Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE DOS REIS BRAVO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM HOMICÍDIO QUALIFICADO OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA AGRAVADA PELO RESULTADO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA INTENÇÃO DE MATAR FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO ARMA BRANCA PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA MEDIDA CONCRETA DA PENA IMPROCEDÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 11/14/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário : |
I. Encontra-se justificada a fundamentação de facto no sentido de concluir pela intenção de matar, mesmo que tenha sido dado como provado que num momento anterior de contenda corporal entre dois grupos de pessoas, o arguido tencionasse apenas ofender a integridade física da vítima, dado ser consentâneo e plausível que, no decurso da intensificação da contenda corporal, tenha alterado tal intenção. II. Não se afigura, assim, poder integrar a conduta do arguido o crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p.p. nos artigos 144.º e 147.º, do CP. III. Prejudicada que fica a aplicabilidade de uma pena concreta que coubesse a tal tipo de crime, não se afigura, face à factualidade dada como provada, à culpa e às exigências de prevenção geral e especial, que seja exagerada, desproporcional e, por isso, injusta uma pena no quadro de uma moldura legal entre os dez (10) anos e oito (8) meses e os vinte e um (21) anos e quatro (4) meses de prisão, encontrar na medida de dezasseis (16) anos de prisão, pelo crime de homicídio simples, p.p. no art. 131.º do CP, agravado nos termos do art. 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .../Juiz 6, de 15 de julho de 2024 (Ref.ª Citius ...60), foi o arguido e ora Recorrente AA, melhor identificado nos autos, condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de homicídio, p. e p. pelos arts. 131.º do Código Penal e 86.º, 3 e 4, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, 1 e 2, al. ab), 4.º, 1 e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão; Além disso, o recorrente AA, entre outras determinações e ordens, foi ainda condenado a pagar à viúva da vítima o quantitativo de € 10.000,00 (dez mil euros), que se considerou atualizado à data da decisão, e ao qual acrescerão juros de mora, à taxa legal, contados desde a mesma, até ao efetivo e integral pagamento, absolvendo-se o demandado do demais contra ele peticionado; bem como no pedido de reembolso formulado pelo Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P. contra si, no valor global de € 4.156,78 (quatro mil, cento e cinquenta e seis euros e setenta e oito cêntimos), acrescido das quantias pagas a título de pensão de sobrevivência a BB, por morte de CC, que se venceram e foram pagas na pendência do presente processo e até ao limite da indemnização a conceder, a liquidar em execução de sentença, e nos juros moratórios, à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 3.220,01 (três mil, duzentos e vinte euros e um cêntimo), desde a data da notificação do pedido de reembolso ao demandado, e sobre a quantia de € 936,77 (novecentos e trinta e seis euros e setenta e sete cêntimos), desde a data da notificação da ampliação do pedido, até ao efetivo e integral pagamento. 2. Dessa decisão recorreu o arguido AA para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também STJ), em 25-07-2024 (Ref.ª Citius ...10), formulando as seguintes conclusões: «I. O presente recurso é limitado apenas quanto à questão penal, a qual para efeito de recurso pode ser separada da parte civil, não recorrida, nos termos do ar. 403º do CPP; e debruça-se apenas sobre duas questões de Direito: a) errada qualificação jurídica quanto ao crime cometido; e b) Medida concreta da pena aplicada. II. Quanto ao crime, o Tribunal a quo ignorou completamente a versão dos factos resultante dos meios de prova declarações do arguido e depoimento de testemunhas, especialmente doas intervenientes directos no facto; não obstante essas versões, coincidentes na imagem global do facto e na lógica da descrição feita pelo arguido e recolhida no texto da sentença, ser coerente, lógica e enquadrada na experiência comum e na normalidade. III. Inexistem outros intervenientes directos na situação concreta; ninguém mais se pronunciou, porque o não poderia fazer, sobre o que exactamente ocorreu, e com que dinâmica, naqueles infaustos momentos. Alguma divergência de narrativa entre arguidos e testemunhas presenciais são, a nosso ver e com todo o respeito por opinião diversa, absolutamente naturais; ademais porque estão os envolvidos em dinâmicas segmentadas da mesma realidade, com atenção em diferentes pontos e vectores da mesma, envolvidos com distintos contendores e efectuando actos diversos uns dos outros; e só conferem credibilidade à narração. IV. Os testemunhos e declarações, ainda que diversas em um ou outro ponto concreto, pelas razões apontadas, dão, na recolha que delas o Acórdão faz, o quadro da imagem geral do facto quanto aos seus pontos essenciais: que o recorrente e os seus demais acompanhantes foram ao local e a a intenção era “andarem à porrada”; que os pneus foram furados pelo recorrente logo à chegada ao local, para assim garantir que o carro não se deslocaria após as pancadas; que a acção se terá interrompido porque o recorrente de repente correu para o carro em que viera gritando: Ele tem uma arma. Que no carro, já em direcção a ..., ele recorrente admitiu ter dado duas facadas no CC; que os pneus foram efectivamente furados com a faca pelo AA, que assim visava impedir que os agredidos depois saíssem do local. V. Apesar destas provas, a decisão recorrida opõe-lhe, dando-a por provada, uma subitamente formulada intenção de matar (cf. ponto 24 dos factos Provados). Nem sequer a assim resultante falta de credibilidade das declarações dos intervenientes assentam, ou o Tribunal as faz assentar, em qualquer questão atinente com o princípio da imediação. VI. Ora, esta intenção – que sendo de natureza subjectiva tem que ser objectivada por factos provados que inequivocamente a demonstrem – retira-a o Tribunal a quo, como se alcança do texto do Acórdão naquele mesmo segmento de Motivação, de relatórios periciais e de considerandos gerais e não concretos. VII. Ora, com todo o respeito, nenhum destes elementos, quando apreciados segundo uma correcta valoração da prova, permite deles retirar a conclusão de que foi formulada pelo recorrente intenção de matar, naquele preciso momento em que ordenou ao CC que saísse do carro; nem nenhum daqueles elementos de prova infirma ou sequer belisca a lógica ou a credibilidade da versão apresentada pelo arguido. VIII. A intenção de matar não pode ser retirada sem mais, como faz o douto Acórdão, pelas natureza e características da faca com que AA se muniu quando decidiu, juntamente com DD e num primeiro momento, angariar pessoas que lhes garantissem superioridade numérica sobre os ocupantes do Audi e, desse modo, lograrem seviciá-los fisicamente sem que os mesmos conseguissem retorquir, como aliás escreve o douto Acórdão assim aceitando que a intenção afinal era outra, não a de matar. IX. O facto de ser a ferida ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal de CC, uma lesão corto-perfurante não significa a impossibilidade dela resultar de um “resvalar” da lâmina da faca depois de infligida a lesão na mão da vítima; e nenhuma prova está adquirida quanto a qual a lesão provocada em primeiro lugar: se a da mão, se a do tórax; sendo de todo possível que só após a produção da ferida na mão e por causa dos movimentos de mão e braço da vítima, como os descreveu o recorrente, aquela região do tórax seja atingida. X. Como até constava da acusação, que resume os relatórios periciais e a autópsia, essa ferida no tórax era superficial; ou seja, se foi desferida autonomamente, como diz o acórdão, e não como resultado da orientação da lâmina noutro sentido por via dos movimentos da mão da vítima, não foi afinal desferida com intenção de atingir qualquer órgão vital. XI. Aliás, se a intenção fosse matar e o recorrente tivesse desferido a facada no tórax com essa intenção, porque seria ela superficial? E se a intenção fosse matar e o recorrente tivesse a consciência de já ter desferido facada a nível do coração, porque haveria ele de, depois, desferir a facada na perna? Para o homem comum, um ferida na perna não é meio comum de causar a morte, quando a quer causar. Só quem tem correctos e seguros conhecimentos de anatomia sabe que ferindo a perna, e onde exactamente, pode causar a morte. XII. A facada na perna (segundo os relatórios a verdadeira causa da morte) foi aqui desvalorizada, sendo nítido através da leitura do Acórdão, que, face a quanto se provou, não poderia nunca o Tribunal a quo retirar dela a referida súbita intenção de matar. Por isso se fixou, para tanto, na ferida superficial do tórax; e conclui daí, a nosso ver numa apreciação discricionária da prova e contra as regras da experiência, a falada intenção. XIII. Afastou totalmente o que vinha da prova testemunhal e das declarações dos arguidos --que a intenção da ida ao local foi agredir os 3 ocupantes do Audi e impedi-los de depois disso saírem dali com o carro; e substituiu essa intenção, a nosso ver vastamente provada, por uma objectivação da intenção de matar que não tem base probatória que a sustente. XIV. Deste modo, afigura-se a prova apreciada de modo incorrecto, sem atender às regras da experiência e da normalidade, assim violando o art. 127º do CPP, substituindo a verdadeira intenção, que era a de agredir, por uma intenção que não é real, não decorre da prova produzida ou examinada, nem está conforme às regras da lógica e da experiência. XV. Resulta do provado em sede de audiência que a intenção sempre foi a de agredir, mas não a de matar; que o crime doloso é o da agressão física, tendo porém como resultado culposo, mas apenas a título de negligência o resultado morte. A conclusão jurídica seria inevitavelmente a de que estamos perante um crime preterintencional ou preterdoloso, pois o crime fundamental é doloso, mas o resultado provocado não é compreendido no dolo, devendo ser punido a título de negligência, consciente ou inconsciente. XVI. No caso vertente não se alcança como pode a decisão recorrida objectivar como intenção de matar, ademais formulada subitamente no local sem que se perceba porquê então, a motivação subjectiva do recorrente que, pelas declarações dos intervenientes seria a de agressões físicas; as quais porém, pelo infausto conjunto de circunstâncias que criaram no agressor erro sobre a possível existência de uma arma na posse do CC, levaram a que aquele, que primeiramente queria que ele saísse do carro para o agredir, se assustasse e naquela suposição de existir uma arma já queria o contrário: que ele não saísse – e por isso o feriu na perna. E por isso fugiu apressadamente, gritando aos demais que ele, CC, tinha uma arma. XVII. Foram violados pela decisão os art. 131, 144º e 147º do CP; e o art. 127º do CPP. XVIII. Neste contexto, a medida concreta da pena aplicada está mal escolhida; pois que tratando- se de um crime preterintencional, e dentro da moldura penal aplicável por força dos art. 144º e 147º do CP, nunca a pena poderia ir além dos 13 anos e 3 meses como pena máxima; e atendendo ao circunstancialismo e ao erro sob o qual o arguido actuou (convencimento de haver uma arma) a pena nunca deveria ser superior a 9 anos de prisão; o que se afigura justo, equilibrado e adequado para a situação concreta em apreço. XIX. Mesmo que assim não fosse e se mantivesse a qualificação jurídica de homicídio simples – hipótese que aqui apenas se alega por dever de patrocínio e cautela processual – sempre a pena concreta deveria ser menos gravosa; e atentas as condições pessoais e sociais provadas quanto ao arguido, a imagem de pessoa calma e respeitadora que decorre dos depoimentos das testemunhas seus familiares que na audiência depuseram; do apoio familiar que se mantém, mesmo nesta fase da sua vida; e ainda da sua colaboração com a justiça, como decorre do testemunho do Inspector da PJ ouvido em juízo, nunca deveria tal pena ultrapassar os 13 anos de prisão. XX. Ao assim não ter decidido, condenando por homicídio simples e na pena de 16 anos de prisão, o Tribunal a quo violou os já referidos art. 131, 144º e 147º do CP; e o art. 127º do CPP.º; e ainda os art. 70º e 71º do CPP. Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente e obter provimento revogando-se a decisão ora recorrida e substituindo-a por outra que qualifique o crime como o de ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado, p. e p. art. 144º e 147º do CP, numa pena de prisão nunca superior a 9 anos; ou manter-se a qualificação de homicídio simples, nunca a pena de prisão ser superior a 13 anos de prisão. ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!» 3. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido em 23-09-2024 (Ref.ª Citius ...58), tendo concluído como segue: «(…) CONCLUSÕES 1. Dever-se-á considerar excluída do objecto do recurso a matéria de facto julgada provada e não provada pelo tribunal a quo, sem prejuízo das consequências que para a mesma possam abstractamente advir do conhecimento dos vícios decisórios invocados em recurso. 2. A decisão recorrida aprecia a prova de forma objectiva e motivada, expondo os raciocínios que nortearam tal apreciação, através de um processo lógico e racional, e nunca arbitrário ou frontalmente violador de regras de experiência comum, não ocorrendo violação da livre apreciação da prova. 