Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO ÓNUS DE ALEGAÇÃO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA APRECIAÇÃO DA PROVA PRÉDIO URBANO DANOS PATRIMONIAIS | ||
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Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | ACÓRDÃO ANULADO PARCIALMENTE | ||
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Sumário : | I – Quando o meio de prova que o recorrente diz ter sido incorrectamente apreciado for uma prova gravada, não basta ao recorrente, para cumprir o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, alegar que esse meio de prova não tem o sentido e o alcance probatório que lhe foi dado pelo julgador. II - Cabe-lhe indicar as passagens em que se funda o seu recurso ou transcrever os excertos que considere relevantes. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça AA e seu marido BB, residentes em Rua ..., ..., propuseram a presente acção declarativa com processo comum contra CC e sua mulher DD, residentes em Rua ..., ... ..., pedindo: A. Se declarasse que o prédio identificado no artigo 1.º da petição, onde se inclui o tracto de terreno identificado no artigo 20.º, é propriedade deles, autores; B. A condenação dos réus a reconhecerem que o prédio identificado em 1.º, onde se inclui o tracto de terreno supra identificado em 20.º, é propriedade deles, autores, e, em consequência fossem condenados a retirar e destruir a obra que efectuaram e melhor supra identificada em 20.º, deixando o imóvel deles, autores, no estado anterior à dita obra e ainda condenados a fechar o portão que abriram na parte mais a Nascente do seu prédio e virado para o imóvel deles, autores,; C. A condenação dos réus a restituírem-lhes a eles, autores, esse tracto de terreno supra identificado em 20.º; D. A condenação dos réus a absterem-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte deles, autores, desse mesmo tracto de terreno assim como de todo o imóvel; E. A condenação dos réus a pagarem-lhes a eles, autores, os danos de natureza patrimonial e não patrimonial, por eles causados, com a ocupação abusiva, de má-fé do dito tracto de terreno, que se computa na quantia de 1.000 euros (mil euros) pelo tempo decorrido entre Julho de 2020 e a presente data período em que os autores se viram impossibilitados de usufruir do seu imóvel, e ainda na quantia de 250 euros (duzentos e cinquenta euros) por cada mês, que passasse sem que o imóvel dos autores se encontrasse devidamente desimpedido e sem as obras que os réus nele efectuaram, assim como o portão que construíram virado para o imóvel dos autores fechado e ainda na quantia de 2.500 euros (dois mil e quinhentos euros) a título de danos morais; F. A condenação dos réus a pagarem aos autores os danos de natureza patrimonial, por eles causados, com a ocupação abusiva, de má-fé do dito tracto de terreno, o que impede o início da construção da citada moradia e quanto aos custos acrescidos junto da Câmara Municipal de ..., por os autores terem de renovar o projecto de construção junto de esse Município, relegando, no entanto, para execução de sentença o cálculo correcto e preciso do montante a fixar dos prejuízos de natureza patrimonial quanto a esta questão, suportados pelos autores com a referida ocupação, pois que ainda os mesmos não estavam contabilizados e dependiam do tempo que viesse a demorar a prolação de Sentença que condenasse os réus a reporem o imóvel na situação anterior às ditas obras e que possibilitassse o início da obra. Os réus contestaram e deduziram reconvenção. Em sede de contestação, pediram se julgasse improcedente a acção. Em reconvenção pediram: A. Se declarasse que o prédio dos réus/reconvintes englobava a parcela de terreno onde está construída a conduta de escorrência de águas e as duas caixas de verificação – com uma largura de 70 centímetros e comprimento de 20 metros, no sentido Nascente/Poente; B. Se declarasse que o prédio dos réus/reconvintes, além do referido em A) englobava, ainda, a sul dessa parcela de terreno, uma parcela de terreno com uma largura de 1,06 metros e comprimento de 20 metros, no sentido Nascente/Poente, com a área de 22 m2; C. Se condenassem os autores/reconvindos a reconhecer que o prédio dos réus/reconvintes englobava as duas parcelas de terreno, identificadas supra em A) e B); D. Se condenassem os autores/reconvindos a restituir ao prédio dos réus/reconvintes a parcela de terreno, identificada supra em B), ou seja, uma parcela de terreno, localizada a sul da conduta de escorrência de águas e caixas de verificação, com 1,06 metros de largura por 20 metros de comprimento, no sentido Nascente/Poente, no total de 22 m2; E. Se condenassem os autores/reconvindos a absterem-se de praticarem qualquer acto que impedisse a utilização por parte dos réus/reconvintes das duas parcelas de terreno, identificadas supra em A) e B), assim como de todo o seu prédio; F. Se condenassem os autores/reconvindos a indemnizarem os réus/reconvintes da quantia de € 7 000,00 pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial decorrentes da ocupação abusiva, com violência e de má-fé, das duas parcelas de terreno, identificadas supra em A) e B), bem como com a substituição e reconstrução da conduta de escorrências de águas, a qual fora danificada aquando da ocupação abusiva e violenta; G. Se condenassem os autores/reconvindos em litigância de má-fé. Os autores responderam. Os autores responderam. * Após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu: A. Declarar a autora dona e legítima proprietária do prédio urbano composto de lote de terreno para construção, sito em ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 78 da mesma freguesia, inscrito na matriz predial urbana da dita Freguesia, sob o artigo ..73, com a área total real de 487,80 m2; B. Condenar os réus a reconhecerem a propriedade da autora, nos termos declarados em A) e, em consequência, a retirar e destruir a conduta de escorrência de águas residuais de máquinas de lavar, que se inicia na parte mais a Nascente do imóvel propriedade do réu e entra no prédio propriedade da autora e corre no sentido Nascente/Poente, com uma largura entre 0,46 metros na parte mais estreita e 0,58 na parte mais larga, e comprimento de 