à taxa legal, contabilizados desde a data da alta, em 02.07.2021, até integral pagamento;


d) A quantia de €103,00 pelas despesas efetuadas.


III – Absolver a ré do demais peticionado.”


Foi interposto recurso de apelação pela Ré.


Em 24.11.2024, o Tribunal da Relação decidiu o seguinte:


“Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, na improcedência do recurso, em manter a sentença recorrida e na procedência da questão suscitada pelo Ministério Público, em revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor o montante de € 18.040,06 a título de indemnização por incapacidade temporária e a pensão anual e vitalícia no montante de € 6.201,82, condenando-se a Ré a pagar ao Autor:


1 - O montante de € 28.351,19 (vinte e oito mil trezentos e cinquenta e um euros e dezanove cêntimos) a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta relativa ao período de 06/01/2019 a 01/07/2021, acrescido de juros de mora, à taxa legal, a contar desde o dia seguinte ao do acidente (06/01/2019) e até integral pagamento.


2 - A pensão anual e vitalícia no montante de € 9.745,74 acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde o dia seguinte ao da alta (02.07.2021), até integral pagamento, a satisfazer adiantada e mensalmente até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual. São também devidos os Subsídios de férias e de Natal, cada qual no montante correspondente a 1/14 da pensão referida, a satisfazer nos meses de junho e novembro.”


Novamente inconformada, a Ré interpôs recurso de revista do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-11-2023, no qual arguiu nulidades.


Por Acórdão da Conferência, o Tribunal da Relação considerou que, no que concerne à alegada nulidade no que refere ao julgamento da matéria de facto impugnada não lhe cabe pronunciar-se por não se tratar de uma nulidade nos termos do artigo 615º do C.P.C.; considerou improcedente a outra nulidade alegada.


Por despacho do Relator neste Tribunal foi decidido o seguinte:


“O Recorrente veio interpor recurso de revista com os seguintes fundamentos:


- Nulidade do Acórdão por ter rejeitado conhecer a impugnação da matéria de facto com fundamento na violação do ónus do artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC;


- Nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, por não ter considerado que a Sentença padecia de nulidade por deficiência ou contradição da matéria de facto;


- Errada apreciação da prova e na qualificação da relação contratual estabelecida entre Autor e Ré.


Sublinhe-se que a primeira nulidade invocada consubstancia, em rigor, antes, a alegação de um eventual erro de julgamento.


Esta Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 29.03.2023 relatado pelo Conselheiro Mário Belo Morgado admitiu que “II- Se, sob a roupagem de nulidade, a parte impugnante vier suscitar questão que, verdadeiramente, não é nulidade, mas sim outro vício (verbi gratia erro de julgamento), o Tribunal ad quem – que não está impedido de conferir adequada qualificação ao equacionado vício –, não ficará adstrito ao não conhecimento do mesmo só pela razão de, por falha qualificativa da parte, ela o ter rotulado de nulidade e não ter, cabalmente, redigido o requerimento de interposição de recurso.”


Em suma, tem-se entendido que o Tribunal pode convolar a questão que foi invocada como nulidade e conhecer de um eventual erro de julgamento.


Por outro lado, não existe dupla conformidade quanto a esta questão da rejeição da apelação em matéria de facto, porquanto foi uma decisão que apenas foi tomada pelo Tribunal da Relação.


Assim, admite-se o presente recurso com efeito meramente devolutivo, desde já, em relação a este segmento, a saber, a rejeição do recurso de apelação interposto pela Ré em matéria de facto.”


O Autor contra-alegou.


Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.


2. Fundamentação


De Facto


Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:


1) Desde o início de 2018 até meados de novembro de 2018 foram prestados pelo autor serviços de corte/abate de arvores nomeadamente à ora ré.


2) A gerência da TRAMAPI LDA. disponibilizou alojamento ao ora sinistrado e seus colegas de trabalho, também de nacionalidade brasileira, em instalações anexas à sede, onde pernoitavam.


3) Nesse período (início de 2018 até meados de novembro de 2018) os instrumentos de trabalho, designadamente motosserra, machados e outros utensílios eram propriedade do sinistrado ou de outros colegas de trabalho.


4) O combustível gasto pelos motosserras era adquirido pelo sinistrado, não existindo horário de trabalho para realização das referidas tarefas de motosserrista/madeireiro.


