Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1450/18.1T8AMD-E.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
CONVENÇÃO DE HAIA
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
RESIDÊNCIA HABITUAL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO DE GUARDA DE MENORES
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ÓNUS DA PROVA
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Tendo o menor sido deslocado de Portugal para outro Estado-Membro da UE, e tendo adquirido residência habitual neste país, cabia à recorrente progenitora, ante a decisão que aplicou à criança uma medida de promoção e protecção de acolhimento institucional, provar que tal deslocação não violou o direito de guarda, por ter sido anterior à mencionada decisão; cabia igualmente à recorrente demonstrar que a criança residia nesse Estado-Membro há, pelo menos, um ano após a data em que o tribunal tomou conhecimento do paradeiro da criança, encontrando-se esta integrada no seu novo ambiente, assim como a prova da verificação de qualquer uma das condições previstas na al. b) do art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003.

II. Não tendo a recorrente logrado cumprir o ónus da prova que lhe incumbia, não se poderá concluir, à luz do art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, que a competência para apreciar o presente processo de promoção e protecção se haja transferido para os tribunais da nova residência habitual da criança pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar as questões suscitadas no âmbito do presente processo judicial de promoção e protecção, enquanto tribunais do Estado onde o menor residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

1. O Ministério Público intentou processo de promoção e protecção em benefício de AA (nascido em ...-...-2013), BB (nascido em ...-...-2014) e CC (nascido em ...-...-2018).

2. Em 01-04-2019 realizou-se uma conferência na qual participaram os progenitores das crianças, no âmbito da qual foi celebrado acordo de promoção e protecção nos seguintes termos (Refª .......81):

“1 – Os menores ficam sujeitados à Medida de Promoção e Proteção de Apoio Junto dos pais, com apoio da avó materna, pelo período de 12 meses, competindo o acompanhamento executivo dessa medida à ECJ da ... do CDSSL, que enviará relatório social de acompanhamento no prazo de cinco meses, a fim de o mesmo instruir a legal revisão semestral da medida acordada.

2 – Os pais comprometem-se a:

a) Colaboração com a equipa técnica que acompanha a situação, revelando disponibilidade para todas as acções no âmbito do acompanhamento psicossocial e melhor exercício das funções parentais, aceitando as recomendações e orientações dos respectivos técnicos;

b) Assegurar os cuidados básicos aos jovens - alimentação, higiene, apresentação, conforto e segurança – fundamentalmente ao nível dos cuidados afectivos e do respeito pelos seus bem-estar físico e psicológico;

c) Assegurar o acompanhamento médico de rotina aos menores e a actualização dos planos de vacinação.

d) Assegurar a frequência escolar dos menores de forma assídua e pontual, comprometendo-se na valorização da sua actividade escolar e participando nas solicitações dirigidas à família;

e) Proibição de expor os menores a situações de violência física e verbal;

f) Qualquer situação geradora de conflito ou de incumprimento do acordo deverá ser comunicada, de imediato, a este Tribunal ou à EMAT (...).”.

Tal acordo foi homologado por sentença proferida na mesma ocasião.

3. A medida supramencionada foi revista e renovada por decisões de 19-02-2020 (refª .......35), 03-09-2020 (refª ......98), 17-05-2021 (refª .......94).

4. Em 28-11-2022, após reavaliação da situação das crianças (vd. relatórios da EMAT com as refªs ......01 de 15-07-2022 e ......96, de 20-07-2022), realizou-se nova conferência, no decurso da qual foi obtido o seguinte acordo de promoção e protecção:

“A) Aos menores AA, BB e CC é aplicada a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe, nos termos dos art.ºs 35º, nº1 alínea a) e 39º da LPCJP nos seguintes termos:

Os progenitores dos menores comprometem-se:

1. Prestar aos menores os cuidados básicos de habitação, alimentação, higiene, vestuário e saúde, fundamentalmente ao nível dos cuidados afetivos e do respeito pelos seus bem-estar físico e psicológico;

2. Assegurar a comparência dos menores em equipamento de ensino com assiduidade, pontualidade, aproveitamento e bom comportamento;

3. Assegurar o acompanhamento médico de rotina e todas as consultas de especialidade do menor AA junto do Hospital Pediátrico da Universidade ..., onde é seguido ou nas deslocações que tenham que ser asseveradas ao Hospital de Dia –Gástrico-pediátrico de ... em articulação com o primeiro, e realização de todos os exames médicos e analises clinicas a que o menor haja de ser submetido;

4. Assegurar a toma da medicação prescrita ao AA bem como de todos os suplementos vitamínicos nomeadamente a vitamina K;

5. Assegurar a sujeição do AA aos tratamentos dentários, necessários à remoção das múltiplas cáries que ostenta;

6. Caso o menor AA seja acompanhado em médicos privados, de estomatologia ou outra especialidade, deverá haver partilha de informação clínica, nomeadamente de exames realizados ou medicação prescrita ao Hospital Pediátrico da Universidade ...;

7. Diligenciar pelo encaminhamento em meio escolar para avaliação do menor BB a fim de verificar se o mesmo carecerá de apoio de educação especial e de terapia da fala;

8. Aceitar a intervenção dos serviços Técnicos, comparecendo sempre que convocados e permitindo a realização de visitas domiciliárias, bem como seguir as orientações dadas pelos mesmos;

B) A medida aplicada terá a duração de (6) seis meses;

C) O acompanhamento da execução da medida será levado a cabo pela EMAT de ..., nos termos do artº 59º, nº 3 da LPCJP, devendo enviar relatório no prazo de três meses com vista a ulterior revisão da medida.”.

Nesta ocasião os progenitores já haviam cessado a coabitação.

5. Subsequentemente, ocorreram vicissitudes relacionadas com o acompanhamento médico do AA em consulta de especialidade (hepatologia) e divergência dos progenitores quanto à terapêutica, medicamentos, e meios complementares de diagnóstico prescritos ao AA pela médica especialista, Sr.ª Dr.ª DD (cfr. comunicações com as refªs ......58, de 29-12-2022; ......14, de 06-02-2023; ......70, de 13-02-2023, ......13, de 27-02-2023; ......52, de 27-02-2023; despacho com a refª .......64, de 28-02-2023, comunicações com as refªs ......97, ......02, ......53 e ......80, todos de 03-03-2023, promoção com a refª .......56, de 06-03-2023; despacho com a refª .......99, de 07-03-2023; requerimento com as refª ......36, de 07-03-2023; comunicações com as refªs ......99 de 14-03-2023; Informações da EMAT com as refªs ......54 e ......23, ambas de 21-03-2023; comunicações com a refª ......55, de 24-03-2023; ......41, de 27-03-2023 (este último com especial relevância, na medida em que, no mesmo, a Sr.ª Dr.ª DD comunica que, em virtude da falta de confiança demonstrada pela progenitora e da circunstância de o AA não seguir a terapêutica prescrita, pede dispensa do acompanhamento médico da criança, sugerindo que o mesmo seja acompanhado por médicos da sua área de residência, “que poderão articular-se com o médico escolhido pela família”; declarações prestadas em 21-06-2023 (refª m.......67) e em 26-06-2023 (refª .......28); comunicações com as refªs ......11, de 26-06-2023; ......61 e ......69, ambas de 27-06-2023; ......75 e ......01, ambas de 30-06-2023).

Estas vicissitudes culminaram com a decisão, manifestada pelos progenitores, e na sequência de parecer médico subscrito pelo Sr. Dr. EE (cfr. igualmente refªs ......30/......62, de 12-03-2024, e docs. anexos ao requerimento com a refª ......50/ ......82, de 24-11-2023), de levarem o AA para o estrangeiro, a fim de realizarem um tratamento com células estaminais, o que os progenitores comunicaram à Sr.ª Dra. DD, informando igualmente o Tribunal (vd. refªs ......69/......68, de 26-06-2023, e ......31 e ......45, de 03-07-2023), tendo o Tribunal ficado ciente de tal facto (vd. despacho com a refª .......98, de 04-07-2023, onde se menciona conhecimento de uma deslocação do AA à Suíça).

6. Em 26-04-2023 os progenitores apresentaram o requerimento com a refª ......93, requerendo a cessação da medida de apoio junto dos pais aplicada às crianças AA e BB.

Subsequentemente, foram tomadas declarações aos progenitores, à técnica da EMAT que acompanha a execução da medida e ao Sr. Dr. EE, tudo com vista à revisão da medida de promoção e protecção – vd. refªs.......25, de 16-10-2023.

Em 20-10-2023 o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

- “se diligencie pela manutenção do menino AA na mesma escola que se encontra a frequentar no momento, para manter uma relação próxima com o seu irmão BB e amigos e minimizar o impacto da medida supra promovida.”.

7. Em 24-10-2023 foi proferido despacho no qual foram reapreciadas as medidas de promoção e protecção nos seguintes termos:

Os pais dos menores faltaram, pela 2.ª vez, à perícia marcada no INML.

Solicite marcação de nova data para realização das perícias aos progenitores. Uma vez fornecidas, conclua.

Da revisão das medidas de promoção e proteção aplicadas aos menores AA, BB e CC:

Com base na colheita de declarações dos progenitores, médicos, documentos clínicos juntos aos autos, informações escolares, relatórios da EMAT e declarações das Técnicas desta entidade, garantem-me os autos a seguinte factualidade:

1-Os presentes autos tiveram início em 2018, no Tribunal da ..., na sequência de os progenitores não terem assinado acordo de promoção e proteção junto da CPCJ por falta de colaboração com esta entidade.

2-Os menores AA, nascido a ........2013, BB, nascido a ........2017 e CC, nascido a ........2018, são filhos de FF e GG.

3-A sinalização à CPCJ foi efetuada pelas autoridades da ... (N....... ...... ... ...... .... .....) quando os menores e a sua mãe, regressaram para Portugal, estando lá sinalizados por negligência nos cuidados de saúde a asseverar aos menores AA e BB, com índice de cáries significativas para o AA e também para o BB, por a criança AA estar a faltar a consultas de especialidade fulcrais à estabilização do seu estado de saúde, não ter assiduidade na escola e não a estar a frequentar desde fevereiro de 2018 (sendo a sinalização efetuada de 20.07.2018).

4-A mãe não demonstrou capacidade de priorizar as necessidades de saúde dos filhos, em especial do AA. Aquando da sinalização das crianças à Segurança Social da ..., constatou-se que as mesmas abandonaram a residência onde moravam com os pais e voltaram com a mãe para Portugal, tendo sido dados como desaparecidos e com pedido de localização. Apesar de contatos telefónicos efetuados, a mãe dos menores, alegadamente, recusou-se a prestar informação sobre o seu local de residência em Portugal. Os Serviços Sociais Norte-Irlandeses comunicaram à CPCJ da ... que havia referência a várias deslocações da família entre Portugal e a ... e várias mudanças de habitação enquanto permaneceram na ..., aduzindo que as visitas domiciliárias seriam um dado importante para se avaliar a estabilidade habitacional das crianças.

5-A mãe alegou à CPCJ que se sentia “perseguida” pelo Hospital Professor ..., onde a criança AA tinha sido acompanhada. A mãe referiu que tanto este Hospital como o Hospital ..., onde a criança tinha sido acompanhada, quebraram a confiança na relação médico-paciente. A família aparentemente confiava na Equipa do Hospital de ..., onde a criança já tinha sido observada num episódio de urgência. Relativamente à frequência do AA em equipamento escolar, a mãe referiu que a criança “não gostava da professora” e que esta agrediu, física e gravemente, a criança.

6-O pai tinha informado que a mãe dos menores havia regressado a Portugal com as crianças devido ao seu descontentamento perante os serviços sociais norte-irlandeses.

7-O AA, fruto da doença rara e grave, de origem genética, de que padece - colestase intrahepática progressiva associada a defeito genético no gene ABCB4, e hipertensão portal, identificada em 2014, pós diagnóstico de trombocitopenia (após recurso a serviço de urgência por queda), após tentativas de orientação diagnóstica e terapêutica recusadas no Hospital ... e Hospital .... A mãe refuta a origem genética da doença, atribuindo-a à toma, em meio hospitalar, após o nascimento do AA, da vacina da Hepatite B.

8-Nessa senda, os pais optaram por não administrar qualquer outra vacina ao AA. Os menores BB e CC não têm qualquer vacina, igualmente, por opção dos pais.

9-O menor AA carece de acompanhamento médico regular, que passa, inclusive, por realização de análises sanguíneas e outros exames médicos e pelo cumprimento escrupuloso da terapêutica medicamentosa implementada.

10-Os pais têm-se demitido de asseverar os mais elementares cuidados de saúde e de educação (no que tange ao desenvolvimento cognitivo e de competências escolares) ao AA e de educação e desenvolvimento cognitivo (no que tange ao desenvolvimento cognitivo e de competências escolares) ao BB.

11-Os pais estão, atualmente, separados, e o pai assume uma postura demissionária nas decisões fulcrais acerca da educação e saúde dos filhos, delegando, in totum, tais funções na mãe, em quem confia plenamente.

12-Já em 2016, quando correu processo na CPCJ da ..., a mãe das crianças referiu sentir-se pressionada quer pela sua família, quer pela família do seu companheiro, entrando estas em sucessivas “guerras de razão”, o que levou os pais a viajarem para a Irlanda. A avó paterna aparentava exercer uma forte influência nas decisões a serem tomadas a nível da saúde do neto AA. Contudo, em 2018, a mãe aparentava assumir um maior poder nas decisões a tomar e relacionadas com os filhos, adotando o pai uma postura mais passiva.

13-A mãe tem sido irregular em assegurar a comparecência do AA nas consultas médicas junto do Centro Universitário Hospitalar de ... –Unidade de Hepatologia Pediátrica onde foi, até junho último, seguido pela Médica Hepatologista Pediátrica, Dr.ª DD e, mais recentemente, no Hospital de ... para onde foi encaminhado, com a cadência temporal que se impõe, sendo a criança doente de risco que, a seu tempo, terá indicação para transplante hepático.

14-Em caso de estabilidade do doente, as consultas deveriam ter uma periodicidade semestral, impondo-se realização de consultas intermitentes em caso de descompensação.