21,28 metros, ocupando uma área de 9,6 m2, que efetuaram, deixando o imóvel identificado em A) no estado anterior à dita obra e ainda a fechar o portão que abriram na parte mais a Nascente do seu prédio e virado para o prédio identificado em A). C. Condenar os RR. a restituírem aos autores o tracto de terreno com a área de 9,6m2 que ocuparam no prédio identificado em A); D. Condenar os réus a absterem-se de praticar qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte dos autores do tracto de terreno identificado em C), bem como de todo o imóvel identificado em A); E. Condenar os réus a pagarem aos autores, a título de indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da ocupação abusiva do tracto de terreno identificado em C), a quantia de € 1.000,00 euros (mil euros) pelo tempo decorrido entre Julho e Outubro de 2020, inclusive, acrescida da quantia de € 250,00 euros (duzentos e cinquenta euros) por cada mês decorrido desde outubro de 2020, até que o imóvel identificado em A) se encontre devidamente desimpedido e sem as obras e o portão referidas em C).; F. Absolver os réus dos demais pedidos contra eles formulados na presente ação; G. Absolver os autores/reconvindos dos pedidos formulados a título reconvencional; H. Absolver os autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé. Apelação Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a sentença por decisão que julgasse a acção totalmente improcedente e parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência: A. Se declarasse que o prédio dos réus/reconvintes engloba a parcela de terreno onde está construída a conduta de escorrência de águas e as duas caixas de verificação - com uma largura de 70 cm e cumprimento de 20 m, no sentido Nascente Poente; B. Se declarasse que o prédio dos réus/reconvintes, além do referido em A), engloba, a sul dessa parcela de terreno, uma parcela de terreno com a largura de 1,06 m e cumprimento de 20 m, no sentido Nascente/Poente, com a área de 22 m2; C. Se condenassem os autores/reconvindos a reconhecer que o prédio dos réus/reconvintes engloba as duas parcelas de terreno, identificadas supra em A) e El); D. Se condenassem os autores/reconvindos a restituir ao prédio dos réus/reconvintes a parcela de terreno, identificada supra em B), ou seja, uma parcela de terreno, localizada a sul da conduta de escorrência de águas e caixas de verificação, com 1.06 m de largura por 20 metros de cumprimento, no sentido Nascente/Poente, no total de 22 m2; E. Se condenassem os autores/reconvindos a absterem-se de praticarem qualquer ato que impeça a utilização por parte dos réus/reconvintes das duas parcelas de terreno, identificadas supra em A) e B). assim como de todo o seu prédio; F. Se assim não se entendesse, hipótese que não se concebia, se declarasse como constituição de servidão por destinação de pai de família a área de terreno de 9,6 m2 e não como terreno que faz parte do prédio dos autores. O recurso versou sobre matéria de facto e de direito. Em sede de facto, impugnaram a decisão relativa à matéria de facto e invocaram contradições da decisão sobre pontos determinados da matéria de facto. O tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 12-09-2024, concedeu provimento parcial ao recurso e, em consequência: 1. Revogou a sentença recorrida quanto à condenação decretada em E) do respetivo segmento decisório, na parte atinente ao acréscimo “da quantia de € 250,00 euros (duzentos e cinquenta euros) por cada mês decorrido desde Outubro de 2020, até que o imóvel identificado em A) se encontre devidamente desimpedido e sem as obras e o portão referidas em C)”; 2. Manteve a sentença quanto ao mais decidido. Rejeitou, no entanto, o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Revista: Os réus, apelantes, não se conformaram com o acórdão e interpuseram recurso de revista, pedindo se revogasse e substituísse o acórdão recorrido por outro que alterasse a decisão proferida sobre a matéria de facto, bem como considerasse erro de julgamento no tocante à procedência dos pedidos A) B) e C) do segmento decisório da sentença de 1.ª instância, com todas as devidas e legais consequências. Os fundamentos do recurso, tendo por objecto a decisão da Relação de rejeitar o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, expostos nas conclusões, foram os seguintes: 1. Da Douta Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª instância os Réus interpuseram Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu Douto Acórdão que agora se recorre, em que decidiu "conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se a Sentença recorrida quanto á condenação decretada em E) do respetivo segmento decisório na parte atinente ao acréscimo "da quantia de € 250,00 euros (duzentos e cinquenta euros) por cada mês decorrido desde outubro de 2020, até que o imóvel identificado em A) se encontre devidamente desimpedido e sem as obras e o portão referidas em C)", mantendo-se quanto ao mais decidido." 2. Para tal, considerou o Douto Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa o seguinte: A inobservância por parte dos Apelantes, na impugnação que fizeram da decisão da matéria do ónus, do ónus consagrado no art° 640°, n° 2, ai. a), do CPC, tem como consequência a sua rejeição; os Apelantes não indicaram, com maior ou menor exatidão, nem no corpo da sua alegação, nem nas respetivas conclusões, quaisquer passagens da gravação dos referidos depoimentos; e refere ainda o Acórdão que embora isso não fosse suficiente para observar o ónus secundário (exigência de indicação das exatas passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na ai. a) do n° 2 do art° 640°), nem sequer procederam á transcrição de quaisquer excertos desses depoimentos, sendo certo que a tal não equivale a referência que fizeram, na sua alegação recursoria, ao "teor dos depoimentos de todas as testemunhas acima indicadas e reproduzidas textualmente na Motivação da Sentença"; conclui, por fim, que na aferição dos invocados erros de julgamento, não se pode o Tribunal da Relação bastar com a reprodução da síntese dos depoimentos feita na motivação da decisão de facto constante da sentença. 