5) Tais serviços eram pagos pela quantidade de madeira efetivamente processada pelo sinistrado e colegas, medida através de pesagem.


6) Sucede que, por volta de outubro de 2018, na sequência de acidente grave que vitimou o filho do sinistrado, o mesmo tomou a decisão de viajar para o ..., a fim de apoiar a família.


7) Tal decisão (de viajar para o ...), implicou a substituição do sinistrado por outro motosserrista, desfazendo-se o mesmo do motosserra que utilizava habitualmente.


8) Entretanto, antes de viajar para o ..., surgiu a oportunidade de trabalhar na serração da ora ré, como operário indiferenciado/manobrador de máquinas, o que sucedeu.


9) A ré tem como objeto social a exploração florestal e indústria de serração de madeiras.


10)O autor, ora sinistrado, foi admitido ao serviço da ré TRAMAPI LDA. no dia 15 de novembro de 2018, por contrato sem termo, celebrado na altura por ajuste verbal, portanto, não reduzido a escrito, continuando a residir nas instalações cedidas pela ré, anexas ao local de trabalho (serração).


11)Para trabalhar em exclusivo ao serviço da ré, dando apoio na serração, quer com o manuseamento manual da madeira, quer operando máquinas, conduzindo veículos pesados entre os parques de armazenamento de matéria prima e a serração, o que sucedeu.


12) À data do acidente o Sinistrado exercia funções de trabalhador/operário fabril indiferenciado/operador de máquinas, nas instalações da sede sociedade TRAMAPI-TRANSFORMAÇÃO DE MADEIRAS DE PINHO, LDA, (NIPC .........51) as quais constituem uma serração de madeira de Pinho, situada em ..., freguesia do ..., concelho da ....


13) Desempenhava o sinistrado em concreto as funções de:


a) Movimentação de madeiras (troncos) nos parques de armazenamento de madeiras e na serração com veículo pesado equipado com grua e/ou manualmente.


b) Introdução de troncos na descascadeira manualmente e com grua mecânica.


c) Introdução de troncos de madeira/faxina/falheiros em triturador.


d) Acondicionamento de madeira serrada/tábuas em paletes.


e) Manobrar empilhador, nomeadamente na movimentação de madeira serrada designadamente para tratamento químico, secagem e acondicionamento de paletes no parque.


14) Funções que desempenhava sempre sob a direção, ordens diretas e fiscalização da gerência da ré.


15) Sendo a totalidade dos instrumentos de trabalho, nomeadamente máquinas industriais de movimentação/transporte e transformação de madeiras, propriedade exclusiva da ré.


16)O Sinistrado tinha como horário de trabalho das 7.30/8 horas às 12 horas, e das 13 horas às 17.30/18.00(horário de inverno ou de verão), com pausa para almoço das 12.00 horas às 13.00 horas, tendo descanso semanal às segundas-feiras para além de domingos e feriados.


17) Como Remuneração, o Requerente, à data do acidente, recebia € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de trabalho.


18) Em 7/01/2019, o sinistrado recebeu da uma ré um pagamento através de transferência bancária da quantia de €1.730 (mil setecentos e trinta euros), referente ao salário relativo a 35 (trinta e cinco) dias de trabalho efetivo, no período compreendido entre 15 de novembro de 2018 e 5 de janeiro de 2019, data do acidente (cfr. Doc. 2, o qual se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).


19) Desde meados de novembro de 2018, até à data do acidente, o sinistrado esteve sempre ao serviço da ré, não tendo quaisquer outros rendimentos, para além do salário que recebia como contraprestação do seu trabalho à ré, com o qual suportava todas as suas despesas e do seu agregado familiar.


20) Por volta das 14.15 horas do dia 5 de janeiro de 2019, no interior da serração de madeiras da ré, após o sinistrado ter ligado o triturador para moer madeira, um pequeno tronco, que se encontrava no tapete bloqueou o triturador e o motor elétrico, com risco de avaria/gripagem do mesmo.


21) Na sequência do bloqueio, BB, filho do sócio-gerente da ré, que se encontrava no escritório da empresa, correu para o local, ordenando que o requerente parasse o motor do triturador, o que fez.