15-A mãe justifica as faltas dadas às consultas com base em doenças que acometem o agregado familiar e, por vezes, solicita remarcações, sendo certo que, entre setembro de 2021 e 12 de setembro de 2022, o AA esteve um ano sem comparecer nas consultas junto do C.H.... e fazer exames ou análises naquela Unidade Hospitalar.

16-No C.H...., foi implementada terapêutica medicamentosa e administração de vitamina K ao AA (sob a denominação de “K.......”, só passível de levantamento na farmácia hospitalar), sendo que nem sempre a mãe levantava a prescrição na farmácia hospitalar.

17-Entre 09 de setembro de 2021 e 12 de setembro de 2022, o menor AA, tendo faltado às consultas no C.H...., não teve disponível para toma o K........

18-O AA, por decisão da mãe, sustentada pelo pai, e sob aconselhamento e indicação do Dr. EE, clínico de medicina geral e familiar que segue o AA, em clínica privada, deixou de tomar a medicação instituída pela Dr.ª DD, hepatologista pediátrica do C.H.... –os medicamentos ursofalk e rifaximina) e viu substituída a administração do K....... por um outro complexo de vitamina K (o Complete K, cuja natureza a Dr.ª DD desconhece, advogando que o kanakion MM*, fitomenadionamicelar é a única formulação recomendada e disponível para suporte do défice de vitamina K associado às doenças colestáticas.

19-Em janeiro de 2023 o AA faltou a uma avaliação em cardiologia.

20-Ouvido o clínico Dr. EE, em diligência judicial, o mesmo referiu que o AA deixou de tomar o K....... desde a 2.ª toma, por se ter sentido mal, sem que, porém, tenha sido comunicado à Dr.ª DD que deixou de fazer o mesmo, apesar de, em algumas ocasiões, e para despiste de que o tomaria, a mãe fazia o seu levantamento na farmácia hospitalar.

21-Paralelamente, o AA, à revelia do seguimento pela Dr.ª DD, foi medicado pelo Dr. EE, com silimarina e NAC, sendo que este clínico descreveu este o NAC como aminoácido hépato-protetor, sem que esta substituição medicamentosa tivesse sido comunicada à Dr.ª DD.

22-O AA deixou de tomar a rifaximina, sendo que, de acordo com a Dr.ª DD, tal antibiótico, bem tolerado, é usado para baixar a amónia, quando persistentemente elevada, prevenindo episódios de encefalopatia hepática, que pode originar coma e, fatalmente, a morte.

23-A não administração da medicação ao AA, conforme traçada pela Dr.ª DD era do desconhecimento da clínica, que de tal teve conhecimento, em junho último, após diligência realizada em 21.06.2022, no Tribunal.

23-A encefalopatia hepática tem como sinais de alerta, sintomas como sonolência excessiva, sobretudo diurna, irritabilidade e alterações no comportamento, despertares noturnos, podendo desembocar em coma hepático.

24-A intoxicação cerebral por amónia nas crianças tem efeito na aprendizagem e nas atividades diárias.

25-O menor, no final do ano letivo transato, adormeceu duas vezes em contexto de sala de aulas. Na diligência judicial ocorrida a 21.06.2023, a mãe e o Dr. EE ressalvaram que o menor chegou a ter valores de amónia perto dos 300, quando o máximo admissível seriam os 150, o que levou a que a Dr.ª DD, após ter tido conhecimento dessa situação, tenha devolvido à mãe, que, no dia seguinte, deveria ir com o AA ao Hospital de ..., a fim de aferir os valores da amónia.

26-Em caso de doença hepática descompensada e amónia superior a 150, as análises devem ser repetidas em serviço de urgência e se se confirmar o valor da amónia, o doente tem que ser internado para ajuste terapêutico e vigilância.

27-A mãe compareceu com o AA no dia 22.06.2023 no Hospital de ... e aduziu como justificação que o filho estava bem e já não se encontrava em jejum, pelo que não poderia fazer a análise, se comprometeu a comparecer no dia seguinte para que o menor fizesse aas análises em jejum.

28-Na sequência de a médica ter reiterado a necessidade de realização de tal análise, a avó materna foi com o AA ao Hospital de ... no dia 23.06.2023 –a amónia estava já estabilizada, e foi devolvido àquela familiar que administrasse à criança a terapêutica da manhã, que a avó alegou desconhecer.

29-Foi a avó e não a mãe quem acompanhou o AA aos exames realizados no dia 28.06.2023 no C.H...., apesar de a mãe se ter deslocado a ..., de carro, para levar a avó até ao Hospital, em cuja consulta a avó referiu que o menor estava bem e que cumpre a medicação.

30-Em julho de 2023, a mãe deslocou-se com o AA à ... para, segundo ela, fazer um tratamento inovador à base de células estaminais, sobre o qual não informou a Dr.ª DD, ponderando riscos/benefícios, sendo que, solicitado que fizesse chegar aos autos informação clínica sobre esse tratamento, apenas procedeu à junção de um certificado, em inglês, com valores, não havendo qualquer conclusão clínica e documentalmente comprovada sobre eventual seguimento/continuidade do tratamento na ... e tampouco que a mãe e o pai, a quem o ónus competia, devolvesse esses resultados/tratamentos à equipa médica hepatologista que acompanha a criança.

31-O AA faltou à consulta agendada para 27.07.2023, estando há quatro meses sem acompanhamento médico especializado –quer em ..., quer junto do Hospital de .... Desconhece-se se faz, presentemente, medicação para a sua condição clínica, sendo que em junho passado já não a fazia nos termos prescritos pela Dr.ª DD, apenas tomando o Complete K e a medicação supra referenciada, prescrita pelo Dr. EE. Desconhece-se, igualmente, se os valores da amónia se encontram estabilizados.

32-Não obstante a Dr.ª DD ter encetado diligências no sentido de deixar de acompanhar clinicamente o AA e ter encaminhado o seu processo clínico para o Hospital de ..., hospital da área de residência da criança, este último, na informação remetida ao Tribunal, no decurso deste mês de outubro, referiu que: “salienta-se gravidade do quadro clínico e a necessidade de seguimento regular no Centro de Transplantação Pediátrico de ..., associado a incumprimento no plano de seguimento e de terapêutica por parte desta família.”

33-Foi ponderado pela EMAT a administração da medicação ao AA diariamente por uma equipa de enfermagem, e a mãe chegou a ser confrontada com essa viabilidade em diligência judicial, não tendo manifestado abertura para que tal assim decorresse, alegando que teria que ser falado com o pai, porque não decide as coisas sozinha, o que é contrário à postura que vem sendo assumida por ambos os progenitores, de delegação total da mãe das decisões a tomar relativamente às crianças.

34-O menor AA continua com cáries profundas por tratar, situação que se arrasta de há anos, atualmente persistente sob a égide de recusa de anestesia local ou eventual tratamento, em bloco operatório, a todas as cáries, com recurso a anestesia geral. Os pais refutam o tratamento, temendo uma hemorragia da criança.

35-A médica dentista do AA aguardava orientação da Dr.ª DD ou do Dr. EE sobre a anestesia mais adequada ao contexto clínico da criança. A EMAT solicitou informação à Dr.ª DD, a qual, prestada, foi reencaminhada para a Dr.ª HH, médica dentista do AA, a qual entendeu que a criança deveria ser encaminhada para o meio hospitalar onde deverá dar continuidade aos tratamentos e que os pais já declinaram efetuar em meio hospitalar.

36-A EMAT solicitou orientações à Dr.ª DD relativamente aos tratamentos dentários, tendo a mesma referido que a criança “pode usar anestesia local sim, mas não sei se a criança vai colaborar no procedimento. O problema maior será hemorragia eventual porque tem coagulação alterada e habitualmente a família recusa a fitomenadiona intravenosa que deve ser administrada nestas situações. (…) Aliás esteve marcado neste hospital para ir ao Bloco fazer os tratamentos e garantir medicação de suporte e vigilância adequadas, mas faltaram. (…) Caso entenda que ele necessita de anestesia geral e ambiente hospitalar deve ser contactada a pediatria do Hospital de ... / C.H.U... onde ele passou a ser seguido em primeira linha”

37-Os menores AA e BB, em março de 2023, deixaram de frequentar o ensino público na sua área de residência, onde tinham terapia da fala e apoios educativos especiais e passaram a frequentar o Colégio ..., na ..., onde deixaram de ter asseverados tais apoios.

38-A mãe alegou para o facto, que os filhos AA e BB eram vítima de agressões na escola por uma criança, facto que não é corroborado pela escola, aduzindo que os menores estavam bem integrados. O Agrupamento ... deu conta de irregularidades ao nível da assiduidade e pontualidade, interferindo no benefício de alguns apoios, o que a mãe negou, alegando que todas as faltas dos filhos se encontram devidamente justificadas por motivos de doença.

39-AA e BB têm graves dificuldades de aprendizagem, não encontrando apoios educativos especiais nem terapia da fala nesta última escola frequentada.

40-A comunidade escolar verbaliza que o menor AA, este ano, ao contrário do ano letivo transato, está bem integrado inter pares, parece um menino diferente, estando até com ar muito mais saudável, revelando energia e muita vontade em aprender, aduzindo a professora que “o tratamento que realizou este verão ajudou-o muito”.

41-O BB está, igualmente, bem integrado, mostrando interesse e empenho e realizando as atividades escolares com gosto e dedicação.

42-Ambos os irmãos têm sido pontuais e têm-se apresentado bem arranjados e cuidados.

43-O CC integrou a S..... a 10.05.2021 na resposta social do pré-escolar -3 anos, com adaptação muito difícil, demonstrando dificuldade na desvinculação com a mãe/avó no acolhimento e em respeitar as regras da sala visto que a criança esteve num ambiente restrito e protegido pela família.

44-Desde a sua integração tem sido assíduo, mas pouco pontual, mas a encarregada de educação avisa sempre quando a criança chega mais tarde à instituição.

45-O CC é muito bem cuidado ao nível da higiene e vestuário e, no dia a dia, mantém um relacionamento saudável com os pares e adultos da sala. Tem desenvolvimento adequado à sua idade, é uma criança educada, meiguinha e bastante feliz. A Encarregada de Educação mostrou-se sempre preocupada com o seu educando.

46-A EMAT indicou o Espaço Pessoa para terapia da fala dos menores. Estando marcada consulta para dia 05.09.2023, as crianças faltaram e foi o pai, quem posteriormente, indagou por nova marcação para 15.09.2023, à qual os menores AA e BB compareceram.

47-O Espaço Pessoa apenas consegue assegurar a terapia da fala no contexto das suas instalações e não com deslocações à Escola, o que foi devolvido ao pai, que não o partilhou com a mãe. A mãe, quando soube da situação, ficou bastante aborrecida, pediu os relatórios e informou que o acompanhamento dos meninos não seria no Espaço Pessoa.

48-Estão em curso diligências encetadas pela EMAT com o CAIDI –Centro de Apoio e Intervenção no Desenvolvimento Infantil, no sentido de aferir se haverá possibilidade de assegurar o seguimento das crianças em terapia da fala, condicionados a um processo de recrutamento de Terapeutas dessa instituição, que se encontra em curso.

49-O AA apresentou discurso menos lentificado, mas pobre, com respostas a questões simples (aferido em contexto médico na última consulta de 28.6.23 com a Dr.ª DD), salientando-se dificuldades escolares e cognitivas.

50-A mãe não autorizou a partilha das avaliações em terapia da fala feita pelo Espaço Pessoa com a EMAT, assim como os pais não permitiram a realização de perícias psicológicas aos menores a fim de se aferir da dinâmica familiar pais versus crianças e a vinculação emocional que cada uma das crianças tem com os pais, o modo como o AA vivencia a sua doença e a forma como é vivenciada pelo irmão BB e impacto que a mesma tem nas dinâmicas do agregado familiar.

51-Os pais concordaram em sujeitar-se a perícias psicológicas, a que, depois de devidamente notificados, faltaram.

52-Marcadas novas datas, os pais voltaram a faltar à segunda perícia agendada para o dia 23 de outubro de 2023.

53-A tia dos menores, II, assim como os demais elementos da família delegam em FF a tomada de decisões e entendem que a criança AA estar hoje viva é um milagre, atribuído à mãe, que tudo tem feito pelo seu bem-estar. Denote-se que, num e-mail redigido por II, à Técnica da EMAT gestora do processo, a 30.06.2023, a mesma aduz, entre o mais, que; “O que a FF pretende é que este percurso de estabilidade e melhorias se mantenha por vários anos, para que o filho também possa decidir, uma vez que se tratar da vida dele. A verdade é que já passaram mais anos do que os que lhe faltam para a idade adulta. Há que ter esperança e o que tenho assistido é a um discurso fatalista por parte dos médicos e se a FF discorda está a por em risco a vida do filho e é de imediato ameaçada com o Tribunal de Menores. Para concluir, tenho a convicção que a FF tem cuidado do filho de um modo responsável, consciente dos prós e contras das decisões que é obrigada a tomar e que não o faz de ânimo leve.”

54-O pai, demitindo-se da tomada de decisões, sufraga e ratifica as decisões tomadas pela mãe e que não primam de forma prudente e zelosa pelo asseverar dos seus cuidados de saúde.

55-O pai, presentemente, vive com a avó paterna e não reúne condições logísticas para o garante de pernoitas nos convívios com os menores, além de que o pai confia plenamente em todas as decisões tomadas pela mãe, sem ponderação de outras alternativas, não sendo, igualmente, zeloso na prestação de cuidados de saúde ao menor AA, em adequação à sua situação clínica.

56-Recentemente a EMAT tentou efetuar visita domiciliária à residência onde os menores habitam, que se revelou infrutífera, pois estando pessoas em casa, os estores da varanda foram fechados, não tendo havido colaboração a tanto.

57-A mãe dos menores não atende os telefonemas da EMAT nem retribui os mesmos.

58-Os pais faltaram à conferência em Tribunal do dia 16 de outubro, em que estava prevista a audição do menor AA. Nada comunicaram ao tempo da diligência e, posteriormente, a mãe veio juntar atestado médico emitido pelo Dr. EE, por doença da criança por um período de cinco dias desde o passado dia 12 de outubro (dia em que foi comunicado pela Escola que o menor estava com febre). O pai não justificou a falta a juízo.