3. Por conseguinte, não se verifica a alegada violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal. 4. A prova produzida sustenta inequivocamente o julgamento da matéria de facto formulado pelo tribunal recorrido, nomeadamente no que concerne aodolo do agente, traduzido na intenção de tirar a vida ao ofendido. 5. Assente que se mostre a matéria de facto julgada provada (quer porque não foi expressamente impugnada, quer porque não se verifica qualquer vício de direito que afecte o processo decisório), é inequívoco que os factos provados integram a prática de crime de homicídio, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º do Código Penal e 86.º, n.ºs 1, alínea d), 3 e 4, 2.º, n.º 1, alínea m), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea ab), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro. 6. Atentas as circunstâncias relevantes para a determinação da medida da pena mormente a culpa elevada e as significativas exigências de prevenção geral e especial, a pena de 16 anos de prisão, fixada aproximadamente a meio da moldura penal aplicável, não se pode considerar excessiva. 7. Pelo exposto, julgando improcedente o recurso e mantendo na íntegra a decisão recorrida farão Vossas Excelências justiça.» 4. Remetidos os autos a este STJ, o Senhor Procurador-geral-adjunto aqui em funções emitiu parecer em 13-10-2024 (Ref.ª Citius ...24, do qual se extratam os excertos seguintes: «(…) In casu, embora não refira diretamente nenhum dos vícios previstos no art. 410, n.º 2, do CPP, o arguido alega que a conclusão alcançada a respeito da intenção de matar afronta o princípio da livre apreciação da prova definido no art. 127.º do CPP e entra em contradição com a proposição de que apenas pretendia seviciar fisicamente a vítima, o que equivale a afirmar que o acórdão está viciado por erro notório na apreciação da prova. Mas sem razão. (…) Tal como os demais vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, o erro notório na apreciação da prova deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou com recurso às regras da experiência e da vida, o que significa «que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para [o] fundamentar (…), como por exemplo recorrer a dados de inquérito, da instrução ou do próprio julgamento» (Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, págs. 77-78). Quanto ao princípio da livre apreciação da prova, preceitua o art. 127.º do CPP que salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. O princípio «significa, negativamente, a ausência de critérios legais que predeterminem o valor da prova e, positivamente, que as entidades a quem caiba valorar a prova o façam de acordo com o dever de perseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, numa apreciação que terá de ser sempre objetivável, motivável e, por conseguinte, suscetível de controlo» (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 3.ª Edição, Almedina, pág. 190). «Examinar criticamente a prova consiste em analisá-la e discernir, desde logo, da sua coerência intrínseca, através da respetiva racionalidade lógica, mas, sobremaneira, no confronto com as demais provas. O critério do exame é pautado pelas leis da ciência, os conhecimentos da técnica e da arte e, onde estas não intervêm, pelas máximas da experiência comum. As regras da experiência são o padrão de conhecimentos comummente aceite, resultante da observação empírica de muitos e repetidos acontecimentos e comportamentos das coisas e da vivência humana. Na expressão, ao mesmo tempo sintética e compreensiva de Vaz Serra, são as “regras deduzidas da experiência de vida”» (acórdão do STJ de 07.07.2021, processo 128/19.3JAFAR.E1.S1, relatado pelo conselheiro Nuno Gonçalves, www.dgsi.pt) . Pois bem, basta ler as 30 páginas do acórdão que concentram a indicação e exame crítico dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal para concluir que os factos, nomeadamente os que respeitam ao dolo do arguido, estão amplamente justificados, amparam-se solidamente nas provas a que o tribunal coletivo, com a mais-valia da oralidade e da imediação, conferiu maior credibilidade, são inteiramente plausíveis e harmonizam-se com as regras da lógica e da experiência comum. Que outra interpretação se poderia, aliás, dar aos factos provados 16, 25, 26 e 27, sem incorrer, então sim, em erro notório na apreciação da prova, senão a de que o arguido, que aliás, de acordo com a incontestada síntese das respetivas declarações apresentada no acórdão, assumiu ter «enterrado» os mais de 20 centímetros da lâmina da faca que empunhava na perna direita da vítima, atuou com a intenção de tirar a vida a CC? Acrescente-se, enfim, que não existe contradição em dar como assente que o arguido decidiu «seviciar fisicamente» a vítima e os outros dois ocupantes do AUDI e que atuou com intenção de matar a vítima porquanto essa alteração de propósito forma-se posteriormente na sequência da evolução dos acontecimentos e da obtenção de superioridade sobre os oponentes (factos provados 13 e 24). Não se verificando, assim, que o tribunal tenha violado o princípio da livre apreciação da prova ou incorrido no vício que o recorrente, de forma implícita, atribui ao acórdão recorrido, a decisão sobre a matéria de facto deve considerar-se definitivamente consolidada. Nessa decorrência, uma vez que as pretensões de recondução dos factos ao crime preterintencional e de fixação da pena dentro da correspondente moldura penal assentam no pressuposto da não demonstração do animus necandi (conclusões XV e XVIII), fica prejudicado o seu conhecimento e análise. A título subsidiário o arguido defende ainda que, se for confirmada a condenação por homicídio, a pena deve ser reduzida para os 13 anos de prisão, para tanto invocando as suas «condições pessoais e sociais» a «imagem de pessoa calma e respeitadora» o «apoio familiar» e a «colaboração com a justiça» (conclusão XIX). Sucede que, em primeiro lugar, a reputação ou imagem «de pessoa calma e respeitadora» não encontra eco na matéria de facto provada. Em segundo lugar, as condições pessoais e o apoio familiar de que o arguido beneficia (tal como a «colaboração com a justiça», que também não consta do leque de factos provados), já foram sopesadas no acórdão recorrido (v. as págs. 71 a 74 do respetivo ficheiro pdf). Em terceiro lugar, à vista de todas as circunstâncias que marcaram o acontecimento, temos por certo que a pena de 16 anos de prisão, numa moldura penal cujos limites mínimo e máximo são de 10 anos e 8 meses de prisão e de 21 anos e 4 meses de prisão, respetivamente, ajusta-se equilibradamente aos critérios, finalidades e princípios que norteiam o julgador nesta matéria, inexistindo, por conseguinte, fundamentos para a sua redução. Aqui chegados, em concordância com o entendimento e argumentos expressos no acórdão recorrido e na resposta do Sr. procurador da República junto da 1.ª instância, emite-se parecer no sentido da total improcedência do recurso.» 5. Notificado deste parecer do Ministério Público, o arguido nada veio dizer ou requerer. 6. Não existindo motivos que invalidassem a regularidade da instância recursiva, foram os autos a vistos e à conferência, procedendo-se a deliberação. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação 7. Os poderes de cognição do tribunal de recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (Acórdão de Fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21-02). II.1. Questão prévia: competência do STJ 8. O recorrente dirige as suas motivações de recurso a este Supremo Tribunal de justiça, referindo expressamente que o circunscreve às questões penais e que a discordância assenta sobre pontos que versam exclusivamente matéria de direito. No seu despacho de 01-10-2024 (Ref.ª Citius ...84), a Senhora juíza de Direito presidente do Coletivo, proferiu despacho, no qual considerou: «(…) Vista a peça recursiva, verifica-se que a mesma foi dirigida ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto no art. 432.º, 1, c), do Código de Processo Penal, que prevê a recorribilidade per saltum de acórdãos finais proferidos por tribunal do júri ou coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, quando o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou quando tenha os fundamentos previstos no art. 410.º, 2 e 3, do mesmo compêndio legal. Conforme refere o Digno Procurador da República na sua resposta, o recorrente “alega explicitamente, no introito do recurso, que não se conforma com a decisão em termos de direito, reiterando adiante, no ponto 8 da motivação, que o recurso não versa sobre matéria de facto”. Acompanha-se, pois, o entendimento do Ministério Público no sentido de que apesar de, ao longo do texto da motivação e das respetivas conclusões, o recorrente fazer menção à decisão em sede de matéria de facto, nomeadamente, no que respeita à imputação ao recorrente da intenção de matar, evidenciar-se inequívoco que o mesmo não pretende a reapreciação da matéria de facto qua tale, mas, unicamente, o conhecimento dos vícios de direito que invoca. Ademais, conforme também sublinha o Digno Procurador da República, conforme resulta do estabelecido no art. 412.º, 3, do Código de Processo Penal, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas. Por outro lado, decorre do n.º 4 do mesmo artigo legal que, quando tenha havido lugar à gravação da prova deverão ser concretamente indicadas as passagens em que se funda a impugnação. Ora, in casu, não foram especificamente impugnados e quaisquer factos, e não foram indicadas as passagens da prova gravada que impusessem decisão distinta, nos termos previstos na norma citada. Termos em que, s.m.o., somos a entender, acompanhando o entendimento do Ministério Público, que deverá considerar-se excluída do objeto do recurso a decisão sobre a matéria de facto julgada provada e não provada, sem prejuízo das consequências que para a mesma possam eventualmente advir do conhecimento dos vícios decisórios de direito invocados ou outros oficiosamente conhecidos em sede de recurso, nomeadamente, os previstos no art. 410.º do Código de Processo Penal. (…) Após, subam os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça. Proceda ao envio de suportes digitais contendo o texto do acórdão recorrido, das alegações de recurso e da resposta apresentada pelo Ministério Público, em formato .doc. Cuidados do estilo.» Sobre os pressupostos do regime atual do recurso per saltum, o Senhor Juiz Conselheiro Dr. Nuno Gonçalves, Vice-Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça, já oportunamente teceu as seguintes considerações: «2.4 Com o aditamento à norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do Código de Processo Penal aumentaram-se consideravelmente os fundamentos do recurso per saltum. Assim se designando o recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, dos acórdãos finais proferidos pelos tribunais do júri ou coletivo de 1.ª instância que apliquem pena superior a 5 anos de prisão. Enquanto na redação anterior os motivos deste recurso se cingiam, exclusivamente, ao reexame de matéria de direito, agora passou a poder interpor-se também “com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º” do Código de Processo Penal. […] O Supremo Tribunal de Justiça, no julgamento de recurso per saltum, passou a sindicar, também mediante alegação dos recorrentes, da suficiência e da conformidade da lógica jurídica ao nível da decisão em matéria de facto ou de alguma nulidade insanável da decisão. Os recorrentes que não impugnam o julgamento da facticidade alegando erro de julgamento, podem interpor recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em errada aplicação do direito ao caso – como anteriormente – e, agora, seja conjuntamente com aquela alegação, ou tão-somente com fundamento na invocação dos vícios e nulidades previstos no art.º 410.º n.ºs 2 e 3, desde que os evidenciem socorrendo-se unicamente do texto da decisão impugnada ou em confronto com as regras da experiência comum. No novo regime, o recorrente tem de recorrer, sem opção, diretamente, para o Supremo Tribunal de Justiça, interpondo um recurso de revista alargada (simultaneamente em matéria de direito e com fundamento nos erros-vício e nulidades insanáveis do acórdão atribuídos à decisão final dos tribunais do júri ou coletivo de 1.ª instância que tenha aplicado pena superior a cinco anos de prisão). As Relações, resultaram, assim, aliviadas de parte considerável dos recursos que recebiam para reapreciar decisões daqueles tribunais. Resta-lhe competência para julgar recursos das decisões dos tribunais do júri e coletivos que apliquem pena superior a 5 anos, quando venha alegado erro de julgamento da matéria de facto, naturalmente, com especificada impugnação da concreta valoração das provas.» («Alterações ao regime do Recurso Ordinário», a Revista - Revista do STJ, N.º 1 – jan.-jun. 2022, pp. 93-94). Esta posição, a que também se adere, parece ser a mais compatível com o atual figurino dos recursos per saltum em matéria penal, tendo sido acolhida na referida decisão da Senhora juíza de Direito titular dos autos. Considerando, pois, estarem verificados os requisitos do recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça – recurso de 1) acórdão final condenatório, proferido em coletivo, sendo a pena única aplicada superior a cinco (5) anos de prisão, e 2) sendo inequívoco que o arguido não sindica a decisão sobre matéria de facto em sentido próprio, antes visando o seu objeto exclusivamente o reexame de matéria de direito, é, pois, este Supremo Tribunal de Justiça, competente para a apreciação do presente recurso – artigos 399.º, 400.º a contr., 432.º, n.º 1, al. c), e 434.º do CPP. Nos termos dos artigos 399.º, 400.º a contr., 432.º, n.º 1, al. c), e 434.