3. Nos termos do art° 652°, n° 1, al. b), do CPC, deve admitir-se a revista na parte do acórdão recorrido em que se recusou a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por não se encontrarem reunidos todos os requisitos previstos no art° 640° do CPC, sendo que a rejeição injustificada da impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, com fundamento em inobservância dos ónus previstos no art° 640° do CPC, constitui violação da lei processual que, por ser imputada a esse tribunal, descarateriza a dupla conformidade decisória, razão pela qual os aqui recorrentes discordam completamente da decisão proferida no Acórdão da Relação no que que a este ponto diz respeito. 4. Ora, é conhecida a divergência da jurisprudência que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n° 1 do art° 639° do CPC, com respeito ao ónus de alegar e formular conclusões, mas o STJ veio firmar, e muto bem, jurisprudência no sentido do "conteúdo minimalista" de alegar e formular conclusões. 5. Na verdade, o STJ decidiu uniformizar jurisprudência nos seguintes termos "Nos termos da alínea c), do n° 1 do artigo 640° do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações", em cuja síntese final se afirmou designadamente que: "(...) decorre do art° 640°, n° 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnada. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo mais rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um registo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substancia que se pretende arredada" - AUJ do STJ de 17-10-2023 (Acórdão n° 12/2023, publicado no Diário da República n° 220/2023, Série I, de 14-11-2023, com Declaração de Retificação n° 25/2023), proferido no processo n° 8344/17.6T8STB.E1-A.S1. 6. Perante esta uniformização de jurisprudência, resulta da conjugação do disposto nos art°s 635°. 639° e 640° do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros de julgamento da matéria de facto, sendo que a alínea a) do n° 2 do citado art° 640° do CPC consagra um ónus secundário, cujo cumprimento, quanto aos invocados erros de julgamento das concretas questões de facto, não tendo de estar refletido nas conclusões da alegação recursória, deverá igualmente ser observado na parte respetiva. 7. No caso do Acórdão da Relação agora recorrido, o mesmo violou a já supramencionada jurisprudência uniformizada - AUJ do STJ de 17-10-2023 (Acórdão n° 12/2023, publicado no Diário da República n° 220/2023, Série I, de 14-11-2023, com Declaração de Retificação n° 25/2023), proferido no processo n° 8344/17.6T8STB.E1-A.S1., pois o facto de, segundo os Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa que proferiram o acórdão do qual agora se recorre, os recorrentes não terem indicado com exatidão, nem no corpo da sua alegação, nem nas respetivas conclusões, quaisquer passagens da gravação dos referidos depoimentos, não é por si só causa para que seja rejeitada a impugnação de facto. 8. 0 recente Acórdão do STJ de 16-11-2023, P. 31206/15, de António Barateiro Martins, decidiu que "Deve ser rejeitada a impugnação de facto quando, nas conclusões, o recorrente não concretiza os pontos de facto que considera incorretamente julgados, decisão igual que também foram corroboradas nos Acórdãos de 27-04-2023, P. 4696/15 (João Cura Mariano), e de 19-Q1-2023, P. 3160/16 (Nuno Pinto Oliveira), todos disponíveis em www.dqsi.pt. ou seja, se o recorrente não concretizar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, deve, como é óbvio, ser rejeitada a impugnação de facto. 9. Aliás, Abrantes Geraldes, in "Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5a edição, Almedina, págs. 165-166, refere muito bem o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de factos: a. Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b. Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinaram uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c. Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, á transcrição dos excertos que considere oportunos. 10. Ou seja, também à luz da referida doutrina não é motivo para rejeitar a impugnação de facto quando não existem quaisquer passagens de gravação dos depoimentos, mas, sim, quando o recorrente não concretize os pontos de facto que considere incorretamente julgados. 11. Foi baseada na "Motivação" da Sentença que foi proferida a Decisão do Tribunal de 1ª instância. Discordando totalmente da "Motivação" da Sentença, é que os aqui recorrentes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo que a "Fundamentação" ou "Motivação" da sentença tem a ver com a análise critica das provas e bem assim com a especificação dos fundamentos tidos como decisivos para com a convicção do julgador. 12. Ora, os recorrentes no seu recurso de apelação para o Tribunal da Relação nunca questionaram, colocaram em causa ou desmentiram os depoimentos das testemunhas transcritos na Motivação da Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, pois os mesmos correspondem ao que está transcrito nas gravações, sendo que o que motivou os recorrentes a interporem recurso para Tribunal superior da Sentença do Tribunal da 1ª instância foi tão só o facto de perante os depoimentos prestados pelas partes e pelas testemunhas, transcritos na motivação da sentença de 1ª instância, bem como relatório pericial e planta de implantação, nunca o tribunal poderia dar como provados os factos em causa. 13. Pelo que, e não sendo colocado em causa pelos recorrentes o conteúdo dos depoimentos, quer das partes, quer das testemunhas, transcritos na "motivação" da sentença de 1ª instância, que, sem dúvida, demonstram total desconhecimento quanto aos factos provados, nunca aos recorrentes no recurso interposto para o Tribunal da Relação, e que proferiu o Acórdão agora recorrido, poderia ser exigido a indicação no seu recurso, quer nas suas alegações, quer nas suas conclusões, quaisquer passagem da gravação dos referidos depoimentos. 14. Ora, a partir da análise do conteúdo do recurso de apelação, conclui-se que na impugnação da decisão de facto os recorrentes deram cumprimento de concretizar os pontos de facto que consideram incorretamente julgados, bem como ao ónus primário da al. b) do n° 1 do art.° 640.