59-Nessa diligência, não obstante o teor do relatório de 13.10.2023, em que era propugnada a manutenção, para o AA, da medida de promoção e proteção em curso, de apoio junto dos pais, a Técnica da EMAT, reconhecendo:

-o incumprimento da mãe no plano das consultas agendadas;

-a não administração da medicação à revelia e sem o conhecimento da Dr.ª DD, o facto de ter tentado fazer visita domiciliária, que foi obstaculizada, porque estando pessoas em casa, os estores da varanda foram fechados;

-o facto de a mãe presentemente não atender os telefonemas à EMAT e não os retribuir, não partilhar os relatórios de avaliação da terapia da fala;

-o facto de a mãe, à semelhança da não colaboração com a EMAT, Hospital e Tribunal da partilha da informação, não colaboraria com um CAFAP e, não aceitaria a administração da medicação por uma equipa de enfermagem, podendo até levar medicação que não seria a prescrita;

-o facto de a médica do Hospital de ..., Dr.ª JJ ter tido que estava chocada com a situação do AA - que não se trata apenas de aferir os valores de amónia, e ter dito que está tudo grave e mal com o AA, não é só a amónia, é tudo!, tendo, inclusive, a veia porta de entrada para o fígado sob pressão, que causa a morte lenta deste órgão;

-o facto de os menores estarem sem terapia da fala e apoios educativos especiais, quando têm graves dificuldades de aprendizagem;

-a irregularidade do acompanhamento psicológico do AA e do BB (que sofre com a situação clínica do irmão e com as maiores ausências da mãe);

-concluiu que o único fator de proteção em manter a medida de promoção e proteção de apoio junto da mãe seria o vínculo emocional e que o acolhimento residencial se assume como alternativa única a assegurar todos os cuidados necessários de saúde ao AA com vista à sua compensação clínica e seria sempre “um mal menor.”;

60-A Dr.ª DD, na consulta de 28.06.2023, assinala dificuldades escolares e cognitivas do AA, sendo preciso trabalhar, do ponto de vista psicológico, com regularidade, a individualidade do AA e o seu posicionamento face aos pares –a sua “diferença”, pois que tem uma alimentação diferente, não pode jogar à bola e acaba por ter vida muito condicionada fruto das consultas e exames a que se tem que submeter.

61-Neste conspecto, foi proposta, pois, pela Segurança Social, medida, de acolhimento residencial ao menor AA e manutenção das medidas de promoção e proteção de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe, quanto aos menores CC e BB, por quanto a estes dois últimos ainda ser viável a execução da medida na comunidade.

62-A mãe dos menores está desempregada e vive do auxílio económico da família.

Do Direito:

Em diligência judicial, a Segurança Social, ponderando os fatores acima elencados, reconheceu que o único fator protetor relativamente ao AA, na manutenção da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, atenta a sua especial condição clínica, é o vínculo afetivo, sendo que o menor em muito beneficiaria em termos de saúde não só física como mental, como ao nível da aquisição de competências cognitivas (a desenvolver com terapia da fala), com o acolhimento residencial.

O Ministério Público pugnou pela manutenção das medidas de promoção e proteção de apoio junto dos pais quanto aos menores BB e CC e que se altere a medida de promoção e proteção aplicada ao AA para acolhimento residencial.

**

O menor CC está bem integrado sócio –escolarmente e não tem problemas de saúde, comparecendo na escola higienizado e limpo, sendo criança meiguinha, feliz e bem-comportada. Apesar de assíduo é pouco pontual, havendo que efetuar este controlo a nível da pontualidade.

Importando avaliar a condição dentária do BB que, por ora, se desconhece, presentemente, as necessidades do menor BB, prendem-se com a aquisição de competências cognitivas –apoios educativos especiais e terapia da fala, bem como acompanhamento psicológico, que se impõe regular.

Apesar de apresentar necessidades muito significativas e graves ao nível da terapia da fala, entendemos que ainda é possível a manutenção da medida em meio natural de vida, estando a EMAT a diligenciar com uma instituição a possibilidade de aferição de terapeuta para o efeito a breve prazo, que, a não ser conseguido, deverá ser articulado com uma outra entidade.

Assim, atento o disposto nos artigos 35.º, n.º 1, alínea a), 39.º e 62.º, n.º s 1 e 3, alínea c), todos da Lei n.º 147/99, de 01 de setembro, decide-se manter a execução da medida de apoio junto dos pais, por 6 (seis) meses, que foi aplicada em benefício dos menores BB e CC, sensibilizando-se os pais para a necessidade de o apoio educativo especial e da terapia da fala ser asseverado, com premência, ao primeiro.

Oportunamente, em sede de conferência de pais, será equacionado o compromisso a nível de clausulado, em acordo de promoção e proteção, que abarque acompanhamento psicológico para o menor BB, se necessário, com atribuição de apoio económico.

***

Quanto ao menor AA:

A mãe não tem insight ou juízo crítico sobre a sua conduta que, sob a capa de uma aparente proteção do menor AA, que tudo faz para lhe garantir cuidados de saúde, tem feito perigar, negligentemente, de forma grave pela sua saúde e vida, encontrando-se a situação clínica desta criança descompensada, com a veia da porta para a entrada do fígado sob pressão, causando “morte lenta” a este órgão e, inerentemente, provocando uma morte lenta da criança.

Desde 28.06.2023 que a mãe não mais compareceu em meio hospitalar da especialidade. Faltou à consulta agendada em hospital no dia 27.07.2023. Desconhece-se o seu estado de saúde atual, mormente, os valores da amónia.

Apesar de a Escola frequentada pelo AA ter comunicado que o AA parece um menino diferente, estando até com ar muito mais saudável, revelando energia e muita vontade em aprender, aduzindo a professora que “o tratamento que realizou este verão ajudou-o muito”, com o devido respeito que nos merece, a Senhora Professora, não é clínica e, apesar de o menor poder aparentar boa disposição, não poderemos daí tirar a ilação de que a sua situação de saúde esteja controlada.

A mãe incumpre o plano de consultas, de terapêutica instituída, e os pais desvalorizam este acompanhamento médico bem como as flagrantes necessidades de o menor ser acompanhado em terapia da fala, ter apoio educativo especial, e apoio psicológico com regularidade, pois que o mesmo, apenas se tem verificado de forma pontual (não obstante o mesmo não estar previsto como condicionalismo do acordo de promoção e proteção vigente).

Destaque-se que a “diferença” do AA relativamente aos outros meninos –os cuidados especiais com a alimentação, não poder comer determinados alimentos, não poder jogar à bola, ter uma vida mais condicionada pelas consultas e tratamentos a que se submete e medicação que toma, não está a ser individualmente trabalhado com a criança, desconhecendo-se o impacto que tal poderá estar a assumir na construção e desenvolvimento da sua personalidade.

A mãe não permite a partilha com a EMAT e com o Tribunal dos relatórios de avaliação em terapia da fala; os pais faltaram por duas vezes às perícias psicológicas, não autorizam perícias aos menores, impossibilitando o conhecimento da dinâmica relacional do agregado familiar e tipo de vinculação que cada criança tem face a cada um dos progenitores.

Os pais faltaram à conferência em Tribunal, não justificaram a sua não comparência, a mãe apenas o fez a posteriori para a falta do AA, juntando documento clínico em como está doente por período previsível de cinco dias (sendo que já o conhecia em data anterior e concomitante à diligência e não avisou da impossibilidade de comparecer nessa data).

A mãe não atende nem retribui os telefonemas feitos pela EMAT. No dia da visita domiciliária à casa da mãe, estando pessoas em casa, os estores da varanda foram fechados, e não houve colaboração, impedindo-se aquela diligência.

Desde 2019 que pende, em sede judicial de promoção e proteção, medida de apoio aos menores junto dos pais, sendo que, presentemente, o incumprimento sistemático por parte dos pais no que tange à terapêutica do AA, ao plano de consultas, toda a resistência e desconfiança relativamente à equipa médica do referenciado Centro de Transplante Hepático Pediátrico, da Universidade ..., e incompatibilização com profissionais das demais entidades hospitalares onde o menor foi seguido, designadamente, Hospital ... e ..., colocando-se em crise toda a terapêutica e acompanhamento clínico de especialidade e de renome efetuado, colocam o menor em perigo de vida, com proclamar de uma sentença de “morte lenta” desta criança e que jamais o Estado, no seu poder protetivo, poderá permitir.

Mesmo após ser confrontada com a génese genética da doença, com os resultados dos exames genéticos, a mãe põe em causa tal origem, atribuindo-a à vacina da hepatite B, que foi administrada ao menor após nascimento, ainda em meio hospitalar, refutando a verdade genética.

Ao nível da dentição, é, por demais, consabido que cáries não tratadas têm consequências nefastas para qualquer cidadão ao nível de vários órgãos do corpo humano, podendo acarretar, inclusive, problemas ao nível cardíaco, ao nível do sistema digestivo, entre outros, para além de gerarem infeções dentárias e poderem acarretar a perda irreversível da estrutura dentária, problemas que assumem maior dimensão quando confrontados com uma criança com a condição clínica do AA.

A médica dentista do AA entendeu que o tratamento tem de ser efetuado em meio hospitalar, algo que os pais já declinaram no passado, temendo hemorragia do filho e recusando a medicação administrada nesses casos, para o efeito. Portanto, afigura-se que o menino, neste cenário, se mantenha com cáries por tratar, com o agudizar da sua saúde oral.

Foram dadas inúmeras oportunidades aos pais, de há 4 anos a esta parte, de provarem que seriam capazes, por si, de garantirem, de forma zelosa, responsável e briosa, os cuidados de saúde que o AA precisa.

Além de faltas às consultas, o menor não toma a medicação prescrita, tomando, em substituição uma outra prescrita por médico não hepatologista, à revelia deste último. O menor tem doença grave e rara, atualmente em quadro grave de descompensação clínica, potenciadora da sua “morte lenta”.

Tem dificuldades graves escolares e neurocognitivas, discurso pobre. Está sem terapia da fala e apoios educativos porque a Escola não o assegura.

Os pais foram já acompanhados pela congénere da Segurança Social da ... e a mãe fugiu com as crianças para Portugal, alegando sentir-se “descontente” com aquela entidade. Não colaborou com a CPCJ e recusou, na altura, permitir a realização de visitas domiciliárias, daí o processo ter sido remetido para Tribunal.

A mãe está desempregada, vive dos auxílios da família e antevê-se perigo de fuga, à semelhança do verificado aquando da residência na ... (com várias mudanças de habitação enquanto ali permaneceram), tendo acabado por fugir com as crianças para Portugal para se subtrair à ação da Congénere da Segurança Social Norte-Irlandesa.

Por outra banda, presentemente inexistem alternativa em meio natural de vida para asseverar os cuidados de saúde ao AA, por outro elemento da família - no passado, a mãe aduziu sentir-se pressionada por elementos da família, travando-se de “guerras de razão”, que não é o que se pretende, neste momento, para a criança, uma cisão familiar. Além do mais existiria sempre sério risco de ingerência da mãe do menor nas tomadas de decisões relativamente à saúde do AA, assumindo-se a mãe como o principal, senão o único elemento decisor em tais questões.

Restará dizer que o pai reside com a avó paterna, não reúne sequer condições logísticas para o garante de pernoitas nos convívios com os menores, além de que o pai confia plenamente em todas as decisões tomadas pela mãe, sem questionar ou ponderar outras alternativas, pelo que muito facilmente a mãe se travaria de razões com a avó paterna ou o pai e continuaria a ser a responsável pela assunção das tomadas de decisões inerentes aos filhos.

Por outra banda, a tia II secunda todas as decisões tomadas pela mãe em benefício do AA e que esta faz tudo para lhe garantir os melhores cuidados de saúde, não percecionando a gravidade da situação em que fazem incorrer o AA ao privá-lo da medicação e do acompanhamento médico regular, bem como ao comprometerem, com gravidade, a aquisição de competências cognitivas e escolares desta criança.

Os pais do menor faltaram, por duas vezes, à perícia psicológica marcada.

Os pais não autorizam perícias aos menores para se percecionar a dinâmica familiar e o tipo de vínculo emocional que cada uma das crianças tem com os pais, não colaboram com a EMAT nem com o Tribunal e não partilham os relatórios avaliativos da terapia da fala do AA e do BB.

Neste conspecto, revelando-se os pais incapazes de assegurar cabalmente os cuidados de saúde e terapêutica medicamentosa, a que têm exposto o filho e que tem conduzido à morte lenta do fígado e, à morte lenta da criança, resultado do incumprimento presente das consultas agendadas em meio da especialidade (estando sem acompanhamento ao nível da especialidade há quatro meses), ausência de tratamento de cáries dentárias profundas, incumprimento da terapêutica instituída com substituição por outra (por clínico de medicina geral e familiar), à revelia da médica da especialidade que o segue, não se olvidando, ainda, as severas dificuldades de aprendizagem do AA, com a inerente falta de apoios educativos especiais (por a escola em que está inserido não os assegurar), falta de regularidade no acompanhamento psicológico (quando, pela “diferença” no modo de vida desta criança tal seria tão fulcral para garantir a construção harmoniosa da sua personalidade) e a ausência da tão necessária terapia da fala, dadas as dificuldades neurocognitivas apresentadas, levam o Tribunal a concluir estar o menor AA com um quadro de saúde deveras fragilizado e descompensado, que acarreta grave perigo à sua saúde e vida, bem como grave perigo quanto à aquisição de competência sociais e cognitivas, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 1 e 2, als. c) e f) e 5.º, al. c) da LPCJP.

Inexistem, pois, alternativas em meio natural de vida para promover a manutenção do menor, junto de família alargada, pois que esta sufraga as decisões tomadas pela mãe, no asseverar dos cuidados de saúde ao menor, posição assumida pelo pai e por uma tia, além de que a avó materna, que, por vezes acompanha o AA em consultas, ora alega também ela desconhecer que medicação toma a criança (na deslocação ao Hospital de ... em 23.06.2023) ora refere que a criança está bem e “toma a medicação” –vide informação clínica referente à consulta de 28.06.2023.

