Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5659/23.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESSUPOSTOS
COISA IMÓVEL
OBRAS
BENFEITORIAS
COMPENSAÇÃO
VANTAGEM PATRIMONIAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

II - A ocupação e o uso do prédio rústico adquirido pela Autora, por parte dos Réus, contra a vontade daquela, implicou um enriquecimento injustificado dos RR à custa da Autora, pelo que a respectiva consequência jurídica é a imposição àqueles da obrigação de restituir o valor correspondente ao enriquecimento (art. 473º nº1 CC).

III - Não obstante o valor a restituir deva ser fixado na sentença, sempre que possível, pode relegar-se para liquidação ulterior quando, inexistindo factos para determinar o valor exato, é possível prever a sua prova. De contrário, justifica-se a fixação imediata, podendo recorrer-se à equidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I - RELATÓRIO

BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA interpôs a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra:

AA,

BB e outros, todos melhor identificados nos autos.

Formulou os seguintes pedidos:

(i) ser declarado que a Autora BCP, SA é a legítima e exclusiva proprietária do prédio rústico, com a área de 504m2, sito na freguesia de ..., no concelho de ..., no lugar da ..., descrito na conservatória do registo predial de ..., sob o n.º ..31 e inscrito na matriz predial rústica sob o art. 177.º;

(ii) serem condenados os réus a reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o imóvel referido no número anterior;

(iii) Serem condenados os réus a restituir ao autor, livre de pessoas e bens, o prédio rústico melhor descrito em (i) e a abster-se da prática de qualquer ato que coloque em causa a posse da autora;

(iv) Ser declarado que os réus estão na posse ilegítima do imóvel referido em (i), desde 1 de dezembro de 2015;

(v) ser declarado que, por força da referida posse ilegítima, a autora é titular dos seguintes direitos de crédito sobre os réus:

1. € 160.382,01 (cento e sessenta mil, trezentos e oitenta e dois euros e um cêntimo) a título de enriquecimento sem causa pelo uso do imóvel referido no antecedente (i), desde 1 de dezembro de 2015 até à presente data, sendo € 140.096,00 (cento e quarenta mil e noventa e seis euros) relativos a capital e o remanescente relativo a juros;

2.€ 1.592,00 (mil, quinhentos e noventa e dois euros) por cada mês contado desde a presente data até à data da entrega, livre de pessoas e bens, do imóvel referido no antecedente (i), ao autor, a título de enriquecimento sem causa;

(vi)Serem condenados os réus, a título solidário, a pagar à autora as quantias referidas no número anterior, acrescidas de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento;

(vii) Serem condenados os réus, solidariamente, no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória e ao abrigo do art.º 829.º-a n.º 1 do código civil, da quantia de € 100,00 por cada dia de atraso na entrega, livre de pessoas e bens, do imóvel referido no antecedente n.º i.

(viii) serem condenados os réus, solidariamente e ao abrigo do art.º 609.º n.º 2 do CPC, a pagar à autora a indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos danos existentes no imóvel referido no antecedente (i) e que tenham ocorrido ou tenham fundamento no período da sua posse ilegítima.

(ix)Ser declarado que a autora, enquanto proprietária do prédio rústico referido no antecedente (i), confinante com o prédio urbano pertencente à herança indivisa de CC E DD, de que os réus são beneficiários, tem, nomeadamente, direito a murar, valar, rodear de sebes e tapar o referido prédio rústico (art. 1356.º do cc), designadamente através da construção de paredes divisórias e de muros divisórios;

(x)Serem condenados os réus a reconhecer os direitos do autor referidos no número anterior;

(xi)serem condenados os réus, ao abrigo do art.º 1353.º do Código Civil, a concorrer para a demarcação das estremas entre o prédio rústico referido no antecedente (i) (de que a autora é proprietária) e o prédio urbano, sito na rua ..., descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 5964.º (de que são proprietárias as heranças indivisas de DD e CC), definindo-se a linha divisória que vier a resultar dos títulos de cada um e dos meios de prova a produzir nos presentes autos e que, no mínimo, corresponderá a uma linha reta paralela ao muro situado na extremidade norte do imóvel da autora, havendo uma separação entre as duas extremidades (norte e sul do imóvel) de 9,85 metros.

A título subsidiário, face ao pedido formulado em (xi) e na impossibilidade de determinar a linha divisória entre o prédio rústico referido no antecedente n.º i (pertencente à Autora) e o prédio urbano, sito na rua ..., descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 5964.º requer, ao abrigo do art.º 1354.º n.º 2 do código civil, que a linha divisória entre os dois imóveis seja definida através da divisão da sua área total em partes iguais.

Citados, os RR não contestaram.

Decorridos os trâmites legais foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

1)Julga-se inepta a petição inicial, quanto ao pedido de condenação solidária dos réus “no pagamento da indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos danos existentes no imóvel do qual sustenta ser proprietário e que tenham ocorrido ou tenham tido fundamento no período da sua posse ilegítima”, absolvendo-os da respectiva instância.

2)Declara-se o autor, Banco Comercial Português, SA - Sociedade Aberta, como exclusivo proprietário do prédio rústico com a área de 504 m2, sito na ..., no Concelho de ..., no Lugar da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31 e inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo 177º.

3)Condenam–se os réus a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o imóvel referido no número anterior.

4)Condenam-se os réus a restituir à autora, livre de pessoas e bens, o prédio referido em 2) e a absterem-se da prática de qualquer acto que coloque em causa a posse da autora.