º, do CPP, consideramos, pois, ser este Supremo Tribunal de Justiça, hierárquico-funcionalmente competente para a apreciação do recurso do arguido. II.2. Fundamentação de facto – Factos provados e não provados 9. Encontram-se provados, e não provados, pelo tribunal recorrido, os seguintes factos (transcrição): «A) FACTOS PROVADOS Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos: A.1.) DA ACUSAÇÃO, DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL, DO PEDIDO DE REEMBOLSO e RESULTANTES DA DISCUSSÃO DA CAUSA 1. No dia ... de ... de 2023, por volta das 00:00 horas, CC, EE e FF, circulavam na ..., no sentido ..., no veículo automóvel de marca Audi, modelo..., de 3 portas, com a matrícula ..-..-UH. 2. Quando se encontravam nas imediações do ..., o veículo onde seguiam imobilizou-se devido à falta de combustível. 3. CC, que claudicava, saiu da viatura e deslocou-se a pé pela estrada, apoiado numa muleta e munido de um garrafão, com o intuito de procurar combustível. 4. Junto ao dito ..., enquanto CC rondava as residências ali existentes, o arguido AA interpelou-o, ordenando-lhe que abandonasse aquele local. 5. Nessa sequência e sem que houvesse obtido o combustível, CC regressou à aludida viatura, tendo relatado o sucedido a FF e a EE. 6. Entretanto, o arguido AA, representando que CC pretendia fazer seus bens pertença de terceiros, observou os seus movimentos, apercebendo-se de que este se deslocou para junto da viatura mencionada em 1.. 7. Entretanto, surgiu DD, também residente naquele local, a quem o arguido AA contou a interação que tivera com CC e as suspeitas que sobre ele formulara. 8. Neste circunstancialismo, AA e DD formularam o plano de, em conjunto, irem no encalço de CC, a fim de molestarem o seu corpo. 9. Na execução desse plano, AA e DD deslocaram-se, num veículo automóvel da marca Hyundai, de cor branca, conduzido pelo segundo, até junto do automóvel identificado em 1., que se encontrava imobilizado próximo da rotunda de acesso ao centro comercial ... e no interior do qual se encontravam, no lugar do condutor, FF, no lugar do passageiro da frente, CC e, no banco traseiro, à direita, EE. 10. Ali chegados, o arguido AA e DD saíram do automóvel em que se faziam transportar, tendo-se o primeiro colocado junto da porta esquerda do veículo com matrícula ..-..-UH, ao passo que DD abriu a porta direita do mesmo automóvel, tendo manietado CC e puxado o mesmo para o exterior, na sequência do que desferiu uma chapada sobre a face dele. 11. Ato contínuo, EE e FF saíram do veículo UH, tendo o primeiro desferido dois socos em DD, após o que aqueles dois primeiros indivíduos e o arguido AA e DD se envolveram em confronto físico em moldes não concretamente apurados. 12. Verificando que, no desenrolar do confronto, se encontravam numa situação de inferioridade, o arguido AA e DD decidiram abandonar o local, anunciando que regressariam munidos com uma espingarda caçadeira. 13. AA e DD formularam em conjunto o propósito de angariarem pessoas a fim de regressarem ao local em situação de vantagem numérica e lograrem seviciar fisicamente os três ocupantes do automóvel UH, sem que estes, concomitantemente, lograssem seviciá-los também. 14. Na execução desse plano, o arguido AA e o DD dirigiram-se, de imediato, na viatura Hyundai, a casa deste último. 15. No interior dessa residência, DD contactou telefonicamente GG, tendo combinado com ele deslocar-se a ... e trazê-lo consigo e a quem mais este lograsse angariar, a fim de todos molestarem os corpos dos três ocupantes do veículo UH, plano a que GG desde logo aderiu. 16. Concomitantemente, o arguido AA muniu-se com uma faca de cozinha destinada a desossar carne, com lâmina e cabo em metal prateado, com um comprimento total de 32,6 centímetros, constituída por lâmina com fio, ricasso e contrafio, com um comprimento de 20,6 centímetros e cabo com 12 centímetros. 17. De seguida, DD e o arguido AA deslocaram-se, na viatura Hyundai, conduzida pelo primeiro, ao ..., local onde recolheram o dito GG e, bem assim, HH e o ora arguido II, os quais haviam, igualmente aderido ao plano descrito em 15.. 18. Nesta altura, o arguido II formulou, ainda, o propósito de, por intermédio de sevícias físicas a terceiros, fazer suas coisas, pertença dos mesmos, que pudesse transportar consigo. 19. Na execução do referido plano e, ainda, no que concerne ao arguido II, do propósito descrito em 18., deslocaram-se todos, na mesma viatura, ao local onde se encontrava imobilizado o automóvel UH, tendo DD parado o Hyundai à retaguarda do Audi e acionando as luzes de estrada (máximos), após o que os cinco indivíduos saíram do veículo. 20. Apercebendo-se da chegada do automóvel Hyundai, EE e FF saíram da viatura Audi, tendo CC permanecido no seu interior, sentado no banco traseiro, do lado direito. 21. De seguida, HH retirou a chave da ignição do automóvel da marca Audi e o arguido AA, fazendo uso da descrita faca e não acreditando que esta viatura estivesse efetivamente sem combustível, conforme era afirmado, no local, por EE, furou três pneus da mesma, os dois do lado esquerdo e o da frente do lado direito. 22. Concomitantemente, DD, GG e o arguido II dirigiram-se a EE, tendo desferido vários socos que o atingiram, pelo menos, na cabeça, na face e no tronco, determinando a sua queda ao solo, após o que os mesmos persistiram nessa conduta, deixando o EE aturdido. 23. FF pediu-lhes que cessassem essa conduta, na sequência do que GG desferiu um pontapé sobre o corpo do mesmo, determinando a sua queda por um talude. 24. Ainda concomitantemente, o arguido AA, apercebendo-se da superioridade numérica do grupo em que agora se integrava, bem como de que os seus acompanhantes haviam anulado a resistência de EE e de FF, formulou o propósito de tirar a vida a CC. 25. Na execução desse desiderato, o arguido AA, empunhando a faca acima descrita, introduziu-se no veículo UH através da porta direita, debruçou-se sobre CC, dirigiu a lâmina na direção do tórax deste e introduziu-a obliquamente no 4.º espaço intercostal, ao nível da linha média clavicular esquerda, a fim de molestar o coração do mesmo. 26. No decurso do descrito em 25., em momento não concretamente apurado, CC efetuou movimentos com as mãos, procurando afastar a faca empunhada pelo arguido AA do seu corpo, na sequência do que sofreu um corte em toda a face ântero-lateral do hipotenar esquerdo. 27. Ato contínuo, o arguido AA, empunhando a mesma faca e fazendo uso dela, desferiu um movimento de cima para baixo, da direita para a esquerda e da frente para trás, introduzindo a respetiva lâmina na face lateral do terço superior da perna direita de CC. 28. Como consequência direta e necessária das condutas do arguido, descritas em 25. a 27., CC sofreu: a. Uma lesão corto-perfurante com infiltração sanguínea dos tecidos moles adjacentes ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal sem lesão óssea e sem perfuração para a cavidade torácica; b. Uma ferida na mão esquerda, na face ântero-lateral do hipotenar, com 3,5 centímetros de comprimento por 2 centímetros de largura, de continuidade irregular e bordos lisos, infiltrados de sangue; e, c. Uma lesão corto-perfurante, com bordos lisos e 1,8 cm de comprimento, na face lateral do terço superior da perna direita, com infiltração sanguínea dos tecidos moles adjacentes, atingindo os vasos – artéria poplítea e veia poplítea –, como também o nervo tibial. 29. As lesões descritas em 28. c) determinaram choque hipovolémico por hemorragia aguda, o que constituiu causa direta e necessária da morte de CC. 30. Na execução do propósito descrito em 18., II retirou a EE, quando este se encontrava caído no solo, as calças de fato de treino da marca Puma e as sapatilhas da marca Nike que o mesmo usava, objetos que eram pertença do ofendido e valiam, à data, 50,00€ e 85,00€, respetivamente, e que o arguido II fez seus. 31. O arguido AA agiu conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de, nas circunstâncias de tempo e de lugar acima descritas, que conhecia, fazendo uso da faca acima descrita, com que previamente se muniu e cujas características também conhecia, tirar a vida a CC, o que representou, quis e conseguiu. 32. Por sua vez, o arguido II agiu conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de EE a fim de fazer seus os objetos descritos em 30., bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do respetivo dono, o que representou, quis e conseguiu. 33. Os arguidos AA e II sabiam que as suas condutas eram previstas e punidas por Lei Penal. 34. A demandante BB viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com o CC durante trinta anos, como se de marido e mulher se tratassem. 35. No dia 02 de fevereiro de 2023, cerca da 7:00 horas, a demandante tomou conhecimento, no Hospital ... e através de um médico, de que CC havia falecido. 36. Quando recebeu a notícia, a demandante entrou em pânico e sentiu que a vida deixou de fazer sentido para si. 37. Como consequência direta e necessária do decesso do companheiro, a demandante ficou muito abalada psicologicamente, experienciando nervosismo, ansiedade e sofrimento, que atualmente se mantêm e determinam que tenha de tomar medicamentos para se acalmar; chora diariamente, sentindo uma enorme solidão. 38. Ainda como consequência direta e necessária da morte de CC, a demandante passou a acordar, durante a noite, em sobressalto, experienciando dificuldades em voltar a adormecer, não conseguindo fazer uma noite seguida de sono. 39. A demandante ainda não conseguiu fazer o luto, pois que ainda atualmente não consegue entrar no armazém onde CC tinha as suas ferramentas e onde passava praticamente os dias a arranjar velharias. 40. A demandante encontra-se inscrita no fundo de desemprego, recebeu o valor mensal de 340,00€ a título do fundo de desemprego até 13.03.2024, recebe uma pensão de sobrevivência paga pelo Instituto da Segurança Social, I.P. e beneficia, por vezes, da ajuda monetária de alguns amigos. 41. Como consequência direta e necessária da morte de CC, beneficiário da segurança social portuguesa n.º ...548, o Instituto da Segurança Social, I.P. atribuiu a BB, na qualidade de unida de facto daquele, pensões de sobrevivência em montante mensal que atualmente se cifra em 191,69€, tendo pago à mesma, a esse título, no período situado entre março de 2023 e março de 2024, o montante global de 2715,49€, que inclui o 13.º e 14.º mês. 42. O Instituto da Segurança Social, I.P. pagou ainda, ao assistente JJ, subsídio de funeral no valor de 1441,29€, atinente às despesas suportadas com o funeral de CC. A.2) RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIOECONÓMICAS E PASSADO CRIMINAL DE AA: 43. O arguido AA nasceu em ... de ... de 1997. 44. Os pais separaram-se quando contava apenas cinco anos de idade, tendo o progenitor evidenciado uma postura de desvinculação das suas obrigações parentais. 45. O processo evolutivo de AA decorreu num contexto familiar de origem algo disfuncional, não só pelo distanciamento promovido pelo progenitor, mas também pela ausência de uma vinculação afetiva com a progenitora, tendo os avós maternos preenchido essas lacunas, constituindo-se a maior referência psicoafectiva do arguido. 46. Desde cedo, o arguido evidenciou alguma instabilidade emocional, com implicações no seu modo vivencial. 47. O seu rendimento escolar foi reduzido, tendo concluído aos catorze anos o 5.º ano de escolaridade, insucesso que o próprio contextualiza num quadro de dificuldades de aprendizagem. 48. Pese embora a sua posterior integração em Programa Integrado de Educação e Formação - PIEF, nas áreas da jardinagem e da cozinha, a desmotivação sentida pelo arguido por essas atividades formativas culminou na desistência, tendo abandonado definitivamente o percurso escolar. 49. Como fator de impacto nos comportamentos do arguido, surge o seu envolvimento nos consumos de estupefacientes (haxixe) junto de amigos com hábitos similares, prática que terá tido o seu início por volta dos quinze anos de idade, após o falecimento do avô materno, figura de referência no seu processo evolutivo. 50. Segundo o próprio, aos dezoito anos ter-se-á iniciado nos consumos de álcool, que desvaloriza, por considerar como de nulo impacto no seu quotidiano pessoal, social, mas também laboral. 51. A prática aditiva que alega ter descontinuado desde a inserção laboral junto do tio materno apresenta-se desvalorizada pelo arguido como fator de impacto nos seus comportamentos, surgindo alguma reserva quanto à total descontinuidade nos consumos de substâncias psicoativas. 52. AA desvaloriza qualquer tratamento especializado. 53. À data dos factos integradores do objeto do processo, AA mantinha-se integrado no agregado de origem, coabitando com a mãe, na morada indicada nos autos, habitação de tipologia T3 propriedade da família, com adequadas condições de habitabilidade. 54. Sem menção a distúrbios no lar familiar desde o desfecho do processo n.º 372/21.3..., no âmbito do qual foi absolvido, AA descreve um convívio saudável e sereno junto da progenitora, ainda que o seu discurso revele uma atitude crítica quanto à manutenção dos hábitos de consumo de bebidas alcoólicas por parte daquela, embora assinale consumos mais moderados e espaçados no tempo. 55. Como fator promotor de maior estabilidade do arguido, surgia a presença de alguns familiares, nomeadamente, o irmão, KK, e o tio materno, LL, que residem, com as respetivas famílias, em habitações integradas na quinta, herança familiar, destacando-se esse tio como sendo a pessoa com maior influência no quotidiano de AA, por também se apresentar como já tendo sido a sua entidade patronal. Apesar dos laços de proximidade existentes entre o arguido e o tio materno, a dinâmica relacional existente entre a mãe e o tio materno será pautada por sentimentos de tensão e mesmo de algum distanciamento desde há anos, por razões ligadas a partilha de bens, na sequência do falecimento da avó materna. 