Posto isto, e não obstante o acolhimento residencial ser uma medida a aplicar em “ultima ratio”, atendendo a tudo o acima exposto, somos de concordar com a Segurança Social e com o Ministério Público de que a única medida de promoção e proteção, presentemente, adequada e proporcional, a preservar a integridade física, a saúde física e mental e a vida do menor AA, em nome do seu superior interesse, é a de acolhimento residencial.

Assim, nos termos dos artigos 3.º, n.º s 1 e 2, als. c) e f), 4.º, al. a), 5.º, al. c) 35.º, n.º 1, al. f), 37.º, n.º 1, 49.º, 92.º, n.º 1, decide-se aplicar, a título cautelar e pelo período de 6 (seis) meses a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial.

São autorizadas visitas dos pais ao menor, inicialmente, supervisionadas, em contexto residencial, em dias e horário a acordar pela Casa de Acolhimento com os pais.

No âmbito da execução da medida, deverá ser assegurado pela C.A. apoio psicológico ao menor e terapia da fala, bem como os necessários apoios educativos especiais de que o menor careça.

Quanto à manutenção da frequência escolar do menor no Colégio ..., conforme promovida pelo M.P., a mesma só será de manter, se no superior interesse do menor, tal for viável, salientando-se que a escola, sendo privada terá que ser paga pelos progenitores, para além de que importará asseverar a terapia da fala e do apoio educativo especial, que a escola não assegura, pelo que, nessa senda, a CA deverá efetuar a gestão, a esse nível, mais adequada aos interesses do AA.

Por via expedita e com nota de muito urgente, oficie ao Núcleo de Gestão de Vagas da Santa Casa da Misericórdia de ..., a fim de ser indicada Casa de Acolhimento onde o menor possa ser acolhido.

Comunique, de imediato, e com nota de muito urgente, à EMAT.

Uma vez obtida a indicação de vaga em Casa de Acolhimento Residencial em que o menor vier a ser acolhido, emitam-se os respetivos mandados de condução do menor.

A decisão, acompanhada da douta promoção do Ministério Público, e do relatório da EMAT de 13.10.2023 e do relatório clínico do Hospital de ..., deverá ser notificada aos progenitores, pessoalmente, aquando da execução da medida, pelo OPC competente, em articulação com a EMAT, com possibilidade de a execução da presente decisão, ser efetuada em contexto escolar, de forma discreta, preservando a intimidade e reserva da vida privada da criança.

Concretizada que seja a execução da medida provisória, solicite ao C.D.O.A. a indicação de Patrono a ser nomeado ao menor AA.

Para tomada de declarações aos pais, ao menor AA, à EMAT e Técnicos da CA, notificando-se, igualmente, o I. Patrono que vier a ser nomeado ao menor AA, com vista à obtenção de acordo de promoção e proteção e eventual alteração dos condicionalismos do acordo de promoção e proteção do menor BB, que preveja apoio psicológico para este, se necessário com recurso à atribuição de apoio económico, designo o dia 7 de dezembro de 2023 às 09h30m.

*

Convoque a I. Psicóloga que presta assessoria técnica junto do Juízo de Família e Menores de ..., a fim de preparar e assistir, tecnicamente, a audição da criança.

*

Após execução da medida, remeta ao INML, para consideração, nas perícias a realizar aos progenitores, de cópia da ata de 16.10.2023 e do presente despacho.

*

Autorizo a EMAT a realizar entrevista ao menor BB, em contexto escolar e visita domiciliária ao agregado materno.

*

Por não se afigurar impertinente nem dilatória, autorizo a realização de perícia psicológica ao menor AA, com o objeto constante dos quesitos enunciados pela EMAT no seu relatório de 17.03.2023, excetuado o constante do ponto 4 (que se reportaria ao menor BB).

Instrua o pedido junto do INML, remetendo certidão de todo processado, incluindo da CPCJ e quesitos que deverão pautar a perícia.

*

Autorizo a realização de perícia clínica ao menino AA (para aferir da evolução da sua situação clínica, qual o impacto na doença que o tratamento realizado na ... tem/teve atenta a condição clínica do menor, tratamento a seguir e as consequências para a saúde da criança que resultaram da omissão da terapêutica prescrita e do não tratamento atempado das cáries dentárias.

*

Notifique o Espaço Pessoa para partilhar com a EMAT os relatórios atinentes à avaliação em terapia da fala dos menores AA e BB, no prazo máximo de 10 dias.”.

8. Inconformada com esta decisão, em 31-12-2023, a progenitora interpôs recurso (refª ......11), que veio a ser julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 21-03-2024 (refª ......23, apenso B).

9. Entretanto, e na sequência da decisão proferida em 24-10-2023, foram emitidos mandados de retirada e condução, para execução do determinado naquela decisão, sendo os mesmos remetidos às autoridades policiais para cumprimento, e à equipa de assessoria do Tribunal, para acompanhamento (cfr. refªs .......43; .......38, .......90, .......27, e .......42, todos de 26-10-2023).

Em 30-10-2023 e 31-10-2023, a PSP e a GNR informaram não ter logrado cumprir aqueles mandados (refª ......26, ......47, e ......81).

10. Em 17-11-2023, o Gabinete SIRENE remeteu ao Tribunal a informação constante da comunicação com a refª ......29, com o seguinte teor:

“CC 0013.02000000581540100000001.01 - 10884/2023/WP/32 AA 0013.02000000581540000000001.01 - 10883/2023/WP/32 BB 0013.02000000581540200000001.01 - 10885/2023/WP/32

Na sequência do pedido formulado através do ofício em referência, informa-se V/ Exª que os menores em epígrafe foram localizados e retidos em 17/11/2023 pelas autoridades ...s na sequência de um controlo documental.

Neste sentido, solicitam-nos as referidas autoridades informação sobre se a autoridade nacional responsável pelos menores, pretende a sua colocação em segurança e retirada aos pais para o seu eventual repatriamento ou se os menores podem seguir viagem com os pais conforme informação que passo a transmitir na íntegra:

"Our police officers of Police Station ... made a field check, and found at the apartment in ..., ... 37, three missing minors: CC, dob. 17/03/2018, BB, dob. 15/07/2014, and AA, dob. 23/06/2013.

They were accompanied with their parents FF, dob. 17/03/1989, and GG, dob. 04/01/1995 (your alert for art. 34 - PT0000005815405000001).

FF stated to our police officers that they have problem with their doctor in Portugal, because he does not agree with them concerning medical treatment for one of the children who have medical problems with his liver.

They want to go to the Republic of Serbia for further medical treatment of the sick child, and doctor probably reported them to the Portuguese authorities.”.

11. Também em 17-11-2023 o Ministério Público apresentou a promoção com a refª .......20, com o seguinte teor:

“Compulsados os autos, constata-se que, por despacho proferido a 24 de Outubro de 2023, foi determinada:

- relativamente ao menino AA - a aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a título cautelar, pelo período de 6 (seis) meses;

- relativamente aos meninos BB e CC – a manutenção da medida de apoio junto dos pais, por 6 (seis) meses, sensibilizando-se os pais para a necessidade de o apoio educativo especial e da terapia da fala ser asseverado, com premência, ao primeiro.

Posteriormente, os presentes autos tomaram conhecimento de que a avó materna das crianças informou a escola frequentada pelas mesmas que: “a minha filha, FF, mãe e encarregada de educação dos alunos AA e BB, 4° B, viu-se forçada a ir residir no estrangeiro com o seu agregado familiar, por se sentir coagida a aceitar a imposição de actos médicos sobre o seu filho AA e a si própria.”

Tendo em consideração que resulta dos autos que o menino AA, antes de sair de Portugal, se encontrava diagnosticado com doença grave e com elevados indicadores de perigo que determinaram a aplicação da medida de acolhimento em Portugal e que não foram juntos relatórios clínicos que refiram uma alteração positiva da sua situação de saúde, não pode o processo deixar de considerar a possibilidade de continuarem a verificar-se os sinais de elevado perigo que foram detectados em Portugal.

Tendo em consideração que, segundo o ofício remetido pelo Gabinete Sirene, as referidas crianças foram localizadas na ..., juntamente com os seus pais, alegadamente encontrando-se em trânsito para a República da ..., há que admitir que a situação tenha sido agravada pela não prestação dos cuidados de natureza médica que lhe foram recomendados.

De igual forma, desconhece-se qual a actual situação vivencial de todas as crianças supra referidas e quais os restantes factores de perigo a que actualmente se encontram sujeitas actualmente.

Pelo exposto e atenta a urgência na garantia da segurança às mencionadas crianças, promove-se:

- se solicite, às Autoridades competentes na ... que apure, de imediato, a actual situação vivencial das crianças identificadas nos autos, apurando a morada dos seus progenitores e informando os presentes autos;

- remetendo cópia dos elementos clínicos constantes dos autos, se solicite, às Autoridades competentes na ..., a imediata colocação em segurança do menino AA, garantindo que o mesmo é imediatamente examinado clinicamente no que respeita à sua actual situação de saúde;

- se solicite às Autoridades médicas do país onde se encontra a criança que, no caso de se encontrar doente, se pronunciem sobre se deverá ser assistido medicamente nesse país ou se terá benefício em ser tratado em Portugal, nos termos médicos cá prescritos, caso em que se solicita o seu regresso a Portugal, de forma segura e adequada ao seu superior interesse;

- se solicite à EMAT que apure se, aquando da sua chegada a Portugal, é possível a imediata condução do menino AA à Unidade de Internamento Pediátrico da Especialidade relativa à doença de que padece, a fim de a referida criança poder ser imediatamente examinada para se apurar quais as necessidades de tratamento verificadas e qual a melhor resposta de acolhimento face ao seu estado actual;

- se notifique a mãe das crianças identificadas nos autos (via e-mail) para, em prazo a determinar, juntar cópia de todos os relatórios dos exames e consultas (com menção aos tratamentos) realizados ao menino AA pelos médicos que alegadamente o assistiram.”.

12. Na sequência, foi proferido o despacho com a refª .......32, de 17-11-2023, com o seguinte teor:

“Comunique, com cópia do expediente remetido pelo SIRENE e do presente, à DGRSP, com nota de muito urgente, considerando que foram já acionadas diligências com vista à ativação da Convenção de Haia, de 1996 –menores localizados na ....

Informe o SIRENE, remetendo certidão da decisão proferida nos autos, que determinou a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial da criança, com a retirada aos progenitores e que o que se pretende é o seu cumprimento, com a colocação apenas do menor AA em segurança (recomendando-se, se necessário, exame médico a fim de aferir o seu estado de saúde, atendendo à doença grave de que padece) e que se diligencie pela sua condução para o território português, em execução da referida medida.

Caso os pais do menor livremente pretendam acompanhar o menor AA a Portugal para cumprimento da aplicada medida de promoção e proteção, a criança não deverá ser retirada, devendo, porém, as autoridades assegurar que o menor dá entrada em voo com destino a Portugal, acompanhado pelos progenitores.

O SIRENE deverá, ainda, colher, atual morada dos pais, em Portugal ou no estrangeiro, designadamente, na ... ou na ... ou noutro país.

Caso seja essa a opção dos progenitores, o SIRENE deve desde já informar este Tribunal e ainda a Equipa da Emergência da EMAT e o Núcleo de Gestão de Vagas da SCML (ao qual deve ser remetido o número de telefone de emergência) e ser articulado para que, à chegada a Portugal, possa o menor ser de imediato, com auxílio da força policial competente, conduzido a Casa de Acolhimento, preferencialmente, e estando a vaga indicada já cativa à CAR indicada nos autos –Casa de Acolhimento ....

O SIRENE deverá informar a data e voo em que o menor será conduzido a território português a fim de ser informado, junto tais elementos, de imediato, a EMAT e o NGV da SCML.

Notifique o presente despacho à EMAT e, com cópia da informação que originou este despacho, remetido pelo SIRENE, e solicite à EMAT e Equipa de Emergência do NGV da SCML, a necessidade de se dirigir a Aeroporto português a fim de acompanhar o menor AA à chegada ao território português.

Dê conhecimento à Equipa de Gestão de Vagas da SCML e à CAR ... (esta via telefone) a fim de informar se têm a vaga cativa para o AA nos termos anteriormente solicitados - em alternativa, ao acolhimento de emergência, no imediato, decretado.

Manter-se-á a conferência de pais para o dia 7 de dezembro de 2023, para a qual deverão ser todos os sujeitos processuais intervenientes notificados.”.

13. Em 24-11-2023 a progenitora apresentou o requerimento com a refª ......50/......82, no qual requereu a revogação imediata da medida de promoção e protecção.

14. Na sequência, em 19-12-2023 foi proferido despacho com a refª .......88, que tem o seguinte teor:

“Requerimento da progenitora, entrado em juízo a 24.11.2023:

Da não numeração dos autos de suporte físico e do processamento eletrónico dos autos:

Nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, a tramitação dos autos é desenvolvida eletronicamente e só constarão do suporte físico requerimentos e documentação, bem como atas de declarações pertinentes ao sustentáculo de decisão de mérito, pelo que, nesta sede, nada há a determinar.

Quanto à identificação dos documentos/requerimentos deverão ser mencionados e identificados pela data de entrada em juízo e número de referência CITIUS.

*

A informação sobre o NUIPC que terá emergido da extração de certidão remetida por este Tribunal ao DIAP deverá ser obtida junto deste, conquanto que é alheio a este Juízo de Família e Menores de ....

*

Para conhecimento à Equipa Médica Especialista em Hepatologia Pediátrica que acompanha o AA remeta cópia do requerimento da progenitora, de 24.11.2023, com remessa dos documentos clínicos que o suportam, enviando o mesmo requerimento e documentação à EMAT ....

*

Veio a progenitora do menor AA requerer a revogação da medida de promoção e proteção, provisoriamente decretada, com os seguintes fundamentos:

- O Dr. EE atesta os efeitos positivos do tratamento junto da S.... ......, que não deve ser interrompido, e que tem a próxima fase prevista para janeiro;

-O AA é monitorizado por equipas médicas em Portugal e no estrangeiro e submetido a análises e exames para aferir do seu estado de saúde.

-Alega que a medida de promoção e proteção já cessou porque não houve qualquer prorrogação;

- A escolha do médico deve ser livre e um direito que assiste a cada indivíduo, assim como, logicamente, o direito a segunda opinião.