5) Condenam-se os réus (herdeiros de DD e CC) a concorrer para a demarcação das estremas entre o prédio referido em 2) e o prédio urbano, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5964º, ficando pela presente sentença, definida a linha divisória como correspondendo a uma linha recta, paralela ao muro situado na extremidade norte do imóvel referido em 2), situada a 9,85 metros a sul desse mesmo muro (havendo uma separação entre as extremidades norte e sul do imóvel do autor de 9,85 metros).

6) Declara-se que a autora tem o direito a murar, valar, rodear de sebes e tapar o prédio referido em 2), designadamente através da construção de paredes divisórias e de muros divisórios.

7) Condenam-se os réus (herdeiros de DD e CC) a reconhecerem os direitos da autora referidos em 6).

8) Declara-se que os réus estão na posse ilegítima do imóvel referido em 2) desde 2015/12/01.

9) Absolvem-se os réus do mais peticionado.

Inconformados com a sentença proferida, os Réus interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão datado de 21 de março de 2024, julgou parcialmente procedente o recurso e revogou a sentença na parte em que negou à Autora o direito à restituição do valor do enriquecimento dos Réus pelos factos dos autos, reconhecendo-se esse direito da Autora, “mas em montante a liquidar, cujo limite máximo é o valor do pedido formulado na petição quanto ao capital liquidatório nos termos do artigo 609/1 e 2 do CPC e de acordo com os critérios mencionados em ii.2.1, ii.2.2 e ii.2.3.”

Inconformada com o teor do referido acórdão, vem agora a Autora BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA interpor recurso de REVISTA para o STJ, formulando as seguintes conclusões:

1-O Tribunal da Relação do Porto reconheceu que o recorrente “BCP” é titular de um direito de crédito sobre os recorridos, mas entendeu que a matéria de facto provada não era suficiente para apurar o quantitativo desse crédito, remetendo a sua determinação para um incidente de liquidação.

2-O recorrente não concorda com a necessidade de um incidente de liquidação, porque os factos provados são, por si só, suficientes para determinar o valor do seu crédito, não se aplicando o art.º 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

3-As regras definidas no acórdão recorrido para a determinação do quantitativo do crédito do recorrente são também contraditórias entre si e não respeitam os factos provados, já que:

a)Por um lado, a Relação do Porto desconsidera a realidade física atual do imóvel do recorrente (prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31, freguesia de ..., constituído por uma casa e um logradouro, conforme provado sob os nºs 13 a 17 e 30 e 31), dizendo que o valor locativo deve ser determinado em função da natureza rústica do imóvel (descrevendo-o como "prédio rústico constituído por terreno bravio de 504 m2");

b) Por outro lado, a Relação do Porto obriga a subtrair ao valor locativo global as despesas realizadas pelos recorridos AA e BB com a construção da casa que hoje existe no imóvel do recorrente, sem ter em conta que a construção foi concluída antes de o recorrente se tornar proprietário do imóvel – cfr. factos provados sob os nºs 18, 19, 20 e 26.

4-Está mais do que provado que, em data anterior a 1 de dezembro de 2015, os recorridos AA e BB realizaram obras no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31, freguesia de ..., de que então eram proprietários, ampliando a casa que existia no prédio urbano contíguo, com o acréscimo de novas divisões – cfr. factos provados sob os nºs 2, 18, 19, 20 e 26.

5-A construção foi concluída antes de o recorrente “BCP” se tornar proprietário do referido imóvel, o que só aconteceu em 1 de dezembro de 2015 – cfr. factos provados sob os nºs 2, 18, 19, 20 e 26.

6-Desde o dia 1 de dezembro de 2015, os recorridos ocupam o imóvel do recorrente, usufruindo de todas as suas valências (comendo, dormindo e recebendo visitas, conforme foi provado sob o n.º 27), sem pagar qualquer quantia.

7-O enriquecimento dos recorridos consiste na poupança de uma despesa, cabendo-lhes restituir ao recorrente a quantia que pouparam à custa deste (art. 479.º n.º 1), isto é, o montante que, em condições normais e de legalidade, teriam de pagar pelo arrendamento do imóvel pertencente ao recorrente, considerando todas as suas características físicas.

8-O montante que teria de ser pago por cada mês de arrendamento de uma casa com logradouro no concelho de ... foi dado como provado sob os nºs 29 e 32, o que permite concluir que o valor locativo mensal do imóvel utilizado pelos recorridos (com as características dadas como provadas sob os nºs 16, 17, 30 e 31) ascende a € 1.592,00 (mil, quinhentos e noventa e dois euros) - cfr. factos provados sob os nºs 16, 17, 29 e 32.

9-Considerando os meses decorridos entre a data da ocupação ilícita do imóvel (1 de dezembro de 2015) e a data da instauração da ação (22 de março de 2023), os recorridos têm de restituir ao recorrente a quantia de € 160.382,01 (cento e sessenta mil, trezentos e oitenta e dois euros e um cêntimo), sendo € 140.096,00 (cento e quarenta mil e noventa e seis euros) relativos a capital e o remanescente relativo a juros.

10-Entre a data da instauração da ação (22 de março de 2023) e a data do acórdão recorrido (21 de março de 2024) decorreram 12 (doze) meses, o que obriga os recorridos a restituir ao recorrente a quantia de € 19.104,00 (dezanove mil cento e quatro euros) (€1.592,00 x 12 meses).

11-Por cada mês que venha a passar até à data da entrega efetiva do imóvel ao recorrente, os recorridos terão de lhe pagar a quantia adicional de € 1.592,00 (mil quinhentos e noventa e dois euros), sob pena de se continuarem a locupletar à custa daquele.

12-Sendo líquida a obrigação dos recorridos, é também devido o pagamento de juros, não se aplicando – ao contrário do que entende o acórdão recorrido – o art.º 805.º n.º 3 do Código Civil.