22) Quando o referido BB chegou ao local, já com o motor do triturador parado, acionou o comando do tapete em sentido inverso (marcha atrás) sem se aperceber que o sinistrado estava nesse preciso momento, com a mão, a tentar retirar um pedaço de madeira do tapete para não danificar o mesmo.


23) Quando o tapete foi acionado a mão e o braço direitos do sinistrado foram esmagados entre o tapete e os rolos de ferro que seguram o tapete.


24) Ao aperceber-se que o sinistrado tinha sido esmagado, BB, inverteu novamente, de imediato, o sentido de marcha do tapete tendo o sinistrado retirado o braço esmagado.


25) Do acidente resultou de forma direta e necessária nomeadamente esmagamento do cotovelo e antebraço direitos, esfacelo da flexura do antebraço com lesão muscular dos flexores do carpo, fratura da extremidade distal da diáfise do rádio e cúbito (transversa do rádio e com terceiro fragmento do cúbito).


26) O citado BB transportou o Sinistrado na sua viatura até às urgências do centro de saúde da ... onde recebeu os primeiros socorros., nomeadamente a imobilização do braço e a estabilização da hemorragia sanguínea.


27) A entidade empregadora não tem a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho relativamente ao sinistrado transferida para nenhuma companhia de seguros.


28) Na sequência dos primeiros socorros prestados na ..., o ora sinistrado foi conduzido de imediato aos Hospitais ... onde foi alvo de várias intervenções cirúrgicas, fisioterapia e tem sido acompanhado até hoje onde ainda será alvo de outras intervenções.


29) O sinistrado, além do internamento de longa duração a que foi sujeito, tem estado desde a data do acidente até hoje em tratamento contínuo nomeadamente junto dos Hospitais ....


30) Em consequência das sequelas resultantes das lesões sofridas no acidente, o autor ficou afetado de uma I.P.P. de 44,28%, com I.P.A.T.H. desde 02.07.2021 (dia imediato ao da alta), tendo andado portador de uma ITA desde a data do acidente, até à data da alta 01/07/2021.


31) Por fim, em razão da ré não ter segurado o sinistrado, o mesmo teve necessidade de se socorrer dos serviços públicos de Assistência, através do Serviço Nacional de Saúde.


32) O ora sinistrado foi alvo de várias intervenções cirúrgicas, consulta de especialidade e atos de enfermagem, nos Hospitais ..., nomeadamente:


a) em 5/01/2019, na data do acidente, com estudo imagiológico que apurou o esmagamento do cotovelo e antebraço direitos, esfacelo da flexura do antebraço com lesão muscular dos flexores do carpo, fratura da extremidade distal da diáfise do rádio e cúbito (transversa do rádio e com terceiro fragmento do cúbito), tendo sido operado de urgência para redução aberta e osteossíntese do rádio e cúbito com placa reta LCP, lavagem cirúrgica, sutura de músculos flexores do carpo e encerramento do esfacelo da flexura.


b) Intervenção cirúrgica em 26/02/2019 para limpeza cirúrgica e libertação de aderências entre retalhos e extensores, extração de placa LCP do rádio e nova osteossíntese com placa LCP SF/4P, em compressão, encerramento de retalho.


33) O sinistrado também foi alvo de múltiplas sessões de fisioterapia/reabilitação nos Hospitais ..., nomeadamente para reeducação de cada membro (18 sessões), mobilização articular manual (84 sessões), crioterapia (29 sessões), treinos em atividades da vida diária (22 sessões), técnicas especiais de cinesiterapia (14 sessões), Fortalecimento muscular manual (12 sessões), desde o acidente até hoje.


34) O sinistrado despendeu a quantia de € 103,00 a título de despesas com transportes para deslocação obrigatória ao juízo de trabalho para realização de exame médico e atos judiciais.


35) À data a que se reporta o sinistro dos autos, o salário dos operários indiferenciados da ré situava-se próximo dos € 700,00 (setecentos euros) e para os qualificados, entre os € 850,00 (oitocentos e cinquenta) e os € 900,00 (novecentos euros).


De Direito


Começar-se-á pela apreciação da questão da rejeição pelo Tribunal da Relação do recurso de apelação em matéria de facto.