-O AA tem tido acompanhamento médico especializado, dispendioso.

Requer, pois, a imediata revogação da medida de coação.

O Ministério Público pronunciou-se a 15.12.2023, conforme consta dos autos.

Apreciando e decidindo:

*

Da alegada caducidade da medida de promoção e proteção, por inexistência de prorrogação da medida:

Por acordo de promoção e proteção de 28.11.2022 foi celebrado junto do Juízo de Família e Menores, acordo de promoção e proteção, em substituição do anteriormente outorgado no Juízo de Família e Menores da ..., de apoio junto dos pais, a executar na pessoa da mãe, em benefício dos menores AA, BB e CC, pelo período de seis meses.

A revisão, a ocorrer findos seis meses, em 28.05.2023, veio a ocorrer em novembro de 2023, não com a decisão de prorrogação da medida, mas com a sua substituição, depois de tomadas declarações aos progenitores e colhidos elementos clínicos do AA e escolares, bem como da avaliação em terapia da fala.

Impunha-se, igualmente, a audição do menor AA e dos pais, designadamente, para aferir das condições do tratamento que havia a criança sido submetida em julho último na ..., que não foi possível levar a cabo, porque não só o menor (por motivo de doença) como também os pais, faltaram à referida diligência, tendo, entretanto, abandonado o país, na companhia dos outros dois menores BB e CC.

Denote-se que a revisão da medida de promoção e proteção além de um período de seis meses não fará, por si só, caducar a medida, pois que aquele prazo se tem por meramente ordenador e não perentório, não fazendo sentido que uma medida caducasse quando uma criança se encontre ainda sujeita a perigo –veja-se a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.09.2022, Relator Vítor Amaral, publicado em www.dgsi.pt, quando reza, a propósito da duração das medidas cautelares, assim: Não sendo a celeridade um valor absoluto, em termos de se superiorizar ao interesse da criança ou do jovem – a que está funcionalizada –, pode, excecionalmente, em casos devidamente justificados, a mediada provisória ser prorrogada pelo tempo mínimo que se mostre indispensável. Não pode o tribunal, na impossibilidade prática de observância desse prazo, atentas as vicissitudes probatórias e circunstanciais do caso, tomar uma posição que tenha como resultado a exposição da criança ou do jovem ao perigo que se pretende evitar.

Assim, porque subsistindo perigo para a integridade física e vida do menor AA, e bem assim perigo ao livre desenvolvimento da sua personalidade e formação escolar, enunciados no despacho de 24.10.2023, a medida foi neste revista, não pela sua prorrogação, mas com a sua substituição, a título cautelar e por um período de 6 meses, pela medida de acolhimento residencial.

Pelo exposto, é de concluir que a medida de promoção e proteção aplicada ao menor não cessou, por caducidade.

*

Entre o mais, foi junto um documento médico pelo Dr. EE, datado de 16.11.2023, onde se lê que: “surgiram melhoria clínicas óbvias no seu estado de saúde e no seu comportamento, nomeadamente:

- aumento da energia geral com menos sonolência que anteriormente surgia após as refeições; tolerância ao jejum (melhoria da neoglicogénese hepática), maior resistência ao esforço físico, em caso de ferimento, paragem rápida de sangramento mesmo sem cuidados imediatos, raramente tem epistaxis (sangramento do nariz), e melhor rendimento escolar, estado que se mantém atualmente (depreendendo, nós do escrito, à data 16.11.2023, quando foi assinado o relatório médico), sendo certo que, quanto ao rendimento escolar, não compreendemos como tal possa ser atestado a essa data, uma vez que o menino AA se encontra em absentismo escolar desde o passado dia 13 de outubro (tendo sido o dia 12 de outubro o último dia em que esteve na escola), não havendo notícias de que a família se tenha implementado com cariz de permanência noutro país, onde esteja a estudar.

Por outro lado, não são juntas quaisquer análises clínicas que possam ser analisadas pela Equipa Médica Hepatologista Pediátrica que acompanha o AA em Portugal –junto do C.H....

Mais se aduz, no requerimento que o menor é seguida por uma Equipa de Médicos em ... e no estrangeiro.

Quanto à Equipa de Médicos em Portugal, a única em Portugal que é do conhecimento dos autos e que seguiu o AA, ultimamente, e na atualidade, é a da Dr.ª DD, Médica Hepatologista do Centro Hospitalar Universitário ... e a Equipa do Hospital de ....

Se outra equipa em Portugal assiste o AA, tal não foi dado a conhecer ao Tribunal pelos progenitores (salvaguardado o acompanhamento clínico em medicina geral e familiar pelo Dr. EE).

Assiste razão à progenitora quando diz que tem o direito a pedir mais do que uma opinião médica ou a procurar formas de tratamento alternativas ou complementares.

Tanto assim é que, ainda que à revelia e sem o conhecimento que se imporia dar à Equipa Médica do C.H...., que seguia o AA, sobre o tratamento à base de células estaminais (que a Dr.ª DD alegou desconhecer, a mãe foi livremente à ..., com o conhecimento e sem qualquer oposição por parte deste Tribunal a fazer o tratamento.

Todavia, após tal regresso, não informou, como fora notificada para o fazer, de qualquer relatório acerca desse tratamento, se o mesmo continuaria ou não, em que moldes, se estava a ser articulado com a Equipa de Hepatologia Pediátrica do Centro Hospitalar Universitário ..., tendo abandonado, em absoluto, o tratamento e o acompanhamento médico especializado por aquela entidade hospitalar, crucial à estabilidade e preservação do fígado (não obstante os incomensuráveis danos já provocados ao longo de anos, por insuficiente seguimento e administração da medicação) bem como o acompanhamento clínico pela equipa pediátrica de especialidade nacionalmente referenciada para o seu acompanhamento, colocando em perigo a sua integridade física e vida.

Cabe aos pais, no exercício das responsabilidades parentais, priorizar e salvaguardar as necessidades dos filhos sendo aqueles, entre o mais, o garante e quem tem o poder de vigilância no que à saúde concerne.

“De acordo com a maioria da Doutrina Portuguesa, pela qual demonstramos todo o nosso apoio, de que o exercício das Responsabilidades Parentais deve sempre ser exercido no melhor interesse do menor. Os progenitores a partir do momento em que deixam de priorizar o interesse dos filhos devem perder a legitimidade para atuarem em seu nome. Dado que, os representantes devem atuar no interesse e de acordo com a perspetiva do representado e nunca em função da sua perspetiva pessoal. Devendo o Tribunal fazer substituir-se aos pais, concentrando em si o Poder Parental e tomando as decisões necessárias à salvaguarda da vida do menor.

Reflexo desta opção é o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 8/91, de 1992, aquando do pedido de orientação efetuado pelo Diretor Clínico do Hospital Distrital de Guimarães sobre qual a conduta a adotar nos casos de “recusa dos pais em internarem os filhos menores no Hospital, quando o seu estado de saúde é grave ou então ao pedido de alta quando ainda não curados”. As conclusões retiradas pelo Conselho Consultivo vão no sentido de dar sempre prevalência à proteção do bem jurídico - vida - do menor, afirmando que, “a funcionalização do poder paternal permite compreender que o seu exercício seja controlado e defendido contra os próprios progenitores, através da possibilidade de inibição do poder paternal, e ainda que, quando a segurança, a saúde,(...) de um menor se encontre em perigo e não seja caso de inibição do exercício do poder paternal, pode o tribunal decretar as providências adequadas, designadamente impondo aos pais o dever de submissão às diretrizes (...) médicas de estabelecimento (...) de saúde”. Não deve assim a posição adotada pelos progenitores, ao recusarem os tratamentos médicos, ser atendida, dado que colide com o que seria expectável no atinente às responsabilidades parentais já que sobre aqueles recai um dever de garante. Acresce o facto de os pais não serem “donos” dos filhos, pelo que não lhes pode ser dada a possibilidade de, nestes casos, decidirem pelo menor, acrescendo ainda o facto de esta manifestação de vontade por parte dos representantes legais implicar um atentado ao melhor interesse do menor.

Nesta linha de raciocínio, é possível concluir que as convicções e crenças dos progenitores, jamais devem e podem prevalecer em detrimento do direito à vida do menor. Devendo o poder parental ser restringido sempre que se verifique que os progenitores não estão a cumprir os deveres-poderes dos quais foram incumbidos, dado que, “a tutela da saúde e da vida do menor ainda tem mais valor do que o exercício do poder parental, de tal modo que aquele valor prevalecerá sempre sobre o papel dos pais” – Inês Isabel Andrade Marcelo, in “(I)Licitude da recusa de tratamento médico a filho menor, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola de Lisboa, Mestrado em Direito Forense -06 de março de 2022.

A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina (“Convenção de Oviedo”), estabelece a obrigação de proteção do ser humano na sua dignidade e na sua identidade e a garantia, a toda a pessoa, sem discriminação, do respeito pela sua integridade e pelos seus direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina (cfr. Art. 1.º), impondo-se que qualquer intervenção no domínio da saúde dependa do consentimento livre e esclarecido da pessoa em causa (v.g. Art. 5.º), sendo que, no caso de menor, a sua vontade deve ser tomada em consideração como fator determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade (Cfr. Art. 6.º).

Todavia, os menores carecem capacidade para o exercício de direitos (cfr. Art. 123.º do C.C.), a qual é suprida pelo exercício do poder paternal (cfr. Art. 124.º do C.C.), aplicável no que concerne ao suprimento do consentimento para a prática de atos médicos (no caso de menores de 16 anos de idade).

Inexiste valor algum ou crenças dos pais, refutando tratamentos cientificamente validados, sem prejuízo do direito que lhes assiste a procurarem tratamentos médicos alternativos e complementares, que justifiquem a não administração do menor da terapêutica medicamentosa e do acompanhamento médico por equipa hepatologista, o que se tem traduzido na exposição do menor AA a perigo à sua integridade física e vida, carecendo o mesmo de tomar medicação crucial à estabilização do fígado e, por conseguinte, vital à sua integridade física e vida.

Não há valor mais alto do que a preservação da vida humana.

A indisponibilidade do direito à vida parece indiscutível (vide: Germano Marques da Silva in “Direito Penal Português – Parte Geral II Teoria do Crime”, 1998, pág. 128) –vide, igualmente, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.09.2021, publicado em www.dgsi.pt.

O não acompanhamento médico por equipa hepatologista pediátrica, a não articulação com o tratamento feito pela equipa da S.... ...... e o abandono da medicação que confeririam estabilidade ao menor, continuam a sujeitar o menor ao perigo à sua integridade física e vida, pelo que, mantendo-se inalterados os pressupostos de facto e de direito, que estiveram subjacentes à aplicação da medida de promoção e proteção, a título cautelar, de acolhimento residencial, em benefício do menor AA, constantes do despacho de 24.10.2023, que aqui damos por integralmente reproduzido, mantenho a mesma, nos seus exatos termos, não se olvidando, ainda, que o menor, tendo necessidades educativas especiais, com prementes necessidades de apoio ao estudo e severas necessidades de terapia da fala, foi arredado da socialização com os pares e da escola, estando em absentismo escolar, com graves consequências ao desenvolvimento da sua personalidade e percurso educativo, razão pela qual se indefere a revogação da medida de promoção e proteção decretada.

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Da promoção do Ministério Público de 15.12.2023:

A Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo aplica-se a crianças e jovens em território nacional –artigo 2.º da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro.

Da consulta dos autos claramente se constata que o menor já foi à Suíça fazer um tratamento, tendo regressado a Portugal e está a fazer um tratamento faseado em Belgrado.

Não decorre dos autos que os menores e os seus pais tenham mudado a residência habitual daqueles para qualquer outro País, que ali estejam a trabalhar e que os menores ali estejam a estudar.

Assim sendo, o Tribunal Português continua a ser internacionalmente competente para a tramitação dos autos, nada havendo a determinar quanto à alegada incompetência internacional aduzida pelo M.P, indeferindo-se o promovido nessa parte, conquanto que em momento algum os progenitores informaram que se encontram a residir, com cariz de permanência quer na ..., quer na ...;

Quanto à perícia solicitada foi já determinada pelo Tribunal no despacho de 24.11.2023, sendo que a mesma só será passível de concretizar, com a presença do menor, o que se mostra inviável, atento o facto de o AA não se encontrar em território nacional.

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Ofício da DGRSP que antecede:

Informe que o menor está em Belgrado, ..., a fazer tratamento, na clínica S.... ......, pelo que deverá, igualmente, ser oficiada a congénere ... para execução da medida de promoção e proteção aplicada ao menor, devendo ser tida em linha de consideração que o menor deverá ser observado medicamente aquando da sua localização, para aferência do seu estado de saúde físico.

Notifique e comunique à EMAT, com remessa do presente e da promoção do M.P. de 15.12.2023.”.

14. Inconformado com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso, que veio a ser julgado improcedente por acórdão proferido em 21-03-2024 (refª .......88, apenso C).

15. Em 15-02-2024 a progenitora apresentou o requerimento com a refª ......12/......55, com o seguinte teor:

1. “A Requerente e os filhos saíram de Portugal em 21.10.2023, estando na ..., como o tribunal sabe, pela informação que obteve junta das autoridades do referido país.

1. O AA tem tido acompanhamento médico na ..., estando tudo a ser preparado para a segunda fase da terapia celular – cfr. docs. 1 e 2, referentes à segunda fase da terapia.

2. No dia 06.02.2024 realizou análises sanguíneas – cfr. doc. 3 – e no dia 07.02.2024 realizou ecografia abdominal – cfr. doc. 4, que é o respetivo relatório.

3. Pese embora o acompanhamento de médicos ...s, o AA continua a ser acompanhado pelo Dr. EE e pela equipa da S.... ........

(…)”.

Juntamente com tal requerimento, a progenitora apresentou um documento emitido pela S.... ......, datado de 15-02-2024, documentando tratamento que estaria a ser ministrado ao AA na sua clínica em ..., ....