13-Os juros vencem-se sobre o capital em dívida à taxa legal de 4%, contados desde:

a) data da instauração dos presentes autos (22 de março de 2023), no que diz respeito à quantia de € 140.096,00 (cento e quarenta mil e noventa e seis euros), relativa a capital em dívida;

b) o final de cada mês decorrido entre a data da instauração da ação (22 de março de 2023) e a data da entrega efetiva do imóvel ao recorrente, sobre o capital de € 1.592,00 (mil quinhentos e noventa e dois euros);

já que os recorridos têm plena consciência da falta de causa do seu enriquecimento, aplicando-se os arts. 480.º, al. b), 805.º e 806.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil.

14-A este montante não poderão ser subtraídas as despesas realizadas pelos recorridos AA e BB com as obras no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31, freguesia de ..., precisamente porque foram realizadas numa altura em que eram os respetivos proprietários – cfr. factos provados sob os nºs 2, 18, 19, 20 e 26.

15-O Tribunal da Relação do Porto interpretou e aplicou erradamente o art.º 1273.º do Código Civil, pois as benfeitorias realizadas num determinado imóvel só têm de ser indemnizadas quando foram executadas por quem não era o proprietário.

16 - Deste modo, os factos considerados provados pelo Tribunal a quo, em especial sob os nºs 2, 13 a 20, 26, 30 e 31, eram suficientes para a procedência dos pedidos formulados na petição inicial sob os nºs V e VI, sem necessidade de instauração de qualquer incidente de liquidação.

17 - Ainda que se entendesse necessária a instauração do incidente de liquidação, o montante do crédito do recorrente teria de ser apurado em função das características atuais do imóvel de que é proprietário, sem que sejam subtraídas as quantias despendidas pelos recorridos com benfeitorias.

18 - Não decidindo desta forma, o Tribunal a quo interpretou e aplicou de forma errada os arts. 204.º n.º 2, 2.ª parte, 473.º, 474.º, 479.º, 480.º, 805.º, 806.º e 1273.º do Código Civil, bem como o art.º 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXA. QUE SEJA JULGADO PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO, REVOGANDO A DECISÃO RECORRIDA NA PARTE EM QUE REMETE PARA UM INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO A DETERMINAÇÃO DO QUANTITATIVO DO CRÉDITO DO RECORRENTE E NA PARTE EM QUE IMPÕE OS CRITÉRIOS DE LIQUIDAÇÃO MENCIONADOS NOS CAPÍTULOS II.2.1, II.2.2 E II.2.3 DO ACÓRDÃO RECORRIDO, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE:

I - DECLARE O AUTOR/RECORRENTE TITULAR DOS SEGUINTES DIREITOS DE CRÉDITO SOBRE OS RÉUS/RECORRIDOS:

1.€ 160.382,01 (CENTO E SESSENTA MIL, TREZENTOS E OITENTA E DOIS EUROS E UM CÊNTIMO), A TÍTULO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA PELO USO DO PRÉDIO RÚSTICO, COM A ÁREA DE 504M2, SITO NA FREGUESIA DE FÂNZERES, NO CONCELHO DE ..., NO LUGAR DA ..., DESCRITO NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE ..., SOB O N.º ..31 E INSCRITO NA MATRIZ PREDIAL RÚSTICA SOB O ART. 177.º, DESDE 1 DE DEZEMBRO DE 2015 ATÉ À DATA DA INSTAURAÇÃO DESTA AÇÃO (22 DE MARÇO DE 2023), SENDO 140.096,00 (CENTO E QUARENTA MIL E NOVENTA E SEIS EUROS) RELATIVOS A CAPITAL E O REMANESCENTE RELATIVO A JUROS VENCIDOS;

2.€ 1.592,00 (MIL, QUINHENTOS E NOVENTA E DOIS EUROS) POR CADA MÊS CONTADO DESDE A DATA DA INSTAURAÇÃO DA PRESENTE AÇÃO JUDICIAL (22 DE MARÇO DE 2023) ATÉ À DATA DA ENTREGA, LIVRE DE PESSOAS E BENS, DO IMÓVEL REFERIDO NO NÚMERO ANTERIOR AO AUTOR, A TÍTULO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA;

II - CONDENE OS RÉUS/RECORRIDOS, A TÍTULO SOLIDÁRIO, A PAGAR AO AUTOR/RECORRENTE AS QUANTIAS REFERIDAS NO NÚMERO I, ACRESCIDAS DE JUROS DE MORA CALCULADOS À TAXA LEGAL DE 4%, DESDE:

1 - A DATA DA INSTAURAÇÃO DA PRESENTE AÇÃO (22 DE MARÇO DE 2023), SOBRE O CAPITAL EM DÍVIDA DE 140.096,00 (CENTO E QUARENTA MIL E NOVENTA E SEIS EUROS);

2 - O FINAL DE CADA MÊS DECORRIDO ENTRE A DATA DA INSTAURAÇÃO DA PRESENTE AÇÃO (22 DE MARÇO DE 2023) E A DATA DA ENTREGA EFETIVA DO IMÓVEL AO RECORRENTE, SOBRE O CAPITAL DE 1.592,00 (MIL, QUINHENTOS E NOVENTA E DOIS EUROS); ATÉ EFETIVO E INTEGRAL PAGAMENTO.


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Os Recorridos não apresentaram contra- alegações.

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II - FUNDAMENTAÇÃO de FACTO

Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:

1.O autor dedica-se à atividade bancária.

2. Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31, com a propriedade aí definitivamente inscrita a favor do autor, pela Ap. ..23 de 2015/12/11, o prédio rústico, denominado “...”, constituído por terreno a bravio com 504m2, sito na freguesia de ..., no concelho de ..., no Lugar da ..., inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 117 .