56. Embora integrado no agregado materno à data em que foi privado da liberdade, AA refere como projeto futuro a possibilidade de alguma autonomia pessoal, caso venha a ser restaurado espaço anexo à habitação do seu irmão, projeto que conta com o suporte dos familiares. 57. No plano laboral, em momento anterior à data da sujeição à medida de coação de prisão preventiva, AA trabalhou, de forma regular, com o tio materno (trabalhador em nome individual na área das energias renováveis/montagem de painéis solares, canalização e eletricidade), tendo auferido uma remuneração salarial equivalente a um salário mínimo nacional, sendo que parte das receitas auferidas se destinaram ao pagamento, em prestações, de duas penas de multa em que havia sido condenado. 58. O arguido AA foi detido à ordem dos presentes autos no dia ... de ... de 2023 e sujeito a 1.º interrogatório judicial de arguido detido no dia seguinte, tendo-lhe sido imposta a medida de coação de prisão preventiva e estado, desde então, ininterruptamente privado da liberdade à ordem dos presentes autos. 59. AA evidencia fragilidades pessoais condicionantes de um normal relacionamento interpessoal, percecionando-se dificuldades na contenção de sentimentos de zanga e baixa tolerância à frustração em contextos de adversidade à sua pessoa/maior stress emocional, agindo de forma impulsiva e sem qualquer reflexão das implicações dos seus atos, revelando uma forma de pensamento imediatista e sem filtro ao nível consequencial. 60. Em ambiente de maior controlo, mormente, em contexto prisional, o arguido AA consegue pautar o quotidiano de acordo com a normas institucionais vigentes, procurando manter-se ocupado, conforme sucedeu no Estabelecimento Prisional ..., onde chegou a exercer atividade laboral e a frequentar uma ação formativa. 61. A sua transferência para o Estabelecimento Prisional de ..., onde se encontra em regime de segurança máxima, terá tido origem no alegado envolvimento (que o arguido nega) em agressão a outro recluso, não havendo conhecimento do desfecho desse inquérito. 62. No decurso da sua permanência no Estabelecimento Prisional de ..., AA tem evidenciado um comportamento institucional adequado e já solicitou uma ocupação laboral, bem como frequenta o ginásio. Como ambição, refere a possibilidade de regressar a um regime comum, pelas possibilidades laborais inerentes ao mesmo. 63. No plano familiar, após a sujeição à medida coativa de prisão preventiva, destacam-se os familiares, nomeadamente os pais, tio materno e irmão, que lhe têm disponibilizado um apoio consistente, mesmo após a sua transferência para o Estabelecimento Prisional de ..., pese embora esse suporte se apresente como de maior impacto em termos logísticos e económicos, mas de reduzida contenção em termos dos seus comportamentos na esfera social. 64. As principais repercussões da atual situação jurídico-penal do arguido AA direcionam-se à sua pessoa, já que, apesar de, no seu discurso, revelar capacidade de reconhecer a desadequação dos seus comportamentos, sobrevaloriza o impacto sobre o seu quotidiano e projetos futuros, em detrimento das implicações sobre a vítima mortal e demais pessoas lesadas pela sua conduta. 65. O arguido AA possui antecedentes criminais, porquanto: 1. Por sentença datada de 15.12.2016, transitada em julgado em 27.01.2017, proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 505/16.1..., que correu termos pelo Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi condenado, por factos reportados a 17.05.2016, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ [já declarada extinta pelo pagamento]; 2. Por decisão judicial datada de 05.01.2022, transitada em julgado em 25.01.2022, proferida no âmbito do processo especial sumaríssimo n.º 302/20.0..., que correu termos pelo Juízo Local Criminal de ... – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de..., foi condenado, por factos reportados a 24.03.2020, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ [já declarada extinta pelo pagamento]; Por sentença datada de 03.02.2022, transitada em julgado em 07.03.2022, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 114/18.0..., que correu termos pelo Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi condenado, por factos reportados a 27.01.2018, pela prática de três crimes de ameaça agravada e de três crimes de injúria agravada, na pena única de 339 dias de multa, à taxa diária de 5,50€ [já declarada extinta pelo pagamento]. (…) A. FACTOS NÃO PROVADOS Com relevo para a decisão a proferir não se provou que: a. Aquando do descrito no ponto 8. dos factos julgados provados, AA e DD tenham decidido deslocar-se à viatura com a matrícula ..-..-UH e abordarem os seus ocupantes para se inteirarem das razões da sua presença naquele local; b. O descrito no ponto 11. dos factos julgados demonstrados tenha ocorrido após uma breve troca de palavras; c. A faca descrita no ponto 16. dos factos julgados provados fosse uma navalha e haja sido recolhida, também, por DD e que a mesma tivesse, concretamente, 21 cm de lâmina e 14 cm de cabo; d. FF tenha conseguido fugir do local; e. O arguido AA tenha desferido mais do que 3 golpes, com a lâmina da faca que empunhava, no corpo de CC; f. A lesão descrita no ponto 28.a) dos factos julgados demonstrados tivesse, concretamente, 1,8 cm de comprimento por 0,5 cm de largura e que a mesma se situasse no terceiro espaço intercostal; g. A lesão descrita no ponto 28.c) dos factos julgados provados tenha determinado a rotura da veia safena externa e interna e uma escoriação na coxa lateral esquerda com 2,5 cm de comprimento por 1 cm de largura; h. O arguido II se tenha envolvido em agressões recíprocas com FF; i. O arguido II apenas tenha formulado o propósito descrito no ponto 18. dos factos julgados demonstrados depois de ter seviciado EE e de este ter caído para o chão; j. O arguido II se tenha colocado em cima do EE e que tenha arrancado dois fios em ouro que o mesmo trazia ao pescoço, bem como que lhe haja retirado um anel em ouro branco, uma mala de marca Guess, contendo no seu interior os documentos pessoais e € 340 em dinheiro, um relógio de marca Gant e um telemóvel de marca Iphone, modelo 8.» II.3. Mérito do recurso 10. Das conclusões da motivação de recurso do arguido é possível identificar as (duas) seguintes questões que o mesmo pretende colocar à apreciação deste STJ: i) Errada conclusão quanto à intenção de matar [do arguido-recorrente], devendo os factos provados qualificar-se como crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p.p. nos artigos 144.º e 147.º, do CP – Conclusões I. a XVII. ii) A alteração da medida concreta da pena, aplicável ao crime p.p. nos artigos 144.º e 147.º do CP, para 9 anos de prisão, ou, a manter-se a qualificação do crime como homicídio simples agravado, para 13 anos de prisão – Conclusões XVIII. a XX. Estas são, portanto, as questões colocadas pelo recorrente, as quais respeitam exclusivamente à decisão sobre matéria de direito. Assim, estabelecida a matéria de facto provada e não provada, relevante para a apreciação do presente recurso, importa apreciar e decidir as questões nele colocadas pelo arguido e recorrente, circunscritas, como se disse, à decisão sobre matéria criminal. 11. i) Errada conclusão quanto à intenção de matar [do arguido-recorrente], devendo os factos provados qualificar-se como crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p.p. nos artigos 144.º e 147.º, do CP. O arguido vem insurgir-se quanto à conclusão do tribunal recorrido no sentido de considerar ter agido com intenção de matar, e não (apenas) com intenção de ofender a integridade física da vítima, CC. Invoca um conjunto de considerações que, em grande medida se confundem com argumentos da sua discordância quanto à fixação da matéria de facto. O recorrente alega, em síntese, que a conclusão alcançada no acórdão recorrido a respeito da intenção de matar afronta o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP e entra mesmo em contradição com a proposição de que apenas pretendia seviciar fisicamente a vítima, o que equivale a afirmar que o acórdão está viciado por erro notório na apreciação da prova. Como o recorrente expressamente diz que não pretende sindicar a decisão sobre matéria de facto, silenciando a forma regular de interposição de recurso sobre a decisão em matéria de facto, a verdade é que a fundamentação do seu recurso encerra de forma implícita uma alegação de erro notório na apreciação da prova, como assinala o Senhor Procurador-geral-adjunto neste STJ. A nova configuração do recurso para o STJ conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 (entrada em vigor em 21 de março de 2022) permite, nos termos do art. 432.º, n.º 1 do CPP, preenchidos que estejam os restantes pressupostos legais, o recurso das decisões das relações proferidas em 1.ª Instância com fundamento em erro-vício (al. a)) e admite igualmente o recurso dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal coletivo com fundamento em erro vício (al. c)) (para maiores detalhes, cfr. «Alterações ao regime do recurso ordinário», Nuno A. Gonçalves, in A Revista (revista do STJ), N.º 1 – jan-jun., 2022, p. 79-100). Sempre se compreenderia que, em sede de recurso per saltum, o Supremo Tribunal de Justiça pudesse analisar e decidir de qualquer incongruência, contradição, erro notório ou insuficiência respeitantes à matéria de facto, resultantes do próprio texto da decisão, ou conjugada esta com as regras da experiência comum, uma vez que, tendo faltado o escrutínio de outra instância recursiva, tal possibilidade é um “filtro de controlo de segurança” relativamente a decisões ostensivamente erradas, contraditórias e carentes de fundamentação factual. A intervenção, mesmo a título oficioso, do tribunal de recurso, justificar-se-ia, mesmo que não haja uma impugnação formal da matéria de facto – ou seja, por via do recurso amplo ou recurso efetivo da matéria de facto, previsto no art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP –, isto é, mesmo que se esteja perante recurso restrito a matéria de direito. Justifica-se, enfim, a chamada revista alargada da matéria de facto, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do CPP, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detetadas pelo STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excecional, surgindo como último remédio contra tais vícios, conforme é jurisprudência corrente. Nada impede o Supremo Tribunal de Justiça, em tais casos, de conhecer, mesmo oficiosamente, dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP. E entende-se que assim seja. Para proceder a uma adequada revisão da matéria de direito, é necessário que a matéria de facto se encontre adequada, suficiente e coerentemente estabilizada. Como consolidadamente tem decidido este Supremo Tribunal, v.g., entre muitos outros, nos acórdãos STJ de 22-10-1997, proferido no processo n.º 612/97-3.ª (Sumários STJ, n.º 14, pág. 155) e de 05-111997, proferido no processo n.º 549/97-3.ª (Sumários, n.ºs 15 e 16, pp. 150/1 e CJSTJ 1997, t. 3, p. 222), «Os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto - implicam erro de facto – que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida, determinando o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426º do CPP)». Constituem vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes em «Conhecimento dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de maio de 1992 - Anotação de jurisprudência», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4.º, Fasc. 1 – jan.- mar. 1994, p. 121, em anotação a acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de maio de 1992, pub. na Colectânea de Jurisprudência, 1992, t. 4, p. 5. Observa a Autora, a pp. 121-123 de tal artigo: «Nesta disposição legal, estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência da “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal”». Prossegue, afirmando que «O artigo 374.º, n.º 2, impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena de nulidade da sentença (…), enquanto o artigo 410.º, n.º 2, concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objectivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410.º, n.º 2, não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 – isso é feito através do mecanismo da arguição da nulidade –, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão». Conclui a referida Autora que, por serem vícios que contendem diretamente com «a boa decisão da causa», tendo o tribunal de recurso o poder-dever de fundar a «boa decisão de direito» numa «boa decisão de facto», o seu conhecimento é oficioso. Ao ressalvar-se a intromissão nos mencionados vícios, consagra-se aquilo a que se designa de recurso de revista ampliada, de cognição da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ao nível dos factos essenciais, de erro notório na apreciação da prova, evidentes. O Supremo Tribunal de Justiça não se pode alhear da sua primordial missão na aplicação do direito, pois seria inaceitável que se deixassem persistir aqueles vícios no silogismo judiciário, porque o tribunal de recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, que não padeça daqueles vícios (cfr. Maria João Antunes, loc. cit., pp. 118 e ss., em anotação ao Acórdão deste STJ, de 6 de Maio de 1992). O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas admissíveis e produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de um enunciado factual sobre determinada verdade histórica vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto. A questão do escrutínio oficioso da correção das decisões judiciais contende de muito perto com a do dever de fundamentação, de facto e de direito, das decisões jurisdicionais, decorrendo de uma vinculação constitucional (art. 205.