16. Em 16-02-2024, o Ministério dos Negócios Estrangeiros enviou ao Tribunal uma mensagem de correio eletrónico (refª ......36), comunicando o seguinte:

“Exma. Senhora Dra. Juiz (…),

Na sequência da nossa conversa telefónica, informo que estes Serviços foram contactados pela Secção Consular da Embaixada de Portugal na ... para dar conta da situação em que encontram três menores, AA, nascido em ... de ... de 2013, BB, nascido em ... de ... de 2014 e CC, nascido em ... de ... de 2018, encontrados na fronteira de ... com os pais: a mãe, FF, nascida a ........1989 e o pai GG, nascido em ... de ... de 1995.

O controlo de fronteira apurou que os menores BB e CC eram procurados no SIS II com a medida “Pessoa vulnerável em perigo (menor) – Art. 32º . parágrafo 1, ponto c ou d do Regulamento da UE, 2018/1862.

O país que emitiu o aviso: Portugal.

As crianças foram colocadas no Centro de Prestação de Serviços da Comunidade de ..., ..., acompanhadas por uma funcionária do Escritório Regional ..., ..., KK.

Contactos LL, 098/.72-..67.

Antes de serem internadas nesta instituição, as crianças foram examinadas no Hospital Geral de ..., na Secção de pediatria. Pelos achados e pela conversa com a mãe, apurou-se que o filho mais velho, AA, está doente, com diagnóstico de Colestase Intra-hepática Progressiva. Pode-se verificar que ele foi examinado em ... no dia 7 de fevereiro, onde foi realizada uma ultrassonografia do abdômen, e os achados afirmaram que o lobo esquerdo do fígado os baços estavam aumentados, bem como uma quantidade menor do líquido livre, foi encontrada no fígado. Ele toma vitamina K, D e outros medicamentos e, segundo o dito, não apresenta sinais de sangramento há muito tempo. Hoje, a enfermeira da instituição combinou com o pediatra da Clínica Geral ..., uma consulta na segunda-feira, dia 19 de fevereiro de 2024.

Devido à complexidade da situação (doença do menino, dificuldade de comunicação devido à barreira do idioma), os menores foram colocados junto com a mãe, apesar da instituição não oferecer serviços de alojamento para os pais. Segundo a mãe, o pai alugou um alojamento na rua onde se encontra a instituição e esta manhã visitou a família.

O Centro onde os menores se encontram pede uma rápida resposta, visto que se trata de crianças, sobretudo uma delas cuja vida e saúde estão seriamente ameaçadas.”.

17. Aberta vista ao MP na mesma data (16-02-2024), o MP pronunciou-se nos termos do requerimento com a (refª .......38).

18. Em 17-02-2024 foi proferido o despacho com a refª .......14, com o seguinte teor:

“Tomei conhecimento do expediente do expediente remetido pelo MNE e que dá conta que os três menores estão acolhidos no Centro de Prestação de Serviços da Comunidade de ..., ..., não resultando expresso, porém, a data de tal acolhimento.

No entanto, da comunicação resulta claro que o AA foi, antes da sua colocação no Centro (juntamente com os irmãos e com a progenitora), examinado no Hospital Geral de ..., face à sua situação de doença, uma vez que o mesmo padece de “Colestase Intra-hepática Progressiva”, tendo agendamento de consulta em pediatria dia 19 de fevereiro próximo.

Consta ainda de tal informação que o “Centro onde os menores se encontram pede uma rápida resposta, visto que se trata de crianças, sobretudo uma delas cuja vida e saúde estão seriamente ameaçadas.”

Ora, considerando as decisões proferidas nos autos e, pese embora a comunicação do acolhimento do menor AA tenha chegado aos autos, não pelo SIRENE, mas antes por informação remetida pelo MNE, comunique, com cópia do expediente remetido e do presente despacho, à DGRSP, com nota de muito urgente, considerando que foram já acionadas diligências com vista à ativação da Convenção de Haia, de 1996 – menores acolhidos na ... e que, sem prejuízo do recurso interposto da decisão de acolhimento residencial pela mãe da menor, ao mesmo foi fixado efeito meramente devolutivo.

Informe a Autoridade Central (meio expedito), o MNE (meio expedito), a Embaixada de Portugal na ... (por meios expeditos) e o SIRENE, remetendo certidão da decisão proferida nos autos, que determinou cautelarmente a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial em beneficio do menor AA, e que o que se pretende é o seu cumprimento, com a colocação do menor AA em segurança (recomendando-se, se necessário, a realização da consulta médica por pediatra – especialista - , que já se mostra agendada para o dia 19.02.2024, a fim de aferir o seu estado de saúde, atendendo à doença grave de que padece e da necessidade ou não, urgente de ser sujeito a toma de medicação e/ou outro tratamento) e que se diligencie pela sua condução para o território português, em execução da referida medida.

Caso os pais do menor livremente pretendam acompanhar o menor AA a Portugal para cumprimento da aplicada medida de promoção e proteção, poderão fazê-lo devendo, porém, as autoridades assegurar que o menor dará entrada em voo com destino a Portugal, acompanhado pelos progenitores.

Quanto aos menores BB e CC, não tendo sido aplicada medida de acolhimento residencial por este Tribunal, o acolhimento dos mesmos na ... dependerá da avaliação que o Estado ... vier a fazer e caso se verifique que os mesmos se encontrem numa situação de perigo.

Deverá a Autoridade Central informar, em articulação com o MNE, SIRENE e Embaixada de Portugal na ..., no mais breve espaço de tempo, qual a data prevista para a chegada do menor AA a Portugal, a fim de a Equipa da Emergência da EMAT e o Núcleo de Gestão de Vagas da SCML (ao qual deve ser remetido o número de telefone de emergência) articularem para que, à chegada a este País, possa o menor ser de imediato, com auxílio da força policial competente, conduzido a Casa de Acolhimento, preferencialmente, e caso a vaga indicada se mantenha cativa, à CAR –Casa de Acolhimento ....

Assim que possível, o SIRENE, em articulação com a DGRSP, deverão informar a data e voo em que o menor será conduzido a território português a fim de ser informado, juntos tais elementos, de imediato, a EMAT e o NGV da SCML.

Notifique o presente despacho à EMAT e à Sra. Técnica Gestora do processo, com cópia da informação que originou este despacho, remetida pelo MNE e solicite à EMAT e Equipa de Emergência do NGV da SCML, a necessidade de se dirigirem, por Técnicos, a Aeroporto português a fim de acompanhar o menor AA à chegada ao território português.

Dê conhecimento à Equipa de Gestão de Vagas da SCML e à CAR ... (esta via telefone) a fim de informar se têm a vaga cativa para o AA nos termos anteriormente solicitados - em alternativa, ao acolhimento de emergência, no imediato, decretado.

Comunique o presente despacho à DGRSP, com remessa do presente e com nota de muito urgente, precedido de contato telefónico.

Encete contato telefónico com a Jurishelp no sentido de informar se têm Tradutor de Idioma Croato e, em caso afirmativo, solicita-se a tradução da decisão que aplicou cautelarmente a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial ao menor AA e o presente, no prazo máximo de quatro dias, informando que se pretende extrema urgência na tradução.

Caso se revele inviável, solicite os bons ofícios da Embaixada de Portugal na ..., para o mesmo efeito.

No mais, não tendo a mãe das crianças demonstrado nos termos determinados que residem na ... com cariz de estabilidade desde outubro de 2021, com residência aí fixa, bem como com comprovativos documentais de frequência escolar, este Tribunal mantém a sua competência territorial e internacional para a tramitação dos autos.

Notifiquem-se as partes e o Ministério Público, bem como o I. Patrono da criança, com cópia, igualmente, do expediente do Ministério dos Negócios Estrangeiros.”.

19. Inconformados com esta decisão, o Ministério Público e a mãe das crianças dela recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa.

20. O Tribunal recorrido, depois de ter julgado improcedente a excepção de incompetência dos tribunais portugueses invocada pela progenitora, julgando totalmente improcedente o seu recurso, julgou o recurso do Ministério Público parcialmente procedente, e em consequência, alterando o despacho recorrido, determinou que o Tribunal de 1.ª Instância: “i. solicite, à Ordem dos Médicos, a indicação de perito na especialidade de Hepatologia para reanálise da situação clínica do menino AA, considerando que ao longo do tempo foram ensaiadas duas abordagens muito distintas para tratamento da doença de que padece, mas tendo também em consideração a sua condição atual, e a circunstância de após a sua saída do território nacional, ter sido submetido a um tratamento muito diferente daquele que lhe havia sido prescrito no Centro Hospitalar da Universidade de ...; ii. Oficie a Autoridade Central, no sentido de solicitar à sua congénere na ... que: i. Apure, de imediato, a atual situação vivencial das crianças identificadas nos autos e dos seus progenitores (morada dos seus progenitores, condições habitacionais do agregado familiar, modo de vida dos progenitores, nomeadamente se trabalham e têm rendimentos na ..., estabelecimentos de ensino/creche e de saúde frequentados pelas crianças, e informação relativa a cuidados médicos fornecidos na ... e/ou na ... ao menino AA) e remeta o respetivo relatório social aos presentes autos, nos termos do disposto no art. 32º a) da Convenção de Haia de 1996 relativa à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e de medidas de proteção das crianças; ii. Analise, com urgência, a necessidade de tomar medidas imediatas para a proteção das crianças identificadas nos autos, nomeadamente no que respeita à atual situação de saúde do menino AA (diligenciando pelo exame médico e, se possível, pela realização de perícia ao mesmo, para aferir a evolução da sua situação clínica, os resultados da terapia de que alegadamente beneficiou na S.... ......, qual o tratamento mais adequado face à sua atual situação clínica e qual a articulação a realizar entre o mesmo e os já realizados até ao momento, bem como as consequências para a saúde da criança que resultaram da omissão da terapêutica prescrita), nos termos do disposto nos art. 32º b) e 11º da supra referida Convenção, a fim de se poder apurar qual a medida de proteção adequada neste momento.”.

21. É deste acórdão que a progenitora vem apresentar recurso de revista, circunscrita à decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar as questões suscitadas no presente processo de promoção e protecção.

22. O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.

II - Admissibilidade do recurso

Constituindo o presente processo de promoção dos direitos e protecção das crianças e jovens em perigo um processo de jurisdição voluntária, como decorre do art. 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (doravante LPCJP), cumpre, em primeiro lugar, apreciar se a revista é admissível à luz do disposto no n.º 2 do art. 988.º do CPC, que estatui que “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

De acordo com o que tem sido a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, “no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, a intervenção do STJ pressupõe, atenta a sua especial incumbência de controlar a aplicação da lei processual ou substantiva, que se determine se a decisão recorrida assentou em critérios de conveniência e de oportunidade ou se, diferentemente, a mesma corresponde a um processo de interpretação e aplicação da lei” (acórdão de 06-06-2019, proc. n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Cumprirá, pois, num momento preliminar, “ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respectivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstracta de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade” (cfr., entre outros, os acórdãos de 16-11-2017 (proc. n.º 212/15.2T8BRG-A.G1.S2), de 11-11-2021 (proc. n.º 1629/15.8T8FIG-D.C1.S1) e de 02-02-2023 (proc. n.º 377/18.1T8FAF.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt).

No caso em apreço, o fundamento do recurso de revista incide sobre a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, o que convoca a aplicação do disposto no art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, segundo o qual, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) com fundamento na violação das regras e competência internacional (…)”. Trata-se de fundamento que afasta o obstáculo referente à dupla conforme, nos termos previstos no n.º 3 do art. 671.º do CPC, que, de modo simétrico, ressalva da aplicação dessa norma os casos em que o recurso é sempre admissível.

Por outro lado, a questão a apreciar em sede de revista implica, para além da apreciação das nulidades que conexamente são imputadas à decisão recorrida, a interpretação das normas contidas nos arts. 2.º, n.º 11, e 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, e em concreto, a qualificação como lícita ou ilícita da deslocação de um menor de Portugal para a ..., com vista a determinar o Estado-Membro competente para conhecer a acção.

Resulta, pois, do exposto que o objecto do recurso consiste exclusivamente na apreciação de questões de estrita legalidade, não se verificando, por isso, qualquer obstáculo à sua admissibilidade.

III – Objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, identificam-se as seguintes questões em discussão:

• Da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia;

• Da nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação;

• Da prolação de decisão surpresa, por violação do princípio do contraditório;

• Da verificação da excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o presente processo.

IV- Fundamentação de facto

Os factos considerados provados pelo Tribunal da Relação constam do relatório antecedente.

V – Fundamentação de direito

1. Da nulidade do acórdão por excesso de pronúncia

A recorrente imputa ao acórdão recorrido nulidade por excesso de pronúncia, por ter, em seu entendimento, alterado matéria de facto não impugnada pelas partes, que se prende com a circunstância de a saída dos menores ter sido anterior ao conhecimento da medida de acolhimento residencial aplicada ao menor AA pela 1.ª instância.

Acrescenta a recorrente que o acórdão recorrido também enferma de nulidade por excesso de pronúncia na parte em que considerou que, mesmo antes da decisão de 24-10-2023, a alteração da residência dos menores para outro país sempre dependeria de autorização prévia por parte do tribunal, aditando um facto que nunca esteve em discussão.

Segundo o que dispõe o art. 615.º, n.º 1, alínea d) e e) do CPC (aplicável aos acórdãos proferidos pela Relação por remissão do art. 666.º do mesmo diploma), a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Como explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, págs. 735-737), as nulidades suscitadas pelos reclamantes constituem, em rigor, situações de anulabilidade da decisão, e não de verdadeira nulidade, dizendo respeito aos limites da mesma. Está, pois, vedado ao juiz o conhecimento de causa de pedir não invocada ou de excepções não deduzidas que se encontrem na exclusiva disponibilidade das partes, assim como o acto de, em violação do princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, não observar os limites impostos pelo art. 609.º, n.º 1, do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido.

Neste domínio, nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 04-02-2021 (proc. n.º 6837/17.4T8LRS.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt, “a nulidade por excesso de pronúncia decorre da violação da regra consagrada no art. 608.º, n.º 2, do CPC, segundo a qual o tribunal não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. No âmbito de qualquer recurso, o objeto da sua pronúncia, suscitado pelas partes, consubstancia-se nas obrigatórias conclusões do recurso.”.

Na situação em causa, a recorrente parte de um pressuposto que não se verificou: o de que o Tribunal a quo alterou o facto consistente no momento da saída dos menores para a ....