3. Não existe qualquer divisão física entre este e o imóvel com o qual confina na sua extremidade sul.

4. Este outro imóvel constitui o prédio urbano, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ..., concelho de ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 5964.º, que se encontra registado em nome de DD, casado na comunhão geral com CC sob a Ap. 6 de 1987/05/20.

5. DD e CC eram casados no regime da comunhão geral de bens e tinham apenas uma filha, a ré AA.

6. A ... de ... de 1998, faleceu CC, deixando como herdeiros: a) DD, seu marido; b) AA, sua única filha.

7. Mais tarde, a ... de ... de 2013, faleceu DD.

8. A 25 de Março de 2011 e perante a Notária EE, DD instituiu "os seus netos, FF e GG, filhos únicos da sua única filha, AA, herdeiros da quota disponível da sua herança".

9. A ré AA aceitou tanto a herança da sua mãe como a herança do seu pai e os réus FF e GG aceitaram a herança do seu avô DD, sendo que ambas as heranças permanecem por partilhar.

10. AA é casada, desde 5 de fevereiro de 1984, com BB, no regime de comunhão geral de bens.

11. Os réus ocupam ambos os imóveis.

12. Não existe separação física entre o imóvel referido em 2 e o imóvel com o qual aquele confina na sua extremidade a sul, porque a casa existente neste último imóvel foi ampliada para o imóvel, referido em 2 e porque metade de uma piscina encontra-se no terreno referido em 2 e a outra metade encontra-se no outro terreno.

13. Após a morte dos seus pais, a 1.ª ré AA decidiu, em conjunto com o 2.º réu BB (e com a concordância da 3.ª ré FF e do 4.º réu GG), ampliar a casa que, então, existia apenas no prédio urbano, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5964.º.

14. A ampliação desta casa foi realizada com a construção no terreno correspondente ao prédio rústico, denominado “...”, constituído por terreno a bravio com 504m2, sito na freguesia de ..., no concelho de ..., no Lugar da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31 e inscrito na matriz predial rústica sob o art. 177.º.

15. A 1.ª ré AA e o 2.º réu BB contrataram o empreiteiro que realizou as obras, indicando, ao certo, o modo como pretendiam que fosse realizada a ampliação.

16. A ampliação da casa permitiu acrescentar novas divisões, nomeadamente quartos e uma sala.

17. E foi igualmente construída uma piscina, sendo que uma das metades encontra-se no terreno do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31, freguesia de ... e a outra metade encontra-se no terreno do prédio urbano, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ....

18. Na data das obras de ampliação, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31, freguesia de ..., era da propriedade da 1.ª ré AA e do 2.º réu BB; já o prédio urbano, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ..., era parte integrante das heranças indivisas de DD e CC.

19. As obras de ampliação foram realizadas com materiais adquiridos pelos réus AA e BB, assumindo todas as despesas.

20. A 1 de Dezembro de 2015, já se encontrava concluída a construção que agora existe no imóvel referido em 2.

21. O imóvel encontra-se murado, não existindo qualquer acesso a partir da via pública.

22. O acesso ao logradouro e à casa do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31 apenas pode ser concretizado através do portão existente no imóvel contíguo, isto é, no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ....

23. O autor nunca conseguiu aceder ao logradouro e à casa do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31, não só por não existir qualquer porta/portão junto à via pública, mas também porque o mesmo se encontra a ser ocupado pelos réus AA e BB e pelos seus filhos FF e GG.

24. Os réus nunca permitiram aos representantes do autor o acesso ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31.

25.Apesar de muitas terem sido as tentativas para aceder ao referido imóvel.

26. Desde 1 de Dezembro de 2015 (data em que foi emitido título de adjudicação desse imóvel ao autor, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ..............11 e respetivos processos apensos) até à presente data, os réus têm utilizado, de forma ininterrupta, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31.

27. É neste imóvel que os réus vivem e realizam as suas necessidades básicas (comem, dormem, recebem visitas).

28. Os réus têm noção que o proprietário deste imóvel é o autor, que nunca os autorizou a utilizá-lo.

29. No concelho de ..., o valor médio mensal do metro quadrado para efeitos de arrendamento habitacional é de € 6,00 (seis euros).

30. A parte da casa habitada pelos réus que se encontra implantada no imóvel do qual é proprietário o autor tem, no mínimo, 146 m2.

31. Os réus usufruem, igualmente, do logradouro do imóvel pertencente ao autor, onde se encontra metade de uma piscina, tendo a área de 358 m2.

32.O arrendamento de um logradouro como aquele que é utilizado pelos réus nunca seria possível por um valor inferior a € 2,00 por metro quadrado.

33. Os réus nada pagam ao autor.

34. Nas suas extremidades a norte, a nascente e a poente, o prédio rústico encontra-se perfeitamente delimitado, conforme se discrimina: a) a norte e a nascente, por muros divisórios, confinando com outros imóveis; b) a poente, existe um muro divisório que confronta com a Rua ....

35. Nas suas extremidades a sul, a nascente e a poente, o prédio urbano encontra-se perfeitamente delimitado, conforme se discrimina: a) a sul e a nascente, por muros divisórios, confinando com outros imóveis; b) a poente, existe um muro divisório que confronta com a Rua ....

36.De acordo com a certidão do registo predial e a caderneta predial, o prédio rústico referido em 2 tem 504 m2.

37. De acordo com a certidão do registo predial, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 5964.º tem a área total de 900 m2 e, segundo a caderneta predial, tem a área total de 897 m2.