° do CPC, ou seja, os recorrentes especificaram os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, nomeadamente depoimentos prestados pelas partes e pelas testemunhas, bem como documental, concretamente planta de implantação e relatório pericial. 15. Bem como os recorrentes deram ainda cumprimento ao chamado ónus secundário da al. a) do n° 2 do mesmo art.° 640° do CPC, onde neste aspeto fá que distinguir: i. no que se refere à impugnação da matéria de facto na parte fundada em prova documental, dúvidas não há de que esse ónus foi cumprido, nomeadamente fazendo referência expressa à planta de implantação e relatório pericial; ii. no que se refere à impugnação da matéria de facto fundada em prova testemunhal ( depoimentos prestados pelas partes e pelas testemunhas) - e de acordo com a orientação da jurisprudência do STJ, segundo a qual, "quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o n° 2, al. a), do mesmo artigo", a rejeição da impugnação "só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso, verifica-se que a técnica de descrever detalhadamente o conteúdo dos depoimentos das testemunhas em discurso direto ou indireto, ainda que sem indicar o início e termo da passagem relevante de cada depoimento, permitindo o exercício do contraditório pela contraparte, bem como o exame, sem grande dificuldade, pelo Tribunal da Relação, leva a dar como substancialmente cumprido por parte dos recorrentes o ónus do art.° 640°, n° 2. al. a), do CPC - Veja-se a este propósito, o Recurso de Revista do STJ de 02-02-2022 -Revista n° 1786/17.9T8PVZ.P1.S1-1a Secção - Fernanda Samões (Relator) – Maria João Vaz Tomé - António Magalhães. iii. De acordo com a jurisprudência do STJ. a inobservância dos ónus previstos no art.° 640.° do CPC deve ser analisada à luz de um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, pois considerando que esses ónus visam assegurar uma inteligibilidade adequada do fim e do objeto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido, a rejeição do recurso deve ser uma consequência proporcionada e razoável, ponderando a gravidade da falta do recorrente - Veja-se a este propósito o Recurso de Revista do STJ de 18-01-2022 - Revista n° 243/18.0T8PFR.P1.S1 - 1a Secção - Maria Clara Sottomayor (Relatora) - Pedro Lima Gonçalves - Fernanda Samões -, pelo que a rejeição do recurso por parte do Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão agora recorrido viola de forma gritante os critérios de proporcionalidade e de razoabilidade. 16. Por outro lado, os recorrentes cumpriram o ónus impugnativo previsto na al. a) do n° 2 do art.° 640.° do CPC porquanto rebateram, de forma suficiente e explicita, a apreciação critica da prova feita no tribunal a quo e tentaram demonstrar que a prova que esteve na base da formação da convicção do tribunal inculca outra versão dos factos, não constituindo pois fundamento para a rejeição do recurso, nesta parte, a falta de indicação, nas conclusões recursórias, dos meios concretos de prova nem das passagens das gravações constantes do corpo alegatório, visto que não tem por função delimitar o objeto do recurso, traduzindo-se antes em elemento de apoio à argumentação probatória. - Veja-se a este propósito o Recurso de Revista do STJ de 19-10-2021 - Revista n° 4750/18.7T8BRG.G1.S1 - 7a Secção - Fátima Gomes (Relatora) - Oliveira Abreu - Nuno Pinto Oliveira. 17. De referir ainda que os ónus processuais de alegação recursiva previstos no art.° 640.°, n.°s 1 e 2, do CPC, relativos à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, conjugam-se com o ónus de formulação de conclusões, cominando, em caso de incumprimento, com o indeferimento do recurso, mas a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se quando i. falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (art.°s 635°, n° 2 e 4, 639°, n° 1, 641.°, n.° 2, alínea. b), do CPC; ii. (quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos "concretos pontos de facto" que se considerem incorretamente julgados (art.° 640.°, n° 1, al. a), sendo de admitir que as restantes exigências das alíneas b) e c) do art.° 640.°, n.° 1, em articulação com o respetivo n° 2, sejam cumpridas no corpo das alegações. 18. Em resumo, se as conclusões recursivas dos recorrentes, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa que proferiu o acórdão agora recorrido, fossem totalmente omissas quanto á matéria da impugnação da decisão da matéria de facto, verificar-se-ia, sem dúvida, o manifesto incumprimento da diligência processual mínima dos recorrentes, resultante da relação intersistemática do art.° 640. ° com os art.°s 635.°, n.°s 2 a 4, e 639..°,n.°s 1 e 2 19. Assim sendo, o Acórdão agora recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao rejeitar de forma injustificada da impugnação da matéria de facto com o fundamento na inobservância dos ónus previstos no art.° 640.° do CPC, constitui violação da lei processual que, por ser imputada aquele tribunal, descaracteriza a dupla conformidade decisória, pois a partir da análise do conteúdo do recurso de apelação interposto pelos recorrentes para o Tribunal de Lisboa, conclui-se inequivocamente que, na impugnação da decisão de facto, foi dado cumprimento ao ónus previstos no art.° 640.° do CPC. Não houve resposta ao recurso. * Questão suscitada pelo recurso Visto que a presente revista foi admitida por ter como fundamento a violação, pelo acórdão recorrido, do artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, o recurso tem apenas como objecto a questão de saber se ocorreu tal violação. * Os factos relevantes para a decisão da revista são constituídos pelas alegações do recurso de apelação. Com efeito, é nelas que cabe à parte que impugna a decisão relativa à matéria de facto dar cumprimento aos ónus previstos no artigo 640.º do CPC. Logo, a resposta à questão acima enunciada tem como base de facto o teor das alegações do recurso de apelação. * Posto isto, passemos à resolução da questão suscitada pelo recurso. Comecemos por expor os antecedentes processuais do acórdão recorrido, relevantes para a decisão da questão supra enunciada, e as razões da rejeição do conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Como resulta do acima exposto, os réus, ora recorrentes, interpuseram recurso de apelação contra a sentença proferida em 1.