Ora, em nenhum momento o Tribunal da Relação considerou provado que a mencionada deslocação tivesse ocorrido em data anterior à prolação da decisão de 24-10-2023 – sendo que a circunstância de a promoção do Ministério Público com a referência .......38 referir que as crianças saíram de Portugal antes de os pais terem conhecimento de tal decisão não apresenta, de modo muito evidente, a virtualidade de tornar tal facto como assente. Pelo contrário, o Tribunal a quo entendeu não existir “prova suficiente de que o AA e o seu agregado familiar saíram de Portugal antes da prolação da decisão de 24-10-2023”, não tendo alterado a configuração da matéria de facto provada a este respeito e, por isso, exercitado os poderes de modificabilidade da matéria de facto previstos no art. 662.º do CPC.

O que a recorrente pretende contrariar, em substância, é a conclusão do Tribunal recorrido quanto à ilegalidade da deslocação. Todavia, esta conclusão baseou-se, não numa pretensa alteração proibida da matéria de facto já adquirida, mas na aplicação das regras de distribuição do ónus da prova, sob o prisma da análise do aspecto jurídico da causa – um exercício que, quando muito, poderá integrar um erro de julgamento, mas não determinar a nulidade da decisão judicial.

No caso, sendo suscitada a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, o Tribunal, não só podia - como devia - analisar a questão sob o prisma do regime jurídico aplicável no seu conjunto, sendo que, quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o juiz não se encontra limitado às alegações das partes (art. 5.º, n.º 3 do CPC). E, na análise integrada de tal regime, não poderia a qualificação como lícita ou ilícita da deslocação dos menores ser desconsiderada, tal como demonstraremos infra.

Igualmente no que se refere à conclusão alcançada a respeito da necessidade de autorização judicial para alteração da residência dos menores no decurso da vigência da medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais, a mesma não assentou em qualquer modificação da matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação quanto ao alcance da medida aplicada, mas numa interpretação jurídica do efeito de tal medida no exercício das responsabilidades parentais relativas às três crianças.

Conclui-se, assim, pela improcedência das arguidas nulidades.

2. Da nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação

Alega a recorrente, por outro lado, que o acórdão recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação, por não ter explicado a razão pela qual considerou que, em momento prévio à decisão de 24-10-2023, que aplicou a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial ao menor AA, havia uma obrigação de pedir autorização ao tribunal para alterar a residência habitual da família.

O vício da falta de fundamentação da decisão correlaciona-se com o dever de fundamentação das decisões que, nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 04-06-2019 (proc. n.º 64/15.2T8PRG-C.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt, se impõe ao julgador “por imperativo constitucional e legal (artigos 208.º, n.º1, da Constituição e 154.º, n.º1, do CPC) tendo ainda a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma e com a própria garantia do direito ao recurso (as partes precisam de ser elucidadas quanto aos motivos da decisão, sobretudo a parte vencida, para poderem impugnar os fundamentos perante o tribunal superior)”.

No entanto, como é sublinhado pela doutrina (Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 736) e afirmado, de forma constante, pela jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., a título de exemplo, de 14-01-2021 (proc. n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1) disponível em www.dgsi.pt), só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, gera a nulidade do acórdão, não integrando tal vício a fundamentação deficiente, errada ou não convincente.

No acórdão recorrido, naquilo que ora importa, pode ler-se o seguinte:

“[M]esmo que se demonstrasse que a mudança de residência ocorreu antes de proferida a decisão de 24-10-2024, importa ter presente que nessa data já vigorava, relativamente às três crianças a que se reportam os presentes autos, uma medida de promoção e proteção (apoio junto dos pais), a qual implicava também ela limitações ao exercício das responsabilidades parentais e que nessas circunstâncias, a alteração da residência para outro país sempre dependeria da prévia autorização do Tribunal a quo, ou da cessação da vigência daquela medida, sem o que a mudança de residência das crianças para o estrangeiro sempre se teria por claramente violadora do regime de promoção e proteção em vigor naquela data. Donde se conclui que mesmo que se demonstrasse que a saída das crianças do território nacional ocorreu antes da prolação da decisão de 24-10-2023 sempre se teria que considerar que a mudança de residência constituiria uma deslocação ilícita.”.

Constata-se sem margem para dúvidas, que a decisão recorrida, para fundamentar a qualificação como ilícita da deslocação das crianças, indicou tanto os fundamentos de facto (o facto de vigorar, à data, relativamente às três crianças a que se reportam os presentes autos, uma medida de promoção e protecção - apoio junto dos pais), como de direito (a circunstância de tal medida envolver limitações ao exercício das responsabilidades parentais, que implicariam que a decisão acerca da alteração da residência dos menores para outro país ficasse dependente da prévia autorização do tribunal).

A fundamentação a respeito da questão identificada não foi, de modo patente, omitida, sendo que a questão de saber se a dita medida de promoção implicava, efectivamente, a necessidade de a alteração da residência para o estrangeiro ser precedida de autorização judicial é uma questão que incide sobre o mérito da fundamentação, pressupondo, do ponto de vista lógico, a existência dessa mesma fundamentação.

Conclui-se, assim, pela não verificação da arguida nulidade.

3. Da prolação de decisão surpresa, por violação do princípio do contraditório

Prossegue a recorrente, alegando que o tribunal recorrido lhe deveria ter dado oportunidade para que se pronunciasse acerca da questão da (i)licitude da deslocação do menor AA, que não era controvertida. Alega ter existido, neste particular, violação do princípio do contraditório, previsto no art. 3.º, n.º 3 do CPC, geradora da nulidade da decisão.

Invoca, sob outra perspectiva, ter existido preterição do contraditório por não lhe ter sido concedida a possibilidade de pronúncia a respeito do entendimento adoptado pelo Tribunal da Relação, segundo o qual, mesmo antes da decisão de 24-10-2023, a alteração da residência dos menores para outro país sempre dependeria de autorização prévia por parte do tribunal.

Vejamos.

Não tem obtido resposta unânime, no seio da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a questão de saber se a prolação de uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC, ou uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Pelas razões densificadas no acórdão de 04-04-2024 (proc. n.º 5223/19.6T6STB.E1.S1)1, perfilha-se a primeira a posição, entendendo-se que, quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, em contravenção com o disposto no n.º 3 do art. 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pudesse tomar conhecimento. Ao invés, tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá ser-lhe aplicada a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma (assim, cfr. o acórdão do STJ de 12-07-2011 (proc. n.º 620/1999.C1.S1), não publicado).

Em abono da descrita tese se afirma que “se, realidade, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório configurasse um caso de excesso de pronúncia, sujeito ao regime das nulidades da sentença, o que faria sentido é que a nulidade fosse suprida nos mesmos termos em que é suprida a nulidade causada por excesso de pronúncia, o que não acontece” (acórdão de 29-02-2024 (proc. n.º n.º 19406/19.5T8LSB.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt) – já que, para suprir a nulidade causada pela inobservância do princípio do contraditório, não se considera sem efeito a parte viciada, antes se anula a decisão recorrida com o objectivo de determinar o cumprimento do formalismo que foi omitido e proferir nova decisão sobre a questão.

Acrescenta-se, por fim, como argumento complementar, que “o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC” (acórdão de 29-02-2024, supra referido).

Assim sendo, as nulidades processuais decorrentes da preterição do contraditório invocadas pela recorrente deveriam ter sido objecto de reclamação, no prazo de dez dias desde a notificação da decisão, perante o Tribunal da Relação (nos termos da segunda parte do art. 196.º e arts. 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, ambos do CPC, uma vez que não se coloca a hipótese prevista no n.º 3 da última disposição).

Não tendo sido deduzida tempestivamente tal reclamação perante o tribunal a quo, verifica-se um efeito preclusivo de perda da faculdade de exercício.

De qualquer modo, há que sublinhar um ponto: ainda que se entendesse que a recorrente deveria ter sido advertida, nos termos do preceituado no n.º 3 do art. 3.º do CPC, para a possibilidade de se pronunciar acerca do carácter ilícito da deslocação do menor AA, na dupla vertente identificada, sempre haveria de se considerar que tais eventuais nulidades processuais se encontram supridas, uma vez que a progenitora teve ampla hipótese de se pronunciar sobre a matéria ao interpor o presente recurso de revista.

Improcede, assim, também este fundamento de recurso.

4. Da verificação da excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o presente processo

4.1. A recorrente vem contestar, através do presente recurso de revista, o entendimento do Tribunal da Relação que considerou os tribunais portugueses internacionalmente competentes para apreciar a causa vertente, argumentando que a decisão recorrida interpretou erroneamente a norma do art. 7.º, n.º 2, da Convenção de Haia, ao ter qualificado como ilícita a deslocação do menor AA para a .... Frisa que saiu do país enquanto vigorava uma medida de promoção e protecção de apoio junto da mãe, não tendo a deslocação ocorrida consubstanciado a violação do direito de custódia estabelecido em relação à criança.

No caso, com relevo para a questão decidenda, encontra-se adquirido que, à data da propositura do presente processo de promoção, as três crianças a que se reporta o mesmo - AA (nascido em ...-...-2013), BB (nascido em ...-...-2014) e CC (nascido em ...-...-2018) - residiam em Portugal com os respectivos progenitores, tendo-se deslocado para a ... - país no qual permanecem, pelo menos, desde ...-...-2024 (cfr. informação SIRENE com a refª , de 16-02-2024) -, em momento não apurado.

Os autos demonstram que, em 28-11-2022, após reavaliação da situação das crianças na sequência de um primeiro acordo de promoção e protecção, se realizou nova conferência, no decurso da qual foi obtido o seguinte acordo de promoção e protecção, que veio a ser judicialmente homologado:

“A) Aos menores AA, BB e CC é aplicada a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe, nos termos dos art.ºs 35º, nº1 alínea a) e 39º da LPCJP nos seguintes termos:

Os progenitores dos menores comprometem-se:

1. Prestar aos menores os cuidados básicos de habitação, alimentação, higiene, vestuário e saúde, fundamentalmente ao nível dos cuidados afetivos e do respeito pelos seus bem-estar físico e psicológico;

2. Assegurar a comparência dos menores em equipamento de ensino com assiduidade, pontualidade, aproveitamento e bom comportamento;

3. Assegurar o acompanhamento médico de rotina e todas as consultas de especialidade do menor AA junto do Hospital Pediátrico da Universidade de ..., onde é seguido ou nas deslocações que tenham que ser asseveradas ao Hospital de Dia –Gástrico-pediátrico de ... em articulação com o primeiro, e realização de todos os exames médicos e analises clinicas a que o menor haja de ser submetido;

4. Assegurar a toma da medicação prescrita ao AA bem como de todos os suplementos vitamínicos nomeadamente a vitamina K;

5. Assegurar a sujeição do AA aos tratamentos dentários, necessários à remoção das múltiplas cáries que ostenta;

6. Caso o menor AA seja acompanhado em médicos privados, de estomatologia ou outra especialidade, deverá haver partilha de informação clínica, nomeadamente de exames realizados ou medicação prescrita ao Hospital Pediátrico da Universidade .. .....ra;

7. Diligenciar pelo encaminhamento em meio escolar para avaliação do menor BB a fim de verificar se o mesmo carecerá de apoio de educação especial e de terapia da fala;

8. Aceitar a intervenção dos serviços Técnicos, comparecendo sempre que convocados e permitindo a realização de visitas domiciliárias, bem como seguir as orientações dadas pelos mesmos;

B) A medida aplicada terá a duração de (6) seis meses;

C) O acompanhamento da execução da medida será levado a cabo pela EMAT de ..., nos termos do artº 59º, nº 3 da LPCJP, devendo enviar relatório no prazo de três meses com vista a ulterior revisão da medida.”.

Ora, a 24-10-2023 foi proferida decisão na qual foram reapreciadas as medidas de promoção e protecção aplicadas aos menores AA, BB e CC, e na qual se decidiu, quanto a estes dois últimos irmãos, manter a execução da medida de apoio junto dos pais, por 6 (seis) meses e, quanto ao menor AA, aplicar, a título cautelar e pelo período de 6 (seis) meses, a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial.

Em 17-02-2024, foi proferido despacho pelo Tribunal de 1.ª Instância que determinou que se informasse a Autoridade Central, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Embaixada de Portugal na ... e o SIRENE que se pretendia o cumprimento da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial em benefício do menor AA aplicada cautelarmente, tendo a 1.ª Instância considerado, ademais, que, “não tendo a mãe das crianças demonstrado nos termos determinados que residem na ... com cariz de estabilidade desde outubro de 2021, com residência aí fixa, bem como com comprovativos documentais de frequência escolar, este Tribunal mantém a sua competência territorial e internacional para a tramitação dos autos.”.

Este despacho, impugnado pelo Ministério Público e pela mãe das crianças, foi objecto de sindicância pelo acórdão recorrido.

Vejamos em que termos.

4.2. Da factualidade descrita sobressai a existência de uma relação jurídica plurilocalizada, envolvendo o nosso país e a ..., sendo, por isso, convocáveis, para aferir da competência internacional dos tribunais para decretar as providências no âmbito deste processo de promoção e protecção, em primeira linha, as regras de competência constantes do Regulamento n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, comumente denominado de Regulamento Bruxelas II bis, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (doravante Regulamento n.º 2201/2003). Com efeito, ao contrário do que considerou o Tribunal da Relação, cremos não ser aplicável ao caso o regime previsto no Regulamento n.º 2019/1111 do Conselho, de 25-06-2019, tendo em conta que a presente acção foi instaurada em 2018 e este último instrumento se mostra aplicável apenas, de acordo com o seu art. 100.º, n.º 1, às acções judiciais intentadas a partir de 01-08-2022.

Também aqui nos distanciando do enquadramento empreendido pelo Tribunal da Relação – sem que, todavia, tal divergência se traduza na convocação de um regime jurídico substancialmente diverso ao aplicado –, entendemos que o Regulamento n.º 2201/2003 é aplicável à matéria que integra o objecto do presente recurso de revista em regime de exclusividade.