O Acórdão recorrido justificou a sua decisão de rejeitar o recurso em matéria de facto em razão do incumprimento pelo Recorrente dos ónus previstos no artigo 640.º n.º 1 do Código do Processo Civil, afirmando designadamente, o seguinte:


Esta mesma orientação viria a ser retomada pelo mesmo STJ no seu recente acórdão de 27/6/2018, proferido no processo 835/15.0T8FIG.C1.L1, em cujo sumário poderá ler-se, por exemplo, o seguinte:


1. Não cumpre o ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC o Recorrente que indica em bloco pontos de facto que considera incorretamente julgados, sem precisar em relação a cada um deles qual a decisão alternativa que deveria ter sido proferida e quais os concretos meios probatórios que impunham tal decisão.


Aplicando ao caso dos autos esta orientação jurisprudencial consolidada da secção social do nosso mais Alto Tribunal, facilmente se chega à conclusão de que o indigitado trabalhador adoptou nos segmentos que estão em apreço do seu recurso fáctico uma técnica de “impugnação por blocos de pontos de facto” que não satisfaz as exigências decorrentes para o apelante fáctico daquele art. 640º/1/b do NCPC.


Por outro lado, a insatisfação pelo recorrente de tais exigências tem por consequência a omissão de preenchimento dos requisitos de admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto legalmente enunciados e cuja inobservância é cominada com a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao suprimento (art. 640º/1/2/a do NCPC).


Regressando ao caso dos autos, mais concretamente às conclusões do recurso, constatamos que a recorrente alega que foram incorretamente julgados os pontos 2., 6., 7., 8., 10., 11., 12.,13., 14., 15., 16., 17., 18. e 31.º da matéria de facto provada e 1 da matéria de facto dada como não provada, atendendo-se ao que resulta dos depoimentos do Autor e das testemunhas CC, DD, EE, FF, GG e BB.


Já no corpo das alegações a recorrente alega que:


“Atenda-se, desde logo, em termos de centralidade:


. Ao comprovativo de pagamento, de 3 de janeiro, efetuado pela ré ao autor, (…)


. Ao comprovativo junto em audiência, da relação laboral (…)


Referencia-se estes dois aspetos centrais, que se extraem dos documentos juntos, para fazer notar que no modesto entendimento da Ré, mostra-se incorretamente julgada e é merecedora dos reparos e da censura os pontos 2., 6., 7., 8., 10., 11., 12., 13., 14., 15., 16., 17., 18., e 31.º da matéria de facto dada por provada e 1 da matéria de facto dada como não provada.


Atenda-se, desde logo, ao que se extrai do depoimento do próprio autor e, bem assim, das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, cujos depoimentos resumidamente se referenciam.


Atenda-se, desde logo, ao que resulta da gravação do depoimento do autor, designadamente aos minutos de gravação 18 a 23, 32 a 37, 40 a 57.


E atenda-se à conjugação deste depoimento com o breve depoimento da companheira do autor, CC, (…).


Para a apreciação da matéria de facto que se faz no presente recurso relevam, além daqueles dois depoimentos (do autor e da companheira CC), os depoimentos das testemunhas:


I. EE, especialmente aos minutos 3 a 9, (…).


II. DD, especialmente a minutos 5 a 11 da gravação. (…).


III. FF, trabalhador da TRAMAPI de 2018 a 2022. (…).


IV. GG, operária da TRAMAPI desde há 24 ou 25 anos, (…)


V. HH, agente de seguros, (…).


VI. II, motorista e encarregado da ré até 2021, (…).


VII. JJ, que referiu conhecer o sinistrado, (…).” (negritos no original)


Acresce que a recorrente, de seguida, faz referência aos pontos concretos que impugna, alegando as razões da sua discordância com apelo aos depoimentos do Autor e das testemunhas, sem mais.


Assim sendo, facilmente se conclui que a recorrente indica os factos que julga incorretamente julgados em bloco e faz apelo aos documentos e depoimentos supracitados, mas não especifica os concretos meios de prova relativamente a cada um dos factos impugnados.


Aliás, mesmo na indicação genérica suprarreferida, a recorrente só relativamente ao Autor e às testemunhas EE e DD indica os minutos da gravação, sendo que, relativamente a todos os outros depoimentos não indica com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”.