ª instância. O recurso versou matéria de facto e de direito. Para o caso interessa-nos apenas o segmento que visou a decisão relativa à matéria de facto. Nele foram imputados à decisão os seguintes erros e contradições: • Erro na decisão de julgar provados os factos discriminados sob as alíneas f), h) e j), m), n), o), p), q) e r), cc); pediam a alteração da decisão no sentido de tais factos serem julgados não provados; • Erro na decisão de julgar não provados os factos que os recorrentes discriminaram sob as alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p), q), r), s), t), u), v), w); pediram se julgassem provados tais factos; • Contradição entre os factos provados sob as alíneas h) e j) e o provado sob a alínea W; • Contradição entre os factos julgados sob as alíneas m), n) e o) e o facto provado sob a alínea y). O Tribunal da Relação rejeitou o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, dizendo que os recorrentes não cumpriram o ónus previsto na alínea a), do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. Segundo o acórdão: “os Apelantes teceram considerações críticas e repetitivas sobre a motivação da sentença, especificando os concretos meios probatórios constantes do processo que, no seu entender, impõem uma decisão diferente sobre os diferentes pontos de facto impugnados, sendo que, relativamente a todos esses pontos indicam, como fundamento dos invocados erros de julgamento, além do mais (designadamente, da planta de implantação e do relatório pericial) - os depoimentos (gravados) prestados pelas partes e pelas testemunhas, com especial destaque para o depoimento da testemunha EE, que consideram merecedor de maior credibilidade. Porém, não indicaram os Apelantes, com (maior ou menor) exatidão, nem no corpo da sua alegação, nem nas respetivas conclusões, quaisquer passagens da gravação dos referidos depoimentos. Aliás, embora isso não fosse suficiente para observar o referido ónus secundário, nem sequer procederam à transcrição de quaisquer excertos desses depoimentos, sendo certo que a tal não equivale a referência que fizeram, de forma repetitiva, na sua alegação recursória, ao “teor dos depoimentos de todas as testemunhas acima transcritos e reproduzidos textualmente na Motivação da Sentença”. Com efeito, na aferição dos invocados erros de julgamento, não se pode o Tribunal da Relação bastar com a reprodução da síntese dos depoimentos feita na motivação da decisão de facto constante da sentença”. Em relação às alegadas contradições, o tribunal da Relação julgou-as inexistente. Os recorrentes contestaram a decisão de rejeitar o conhecimento da impugnação de facto com os fundamentos acima expostos. Sobre eles, é de afirmar: alguns são irrelevantes para a resposta a dar à questão acima enunciada; outros, embora relevantes, não procedem contra o acórdão recorrido. São irrelevantes os fundamentos constituídos pela alegação de que os recorrentes deram cumprimento ao ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC e pela alegação de que não constitui fundamento de rejeição do conhecimento da impugnação de facto a falta de indicação, nas conclusões do recurso, dos meios concretos de prova que impõem a alteração da decisão de facto, e/ou das passagens da gravação. Tais alegações, embora exactas, não são relevantes para o recurso porque não têm relação com as razões que levaram o tribunal da Relação a rejeitar o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Com efeito, a Relação rejeitou tal conhecimento por falta de cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC e não por inobservância do previsto na alínea b) do n.º 1. Quanto aos restantes fundamentos, podemos subdividi-los nas seguintes linhas argumentativas: • A não indicação das passagens da gravação dos depoimentos não é por si só causa de rejeição da impugnação de facto; • Os recorrentes não estavam obrigados a indicar no recurso – quer no corpo das alegações, quer nas conclusões – quaisquer passagens da gravação dos depoimentos; • Os recorrentes deram cumprimento ao ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. Vejamos as razões pelas quais estes fundamentos não procedem contra o acórdão recorrido. A primeira linha argumentativa é constituída pela alegação de que a falta de indicação, com exactidão, de quaisquer passagens da gravação dos depoimentos, não é por si só causa de rejeição da impugnação e pela alegação de que só é motivo de rejeição a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados. Esta argumentação tem contra si a letra da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. Vejamos. O recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto tem a seu cargo os ónus previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC e o indicado na alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito. A consequência do não cumprimento de qualquer deles é a rejeição do recurso, embora com a seguinte distinção. Ao passo que o não cumprimento dos ónus previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º implica a rejeição de toda a impugnação, o não cumprimento do previsto na alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito conduz, nos termos desta alínea, “… à rejeição do recurso na respectiva parte…”. Que parte? A parte do recurso que tem como fundamento o erro na apreciação das provas gravadas, pois o ónus previsto na alínea a) consiste na indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravadas. Não tem, pois, apoio na letra da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC a alegação dos recorrentes segundo a qual o não cumprimento do ónus nela previsto não é só por si causa de rejeição do conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. O mais que se pode dizer é que, se além de provas gravadas, o recorrente tiver invocado, como fundamento da impugnação, prova documental, a falta de indicação das passagens da gravação não determina a rejeição do recurso assente nesta última espécie de prova. A segunda linha argumentativa é constituída pela alegação de que eles, recorrentes, não estavam obrigados a indicar no recurso – quer no corpo das alegações, quer nas conclusões – quaisquer passagens da gravação dos depoimentos porque eles (recorrentes) não puseram em causa os depoimentos transcritos na motivação da sentença, que demonstravam total desconhecimento quanto aos factos provados. O argumento não colhe pelas seguintes razões: Por um lado, parte de um pressuposto que não é exacto, concretamente: que a sentença transcreveu os depoimentos das partes e das testemunhas. Socorrendo-nos das palavras do acórdão do STJ proferido em 18-06-2019, no processo n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1 publicado em www.dgsi.pt. – “… transcrever é reproduzir objetivamente - sem a mínima possibilidade de fazer intervir qualquer subjetividade, resumo conclusivo ou juízo apreciativo - aquilo que as pessoas ouvidas declararam (verbalizaram)”. Dando ao conceito de transcrição este sentido e alcance, é de afirmar que a sentença proferida em 1.