38. O prédio rústico referido em 2 e o prédio urbano referido em 4 confrontam, em linha reta, na extremidade sul daquele e na extremidade norte deste último.

39. Entre a extremidade norte do imóvel da propriedade do autor e entre a sua extremidade sul distam, pelo menos, 9 metros e 85 centímetros, sendo possível gizar uma linha exatamente paralela ao muro situado a norte.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Assim, tendo em conta as conclusões recursivas formuladas, a única questão a apreciar consiste em saber se os autos fornecem todos os elementos necessários para fixar o valor a restituir pelos Réus, a título de enriquecimento sem causa, com base na ocupação ilegítima do prédio rústico pertencente ao Autor e, nesse caso, definir esse mesmo valor.

Na verdade, o Autor pretende que lhe sejam atribuídos 1592,00€, mensais desde a ocupação do imóvel até efetiva entrega, tendo fixado à data da petição inicial (22-03-2023) o valor global de 140,096,00€, requerendo ainda a condenação em juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal.

Fundamenta a sua pretensão nos factos provados 26.º a 33.º, a saber:

«26. Desde 1 de Dezembro de 2015 (data em que foi emitido título de adjudicação desse imóvel ao autor, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ..............11 e respetivos processos apensos) até à presente data, os réus têm utilizado, de forma ininterrupta, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31.

27. É neste imóvel que os réus vivem e realizam as suas necessidades básicas (comem, dormem, recebem visitas).

28. Os réus têm noção que o proprietário deste imóvel é o autor, que nunca os autorizou a utilizá-lo.

29. No concelho de ..., o valor médio mensal do metro quadrado para efeitos de arrendamento habitacional é de € 6,00 (seis euros).

30. A parte da casa habitada pelos réus que se encontra implantada no imóvel do qual é proprietário o autor tem, no mínimo, 146 m2.

31. Os réus usufruem, igualmente, do logradouro do imóvel pertencente ao autor, onde se encontra metade de uma piscina, tendo a área de 358 m2.

32. O arrendamento de um logradouro como aquele que é utilizado pelos réus nunca seria possível por um valor inferior a € 2,00 por metro quadrado.

33 Os RR nada pagam ao Autor.»

A 1.ª Instância entendeu que o invocado direito do Autor à quantia peticionada, referente à ocupação do prédio rústico identificado no ponto 2 dos factos provados, não passaria pelo instituto do enriquecimento sem causa, mas antes seria eventualmente devido em sede de responsabilidade civil extracontratual. Analisou a questão nesta perspectiva, concluindo que não se mostravam preenchidos todos os requisitos legais do dever de indemnizar, designadamente a verificação do dano.

Ao invés, a Relação entendeu que a questão não se enquadrava na responsabilidade civil extracontratual, mas antes na figura jurídica do enriquecimento sem causa. Defendeu que as construções implantadas no prédio do Autor, por parte dos Réus, integram o conceito de benfeitorias, e de entre as benfeitorias elencadas na lei, as benfeitorias úteis, (artigo 216.º do CC). Concluiu que o valor dessas benfeitorias é indispensável para o cálculo da medida do enriquecimento dos Réus, “impondo-se a subtração do custo total da obra implantada pelos RR ao valor do proveito obtido com a utilização pelos mesmos, no prédio do Autor, podendo até no final o resultado ser de soma nula (…)”.

Em conformidade com tal decisão, uma vez que o valor a restituir ficou pendente de liquidação, a regra aplicável é a do artigo 805º/3 do CC pelo que, só após a liquidação do devido se poderá falar em vencimento de juros. Assim, também quanto ao pedido de juros a Relação confirmou a decisão da 1.ª instância, no sentido da improcedência.

Como resulta das conclusões de recurso do Autor, sendo certo que os Réus conformaram - se com o acórdão da Relação, apenas está em causa saber se o cálculo da medida do enriquecimento dos Réus deve ser relegada para liquidação. Quanto à existência de enriquecimento e consequente dever de restituição por parte dos Réus, constitui questão sobre a qual este Tribunal não pode pronunciar-se dado que sobre o mesmo não incidiu o recurso, conformando-se as partes com tal entendimento.

Vejamos:

Conforme consta como provado no ponto 18.º da factualidade assente : “18.Na data das obras de ampliação, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31, freguesia de ..., era da propriedade da 1.ª ré AA e do 2.º réu BB; já o prédio urbano, sito na Rua Alto de Barreiros, n.º 1234, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ..., era parte integrante das heranças indivisas de DD e CC.”.

Afigura-se que este facto é esclarecedor quanto ao contexto fáctico em que se insere o conflito em apreço e releva para a definição do regime jurídico aplicável.

Mais se provou, com relevo, igualmente, para a abordagem jurídica da questão em analise que: “20.A 1 de Dezembro de 2015, já se encontrava concluída a construção que agora existe no imóvel referido em 2.

21. O imóvel encontra-se murado, não existindo qualquer acesso a partir da via pública.

22. O acesso ao logradouro e à casa do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31 apenas pode ser concretizado através do portão existente no imóvel contíguo, isto é, no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ....”

Decorre, por conseguinte, dos factos mencionados que os Réus AA e BB procederam à ampliação de uma moradia onde residem, utilizando parte do prédio rústico que foi adquirido pelo Réu, em 1 de dezembro de 2015, em processo de execução fiscal, movido contra aqueles Réus. Portanto, antes de 1 de dezembro de 2015, o referido prédio rústico pertencia aos Réus, sendo certo que a ampliação da moradia foi realizada anteriormente àquela data, em terreno que lhes pertencia. A parte da casa habitada pelos réus que se encontra implantada no prédio rústico identificado em 2., tem no mínimo 146 m2.1 Assim, após as obras de ampliação da sua moradia que absorveram 146m2 do seu prédio rústico supra identificado, o mesmo passou a ter 358m2 e não 504 m2. Logo, a área do prédio rústico deveria ter sido actualizada/rectificada, na sequência das obras de ampliação da moradia e construção da piscina, partindo-se do princípio que essas obras foram devidamente licenciadas e legalizadas.