No seu recurso de revista o Recorrente alegou o seguinte a este propósito:

«M. Para além disso, a Recorrente, após referenciar a localização dos depoimentos das testemunhas que considerou relevantes no contexto da reapreciação da matéria de facto, contextualizou estes depoimentos com o resumo dos demais depoimentos e expôs as suas razões pelas quais entende deve ser admitida a alteração fatual pretendida no seu recurso.

N. Ou seja, a factualidade impugnada pela recorrente mostra-se identificada nas alegações de recurso e, para além disso, apresentou e identificou, para todos os factos colocados em causa ou sob censura – ainda que agrupados – os elementos probatórios cuja reanálise solicitaram ao Tribunal da Relação.

P. Daí se deva concluir, como se conclui, que a Recorrente delimitou os concretos pontos da decisão que pretendeu ver questionados; e motivou o respetivo recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto, cumprindo, assim, o ónus que sobre ela impelia.

Q. Ou seja, deve entender-se que o Recorrente cumpriu o disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC e, consequentemente, o recurso deve proceder nesta parte e consequentemente, deverá ser ordenado ao Tribunal da Relação a reapreciação da matéria de facto cuja reapreciação rejeitou e determinar em que medida a reapreciação afeta o julgamento proferido no acórdão.

R. De outro modo, é manifestamente desajustada e desproporcionada a decisão de rejeição da impugnação da matéria de facto da Recorrente, quer à luz do princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual quer à luz da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da Constituição”.

Analisando o recurso de apelação importa começar por destacar que o Recorrente começa por identificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados na Secção IV do seu recurso, bem como nas Conclusões R e S. Identifica tanto os factos que considera que deveriam ter sido dados como provados (e que identifica como factos 1 a 17 – ver Conclusão R), como os que deveriam, em seu entender, considerar-se não provados (factos a) a l), Conclusão S).

E como é que o Recorrente pretendeu dar cumprimento ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC?

Nas Conclusões do recurso de apelação pode ler-se:

“(…) E. Desde logo, em termos de centralidade do recurso, atenda-se:


i. Ao comprovativo de pagamento, de 3 de janeiro, efetuado pela ré ao autor, ora Recorrido, que com o necessário e devido respeito não se coaduna, nem como o que este invocou como fundamento para este pagamento, tão pouco à conclusão a que chegou o tribunal a quo, porquanto para se atingir o valor processado ao autor, haveria este de ter “trabalhado 35 dias” - que só ocorreriam dois dias depois deste dia 3.


ii. Ao comprovativo junto em audiência, da relação laboral que existiu ré e a testemunha DD, com a junção dos respetivos descontos para a Segurança Social, quando esta testemunha o negou. E, com o necessário e devido respeito, que é muito e é devido, além de abalar a idoneidade do seu depoimento, demonstra que a Ré não tinha qualquer objeção a que se mostrasse estabelecida uma relação laboral com o autor e que este nunca a pretendeu porque pretendia a autonomia e receber os valores que só a prestação de serviços lhe permitia.


F. Referencia-se estes dois aspetos centrais, que se extraem dos documentos juntos, para fazer notar que no modesto entendimento da Ré, mostra-se incorretamente julgada e é merecedora dos reparos e da censura os pontos 2., 6., 7., 8., 10., 11., 12., 13., 14., 15., 16., 17., 18., e 31.º da matéria de facto dada por provada e 1 da matéria de facto dada como não provada.


G. Analisados que sejam os depoimentos prestados, a conjugação entre estes depoimentos, o que resulta da demais prova junta aos autos e do que são as regras do ónus da prova, é modesto entendimento da Recorrente que se impõe outras conclusões, que não as que se extraem da sentença.


H. Atenda-se ao que resulta especificamente dos depoimentos considerados como centrais pelo tribunal, do próprio autor (especialmente, a minutos 18 a 23, 32 a 27, 40 a 47), conjugado com os demais depoimentos, designadamente da companheira (CC), das testemunhas DD (especialmente gravação, minutos 3 e seguintes) e EE (Parceiros na prestação de serviços) (minutos 5 e seguintes), dos colegas de trabalho (FF e GG) e BB.”


Antes de mais, sublinhe-se que se impugna todo um bloco de factos – na Conclusão N do recurso de revista o Recorrente refere-se aos factos “ainda que agrupados” –, técnica que vários Acórdãos desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça têm sublinhado ser inadequada para dar cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC.