ª instância não transcreveu os depoimentos das testemunhas e das partes produzidos em audiência, pois não os reproduziu tal como eles foram proferidos. O que a sentença fez foi um resumo ou uma síntese deles. O resumo e a síntese, ainda que procurem ser fiéis ao que tenha sido declarado, não deixam de constituir uma actividade interpretativa do que foi declarado. Por outro, não decorre da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC que, quando o juiz tenha resumido ou sintetizado os depoimentos, o recorrente esteja dispensado de indicar as passagens da gravação em que se funda o recurso, quando concordar com o resumo, mas discordar do sentido e alcance probatório que lhes foi dado pelo tribunal. A terceira linha argumentativa é constituída pela alegação de que eles, recorrentes, deram cumprimento ao ónus secundário previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. Justificam o cumprimento nos seguintes termos: • Na parte em que a impugnação teve por fundamento prova documental, cumpriram o mencionado ónus porque fizeram referência expressa à planta de implantação e relatório pericial; • Na parte em que teve como fundamento prova gravada (depoimentos prestados pelas partes e pelas testemunhas), cumpriram esse ónus porque, de acordo com a orientação da jurisprudência do STJ (acórdão do STJ de 2-02-2022, revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1.), a falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude a alínea a) do n.º 2 só justifica a rejeição da impugnação nos casos em que essa omissão ou inexactidão dificulte gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame pelo tribunal de recurso e que a técnica de descrever o depoimento das testemunhas em discurso directo ou indirecto, ainda que sem indicar o início ou o termo da passagem relevante de cada depoimento, permitindo o exercício do contraditório pela parte, bem como o exame, sem grande dificuldade pelo Tribunal da Relação, leva a dar como substancialmente cumprido por parte do recorrente o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a); • E o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC é ainda de considerar cumprido porque rebateram de forma suficiente e explicita a apreciação critica da prova feita pelo tribunal e tentaram demonstrar que a prova que esteve na base na convicção do tribunal inculca outra versão dos factos Pese embora o respeito que nos merece, esta alegação não colhe contra o acórdão recorrido. Em primeiro lugar – respondendo à alegação dos recorrentes de que cumpriram o ónus na parte em que a impugnação teve por fundamento prova documental -, cabe dizer que o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC diz respeito exclusivamente à impugnação que tenha por fundamento provas que tenham sido gravadas. Daí que não seja pertinente, em matéria de cumprimento do mencionado ónus, a distinção feita pelos recorrentes entre impugnação da decisão de facto fundada em prova documental e impugnação assente em prova gravada (depoimentos prestados pelas partes e prova testemunhal). A distinção tem pertinência, mas para afirmar que o não cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 não determina a rejeição do recurso que tenha por fundamento o erro na apreciação de provas não gravadas, como sucede com a prova documental. E assim se, como sucedeu no caso, os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas eram constituídos por prova documental (planta de implantação) e prova pericial (relatório pericial) e por provas gravadas (depoimentos das partes e de testemunhas), o não cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC determinava apenas a rejeição do conhecimento do recuso fundado nestas últimas provas; já não na parte em que tem por fundamento provas não gravadas. Como se escreveu acima, a alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC através da expressão, “… sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte…” depõe claramente neste sentido. Em segundo lugar, embora seja certo, como alegam os recorrentes, que o Supremo Tribunal de Justiça tem admitido o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto fundada em meios de prova gravados, ainda que o recorrente não tenha indicado com exactidão a passagens da gravação em que se funda o recurso, esta interpretação não aproveita, no caso, aos recorrentes. Vejamos. A indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso tem como objectivo “facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência, como se refere no acórdão do STJ proferido em 29-10-2015, processo n.º 233/09.4TVNG.G1.S1 no acórdão do STJ proferido em 14-10-2021, no processo n.