º, n.º 1, da CRP). A consagração na Lei Fundamental do dever de fundamentação das decisões judiciais veio a verificar-se com a primeira revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30-09, prescrevendo então o n.º 1 do artigo 210.º que «As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei», redação que se manteve no n.º 1 do artigo 208.º na revisão da Lei Constitucional n.º 1/89, de 08-07, bem como na revisão da Lei Constitucional n.º 1/92, de 25-11, sofrendo alteração na 4.ª revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20-09), passando então a dispor o n.º 1 do artigo 205.º que: «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». No cumprimento da obrigação de “completa” fundamentação, o tribunal há de apresentar uma fundamentação que permita uma avaliação segura e cabal das razões da decisão, com referência ao que foi adquirido e ao que não foi, em termos da factualidade apurada, se possível com explicitação diferenciada do que resultou da acusação, ou do que adveio da contestação e do que emergiu da discussão em audiência, com referência ao modo (lícito) de aquisição, permitindo a “transparência do processo e da decisão”, para utilizar a expressão de Michele Taruffo, em Note sulla garantia constituzionale della motivazione, in BFDUC, volume LV, Ano 1979, Coimbra, p. 31, citado, i. a., no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, in DR, II Série, de 5 de Março de 1999, tendo que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, com interesse para a decisão, incluindo essa apreciação os que não foram considerados provados. O vício previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – que no fundo corresponde à invocação do recorrente –, ocorre quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras gerais da experiência, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são incompatíveis, entre si, ou face à decisão tomada. O recorrente alega que: «6. Desde logo, a explicitação no Acórdão quanto à fundamentação da frase formulou o propósito de tirar a vida a CC, constante no FP 24, parece-nos inadequada, como se exporá. 7. Atente-se, como importante para a decisão, que no douto Acórdão, em B) Factos Não Provados, ponto e. consta que não se provou que o arguido AA tenha desferido mais do que 3 golpes, com a lâmina da faca que empunhava, no corpo de CC;», e que «(…) existem versões sobre os factos e a sua dinâmica, tal como foram vivenciados por alguns dos participantes na ocorrência; e que o texto do douto Acórdão recorrido recolhe tais versões que, testemunhalmente foram produzidas em sede de audiência.», e ainda, que «(…) essas versões, relatadas na primeira pessoa por algumas das testemunhas ouvidas; e bem assim pelos arguidos, entre os quais o recorrente; e tal como estão recolhidas no Acórdão no segmento da MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO, em C) do Acórdão, apresentam a nosso ver uma versão lógica, plausível e totalmente consentânea com a dinâmica dos factos.», Acrescentando que: «15. Na parte que interessa a este recurso, o resumo que no texto do Acórdão se faz do que foi declarado pelo recorrente, é, literalmente e na sequência do texto da Motivação da Decisão de Facto, em C) do Acórdão, o seguinte: (…) 17. Ora, quanto ao facto concreto que representa a causa da morte da infeliz vítima CC, esta é a única versão directa trazida a julgamento. 18. Obviamente que se trata de uma versão do arguido directamente implicado – por isso com interesse na discussão da causa --, pelo que as suas declarações, que são um meio válido de prova, têm contudo que ser apreciadas e valoradas de acordo com a imagem global do facto e com as regras da normalidade; e ainda compaginadas com as demais provas. 19. Ora, nos diferentes resumos que faz no texto do Acórdão sobre o que foi relatado na exacta altura em que se estão a produzir os acontecimentos, o Tribunal a quo regista (naquele mesmo segmento C) e na sequência linear textual do que já atrás se transcreveu:», E, ainda: «28. Sendo este o quadro da realidade processualmente obtida; e sendo neste quadro que a dinâmica se desenrola, o Tribunal a quo desvaloriza contudo todo este conjunto de prova directa assim obtida, embora com as naturais diversidades de narração; e opõe-lhe, dando-a por provada, uma subitamente formulada intenção de matar (cf. ponto 24 dos factos Provados). 29. Ora, esta intenção – que sendo de natureza subjectiva tem que ser objectivada por factos provados que inequivocamente a demonstrem – retira-a o Tribunal a quo, como se alcança do texto do Acórdão naquele mesmo segmento de Motivação, sic: - do relatório de exame/inspeção judiciária de fls. 211 a 226; - do relatório de exame pericial de fls. 227 a 236 (); - do auto de diligências de fls. 237; - do relatório de exame/inspeção judiciária de fls. 238 a 246; - do auto de apreensão de fls. 247; - do auto de exame direto de fls. 491; - do relatório fotográfico de fls. 39 a 40; - do relatório institucional de episódio de urgência de fls. 332 a 333; e, -do relatório de autópsia médico-legal de fls. 431 a 436; 30. Ora, com todo o respeito, nenhum destes elementos, quando apreciados segundo uma correcta valoração da prova, permite deles retirar a conclusão de que foi formulada pelo recorrente intenção de matar, naquele preciso momento em que ordenou ao CC que saísse do carro; 31. Na mesma perspectiva, nenhum destes elementos, se apreciados segundo uma correcta valoração da prova, permite deles retirar a conclusão de que foi formulada pelo recorrente intenção de matar, naquele preciso momento em que ordenou ao CC que saísse do carro; nem nenhum daqueles elementos de prova infirma ou sequer belisca a lógica ou a credibilidade da versão apresentada pelo arguido. 32. Desde logo, sempre haveria que perguntar e ponderar: se a intenção era matar, porque não foi ela continuada? Num local deserto àquela hora, onde ninguém surgia ou surgiu a interromper a acção do agressor, munido de uma faca, porque fugiu ele repentinamente, dando uma facada numa perna, e não no pescoço, ou no coração, se era matar a sua verdadeira intenção? Quem o impedia de continuar a agressão? O que o impediu de continuar a agressão ou certificar-se do resultado e do propósito que o Acórdão diz que ele formulara? 33. A intenção de matar não pode ser retirada, como faz o douto Acórdão, pelas natureza e características da faca com que AA se muniu quando decidiu, juntamente com DD e num primeiro momento, angariar pessoas que lhes garantissem superioridade numérica sobre os ocupantes do Audi e, desse modo, lograrem seviciá-los fisicamente sem que os mesmos conseguissem retorquir, como aliás escreve o douto Acórdão assim aceitando que a intenção era outra, não a de matar. (…) 38. Ainda por cima quando, para um homem comum, uma ferida na perna não é o meio comum de causar a morte, quando se a quer causar. Só quem tem correctos e seguros conhecimentos de anatomia sabe que ferindo a perna, e onde exactamente, pode causar a morte. 39. Para o cidadão comum o tórax ou a cabeça são os locais atingidos quando se quer provocar a morte (por isso em conflitos ou, guerras os acessórios de protecção são os coletes à prova de bala e os capacetes…) 40. Resultando também da experiência comum e do conhecimento geral – aliás alimentado por filmes, gravações de episódios reais e reportagens, que quando as forças policiais querem deter alguém sem o matar, é para as pernas que fazem os disparos. 41. A própria doutrina reconhece isso mesmo. Como aliás, citando o mesmo autor que o Acórdão cita, se pode verificar: “tipicamente observam-se múltiplas lesões pelo corpo, com uma representatividade de lesões únicas menor que 45% e, na sua maioria, são pouco profundas, não sendo cada uma delas idóneas para provocar a morte. (…)As lesões que apresentam maior risco são as localizadas no tórax e abdómen, sendo também as que mais se observam(…). As feridas corto-perfurantes por armas brancas que culminam em fatalidade envolvem na sua grande maioria o coração ou a artéria aorta” -. João Manuel de Aguilar Baptista, in “Lesõestraumáticasporagentesexternosmecânicos:artigoderevisão”, Trabalho Final de Mestrado Integrado em Medicina/Medicina Legal e Ciências Forenses, Faculdade de Medicina de Lisboa da Universidade de Lisboa, Julho de 2019. 42. A facada na perna, segundo os relatórios a verdadeira causa da morte, foi aqui desvalorizada, pois é nítido pela leitura do douto Acórdão, que, face a quanto se provou, não poderia nunca o Tribunal a quo retirar dela a referida súbita intenção de matar. 43. Por isso se fixou, para tanto, na ferida superficial do tórax; e conclui daí, a nosso ver numa apreciação discricionária da prova e contra as regras da experiência, a falada intenção de matar. 44. Ou seja, afastou totalmente o que vinha da prova testemunhal e das declarações dos arguidos -- que a intenção da ida ao local era agredir e molestar os 3 ocupantes do Audi e impedi-los de depois disso saírem dali com o carro; 45. E substituiu essa intenção, a nosso ver vastamente provada, por uma objectivação da intenção de matar que não tem base probatória que a sustente. Nem sequer a assim resultante falta de credibilidade das declarações dos intervenientes assentam, ou o Tribunal as faz assentar, em qualquer questão atinente com o princípio da imediação. 46. Deste modo, afigura-se que a prova foi apreciada de modo incorrecto, sem atender às regras da experiência e da normalidade, deste modo violando o art. 127º do CPP; substituindo assim a verdadeira intenção, que era a de agredir, por uma intenção que não é real, não decorre da prova produzida ou examinada, nem está conforme às regras da lógica e da experiência. 47. Resulta do provado em audiência que a intenção sempre foi a de agredir, não a de matar; que o crime doloso é o da agressão física, tendo porém como resultado culposo, mas apenas a título de negligência, o resultado morte. 48. A conclusão jurídica seria inevitavelmente a de que estamos perante um crime preterintencional ou preterdoloso, pois o crime fundamental é doloso, mas o resultado infelizmente provocado não é compreendido no dolo, devendo ser punido a título de negligência, consciente ou inconsciente, como aliás já superiormente se escreveu no douto Ac. do STJ 107/13.4JA CBRC1.51, de 15.10.2014. (…)» Como será fácil de reconhecer, um tal tipo de argumentação teria melhor via de sucesso através de um recurso da decisão da matéria de facto, a ser interposto ao abrigo do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, tornando-se inadequada a sua suscitação através do presente meio de invocação do vício do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. Como se refere no parecer do Ministério Público junto deste STJ, «(…) basta ler as 30 páginas do acórdão que concentram a indicação e exame crítico dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal para concluir que os factos, nomeadamente os que respeitam ao dolo do arguido, estão amplamente justificados, amparam-se solidamente nas provas a que o tribunal coletivo, com a mais-valia da oralidade e da imediação, conferiu maior credibilidade, são inteiramente plausíveis e harmonizam-se com as regras da lógica e da experiência comum. Que outra interpretação se poderia, aliás, dar aos factos provados 16, 25, 26 e 27, sem incorrer, então sim, em erro notório na apreciação da prova, senão a de que o arguido, que aliás, de acordo com a incontestada síntese das respetivas declarações apresentada no acórdão, assumiu ter «enterrado» os mais de 20 centímetros da lâmina da faca que empunhava na perna direita da vítima, atuou com a intenção de tirar a vida a CC? Acrescente-se, enfim, que não existe contradição em dar como assente que o arguido decidiu «seviciar fisicamente» a vítima e os outros dois ocupantes do AUDI e que atuou com intenção de matar a vítima porquanto essa alteração de propósito forma-se posteriormente na sequência da evolução dos acontecimentos e da obtenção de superioridade sobre os oponentes (factos provados 13 e 24). Não se verificando, assim, que o tribunal tenha violado o princípio da livre apreciação da prova ou incorrido no vício que o recorrente, de forma implícita, atribui ao acórdão recorrido, a decisão sobre a matéria de facto deve considerar-se definitivamente consolidada. Nessa decorrência, uma vez que as pretensões de recondução dos factos ao crime preterintencional e de fixação da pena dentro da correspondente moldura penal assentam no pressuposto da não demonstração do animus necandi (conclusões XV e XVIII), fica prejudicado o seu conhecimento e análise.» Antes de mais, há de reconhecer-se que o tribunal recorrido trata no acórdão impugnado com invulgar rigor, coerência e meticulosidade – que a dignidade dos valores em causa no processo merece – a matéria da formação da convicção sobre a factualidade que considerou demonstrada. Salienta em primeiro lugar, desenvolvida e convincentemente, a forma como a «prova por declarações dos arguidos e testemunhal apresentou, quanto à concreta dinâmica factual ocorrida, divergências várias, tendo-se imposto ao Tribunal uma análise particularmente detalhada, minuciosa e crítica, sempre com apelo às regras da lógica e da experiência, da narrativa trazida por cada um dos sujeitos e intervenientes processuais, suportando o seu juízo, sempre que possível, também, na prova documental e pericial produzidas.», explicitando de forma sumariada, o teor de cada um dos depoimentos e declarações