Na verdade, em consequência das referidas obras, o prédio rústico passou a ter uma área de 358m2, havendo uma desconformidade entre a realidade física e a realidade documental que nunca foi rectificada. Porém, essa realidade não pode deixar de ser considerada na análise da questão em apreço.

Decidiu o Tribunal da Relação que o Autor goza do direito à compensação pelo uso indevido que os Réus fazem do seu prédio desde 1 de dezembro de 2015, ao abrigo das regras do enriquecimento sem causa. Já referimos que sobre esta decisão formou-se caso julgado não podendo ser objecto de reapreciação. Está apenas em causa a determinação do valor da restituição.

Ora, do que ficou exposto, resulta que para a determinação do valor dessa restituição não tem de ser levada em consideração o valor das obras que os Réus realizaram.2 Não é aqui aplicável o regime jurídico das benfeitorias previsto designadamente no art.º 1273.º do Código Civil, tal como explanado no acórdão recorrido. O pedido de indemnização de benfeitorias que não podem levantar-se sem detrimento da coisa, destina-se a evitar um enriquecimento sem causa à custa do possuidor que é obrigado a entregar a coisa benfeitorizada. Sem obrigação de entrega, não haverá direito de indemnização como implicitamente se pressupõe nos artigos1273.º e 1275.º do Código Civil.3

Daqui resulta, desde logo, duas razões pelas quais não é aplicável ao caso em apreço, o regime jurídico das benfeitorias:

Por um lado, nos termos do art.º 216.º do CC “Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.” A “coisa” objecto das benfeitorias é aquela sobre a qual recai o dever de restituição. Ora, as benfeitorias realizadas foram-no em relação ao prédio urbano dos Réus e não no prédio rústico do Autor. As obras de ampliação e melhoramento da moradia destinaram-se a beneficiar esta e não o prédio rústico.

Por outro lado, não é a coisa benfeitorizada que deve ser entregue pelos Réus. É antes o prédio rústico, com a área de 358 m2, como supra explicitado. Nem de outra forma poderia ser. O pagamento aos Réus do valor das obras realizadas como preconizado pelo acórdão recorrido, parece pressupor que parte da moradia e metade da piscina dos Réus teriam de ser entregues ao Autor, o que é uma solução inaceitável sob ponto de vista prático e jurídico.

Aqui chegados, segue-se que o valor das obras realizadas pelos Réus nenhuma relevância tem para o cálculo do valor da compensação a que o Autor tem direito pela ocupação do prédio rústico adquirido por este, desde 1 de Dezembro de 2015, com a referida área de 358 m2, repete-se, que é a área que efectivamente tinha quando foi adquirido pelo Autor.

Nesta parte, procede a argumentação da Autora. Contudo, mantém-se a questão de saber se os autos nos oferecem todos os elementos necessários para determinar o valor do crédito daquela.

Vejamos a medida do direito do Autor que há-de determinar-se a partir do critério legal estabelecido no art.º 479.º do Código Civil:4

A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”

Na verdade, ainda que se entenda que não há lugar a indemnização com fundamento na responsabilidade civil, por se considerar que, para tanto, é necessária a prova de um dano concreto, que não se consubstancia na mera privação do uso, é pertinente a questão colocada pelo STJ5:

“Poderá o Direito ficar indiferente a uma tal situação de alguém que beneficia de bens alheios à custa e contra a vontade do respectivo dono?
Seguramente que não, pois tal solução repugnaria ao mais elementar senso jurídico.
E o certo é que o Direito tem solução: o instituto do enriquecimento sem causa.
Segundo o respectivo princípio geral, “
aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (art. 474º nº1 CC).

Ora, um dos casos típicos de crédito por restituição do enriquecimento é o da intromissão em direitos ou bens jurídicos alheios sob a forma de uso ou fruição (cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. I, 10ª ed., p.473 e 479).

Quando tal acontece, opera-se uma deslocação patrimonial, ou seja, aumenta-se o património de alguém à custa de outrem.

Os requisitos do enriquecimento sem causa justificativa são, portanto:(i) Que haja um enriquecimento de alguém;(ii) Que o enriquecimento careça de causa justificativa; (iii)que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.”

O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, podendo essa vantagem consistir no uso ou exercício de direitos alheios, como é o caso da instalação em casa alheia ou o apascentamento de rebanho no lameiro de outrem6 .

No caso sub judice, é indiscutível o aproveitamento, pelos RR, de vantagens do prédio pertencente ao Autor, desde 2015, até ao presente, ou seja, cerca de nove anos.

A ausência de causa justificativa reconduz-se à ausência de título ou fundamento jurídico ou, por outras palavras, quando a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito impunha que o enriquecimento pertencesse a outrem que não ao enriquecido.

No caso em apreço, não tendo os RR demonstrado a titularidade de qualquer direito legitimador do seu uso, é evidente que, segundo a ordenação jurídica dos bens, o aproveitamento daquelas vantagens deveria pertencer à Autora e não aos Réus.

Por fim, é necessário que o enriquecimento seja obtido à custa de quem requer a restituição.