Com efeito, o Regulamento n.º 2201/2003, nas relações com os Estados-Membros (como sucede no caso dos autos), prevalece sobre a Convenção de Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, na medida em que esta se refira a matérias pelo mesmo reguladas (art. 60.º, alínea e)). O Regulamento, não excluindo a aplicação desta Convenção (art. 62.º, n.º 2), “introduz alguns ajustamentos ao regime estabelecido por esta Convenção, principalmente destinados a facilitar e tornar mais expedito o regresso da criança e o exercício do direito de visita.” (Luís Lima Pinheiro, “Deslocação e Retenção Internacional Ilícita de Crianças”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 74, n.ºs 3-4, Jul.-Dez., 2014, pág. 688).

Por seu turno, o art. 61.º do Regulamento n.º 2201/2003 preceitua, no que concerne às relações com a Convenção relativa à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de protecção das crianças, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996, aprovada pelo Decreto n.º 52/2008, de 13/11, que será aplicável num caso, como o presente, em que as crianças beneficiárias do processo têm a sua residência habitual no território de um Estado-Membro.

São, pois, aplicáveis as regras de competência constantes do Regulamento n.º 2201/2003 para aferir da competência dos tribunais portugueses para apreciar as questões suscitadas no presente processo, uma vez que nos encontramos dentro do seu âmbito temporal, material e espacial de aplicação (cfr. arts. 1.º, n.º 1, alínea b), e 72.º).

Como precisa Maria Helena Brito (“O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutro António Marques dos Santos, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 322), “o Regulamento (CE) n.° 2201/2003 filia-se na tradição que pode considerar-se iniciada com a Convenção de Bruxelas: grande parte das noções e muitas das técnicas jurídicas utilizadas são comuns aos diversos actos comunitários até hoje adoptados na sequência da Convenção de Bruxelas. Não é assim possível prescindir da análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a Convenção de Bruxelas para a interpretação do texto do Regulamento.”.

Este Regulamento estabelece, como regra geral, a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança habitualmente resida à data da instauração do processo (art. 8.º, n.º 1).

Verificando-se uma deslocação da criança, o art. 10.º do mesmo Regulamento dispõe o seguinte:

Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e: a) Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou b) A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições: i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida, ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i), iii) o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.º 7 do artigo 11.º, iv) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.”.

Segundo o n.º 11 do art. 2.º do mesmo Regulamento, entende-se por “Deslocação ou retenção ilícitas de uma criança” “a deslocação ou a retenção de uma criança, quando: a) Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e b) No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.”.

Assim, em caso de deslocação ilícita de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente antes da deslocação mantêm essa competência até que a criança possa ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e se verifiquem alternativamente determinadas condições, previstas nas alíneas a) e b) do art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003.

Como sublinha Lima Pinheiro (Direito Internacional Privado, Vol. III, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 249), “parece que o art. 10.º não só tutela a competência dos tribunais do Estado de origem em caso de deslocação ou retenção ilícitas da criança, como também obsta ao estabelecimento de uma competência baseada na nova residência habitual da criança nos termos do art. 8.º/1.”.

Precisa Anabela Gonçalves (“A deslocação ou retenção ilícitas de crianças no Regulamento n.º 2201/2003 (Bruxelas II bis), in Cuadernos de Derecho Transnacional, Vol. 6, n.º 1, Março de 2014, pág. 152) que “esta estabilidade que advém da manutenção da competência do tribunal da residência habitual de origem da criança há-de permitir a obtenção de uma decisão mais célere de regresso, caso se justifique, evitando disputas dilatórias em torno da jurisdição competente. Também se evita, desta forma, favorecer o progenitor que ilicitamente deslocou a criança para outro Estado-Membro, atribuindo competência a um tribunal que naquele momento lhe é mais próximo.”.

O acórdão recorrido, depois de ter aferido, de modo autónomo, o conceito de “residência habitual” – conceito que, por não estar definido, nem no Regulamento n.º 1111/2019 (convocado pelo Tribunal da Relação), nem no Regulamento n.º 2201/2003 (que, como vimos, é o regime aplicável ao caso dos autos) – tem de ser apurado por apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, concluiu – correctamente – que as crianças apresentam a ... como país de sua residência habitual, num contexto em que: (i) as mesmas se ausentaram de Portugal para a ... e que ali permanecem pelo menos desde 15-02-2024 (cfr. informação de 16-02-2024, refª ......36; requerimento da progenitora com a refª ......12/......55, de 15-02-2024 e documentos acompanhantes); (ii) a progenitora arrendou a terceiro a fracção onde o agregado familiar residia em Portugal (cfr. informação policial com a refª ......03 , de 27-11-2023); (iii) a progenitora revela a intenção de não regressar a Portugal (cfr. os requerimento da progenitora com as referências .......15, de 01-02-2014, de 08-03-2024 (refª ......80, de 08-03-2024) e de 12-03-2024 (refª ......30, dos quais parece resultar que após o AA terminar os tratamentos na ... regressará à ...).

Considerou o Tribunal a quo, no entanto, que a deslocação do menor AA para a ... foi ilícita, pelo que a competência dos tribunais nacionais deveria subsistir. Fê-lo com base em dois fundamentos: um, de ordem principal, que se prende com a circunstância de a progenitora não ter provado os factos constitutivos da excepção de incompetência invocada (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil); e um outro, avançado a título de argumentação subsidiária, segundo o qual a alteração da residência dos menores sempre dependeria da autorização do tribunal por vigorar, nessa data, a medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais.

A questão que nuclearmente se coloca, reside, pois, em saber se ficou provado que a deslocação de AA violou algum “direito de guarda” atribuído, de forma a que tal deslocação seja qualificada como ilícita. Para isso, há que averiguar se a progenitora que deslocou a criança para fora de Portugal tinha, ou não, o poder, de decidir sobre o seu local de residência. Cfr., neste sentido, ver Maria dos Prazeres Beleza (“Jurisprudência sobre rapto internacional e crianças”, in Julgar, n.º 24, 2014, pág. 83), autora que autonomiza esta questão no processo de averiguação da ilicitude da deslocação ou retenção de uma criança, ilicitude invocada como fundamento do pedido de regresso apresentado nos tribunais portugueses.

Segundo o que dispõe o n.º 9 do art. 2.º do Regulamento n.º 2201/2003, o “direito de guarda” compreende “os direitos e as obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência.”.

O TJUE já esclareceu, em acórdão de 05-10-2010 (proc. n.º C 400), que, “na medida em que o conceito de «direito de guarda» é assim definido pelo Regulamento n.° 2201/2003, é autónomo em relação ao direito dos Estados Membros. Com efeito, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição deste direito que não contenha uma remissão expressa para o direito dos Estados Membros para a determinação do seu sentido e do seu alcance devem normalmente ter, em toda a União, uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 17 de Julho de 2008, Kozłowski, C 66/08, Colect., p. I 6041, n.° 42 e jurisprudência aí referida). Assim, para efeitos da aplicação do mesmo regulamento, o direito de guarda abrange, de qualquer modo, o direito de o titular deste direito decidir sobre o lugar de residência do menor.”.

Já quanto à titularidade do direito de guarda, o TJUE, no mesmo aresto, sublinhou que “43 (…) o Regulamento n.° 2201/2003 não estabelece quem deve ter um direito de guarda susceptível de tornar ilícita a deslocação de um menor na acepção do seu artigo 2.°, n.° 11, mas remete para o direito do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção no que respeita à designação do titular deste direito de guarda. (…) 44 - Tendo em conta o exposto, há que interpretar o Regulamento n.° 2201/2003 no sentido de que o carácter ilícito da deslocação de um menor para efeitos da aplicação deste regulamento depende exclusivamente da existência de um direito de guarda, atribuído pelo direito nacional aplicável, em violação do qual essa deslocação teve lugar.”. Tal entendimento, também ele afirmado no acórdão do TJUE de 08-06-2017 (proc. n.º C-111/17), foi acolhido pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 02-02-2023 (proc. n.º 17505/20.0T8LSB-A.L1.S1)2, consultável em www.dgsi.pt.

4.3. Analisando a factualidade apurada à luz dos critérios expostos, há que salientar, em primeiro lugar, que, nos termos do Regulamento n.º 2201/2003, o conceito de “direito de guarda”, interpretado de modo autónomo, não se cinge ao direito de decidir sobre o lugar de residência do menor, antes abrange os direitos e as obrigações relativos aos cuidados devidos à criança.

Tendo por referência o direito português para aferir da titularidade de tal direito nos diversos momentos temporais a que se reporta o presente processo, divergimos do entendimento do Tribunal recorrido na qualificação como ilícita da deslocação dos menores com fundamento na circunstância de a mesma ter ocorrido no decurso da vigência da medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe, aplicada nos termos dos arts. 35.º, n.º 1 alínea a), e 39º da LPCJP.

Com efeito, ainda que a mencionada deslocação para o estrangeiro importe uma violação material das obrigações estabelecidas no acordo, homologado por sentença, subjacente à medida – em que os progenitores se obrigaram, nomeadamente, a assegurar o acompanhamento médico de rotina e todas as consultas de especialidade do menor AA junto do Hospital Pediátrico da Universidade de ... ou as deslocações ao Hospital de Dia Gástrico-pediátrico de ..., assim como a aceitar a intervenção dos serviços técnicos e a permitir a realização de visitas domiciliárias, bem como a seguir as orientações dadas pelos mesmos –, a verdade é que a medida em causa não implicou a alteração da titularidade dos poderes-deveres relativos aos cuidados devidos à criança, cujo exercício continuou a competir aos progenitores, enquanto titulares do exercício das responsabilidades parentais (arts. 1877.º e 1878.º do Código Civil).

A medida de apoio junto dos pais, que “consiste em proporcionar à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica” (art. 39.º da LPCJP), é executada em meio natural de vida das crianças, de acordo com o princípio da prevalência da família consagrado no art. 4.º, alíneas g) e h), da LPCJP, não implicando alteração na titularidade do exercício das responsabilidades parentais, em cujo conteúdo se inclui, naturalmente, a decisão sobre a residência dos menores (cfr., a este respeito, Tomé d`Almeida Ramião, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, Quid Iuris, 9.ª ed., Lisboa, 2019, págs. 110 e 111).

A deslocação para a ... das crianças determinada pela progenitora não seria, pois, susceptível de ser qualificada como ilícita, por violadora de qualquer “direito de guarda”, se apenas tivesse sido aplicada em benefício dos menores uma medida de promoção e protecção de apoio juntos dos pais – sendo de dar razão à recorrente, neste particular.

Todavia, a titularidade do exercício das responsabilidades parentais sofreu uma alteração quanto ao menor AA pela decisão de 24-10-2023, que determinou a aplicação à criança, em termos cautelares, da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, consistente, nos termos do n.º 1 do art. 49.º da LPCJP, “na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados.”.

Com a aplicação desta medida, constata-se que o “direito de guarda”, na acepção do Regulamento n.º 2201/2003, sofreu uma alteração da respectiva titularidade, na medida em que o exercício dos direitos e o cumprimento das obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência, foram subtraídos à esfera jurídica dos seus progenitores.

E aqui há que acompanhar o entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que, não tendo ficado demonstrado que a deslocação para a ... tivesse ocorrido em momento anterior à decisão de 24-10-2023, tal dúvida deverá ser resolvida, nos termos do art. 346.º do Código Civil, em desfavor da recorrente, a quem competia a demonstração dos factos constitutivos da excepção de incompetência internacional invocada, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do Código Civil, e que se subsumem às condições previstas nas alíneas a) e b) do art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003.

Numa outra formulação: tendo o menor AA sido deslocado de Portugal para a ... e tendo adquirido residência habitual neste país (conforme foi, correctamente, apreciado pelo acórdão recorrido – cfr. supra, ponto IV, 4.2 do presente acórdão), cabia à recorrente progenitora, ante a decisão que aplicou à criança uma medida de promoção e protecção de acolhimento institucional, provar que tal deslocação não violou o direito de guarda, por ter sido anterior à mencionada decisão. Mas não só: cabia igualmente à recorrente demonstrar que a criança residia na ... há, pelo menos, um ano após a data em que o tribunal tomou conhecimento do paradeiro da criança, encontrando-se esta integrada no seu novo ambiente, assim como a prova da verificação de qualquer uma das condições previstas na alínea b) do art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003.

Não tendo a recorrente logrado cumprir o ónus da prova que lhe incumbia, não se poderá concluir, à luz do art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, que a competência para apreciar o presente processo de promoção e protecção se haja transferido para os tribunais da nova residência habitual de AA.

Saliente-se que, ao contrário do que faz crer a recorrente no ponto Z) das suas conclusões de recurso, o facto de a excepção de incompetência internacional ser de conhecimento oficioso (o que, no caso, não releva, uma vez que tal excepção foi suscitada pela própria recorrente) não introduz qualquer desvio às regras de repartição do ónus da prova que se deixaram expostas. Com efeito, como assinalado por Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 350) em argumentação também acolhida pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 28-05-2015 (proc. n.º 1858/11.1TBCTB.C1.S1), não publicado, “o ónus da prova, é, assim, não um ónus subjectivo, mas um ónus objectivo, no dizer de Rosemberg "ónus de averiguação", e que, como é óbvio, vale para todos os processos, sem excepção dos informados pelo princípio da oficialidade: v.g. na jurisdição voluntária, pois, em todos eles, pode a situação de iliquidez de qualquer facto, necessário à aplicação da lei, verificar-se.”.

Em síntese, não se tendo demonstrado que a deslocação do menor AA para a ... não violou o direito de guarda estabelecido pela decisão de 24-10-2023, deve tal deslocação qualificar-se como ilícita. Deste modo, a nova residência habitual estabelecida na ... mostra-se inapta para subtrair a competência aos tribunais portugueses para tomarem medidas de protecção em relação ao AA, dado que não existiu, por parte destes mesmos tribunais, autorização para tal deslocação.

Os tribunais portugueses são, pois, internacionalmente competentes para apreciar as questões suscitadas no âmbito do presente processo judicial de promoção e protecção, enquanto tribunais do Estado onde o menor AA residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita, improcedendo a excepção invocada e, com ela, o recurso interposto.

V – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 31 de Outubro de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Paula Leal de Carvalho

Ana Paula Lobo

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1. Relatado pela relatora do presente acórdão.

2. Relatado pela relatora do presente acórdão.