de cada interveniente. Em seguida, enunciaram-se circunstanciadamente as razões da convicção sobre a factualidade julgada demonstrada sob os pontos 1. a 3., 7. a 12., 13. a 18., 19. a 23. e 20., 34. a 40., 41. a 32., 43 e 46, 44. a 57. e 59. a 64., 69. a 76. e 78. a 82., 58, 65 e 83. Também quanto aos factos não provados com relevância, se justificou que: «Do vertido na alínea e. nenhuma prova se fez, resultando da prova documental e pericial terem sido produzidos no corpo de CC, com a lâmina da faca empunhada por AA, 3 ferimentos, não podendo afirmar-se a ocorrência de mais do que 3 “golpes”. No que tange ao vertido nas alíneas f. e g., dir-se-á que tal informação não foi plasmada pelo Exmo. Perito Médico no relatório da autópsia médico-legal que elaborou e subscreveu, tratando-se, eventualmente, de conclusões meramente preliminares que foram transmitidas à Polícia Judiciária; no que respeita à escoriação na coxa lateral esquerda com 2,5 cm de comprimento por 1 cm de largura, trata-se de uma sequela preexistente aos factos integradores do objeto do processo, muito provavelmente relacionada com a lesão sofrida por CC que determinou que o mesmo tivesse passado a claudicar e a ter de se apoiar em pelo menos uma canadiana para lograr locomover-se.» Temos por adequadamente debatidas e motivadas as conclusões respeitantes ao iter dos acontecimentos, designadamente quanto ao propósito do arguido-recorrente de tirar a vida da vítima CC. Destacamos, ainda, a esse respeito, o que resulta do seguinte trecho da motivação da decisão da matéria de facto: « De modo resumido, recordamos, o arguido AA reportou que: - introduzindo-se no habitáculo do Audi de 3 portas, municiado com a faca que previamente retirara da cozinha da residência de DD, interpelou CC, que se encontrava sentado na parte direita do banco traseiro dessa viatura, a sair para o exterior; - que CC o fez crer que estava armado com uma pistola, porquanto teria colocado a mão esquerda no interior da parte direita do casaco que envergava; - que, no propósito de impedi-lo de retirar essa pretensa arma do bolso interior direito do casaco, ele, arguido, teria desferido um golpe sobre a mão esquerda de CC, causando-lhe um ferimento; - que, após, e porque CC fez menção de sair para o exterior do Audi, ele, arguido, espetou-lhe a lâmina da faca na perna direita; - que só desferiu esses 2 “golpes” com a lâmina da faca no corpo de CC, apenas podendo justificar a ferida que o cadáver do mesmo evidencia no lado esquerdo do peito (ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal, conforme resulta do relatório da autópsia), pelo facto – eventual – de a lâmina haver resvalado da mão esquerda da vítima para o peito, quando esta, reflexamente, ao ser cortada na face ântero-lateral do hipotenar esquerdo, “recolheu” a mão; e, - que nunca quis tirar a vida a CC, apenas tendo querido assustá-lo e causar-lhe lesões físicas na mão esquerda e na perna direita, não tendo representado que a lesão no membro inferior era suscetível de lhe retirar a vida, conforme efetivamente sucedeu. A narrativa do arguido AA é, todavia, totalmente comprometida, arredada, pelos factos objetivos cujo apuramento se logrou. Com efeito, importa desde logo considerar a natureza e características da faca com que AA se muniu quando decidiu, juntamente com DD e num primeiro momento, angariar pessoas que lhes garantissem superioridade numérica sobre os ocupantes do Audi e, desse modo, lograrem seviciá-los fisicamente sem que os mesmos conseguissem retorquir: trata-se de uma faca de uso doméstico – destinada a desossar carne e, por isso, de gume afiado, conforme se alcança das fotografias constantes dos autos –, toda em metal, com uma lâmina com 20,6 centímetros de comprimento e um cabo com 12 centímetros. É, pois, uma faca destinada a cortar carne e que corta carne com precisão, em profundidade, conforme se alcança da análise do teor do relatório da autópsia: o arguido desferiu, conforme admitiu, um golpe com a dita faca que atingiu a mão esquerda de CC, na face ântero-lateral do hipotenar, causando-lhe um ferimento com 3,5 centímetros de comprimento por 2 centímetros de largura, de continuidade irregular e bordos lisos, infiltrados de sangue (sendo visível, a fls. 232, que uma parte da carne da vítima foi retirada dessa região corporal). Dir-se-á, desde logo, que a escolha da faca em causa, pelo arguido, não se mostra compatível, segundo as regras da lógica e da normal inteligência, com qualquer mera intenção de “assustar” outrem ou de causar-lhe lesões insuscetíveis, em quaisquer circunstâncias, de causar-lhe a morte (a capacidade cortante e perfurante do objeto, dotado de uma lâmina tão comprida e afiada é evidente para qualquer pessoa). O arguido AA não só se muniu com a faca, como fez uso dela. E, a sua ensaiada versão de que a lesão corto-perfurante ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal de CC, observada no exame ao cadáver deste, fora provocada pelo “resvalar” da lâmina da faca depois de infligida a lesão na mão esquerda da infeliz vítima é totalmente contraditada, desde logo, pelas características dessa lesão, bem como pela orientação da mesma. Note-se, com efeito que uma efetiva lesão de arrastamento, produzida nos moldes sugeridos por AA, teria, desde logo, necessariamente, de descrever-se horizontalmente, da direita para a esquerda, sobre a face anterior esquerda do tórax de CC, sendo “mais comprida do que profunda”. Pelo contrário, conforme se alcança da análise conjugada do teor das fotografias de fls. 233 e do relatório da autópsia médico-legal de fls. 431 a 436, a lesão produzida ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal de CC é uma ferida corto-perfurante, i.e., uma ferida que resulta “da ação cortante inicial a nível da pele e da ação perfurante e cortante nos tecidos mais profundos” (distinguindo-se, precisamente, das feridas cortantes ou incisas pelo facto de “apresentarem um predomínio da profundidade em comparação com o comprimento, podendo facilmente atingir estruturas ou órgãos vitais”) – cfr. neste sentido, João Manuel de Aguilar Baptista, in “Lesões traumáticas por agentes externos mecânicos: artigo de revisão”, Trabalho Final de Mestrado Integrado em Medicina/Medicina Legal e Ciências Forenses, Faculdade de Medicina de Lisboa da Universidade de Lisboa, julho de 2019, disponível em fonte aberta na internet. Aí pode ler-se que “este tipo de feridas tem especial importância nas mortes de etiologia médico-legal homicida”, sendo que “tipicamente observam-se múltiplas lesões pelo corpo, com uma representatividade de lesões únicas menor que 45% e, na sua maioria, são pouco profundas, não sendo cada uma delas idóneas para provocar a morte. As lesões que apresentam maior risco são as localizadas no tórax e abdómen, sendo também as que mais se observam. A maioria destas lesões em contexto fatal surge no hemitórax esquerdo. Tal pode ser explicado pela dextralidade (com consequente lesão em espelho no lado esquerdo da vítima) ou pelo facto de, quando o intuito é de matar a vítima, o agressor tem como alvo o lado esquerdo do tórax por neste localizar-se o coração. Este tipo de ferimentos está tipicamente orientado verticalmente, contrapondo-se às feridas corto-perfurantes de etiologia médico-legal suicida que são tendencialmente mais horizontais. Interpreta-se que esta diferença advenha da preferência por parte da vítima que vai autoinfligir a ferida corto-perfurante de penetrar a arma branca paralelamente à horizontalidade do espaço intercostal com o fim de mais eficientemente chegar aos órgãos vitais, enquanto que num contexto de agressão essa facilidade não existe e tipicamente o agressor pega a arma branca com a lâmina orientada verticalmente. As feridas corto-perfurantes por armas brancas que culminam em fatalidade envolvem na sua grande maioria o coração ou a artéria aorta”. A ação produzida pela lâmina da faca usada pelo arguido AA, cortou, diagonalmente, a pele de CC e penetrou nos tecidos moles adjacentes ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal, determinando a ocorrência de infiltração sanguínea. Teve, pois, o arguido de introduzir a lâmina da faca nessa região corporal de CC, não se antevendo qualquer possibilidade, ínfima que fosse, de os factos terem ocorrido do modo descrito por AA. Não logrou, porém, o arguido, com essa atuação, causar lesão óssea nem causar perfuração para a cavidade torácica, motivo pelo qual o coração de CC (cujo centro, em indivíduos normolíneos, se situa, precisamente, ao nível da linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal, facto que é do conhecimento do cidadão de medianos conhecimentos) não foi atingido pela lâmina da faca. A conclusão do Exmo. Perito que elaborou e assinou o relatório da autópsia médico-legal que efetuou ao cadáver de CC é, aliás, inequívoca e não deixa margem para dúvidas (as quais, a terem existido, seguramente não teriam deixado de ser discutidas e ressalvadas): “as características das lesões traumáticas descritas no tórax e membro inferior direito, harmonizam-se com a hipótese de homicídio”. Seguramente que na dinâmica envolvendo a ação de AA fazendo uso da faca, CC procurou ter interferência, relacionada, desde logo, com um instinto básico do ser humano: o da sobrevivência. Assim se explica, estamos convictos, a ferida produzida pela lâmina da faca utilizada por AA na mão esquerda, na face ântero-lateral do hipotenar, de CC, que terá tentado evitar ser atingido no coração. Nesta sede, com interesse, pode ler-se no já citado estudo da autoria de João Manuel de Aguilar Baptista, que “numa situação de agressão, a atitude mais expectável por parte da vítima é de a mesma se defender. Surgem assim as lesões de defesa no decorrer da agressão, com o intuito por parte da vítima de minimizar os danos ou mesmo cessar o perigo. Estas feridas têm relevância médico-legal pelo facto de as mesmas evidenciarem que a vítima, na altura da agressão, estaria consciente, com o envolvimento de uma segunda pessoa. Nos casos em que a agressão culmina em fatalidade, a presença de lesões de defesa indica-nos que o agressor teve que superar a resistência oferecida pela vítima”. Quando a vítima procura “afastar a arma ou desarmar o agressor com os braços, mas sem o intuito de agarrar a própria arma (…) surgem lesões no dorso da mão e na face posterior do punho e antebraço”; se a vítima procura “minimizar o dano recebido nas estruturas anatómicas vitais, nomeadamente cabeça e tronco, através de uma interposição dos membros (…) observam-se lesões em muito semelhantes às da defesa ativa pela ação de afastar a arma (lesões no dorso da mão e região posterior do antebraço), como também no bordo cubital dos antebraços ou feridas cortantes nas pregas interdigitais”. Depois de haver determinado tais ferimentos a CC, conforme o próprio admitiu, AA “espetou” a lâmina da faca, mais uma vez, no corpo da vítima, provocando-lhe, desta feita, uma lesão corto-perfurante, com bordos lisos e 1,8 cm de comprimento, na face lateral do terço superior da perna direita, com infiltração sanguínea dos tecidos moles adjacentes, atingindo os vasos – artéria poplítea e veia poplítea –, como também o nervo tibial. Conforme flui do teor do relatório da autópsia médico-legal, foi esta última ação, da qual resultou o seccionamento da artéria poplítea e veia poplítea da perna direita de CC, que determinou, direta e necessariamente, a ocorrência de choque hipovolémico por hemorragia aguda, o que constituiu causa direta e necessária da morte daquele. Sustentou o arguido que não representou que a ferida causada pela atuação que empreendeu, ora em análise, fosse suscetível de causar a morte a CC. Não descuramos que, ao nível de feridas corto-perfurantes nos membros, os episódios fatais são pouco representativos. Mas tal eventual ausência de representação, por banda do arguido, não pode deixar, em nosso entendimento, de irrelevar, na medida em que flui inequívoco, da sua atuação anterior (a introdução da lâmina da faca com que previamente se munira sobre a linha média clavicular esquerda do 4.º espaço intercostal de CC, sobre o centro do coração deste), que formulou o propósito de tirar a vida à vítima e que atuou, sequencialmente, na execução desse mesmo propósito. Se a morte de CC não resultou, conforme seria expectável para o comum dos cidadãos colocados na mesma situação, da lesão infligida pelo arguido AA no hemitórax esquerdo daquele mas, outrossim, da ferida infligida com o mesmo objeto, na perna direita do mesmo, eis o que, em nosso modesto entendimento, não releva. A morte de CC, enquanto resultado de uma conduta adequada, em qualquer caso, a provocá-la, foi querida e foi conseguida por AA. Impôs-se, pois, concluir como se fez, julgando demonstrados os factos descritos nos pontos 24. a 29. e, bem assim, nos pontos 31. e 33. (correspondendo estes à materialidade integradora do elemento subjetivo do ilícito de homicídio, que flui da factualidade objetiva demonstrada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência, da qual se infere). No que tange ao consignado como provado sob os pontos 32. e 33., fluiu, igualmente, da materialidade objetiva demonstrada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência, da qual se infere.» A suposta contradição entre a conclusão sobre o propósito, por parte do recorrente, de seviciar a vítima e os outros dois ocupantes do veículo Audi e a intenção de a matar –Factos provados 15. e 24. –, não nos suscita, portanto, qualquer reparo, atendendo à sucessão dinâmico-temporal da ocorrência dos factos apurados, bem como à plausibilidade de tal ocorrer em termos de id quod plerumque accidit. Ou seja, a evolução da contenda gerada entre o arguido e seus acompanhantes, por um lado, e a vítima e seus acompanhantes, por outro, pode, naturalmente, implicar uma alteração da intenção de atuar, justamente de acordo com o agravar da intensidade dos confrontos físicos, sendo, ainda, de realçar a importância do desentendimento entre o arguido AA e a vítima anteriormente verificado e que esteve na origem de todas as ocorrências. Isto, sem se tomar em consideração, por não questionado, o abandono do local e o não (pedido de) socorro das vítimas pelo arguido e seus acompanhantes, fazendo dessa forma, pelo menos, agravar o perigo de vida em que ficou a vítima. Não se pode, assim, corroborar a posição do recorrente no sentido da existência de um erro na apreciação da prova, ao dar-se como provada a intenção de matar, enquanto elemento subjetivo típico que preenche o tipo de crime de homicídio (agravado pelo uso de arma branca proibida) pelo qual o arguido vem condenado, p. e p. pelos artigos. 