Mas como se argumenta no referido acórdão que vimos seguindo de perto, “à custa”, não significa necessariamente que o credor da restituição sofra uma saída de um determinado quantitativo do seu património. Com efeito, pode ocorrer enriquecimento injustificado sem o correspondente e correlativo empobrecimento do lesado, entendido naquele sentido, o que, por via de regra acontece, nos casos em que o beneficiado com a vantagem patrimonial se intrometeu nos direitos, ou nos bens jurídicos alheios, isto é, quando alguém, sem ter a tal, direito, usa, consome ou utiliza bens alheios ou exercita direitos de outrem.

Nestes casos, não se pode afirmar que se verifique um empobrecimento do lesado, no sentido de uma deslocação patrimonial, mas apenas que alguém se aproveitou dos seus bens, enriquecendo à custa deles.

Portanto, bem ao invés, “à custa” quer dizer “obtido com meios ou instrumentos pertencentes a outrem7 8.

Consagra-se, pois, a chamada doutrina da destinação ou da afectação dos direitos absolutos, segundo a qual “os direitos reais não constituem simples direitos de exclusão assentes sobre o dever geral de não ingerência (de terceiros) na ligação do titular com a res,…Mais do que isso, os direitos reais …reservam para o respectivo titular o aproveitamento económico dos bens correspondentes, expresso nas vantagens provenientes do seu uso, fruição,…”.9

À luz do que fica exposto, impõe-se concluir que o enriquecimento dos RR foi obtido à custa da Autora. Na feliz síntese de Antunes Varela10 :

A pessoa que, intrometendo-se nos bens jurídicos alheios, consegue uma vantagem patrimonial, obtêm-na à custa do titular do respectivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos donde a vantagem procede. A aquisição feita pelo intrometido carece de causa porque, segundo a tal correcta ordenação jurídica dos bens, a vantagem patrimonial alcançada pelo enriquecido pertence a outra pessoa – ao titular do direito. Trata-se de uma vantagem que estava reservada ao titular do direito segundo o conteúdo da destinação desse direito”.

Sendo inquestionável que a ocupação e o uso do prédio rústico adquirido pela Autora, nos termos supra descritos, implicou um enriquecimento injustificado dos RR à custa da Autora, a consequência jurídica é a imposição àqueles da obrigação de restituir o enriquecimento (art.º 473º nº1 CC).

Diz-nos o n.º2 do art.º 473º que um dos objectos da obrigação de restituir é o que foi indevidamente recebido e o n.º1 do art.º 479.º que tal obrigação compreende tudo quanto se haja obtido à custa do empobrecido ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

É evidente que é impossível restituir em espécie o uso e o aproveitamento que os RR fizeram do prédio da Autora, ao longo dos anos em que tal ocorreu.

Qual será então o valor correspondente a esse “tudo …obtido à custa do empobrecido”?

Afigura-se que o valor locativo do prédio nos fornece uma base objectiva e segura de aferir o valor daquilo que os Réus obtiveram à custa da Autora.

Provou-se que “32.O arrendamento de um logradouro como aquele que é utilizado pelos réus nunca seria possível por um valor inferior a € 2,00 por metro quadrado.” Estando em causa uma área de 358 m2, segue-se que o valor locativo é de € 716,00€. Pergunta-se, contudo: este valor locativo refere-se a que espaço temporal: mensal ou anual? A factualidade assente é omissa nesse ponto. A dúvida efectivamente surge, por dois motivos: Por um lado, no ponto 29.º dos factos provados consta que “no concelho de ..., o valor médio mensal do metro quadrado para efeitos de arrendamento habitacional é de € 6,00 (seis euros).” Ali especificou-se, claramente, a que período temporal se refere. Contudo, no ponto 32.º não se faz qualquer referência ao período temporal, nada permitindo concluir que deva referir-se ao mesmo período, sendo certo que, tal como resulta dos dados de experiência comum, é habitual nos arrendamentos rústicos, a renda ser fixada anualmente.

Por conseguinte, fica o Tribunal impedido de proceder ao cálculo do valor que seria obtido com base no valor locativo do imóvel que obviamente tem de reportar-se a um concreto período temporal.

Ora, “Quando fiquem provados danos mas não tenha sido possível estabelecer a sua quantificação, a opção entre equidade e liquidação prévia em fase posterior, deve obedecer àquela que dê mais garantias de se mostrar ajustada à realidade. Assim, se apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se na fase que vai até à Sentença um valor exacto para a sua quantificação, mas seja admissível que ainda é possível atingi-lo com recurso a prova complementar sobre o montante exacto ou muito próximo dos danos reais, não deve passar-se para a fase executiva na parte em que a condenação ainda não esteja líquida, sendo o instrumento adequado o incidente de liquidação (…) Se, pelo contrário, apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exacto, nem se veja forma de o poder atingir com prova complementar sobre a quantificação dele, o meio adequado para o estabelecer é utilizar desde logo a equidade – art. 566.º-3 do CC”.11

Este foi igualmente o pensamento sufragado pelo STJ, em acórdão mais recente12:

“Não obstante o valor do dano deva ser fixado na sentença, sempre que possível, pode relegar-se para liquidação ulterior quando, inexistindo factos para determinar o valor exato, é possível prever a sua prova. De contrário, justifica-se a fixação imediata, recorrendo à equidade, do valor exato do dano13 . (…)

No âmbito legal, é admissível relegar para depois da sentença a liquidação da indemnização, quando nesse momento não estejam reunidos os factos indispensáveis para a sua determinação e seja provável obtê-los.

No entanto, aquela dilação apenas se justifica, para efeitos de justiça, existindo uma elevada probabilidade de prova dos factos indispensáveis à liquidação. Não se verificando essa condição, a probabilidade de recorrer à equidade, para fixar a indemnização, pode acabar por ser grande e, então, é preferível fazê-lo na sentença, obstando a uma dilação, potencialmente inútil, na sua determinação concreta.”