Como se pode ler, designadamente, nos Acórdãos deste Tribunal:


- de 20-12-2017, processo n.º 299/13.2TTVRL.C1.S2 (“[n]ão cumpre aquele ónus [do artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC] o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”);


- de 05-09-2018, processo n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2 (“[n]ão cumpre aquele ónus [do artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC]o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”);


- de 14-07-2021, processo n.º 1006/11.0TTLRA.C1.S1 (“[v]iola o disposto no artigo 640.º n.º 1 do CPC o recorrente que impugna em bloco pontos da matéria de facto que não se acham interligados entre si”);


- de 21-09-2022, processo n.º 1996/18.1T8LRA.C1.S1 (“[a] impugnação da matéria de facto "em bloco" viola o disposto no artigo 640.º do CPC, mormente quando não está em causa um pequeno número de factos ligados entre si e um número reduzido de meios de prova (por exemplo, o mesmo depoimento), mas um amplíssimo conjunto de factos (ou, melhor, dois amplos blocos de factos) e numerosos meios de prova”);


- de 12-10-2022, processo n.º 14565/18.7T8PRT.P1.S1 ([e]m princípio, a impugnação da matéria de facto não pode ser feita por blocos de factos, antes tem de ser feita discriminadamente, por concreto ponto de facto);


- de 10-05-2023, processo n.º 2424/21.0T8CBR.C1.S1 ([d]eve rejeitar-se o recurso quando o Recorrente impugna blocos de pontos da matéria de facto sem estreita ligação entre si);


Não se ignora que, por vezes, este Tribunal tem, atendendo às circunstâncias concretas do caso, admitido que uma impugnação em bloco não conduza necessariamente à rejeição do recurso. Vejam-se, por exemplo, os Acórdãos:


- de 14-07-2021, processo n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1 (“[é] excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em “blocos” quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado com precisão os meios de prova e as formulações alternativas que pretendia ver adotadas”)


- de 27-10-2021, processo n.º 1372/19.9T8VFR.P1-A.S (“[é] excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em «blocos» quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado os meios de prova com vista à sua pretensão”);


No caso concreto o Recorrente impugnou um extenso conjunto de factos através da remissão em bloco para depoimentos, tendo identificado a passagem relevante de um deles, a saber, do Autor, com precisão – ainda que com uma gralha quando se diz “de 32 a 27” – mas identificando de modo incompleto a passagem relevante do depoimento de outros (DD e EE) ou não indicando de todo a passagem relevante (CC, FF, GG e BB).


Em suma, o Recorrente indicou para um extenso bloco de factos um conjunto de depoimentos deixando ao Recorrido e ao Tribunal o encargo de ter que ouvir as respetivas gravações, em alguns casos na totalidade, para tentar individualizar as eventuais afirmações pertinentes relativamente a cada um dos factos impugnados.


Ora tal resultado é precisamente o que a lei pretende evitar ao impor-lhe o ónus de indicar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa para cada um dos pontos da matéria de facto impugnados e “de indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC).


Exigência que a lei coloca ao Recorrente para contribuir, nas palavras do Acórdão deste Tribunal de 06-07-2022, processo n.º 3683/20.1T8VNG.P1.S1, para “a efetiva e clara compreensibilidade das razões em que assenta o recurso, por forma a que na sua apreciação o tribunal não se confronte com dificuldades desmesuradas, nem demore tempo excessivo”. Sendo certo que como se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-10-2020, processo n.º 283/08.8TTBGC-B.G1.S1, “[e]sta exigência funda-se nos princípios do dispositivo e da cooperação, tendo por objetivo a justa composição do litígio, não se vislumbrando que a mesma seja excessiva e viole o princípio da proporcionalidade, razão pela qual o art.º 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não é inconstitucional por violação da garantia constitucional do acesso à justiça, consagrada no art.º 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e do dever de administração da justiça imposto aos Tribunais no art.º 202.º, n.º 1, do mesmo diploma”.