131.º do Código Penal e 86.º, n.ºs 3 e 4, com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. ab), 4.º, n.º 1 e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23-02. No que concerne à invocada violação do princípio da livre apreciação da prova, pela decisão recorrida, a conceção do nosso sistema probatório, convém esclarecer, é a de que não há qualquer modelo de “prova tarifada”, em que o legislador enumere as circunstâncias em que se deva dar como provado, ou não provado, um determinado facto. Vigora, antes, como se presume ser um dado adquirido, um sistema norteado pelo princípio da livre apreciação da prova, plasmado nos artigos 125.º e 127.º do CPP, em que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Ora, o princípio da livre convicção é um trivial princípio metodológico negativo, que consiste em rejeitar as provas legais como suficientes para dar como provado certo(s) facto(s), assim se evitando que se tenham como provados certos factos e que não se tenham como provados outros, sem que tal corresponda à realidade, só porque se obedeceu a um comando do legislador. Porém, uma conceção de livre convicção obtida na «intimidade da livre consciência» ou «libérrima», «decisional» compreende, hoje, uma leitura subjetivista inaceitável. Aquelas normas consagram o critério de valoração da prova em processo penal, que ao invés de ser um critério de prova legal – em que é o legislador a predefinir a admissibilidade, a espécie e o valor das provas –, é um critério de “prova livre”: a apreciação da mesma é, em princípio, deferida ao critério do intérprete e aplicador, de acordo com as regras da experiência comum e a convicção livremente fundamentada daquele. A livre convicção não pode, pois, significar que seja um processo discricionário, arbitrário ou de puro subjetivismo, mas, sim, que o processo de valoração (e de convicção) do julgador tem de ser racionalmente fundamentado e motivado, sem que se atenda a um padrão epistemológico predeterminado pelo legislador, a não ser em casos particulares, como, p. ex., na prova pericial (art. 163.º, n.º 1, do CPP), cujo valor tem um regime específico, presumindo-se-subtraído ao princípio da livre apreciação. Há de ser, todavia, uma convicção ancorada numa motivação racionalmente fundamentada, passível de poder ser escrutinada e objeto de recurso pelos sujeitos processuais afetados pela decisão. E à qual devem estar subjacentes raciocínios de tipo indutivo, que permitam medir o grau de probabilidade de confirmação do enunciado probatório a decidir, designadamente a partir da coincidência de indícios (ou de prova indireta dos factos), da sua corroboração e da não infirmação, da plausibilidade, da credibilidade da prova pessoal produzida, que formem um arco de probabilidade epistemológica conclusiva, de forma processualmente válida, e não uma certeza ontológica. Essa conceção encontra, obviamente, o óbice das proibições de prova (artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º do CPP). Ora, o tribunal a quo não recorreu a qualquer tipo de prova que não fosse permitida, nem a tal se refere o recorrente. O tribunal recorrido atribuiu, corretamente, no acórdão sob escrutínio, credibilidade e coerência, não só ao teor das declarações dos ofendidos e de testemunhas que circunstanciou e justificou – conciliados de forma negativa e positiva com o teor das declarações dos arguidos –, como ao teor de documentos e de relatórios periciais, atribuindo a especial força probatória a estes últimos e deles extraindo, de forma conjugada, a conclusão de os factos integrarem o crime pelo qual o arguido vem condenado. Fê-lo de uma forma objetiva e ponderada, de acordo com um juízo crítico na apreciação das provas produzidas, relativamente ao qual não nos é permitido exercer qualquer censura, por se conter dentro dos critérios e parâmetros de validade e legalidade de apreciação da prova de acordo com as regras da experiência e da sã racionalidade. Como tal, torna-se inviável dar acolhimento à pretensão do recorrente no sentido de os factos provados, qualificados como crime de homicídio agravado pelo uso de arma, deverem ser “convolados” para outro tipo de crime, designadamente o de ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado morte, p.p. nos termos dos artigos 144.º e 147.º, do CP. É por isso que tem de se julgar improcedente o recurso do arguido quanto ao invocado erro no sentido da conclusão sobre a intenção de matar, bem como a vulneração do princípio da livre apreciação da prova. 12. ii) A alteração da medida concreta da pena, aplicável ao crime p.p. nos artigos 144.º e 147.º do CP, para 9 anos de prisão, ou, a manter-se a qualificação do crime como homicídio simples, agravado, para 13 anos de prisão Prosseguindo na análise das questões suscitadas no recurso do arguido AA, deve advertir-se, preambularmente, que a peticionada redução da pena aplicada, de dezasseis (16) para nove (9) anos de prisão se encontra, desde logo, prejudicada pela decisão que antecede, no sentido de não ser viável a “convolação” do crime de homicídio para ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado, p.p. nos termos dos artigos 144.º e 147.º, do CP, uma vez que o limite mínio da pena aplicável ao tipo de crime pelo qual foi condenado se cifra em 10 anos e 8 meses de prisão. Resta, assim, ponderar do acerto e adequação da pena aplicada, de acordo com a qualificação jurídica (corretamente) efetuada pelo tribunal recorrido. Nesta alternativa, o recorrente propugna, conforme resulta da sua motivação, pela aplicação de uma pena não superior a treze (13) anos de prisão. Fundamenta tal pretensão nas «(…) condições pessoais e sociais provadas quanto ao arguido, a imagem de pessoa calma e respeitadora que decorre dos depoimentos das testemunhas seus familiares que na audiência depuseram; do apoio familiar que se mantém, mesmo nesta fase da sua vida; e ainda da sua colaboração com a justiça, como decorre do testemunho do Inspector da PJ ouvido em juízo (…).» O Senhor Procurador-geral-adjunto neste STJ refere, a este propósito, que «(…) em primeiro lugar, a reputação ou imagem «de pessoa calma e respeitadora» não encontra eco na matéria de facto provada. Em segundo lugar, as condições pessoais e o apoio familiar de que o arguido beneficia (tal como a «colaboração com a justiça», que também não consta do leque de factos provados), já foram sopesadas no acórdão recorrido (v. as págs. 71 a 74 do respetivo ficheiro pdf). Em terceiro lugar, à vista de todas as circunstâncias que marcaram o acontecimento, temos por certo que a pena de 16 anos de prisão, numa moldura penal cujos limites mínimo e máximo são de 10 anos e 8 meses de prisão e de 21 anos e 4 meses de prisão, respetivamente, ajusta-se equilibradamente aos critérios, finalidades e princípios que norteiam o julgador nesta matéria, inexistindo, por conseguinte, fundamentos para a sua redução.» O tribunal recorrido, na fundamentação da determinação da medida da pena aplicada ao recorrente – que, por a sua conduta integrar o crime de homicídio (agravado pelo uso de arma branca proibida), p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos. 131.º do Código Penal e 86.º, n.ºs 3 e 4, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. ab), 4.º, n.º 1 e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, fixou em 16 anos de prisão –, expendeu as considerações seguintes: «Arguido AA: • No que se refere grau de ilicitude do facto, modo de execução deste e suas consequências, releva considerar ser o mesmo não despiciendo, na medida em que o arguido fez utilização de uma faca de cozinha de desossar carne, com 20,6 cm de lâmina, objeto que retirou da cozinha de terceiro, transportou até ... e de regresso ao local dos factos, tratando-se de um utensílio que, mesmo no contexto para que foi criado, já envolve riscos não irrelevantes para os utilizadores; até lograr provocar a lesão que veio a causar a morte a CC, o arguido introduziu a lâmina da faca no hemitórax esquerdo deste, na direção do coração, causando-lhe um ferimento corto-perfurante, bem como lhe cortou uma parte da mão esquerda, o que revela um circunstancialismo que não permite concluir senão que, até perder a sua vida, por exsanguinação, CC sentiu dores e perspetivou, necessariamente, que ia morrer, até porque não pode ter deixado de se aperceber de que o sangue que continha no interior do seu corpo se derramava, em grandes quantidades, para o chão do automóvel • No que concerne ao grau de culpa, atuou o arguido com dolo direto, a forma mais gravosa de culpa, implicando um maior juízo ético-social de desvalor; • Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins e os motivos que o determinaram, importa considerar ter o arguido atuado sobre a vítima sem qualquer motivação que o justificasse (o invocado receio de que a sua casa pudesse vir a ser assaltada, determinaria o contacto das autoridades policiais e a solicitação de uma ação de patrulhamento, a título preventivo, no local, não constitui motivo para seviciar fisicamente e, menos ainda, para retirar a vida a alguém), de modo que apenas pode afirmar-se gratuito e vil; • Relativamente à conduta anterior aos factos, temos que o arguido, ao tempo que praticou os factos, registava antecedentes criminais pelo cometimento de 2 crimes de condução sem habilitação legal, 3 crimes de ameaça agravada e 3 crimes de injúria agravada, evidenciando, desse modo, a sua não conformidade ao dever-ser; • No que concerne à conduta posterior aos factos, releva o facto de o arguido ter colaborado com as autoridades policiais e o pedido de desculpas que dirigiu à família de CC, bem como a afirmação de estar ciente de que não devia ter atuado como fez; todavia, não pode deixar de sopesar-lhe que, amiúde, AA revelou que a sua preocupação maior foi o facto de “ter estragado a sua vida”, nunca tendo manifestado registar sofrimento psicológico e auto repúdio por ter ceifado a vida a outra pessoa; • Ademais, não pode olvidar-se que, assumindo as condutas que objetivamente empreendeu, o arguido não assumiu inteiramente a sua responsabilidade, tendo negado a intenção, apurada, de tirar, conforme fez, a vida a CC; • Importa ainda atentar na situação socioeconómica do arguido: o arguido AA nasceu em ... de ... de 1997; os pais separaram-se quando contava apenas cinco anos de idade, tendo o progenitor evidenciado uma postura de desvinculação das suas obrigações parentais; o processo evolutivo de AA decorreu num contexto familiar de origem algo disfuncional, não só pelo distanciamento promovido pelo progenitor, mas também pela ausência de uma vinculação afetiva com a progenitora, tendo os avós maternos preenchido essas lacunas, constituindo-se a maior referência psicoafectiva do arguido; desde cedo, o arguido evidenciou alguma instabilidade emocional, com implicações no seu modo vivencial; o seu rendimento escolar foi reduzido, tendo concluído aos catorze anos o 5.º ano de escolaridade, insucesso que o próprio contextualiza num quadro de dificuldades de aprendizagem; pese embora a sua posterior integração em Programa Integrado de Educação e Formação - PIEF, nas áreas da jardinagem e da cozinha, a desmotivação sentida pelo arguido por essas atividades formativas culminou na desistência, tendo abandonado definitivamente o percurso escolar; como fator de impacto nos comportamentos do arguido, surge o seu envolvimento nos consumos de estupefacientes (haxixe) junto de amigos com hábitos similares, prática que terá tido o seu início por volta dos quinze anos de idade, após o falecimento do avô materno, figura de referência no seu processo evolutivo; segundo o próprio, aos dezoito anos ter-se-á iniciado nos consumos de álcool, que desvaloriza, por considerar como de nulo impacto no seu quotidiano pessoal, social, mas também laboral; a prática aditiva que alega ter descontinuado desde a inserção laboral junto do tio materno apresenta-se desvalorizada pelo arguido como fator de impacto nos seus comportamentos, surgindo alguma reserva quanto à total descontinuidade nos consumos de substâncias psicoativas e desvalorizando qualquer tratamento especializado; à data dos factos integradores do objeto do processo, AA mantinha-se integrado no agregado de origem, coabitando com a mãe, na morada indicada nos autos, habitação de tipologia T3 propriedade da família, com adequadas condições de habitabilidade; sem menção a distúrbios no lar familiar desde o desfecho do processo n.