º 374/17.4T8FAR.E2.S1, e no acórdão do STJ proferido em 2-02-2022, no processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1., todos publicados em www.dgsi.pt. Daí que, como foi afirmado no acórdão do STJ proferido em 29-10-2015, acima referido “…, o incumprimento do referido ónus secundário, tendente apenas a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contem a gravação da audiência, deverá ser avaliado com muito maior cautela: é que, por um lado, o conceito usado pela lei de processo (exacta indicação das passagens da gravação) é, até certo ponto, equívoco, pressupondo a necessidade de distinguir entre a (insuficiente) mera indicação e a indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados; por outro lado, por força do princípio da proporcionalidade, não parece justificável a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa - não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado (como ocorrerá normalmente nos casos, como o dos autos, em que tal indicação do recorrente das passagens da gravação, é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso). Saliente-se que, na interpretação da norma que consagra este ónus de indicação exacta a cargo do recorrente que impugna prova gravada, não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao actual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação - evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais”. Mais: o cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 não passa necessariamente pela indicação exacta das passagens da gravação; basta-se com a transcrição dos excertos que o recorrente considere relevantes, como se entendeu o acórdão do STJ proferido em 18-06-2019, no processo n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1 publicado em www.dgsi.pt. Na doutrina, Abrantes Geraldes também assim interpreta a alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º ao escrever “… se, em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exacta das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes dos depoimentos” (Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, página 200 nota 317). Como se vê, na interpretação que é feita da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, o cumprimento do ónus aí previsto não exige necessariamente a indicação precisa das passagens da gravação; o cumprimento do ónus é compatível com a transcrição de excertos dos depoimentos relevantes. Porém, uma coisa é não indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o recurso ou substituir essa indicação pela transcrição de excertos de depoimentos que o recorrente repute de relevantes. Coisa diferente é omitir por completo a indicação de passagens da gravação em que se funda o recurso ou não transcrever quaisquer partes do depoimento. Foi precisamente o que se passou no caso. Vejamos. Os recorrentes impugnaram separadamente as seguintes decisões de facto: • A de julgar provada a matéria da alínea f); • A de julgar provada a matéria das alíneas h) e j); • A de julgar provada a matéria das alíneas m), n), o), p), q), r); • A de julgar provada a matéria da alínea cc); • A de julgar não provados os factos acima discriminados. O método seguido na impugnação foi o seguinte: transcreveram a motivação da decisão de facto e, de seguida, como alegam na 17.ª conclusão, rebateram essa motivação. E rebateram-na – diga-se, de forma desenvolvida - com a alegação de que os meios de prova que serviram de fundamento à convicção do tribunal (depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, os depoimentos das partes, a prova pericial e a prova documental/planta de implantação) não demonstravam o que fora julgado provado. Mais: em relação à planta de implantação e ao depoimento da testemunha EE (depoimento descredibilizado na 1.ª instância), alegaram que resultava deles uma realidade contrária à que foi julgada provada, concretamente que o limite do prédio deles, réus, ia para além do muro de suporte de terras e para além desse muro existe um enrocamento de terras. Sobre os depoimentos das testemunhas e das declarações das partes, alegaram que ou revelavam total desconhecimento sobre os factos provados (como sucedia com a matéria relativa às áreas dos prédios) ou que tinham sido omissos sobre a restante matéria (como sucedia com a matéria relativa à delimitação dos prédios). Pode, assim, dizer-se que o método de impugnação seguido pelos recorrentes consistiu na alegação de que os meios de prova invocados pelo tribunal para fundamentar a sua convicção quanto aos factos provados não tinham o sentido e o alcance probatório que lhes foi dado. Sucede que, em momento algum da sua alegação, os recorrentes indicaram passagens da gravação dos depoimentos ou transcreveram excertos deles, que, no seu entender, revelassem que as testemunhas e as partes desconheciam as áreas dos prédios e que foram omissas sobre as outras questões de facto. Estavam, no entanto, obrigados a fazê-lo por força da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º. E estavam porque, quando o recorrente alega, para fundamentar a impugnação, que uma parte ou uma testemunha não tinham conhecimento de um facto julgado provado ou que o depoimento da parte ou o da testemunha foram omissos quanto a outro facto (também ele julgados provados) ou que os depoimentos têm um sentido diferente do que lhes foi atribuído pelo julgador, o que o recorrente/impugnante está a fazer é a proceder à interpretação, à valoração do depoimento da parte ou da testemunha. Ora, tal interpretação baseia-se necessariamente nalguma ou nalgumas passagens do depoimento. Daí que, quando o meio de prova que o recorrente diz ter sido incorrectamente apreciado for uma prova gravada, não basta ao recorrente, para cumprir o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, alegar que esse meio de prova não tem o sentido e o alcance probatório que lhe foi dado pelo julgador. Cabe-lhe indicar as passagens em que se funda o seu recurso ou transcrever os excertos que considere relevantes, para, como se escreveu mais acima, facilitar ao tribunal a localização dos depoimentos relevantes. Os recorrentes não fizeram nem uma coisa nem outra. Por todo o exposto não merece censura o acórdão sob recurso quando considerou que, em relação às provas gravadas, os recorrentes não cumpriram o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. Salvo o devido respeito que nos merece o acórdão, já não se pode dizer o mesmo quanto à decisão de rejeitar o conhecimento da impugnação, na parte em que ela tinha como fundamento o erro na apreciação da prova pericial e na prova documental (planta de implantação). Como se escreveu acima, em relação a estes meios de prova não é aplicável o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. Logo, era dever do tribunal da Relação conhecer da impugnação na parte em que ela tinha por fundamento tais meios de prova. Em suma, ao não conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, na parte em que ela tinha como fundamento o erro na apreciação da prova pericial e documental (planta de implantação), com a justificação de que os recorrentes não deram cumprimento ao ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, o acórdão sob recurso violou este preceito. A consequência desta violação é a anulação do acórdão recorrido e a remessa do processo ao tribunal da Relação para, se possível com os mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto na parte em que tinha como fundamento o erro na apreciação da prova pericial e da prova documental e proferir nova decisão. * Decisão: Concede-se em parte a revista e, em consequência: • Mantém-se o acórdão recorrido na parte em que rejeitou o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto com fundamento em erro na apreciação das provas gravadas; • Anula-se o acórdão recorrido, na parte em que rejeitou o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto com fundamento em erro na apreciação da prova pericial e da prova documental (planta de implantação) e determina-se a remessa do processo ao tribunal da Relação para que, se possível pelos mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, conheça da impugnação da decisão relativa à matéria de facto com fundamento em erro na apreciação das provas acima referidas. Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de os recorrentes e os recorridos terem em ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas respectivas custas, na proporção de 50% para cada uma das partes. Lisboa, 16 de Janeiro de 2025 Relator (por vencimento): Emídio Santos 1.º Adjunto: Orlando Nascimento 2.ª adjunta: Ana Paula Lobo Voto de vencida Não acompanho a decisão que logrou vencimento na parte em que considerou legal a posição adoptada pelo Tribunal recorrido de não reapreciação da prova gravada com fundamento na ausência de indicação das partes da gravação que impunham uma diversa decisão quanto à matéria de facto. A decisão que logrou vencimento considera que os recorrentes omitiram «por completo a indicação de passagens da gravação em que se funda o recurso». Os recorrentes suportados no resumo dos depoimentos que constava da motivação da matéria de facto, que indicaram corresponder rigorosamente ao que as testemunhas indicadas haviam deposto, « alegaram que ou revelavam total desconhecimento sobre os factos provados (como sucedia com a matéria relativa às áreas dos prédios) ou que tinham sido omissos sobre a restante matéria (como sucedia com a matéria relativa à delimitação dos prédios).». Os recorrentes em nenhum momento da sua alegação indicaram excertos desses depoimentos que revelassem esse desconhecimento ou omissão, mas o art.º 640.º do Código de Processo Civil de modo nenhum impõe que o façam, ainda que se admita que tal pudesse tornar mais preciso ou credível a sua alegação. Está aqui apenas em causa uma muito formal questão de estilo de escrita. Quando alegam que as testemunhas revelam total desconhecimento sobre os factos provados, acrescentando ainda, como se constata do que chamaram a sua transcrição, que dizem corresponder efectivamente aquilo sobre que depuseram, e nesse resumo nada consta que possa explicar que tivessem ao conhecimentos dos factos em causa, estão a significar de modo indubitável que o depoimento terá que ser analisado na sua totalidade, o que é igual a referir do primeiro ao último minuto para se verificar se a sua alegação é exacta ou carece de fundamento. Se ninguém falou sobre uma precisa área, ou disse que a desconhecia, dizer que revelou total desconhecimento sobre esse facto, não é uma interpretação do depoimento, mas uma indicação objectiva de que tal matéria e conhecimento não integrou o depoimento. A área de um terreno não é uma opinião, mas um dado objectivo que só há uma maneira de ser apurado, pela medição. Não há partes do depoimento relevantes a ter em conta, na perspectiva do recorrente. Se sobre um dado facto os depoimentos são alegados de omissos não há como deixar de entender que é preciso ouvir todo o depoimento para verificar se houve ou não omissão de qualquer declaração sobre o facto. Omissão é a ausência de, não é aquilo que disseram ser insuficiente, ou ter sido mal interpretado, omissão significa não existência, quer dizer que nada disseram sobre a área ou a linha divisória entre os prédios, ou declararam desconhecer a área ou a linha divisória. A interpretação do art.º 640.º do Código de Processo Civil professada no acórdão que logrou vencimento, afasta-se manifestamente da orientação jurisprudencial interpretativa constante do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, proferido no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, que recentemente reuniu amplo consenso no Supremo Tribunal de Justiça, sobretudo na parte que passa a enunciar-se por definir um caminho interpretativo do preceito: «4 - Não pode, no entanto, ser esquecida a ratio legis, no atendimento dos princípios já enunciados na abordagem do histórico do preceito, que seria despiciendo repisar, mas também, e com eles necessariamente relacionados, os hodiernos vertidos no vigente Código de Processo Civil, caso do princípio da cooperação, enquanto responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, numa visão instrumental do processo para a obtenção da solução justa e atempada do litígio, bem como, com as devidas adaptações, o dever da gestão processual na vertente da respetiva adequação, sublinhando a prevalência da matéria em relação à forma, sempre pautados pelo dever de boa-fé, não esquecendo o ónus de alegação, numa pretendida colaboração ativa para a apreciação a realizar pelo Tribunal, inculcada com a inclusão do apontamento da decisão alternativa, e tendo presente a imprescindível consideração da proporcionalidade e razoabilidade que para a causa em concreto seja atendível e se justifique.». O direito ao recurso em sede de matéria de facto é um direito processual muito relevante que não deve ser coartado por razões formais quando todos sabem que factos estão em causa, que depoimentos estão em causa, que extensão desses depoimentos está em causa, independentemente do trabalho mais ou menos penoso que possa comportar a sua análise. Pelas razões expostas, anularia o acórdão recorrido determinando a reapreciação dos depoimentos indicados. Ana Paula Lobo |