No seu recurso de revista o Recorrente invoca jurisprudência deste Supremo Tribunal que qualifica o ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC como um ónus primário, que tem por função delimitar o objeto do recurso, e o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º como um ónus secundário, cujo incumprimento só justificaria a rejeição do recurso, nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. Assim, no Acórdão proferido a 21-03-2019 no processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, afirmou-se que “[t]endo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640.º, n.º 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto”. Como já se disse, tal não é a situação dos presentes autos em que o Recorrente não indicou sequer quanto a alguns depoimentos o início e o termo das passagens relevantes deixando ao Tribunal e ao Recorrido o ónus de as encontrar e dificultando sobremaneira o contraditório. E tal conclusão não é afastada, ao contrário do que pretende o Recorrente, pelo facto de o Recorrido com um esforço que não lhe era exigível ter logrado contra-alegar nesta matéria.


Justifica-se, assim, inteiramente, a rejeição do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


Relativamente à questão da qualificação da relação contratual entre Autor e Ré, como sendo, ou não, de trabalho, sublinhe-se que existe uma “dupla conformidade” das decisões das instâncias, o que significa que quanto a este segmento decisório o recurso não pode ser conhecido, tanto mais que o Recorrente não interpôs qualquer revista excecional, mesmo que a título subsidiário. Sublinhe-se, no entanto, que o Recorrente pretende ter havido aqui uma nulidade por violação pelo Acórdão recorrido do dever de fundamentação (artigo 615.º, n.º 1, alínea b)). Todavia decorre do Acórdão que o Tribunal fundamentou a qualificação da relação, tendo aderido ao entendimento da sentença (“como se refere na sentença recorrida que acompanhamos”) e tendo ponderado múltiplos indícios, a saber, a exclusividade, a propriedade dos meios de produção que eram disponibilizados pela Ré, a existência de horário de trabalho, a retribuição certa. Como é evidente o Tribunal de recurso não está impedido de aderir à fundamentação da decisão recorrida.


A outra nulidade invocada – desta feita por aludida oposição entre a decisão e os seus fundamentos – estaria em ter-se dado como provado que “como Remuneração, o Requerente, à data do acidente, recebia € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de trabalho” (facto 17; cfr. também facto 18) e, ao mesmo tempo, ter-se dado como provado que “à data a que se reporta o sinistro dos autos, o salário dos operários indiferenciados da ré situava-se próximo dos € 700,00 (setecentos euros) e para os qualificados, entre os € 850,00 (oitocentos e cinquenta) e os € 900,00 (novecentos euros)” (facto 35).


A este propósito o Recorrente afirma o seguinte nas Conclusões do seu recurso:

“U. É modesto entendimento da Recorrente que nasituação dos autos, pelas razões que se extraem do próprio parecer do MP junto do Tribunal da Relação, se verifica uma deficiência e contradição da matéria de facto que o Tribunal recorrido deu como Provada, que levam a que se verifique a nulidade para que remete o artigo 662.º do CPC; e que não tendo o Tribunal da Relação conhecido desta, que se verifica a nulidade prevista na alínea c) do artigo 615.º do CPC”.

Antes de mais, diga-se que se o que se pretende é invocar que o Tribunal da Relação não terá exercido corretamente os seus poderes-deveres previstos no artigo 662.º, mormente nos seus números 1 e 2, então há que recordar que, como resulta do n.º 4 do artigo 662.º, “[d]as decisões da Relação previstas nos números 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo tribunal de Justiça”.


De resto, há múltiplas razões concebíveis para que não exista necessariamente contradição entre o facto 17 e o facto 35: por exemplo, este último pode referir-se a salários médios ou aos salários formalmente praticados, não afastando a possibilidade de salários mais elevados. Seja como for, e como se decidiu a este respeito no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.01.2024 que se pronunciou sobre esta nulidade invocada pelo Recorrente, a decisão objeto de recurso fundamentou porque é que o Tribunal ficou convencido “com base nas declarações do Autor, no depoimento das testemunhas e documento comprovativo da transferência bancária” de que o trabalhador que aliás desenvolvia as funções de trabalhador/operário fabril indiferenciado e operador de máquinas, auferia a quantia diária de € 50,00.


Não existe, portanto, qualquer obscuridade ou deficiência na fundamentação, pelo que também não procede a invocação da referida nulidade.


3. Decisão: Negada a revista


Custas pelo Recorrente


Lisboa, 5 de junho de 2024


Júlio Gomes (Relator)


José Eduardo Sapateiro


Domingos José de Morais