No caso em apreço, a determinação do valor locativo de um prédio rústico, completando o que já consta do ponto 32.º dos factos assentes é essencial, mas também de prova fácil, pelo que relegar para o momento da liquidação aquele cálculo, nos termos do disposto no art.º 609.º n.º2 do CPC, é a solução que apresenta mais garantias de ser ajustada à realidade.

Em suma, o recurso de revista improcede na medida em que se mantém o decidido pela Relação na parte em que reconhece à Autora o direito à restituição do valor do enriquecimento, em montante a liquidar, nos termos do disposto no art.º 609.º n.º 1 e 2 do CPC.

Porém, os critérios do cálculo não são os definidos no acórdão recorrido, mas sim, apenas de acordo com o exposto, o valor locativo do prédio rústico em causa, com a área de 358 m2. Ou seja, improcede o recurso de revista, confirmando-se a decisão da Relação, porém, com fundamentos diversos.

IV - DECISÃO

Em face do exposto, acordamos neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido, reconhecendo à Autora o direito à restituição do valor do enriquecimento, em montante a liquidar, nos termos do disposto no art.º 609.º n.º 1 e 2 do CPC, porém, com fundamentos diversos, devendo apurar-se apenas o valor locativo, mensal ou anual, do prédio rústico em causa nos autos.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 19 de setembro de 2024

Maria de Deus Correia (relatora)

Maria dos Prazeres Beleza

Nuno Ataíde das Neves

_________


1. Vide facto n.º 30.

2. Assim sucede porque as obras de ampliação da moradia dos Réus ocorreram no prédio que era, à data, propriedade daqueles mesmos réus. A situação é, por isso, distinta daquela que foi analisada num acórdão do TRP de 17-03-1971: BMJ, 205.º-261, assim sumariado:

  “Se num prédio do autor, o réu fez obras de construção de um novo edifício e as pagou exclusivamente, conhecendo ambos os litigantes a situação desse prédio quanto ao direito de propriedade do autor, o montante do custo dessas obras, devidamente actualizado no seu valor, é a importância que o réu deve receber por virtude do não locupletamento à custa alheia.”

3. Vide com interesse sobre esta matéria, a título exemplificativo, o Acórdão do STJ de 31-01-2023, Processo 5633/16.0T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

4. Ou seja, segundo os critérios do instituto do enriquecimento sem causa, face à inaplicabilidade do instituto da responsabilidade civil extracontratual já decidida pelo Tribunal da Relação.

  Ainda assim, afigura-se interessante um breve relance pela Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, em casos semelhantes ao presente, em que está em causa a utilização de imóvel alheio contra a vontade do respectivo proprietário, analisados à luz da responsabilidade civil. Com efeito, a possibilidade de uso de uma coisa faz parte do conteúdo do direito de propriedade (art.º 1305 do CC). A violação dessa possibilidade corresponde à ilicitude da conduta como pressuposto da responsabilidade civil (art.º 483 do CC). Mas o dano é um outro pressuposto daquela responsabilidade, pelo que terá de ser alegado e provado também este pressuposto da responsabilidade civil. Esse dano corresponderá à privação das concretas vantagens decorrentes da possibilidade de uso de uma coisa (Paulo Mota Pinto,«Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo», vol. I, Coimbra Editora, 2008, páginas 568 a 596»), naturalmente provocada de forma adequada pela conduta do lesante (nexo de causalidade – um outro requisito da responsabilidade civil).

  Como refere aquele Autor “O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem – a qual pode não ser concretizável numa determinada situação” (Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 594-596).

  Contudo, na Jurisprudência deste STJ têm-se delineado entendimentos algo diversos sobre como configurar a existência do dano.

  No sentido de que a privação de uso de bem imóvel, sendo um facto ilícito, “configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito. Para tanto, bastará, […], que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa”, vide o ac. do STJ de 01/03/2018, proc. 4685/14.2T8FNC.L1.S1).

  Nesta linha de que não basta a verificação da simples privação da possibilidade de uso do bem, veja-se, também, entre muitos, o acórdão do STJ, de 08/05/2007, proc. 07A1066:

  “ A mera privação (do uso) da fracção reivindicada, impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art.º 1305 do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante.”

  Outro é o entendimento plasmado, por exemplo, entre muitos outros no Acórdão do STJ de 17/11/2021, Processo 6686/18.2T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt:

  “I- A ilícita privação do uso de um prédio rústico configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo.

  II-Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação.

  III-Indemnização que em tal hipótese, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, deve ser fixada equitativamente (cfr.art.º 566.º n.º3 do CC.”

  A ilustrar a mencionada divergência jurisprudencial, note-se o teor do voto de vencido que consta deste acórdão.

5. Acórdão de 03-10-2013, Processo 1261/07.0TBOLH.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

6. Antunes Varela, Direito das Obrigações, Vol. I, 10.ª edição, p.481.

7. Antunes Varela, Ob. Cit., p.491.

8. Neste sentido, entendeu também o STJ em acórdão de 06-12-2006 (Proc. nº 3483/06, Rel Oliveira Rocha) segundo o qual:

  “o art. 473º do C. Civil não exige que a deslocação patrimonial em benefício do enriquecido tenha resultado de uma correspectiva diminuição do património do empobrecido, mas tão somente que tenha sido auferida à custa desta.”

9. Vide acórdão citado.

10. Ob. Cit., pp.492-493.

11. Acórdão do STJ de 03-02-2009- Processo 08A3942, disponível em www.dgsi-pt

12. 21-03-2019, Processo 4966/17.3T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

13. posição idêntica foi expressa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de novembro de 2015, no processo n.º 480/11.9TBMCN.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).