º 372/21.3..., no âmbito do qual foi absolvido, AA descreve um convívio saudável e sereno junto da progenitora, ainda que o seu discurso revele uma atitude crítica quanto à manutenção dos hábitos de consumo de bebidas alcoólicas por parte daquela, embora assinale consumos mais moderados e espaçados no tempo; como fator promotor de maior estabilidade do arguido, surgia a presença de alguns familiares, nomeadamente, o irmão, KK, e o tio materno, LL, que residem, com as respetivas famílias, em habitações integradas na quinta, herança familiar, destacando-se esse tio como sendo a pessoa com maior influência no quotidiano de AA, por também se apresentar como já tendo sido a sua entidade patronal. Apesar dos laços de proximidade existentes entre o arguido e o tio materno, a dinâmica relacional existente entre a mãe e o tio materno será pautada por sentimentos de tensão e mesmo de algum distanciamento desde há anos, por razões ligadas a partilha de bens, na sequência do falecimento da avó materna; embora integrado no agregado materno à data em que foi privado da liberdade, AA refere como projeto futuro a possibilidade de alguma autonomia pessoal, caso venha a ser restaurado espaço anexo à habitação do seu irmão, projeto que conta com o suporte dos familiares; no plano laboral, em momento anterior à data da sujeição à medida de coação de prisão preventiva, AA trabalhou, de forma regular, com o tio materno (trabalhador em nome individual na área das energias renováveis/montagem de painéis solares, canalização e eletricidade), tendo auferido uma remuneração salarial equivalente a um salário mínimo nacional, sendo que parte das receitas auferidas se destinaram ao pagamento, em prestações, de duas penas de multa em que havia sido condenado; AA evidencia fragilidades pessoais condicionantes de um normal relacionamento interpessoal, percecionando-se dificuldades na contenção de sentimentos de zanga e baixa tolerância à frustração em contextos de adversidade à sua pessoa/maior stress emocional, agindo de forma impulsiva e sem qualquer reflexão das implicações dos seus atos, revelando uma forma de pensamento imediatista e sem filtro ao nível consequencial; em ambiente de maior controlo, mormente, em contexto prisional, o arguido AA consegue pautar o quotidiano de acordo com a normas institucionais vigentes, procurando manter-se ocupado, conforme sucedeu no Estabelecimento Prisional de ..., onde chegou a exercer atividade laboral e a frequentar uma ação formativa; a sua transferência para o Estabelecimento Prisional de ..., onde se encontra em regime de segurança máxima, terá tido origem no alegado envolvimento (que o arguido nega) em agressão a outro recluso, não havendo conhecimento do desfecho desse inquérito; no decurso da sua permanência no Estabelecimento Prisional de ..., AA tem evidenciado um comportamento institucional adequado e já solicitou uma ocupação laboral, bem como frequenta o ginásio. Como ambição, refere a possibilidade de regressar a um regime comum, pelas possibilidades laborais inerentes ao mesmo; no plano familiar, após a sujeição à medida coativa de prisão preventiva, destacam-se os familiares, nomeadamente os pais, tio materno e irmão, que lhe têm disponibilizado um apoio consistente, mesmo após a sua transferência para o Estabelecimento Prisional de ..., pese embora esse suporte se apresente como de maior impacto em termos logísticos e económicos, mas de reduzida contenção em termos dos seus comportamentos na esfera social; as principais repercussões da atual situação jurídico-penal do arguido AA direcionam-se à sua pessoa, já que, apesar de, no seu discurso, revelar capacidade de reconhecer a desadequação dos seus comportamentos, sobrevaloriza o impacto sobre o seu quotidiano e projetos futuros, em detrimento das implicações sobre a vítima mortal e demais pessoas lesadas pela sua conduta; • As exigências de prevenção geral são muito elevadas, quer relativamente ao reforço da consciência jurídica comunitária, quer no que respeita ao sentimento de segurança face à violação da norma, sendo malogradamente frequentes – e cada vez mais – nos nossos Tribunais, mormente os da região algarvia, situações em que cidadãos tiram a vida a concidadãos por motivo nenhum que possa ser atendido, mormente, fazendo uso de facas. Sopesados todos os referidos fatores, tendo em conta a moldura penal aplicável ao crime, entende-se como justa, adequada e proporcional à culpa do arguido e às exigências de prevenção, a aplicação, ao arguido AA, da pena de 16 anos de prisão, o que se decide.» Importa relembrar, em primeira linha, que na operação de escrutínio sobre o processo de apreciação da escolha e da determinação da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume essencialmente um carácter de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções, omissões ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis e mobilizadas, por parte da instância recorrida. Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida – designadamente, no caso vertente, a do tribunal de primeira instância –, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos e parâmetros hermenêutico-aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da pena aplicada. Como se assinala no Ac do STJ de 11-02-2015: Proc. 591/12.3GBTMR.E1.S1: «Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste STJ, Proc. n.º 2555/06- 3ª)». O escrutínio da adequação ou correção da determinação da medida concreta da pena em sede de recurso impor-se-á apenas em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) no tocante às operações da sua determinação impostas por lei, como a indicação e consideração dos fatores de medida da pena. Só em tais circunstâncias se justifica que uma intervenção do tribunal de recurso possa alterar a escolha e a determinação da medida concreta da pena. Não é isso que se verifica no caso dos autos. Na operação hermenêutico-aplicativa empreendida pelo tribunal recorrido intercedem considerações conformes aos critérios constitucionais e legais vinculantes, conforme vem enunciado no acórdão sob escrutínio, as quais não se mostram merecedoras de censura. Foram, assim, adequadamente ponderadas as circunstâncias concretas da prática do crime de homicídio (agravado pelo uso de arma branca) – não tendo o recorrente questionado especificamente a qualificação do crime como agravado nos termos do art. 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006 –, que habilitaram o tribunal recorrido a uma correta determinação da escolha e da medida da pena, não se encontrando no acórdão recorrido os défices ou incorreções passíveis de censura e que permitiriam a alteração da pena aplicada a tal crime. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que densifica o programa orientador dos fins das penas adotado pelo legislador, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece, por seu turno, o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Como vem sendo consistentemente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (assim, J.J. Gomes Canotilho - Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra: Coimbra Ed., 2007, notas aos artigos 18.º e 27.º). Para aferir da medida da gravidade da culpa importa, de acordo com o disposto no artigo 71.º, do Código Penal, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização. Como se tem sublinhado, é, pois, na determinação da presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação empreendida pelo agente (o arguido) pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 26-06-2019: Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1; de 09-10-2019: Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1; de 03-11-2021: Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, e de 08-06-2022: Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1). Analisando de perto os pressupostos da factualidade típica relevante, demonstrada os autos, verifica-se inexistirem dúvidas sobre o seu preenchimento através da conduta do arguido-recorrente. Quanto às condições pessoais do arguido e à sua situação atual, regista-se que a atuação do recorrente documentada na prática dos factos apurados encontra alguns antecedentes que permitem identificar uma personalidade nem sempre reconciliada com o Direito. A prevenção geral, como prevenção positiva ou de integração, no respeito e confiança na reposição contrafáctica da vigência da norma violada, é bastante intensa nos crimes de homicídio, que se traduz na violação do bem jurídico fundacional na ordem axiológico-constitucional vigente: a vida humana. O homicídio é a infração que causa maior alarme social, contribuindo, claramente, para aumentar o sentimento geral de insegurança, como tem vindo a referir vasta e consolidada jurisprudência do STJ e dos tribunais superiores. Em tal crime manifesta-se uma personalidade do agente disposta a contrariar o direito e a desprezar a vida e a dignidade humana da vítima. Com algum peso atenuativo, temos de considerar o manifestado arrependimento, embora sempre sem assumir a intenção de tirar a vida ao CC, a sua colaboração com as autoridades – sendo certo que a sua detenção seria inevitável face à exuberância de elementos indiciários da prática do crime –, as condições pessoais do arguido acima descritas e a sua aposta de inserção profissional. Assim sendo e ponderando: - Que o grau de ilicitude é elevado e revela um desvalor da ação acentuado pelo bem jurídico em causa – vida humana – que traduz, como se disse já, o bem jurídico mais valioso na grelha valorativa axiológico-constitucional; - Que é muito elevado o grau de intensidade do dolo, que in casu se trata da forma mais grave do elemento subjetivo da infração, o dolo direto; - Que a culpa do arguido (o desvalor da atitude interior) é acentuada, porquanto o mesmo teve a possibilidade de não proceder como se provou, e de não procurar a vítima para lhe tirar a vida; - Que não demonstrou qualquer propósito reparatório das consequências dos seus factos, nem se provou que tivesse mobilizado socorro das vítimas; - Que relativamente ao nível da prevenção especial, abona em favor do arguido o facto de ter confessado parcialmente os factos de que vinha acusado, sem particular significado probatório; - As suas condições de vida, que revelam inserção social, familiar e profissional; - Que o arguido revela alguma consciência do desvalor da sua conduta; - Que contra o arguido opera o facto de serem prementes as necessidades de reafirmação da norma violada, porquanto são frequentes os episódios de violência disruptiva na região do ..., sendo com crescente frequência cometidos crimes contra a vida humana; - Que, apesar da sua juventude – tinha 25 anos de idade na data da prática dos factos –, sofreu já condenações anteriores. Assim, a individualização da pena far-se-á essencialmente pelo que acima apontámos em função da culpa e da ilicitude, das exigências de prevenção geral e demais circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, impondo-se fixar uma pena justa e adequada à pessoa do arguido, relativamente ao tipo legal de crime posto em crise, pelos factos por este perpetrados e provados nestes autos, tendo presente que nos situamos no quadro normativo de um Direito Penal do Facto e não Direito Penal do Autor. Tudo ponderado, e tendo presente o disposto nos arts. 40.º, 41.º, e 71.º, todos do Código Penal, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto perpetrado, o modo de execução deste e gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo (dolo direto e intenso), a condição pessoal do agente (tendo atualmente 27 anos) a sua situação económica, a conduta anterior e posterior aos factos (confissão parcial dos factos; colaboração com as autoridades) e tendo presente: - Que são por todos reconhecidas as intensas e prementes necessidades de prevenção geral a satisfazer na punição dos crimes de homicídio, mormente de homicídio agravado; - Que a defesa social que o ordenamento jurídico incorpora, exige um combate ativo e proativo ao crime de homicídio, que se projeta no quadro da sua punição; Ponderando o grau de culpa, as necessidades de reprovação, de prevenção geral e especial e de ressocialização e reintegração, situação económico-financeira do arguido e suas condições de vida, por tudo o que fica dito, entendemos, num raciocínio de coerência no quadro de uma moldura legal entre os dez (10) anos e oito (8) meses e os vinte e um (21) anos e quatro (4) meses de prisão, encontrar na medida de dezasseis (16) anos de prisão uma pena ajustada às circunstâncias do facto e da culpa do arguido, afigurando-se-nos adequada e, por isso, não desproporcionada nem injusta. Não se mostrando, assim, que os critérios conformadores da fixação da pena parcelar pelo crime de homicídio agravado, convocados no acórdão recorrido, se revelem desconformes aos princípios e parâmetros constitucionais e legais que devem nortear a determinação da medida pena, concretamente o disposto nos artigos 40.º, 41.º, 70.º e 71.º do Código Penal, não se justifica dirigir-lhe qualquer censura. Uma pena inferior não daria satisfação às exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, nem respeitaria o princípio da coerência e tendencial igualdade na aplicação das penas. Em consequência, não pode proceder a fundamentação do recurso do arguido no sentido da redução da pena aplicada pelo crime de homicídio (agravado pela utilização de arma branca). III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes Conselheiros desta Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, em manter integralmente o acórdão recorrido. Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC – artigos 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, e Tabela III anexa. * Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, data e assinaturas supra certificadas Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator (art. 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos. Os juízes Conselheiros Jorge dos Reis Bravo (relator) Luís Teixeira (1.º adjunto) Celso Manata (2.º adjunto) |