ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
RELATIVAMENTE A
AA
(n. .JUL2008)
E
BB
(n. ..FEV2010)
(aqui patrocinadas por CC, patrono nomeado)
Crianças
(aqui patrocinado por EE, adv.)
Progenitor / Requerente / Apelante / Recorrente
(aqui patrocinada por GG, adv.)
Progenitora / Requerida / Apelada / Recorrida
I – Relatório
Em 22SET2017 foi homologado por sentença (apenso A), a título definitivo, o acordo alcançado entre os Progenitores regulando o exercício das responsabilidades parentais relativamente às Crianças, filhas de ambos.
Tal regulação foi alvo de alterações através de sentenças homologatórias proferidas em 30JAN2018 (Apenso F), 12JUL2018 (Apenso H), 17DEZ2018 (apenso L), e 22NOV2019 (Apenso K).
Dessa regulação constava inicialmente:
"As menores passarão fins-de-semana com o pai, de quinze em quinze dias, no período de sexta-feira, após o termo das atividades escolares ou extracurriculares, entregando-as na segunda-feira na escola, no início das atividades escolares.";
O que foi posteriormente alterado para:
"2a - Nas sextas feiras que antecedem os fins de semana em que as crianças estão na companhia da mãe, o pai poderá jantar com as mesmas, indo a mãe das crianças levá-las à escola do pai das crianças, em […], pelas 18:00 horas, e indo o pai das crianças levá-las pelas 21:30 horas a casa da mãe das crianças.
3.a As crianças deixam de pernoitar com o pai das crianças às quartas feiras nos termos em que se encontravam regulados.
5.a As atividades musicais que as crianças desenvolvem na escola do pai durante a semana, passarão a ser desenvolvidas nos fins de semana atribuídos ao pai e nos demais períodos em que se encontram na companhia do pai nos termos do regime de convívios estipulado.".
Verificaram-se situações de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais, pelo menos, na parte final de 2016, início e final de 2018 e início de 2020 (apensos B, D, F, J,H,M e O).
O Requerente suscitou a intervenção da GNR nos dias 06ABR2020, 14ABR2020, 17ABR2020, 24ABR2020, 01MAI2020, 08MAI2020, 15MAI2020 e 05JUN2020 junto da residência da Requerida (e das Crianças), invocando para o efeito o regime de visitas vigente e o seu incumprimento por parte da Progenitora.
Em 07ABR2020 veio o Progenitor instaurar incidente de incumprimento da regulação vigente (alegando, em síntese, que a Requerida não lhe entregou as filhas no dia 13MAR2020 nem a partir de 06ABR2020, incumprindo o judicialmente decidido, obstando assim ao convívio daquelas com o pai, e pedindo, além do mais, a entrega das mesmas nos termos das decisões já proferidas nos autos (Apenso P).
A Requerida deduziu resposta dizendo que, no dia 13MAR2020, foi mãe de um menino e que não entregou as filhas ao Requerente para evitar o risco de contaminação pelo e de propagação do vírus SARS-COV-2, sustentando que o contacto delas com o pai deve ser realizado por videochamadas.
Nesses autos de incumprimento (Apenso P) foi, por despacho de 21MAI2020, o processo qualificado como ‘urgente’ e, considerando “notório que os interesses dos pais são conflituantes, não se mostrando capazes de proporcionar um ambiente sereno e tranquilo às filhas”, foi ordenada a nomeação de patrono às crianças.
Por despacho de 08JUN2020, e na sequência de requerimento formulado pelo patrono das Crianças, designou-se dia para audição das mesmas, “fora da presença dos pais e de quem representa estes últimos”, logo seguida de conferência de pais.
Na data aprazada, 16JUN2020, procedeu-se à audição conjunta das crianças e sem a presença dos progenitores e de quem os representa; durante essa audição foram, pelo respectivo patrono, apresentadas três cartas da autoria das crianças, tendo estas afirmado que pretendiam que o tribunal as considerasse, pelo que a junção foi admitida; a final as crianças declararam que não desejavam que as suas declarações e as cartas apresentadas fossem divulgadas aos pais e seus mandatários, pelo que o juiz determinou “que as declarações por estas prestadas bem como o teor das cartas ora juntas fiquem trancadas e inacessíveis”, o que logo após a diligência foi notificado aos progenitores e referidos mandatários.
Iniciada a conferência de pais, foram os mesmos informados de que as crianças “manifestaram que apenas pretendem conviver com o pai durante o dia não pretendendo qualquer pernoita”.
Constatada a falta de acordo foram os Progenitores instados a pronunciarem-se sobre a possibilidade de, provisoriamente o convívio do Progenitor com as filhas se cingir ao período entre as 10 e as 18 horas de domingo.
Pelo Requerente foi dito que pretendia
“o integral cumprimento do acordado quanto ao regime de visitas, considera que é muito importante as filhas terem acompanhamento psicológico e não concorda com a restrição ao direito de convívios com as filhas mas tem disponibilidade para estar com as filhas, aos domingos, entre as 10:00 horas e as 18:00 horas”.
Por sua vez a Requerida afirmou, designadamente, que
“as filhas recusam ir para casa do pai (ficam em pânico; dizem que têm medo de lá estar); tem uma carta da BB onde diz que, se fosse para casa do pai, se matava; gostava que as filhas fossem para casa do pai felizes e regressassem felizes; actualmente as filhas estão bem psicologicamente mas não se opõe a que voltem a ter acompanhamento psicológico; o pai deve conquistar as filhas aos poucos e quando as filhas estiverem em sua casa que esteja efectivamente com as filhas e passe tempo com elas; não se opõe que, provisoriamente até se decidir a causa, que as crianças convivam com o pai aos domingos das 10:00 horas até às 18:00 horas.”
De seguida o MP promoveu
“(...) atendendo às declarações das menores e ao evidente estado emocional das mesmas (instável), no que toca à retoma do regime de convívios na sua totalidade, considerando ainda também o evidente conflito hoje assistido entre os progenitores, neste momento obrigar as menores a retomar o regime de visitas na sua totalidade seria absolutamente prejudicial para estas duas crianças, em defesa dos interesses das menores (...), nos termos do art.° 28° do RGPTC, que provisoriamente, até ao desfecho dos presentes autos, sejam retomadas as visitas nos moldes pretendidos pelas próprias menores, ou seja, estarem um dia do fim de semana, sem pernoita, na casa do pai.”
Pelo Progenitor foi então requerido que, para que se pudesse pronunciar sobre a alteração promovida pelo MP, lhe fosse concedido acesso ao teor das declarações das crianças (aliás, expressamente invocadas pelo MP), o que lhe foi indeferido nos seguintes termos:
«As crianças foram ouvidas nos autos, na presente diligência, no exercício do seu direito de audição, na qualidade de sujeito do processo e não como meio de prova nos termos do art.° 5o, n.° 7, do RGPTC. As crianças foram ouvidas de forma a manifestarem a sua posição relativamente a um litígio criado pelos progenitores, relativamente às suas próprias pessoas/vítimas desse litígio. A opinião das crianças, a que alude o art. ° 5o, n. ° 1, do RGPTC, é obrigatoriamente tida em consideração pela autoridade judiciária na determinação do seu superior interesse. Conforme decorre do processado da presente diligência, as crianças manifestaram claramente que não pretendem que o teor das suas declarações e cartas fosse divulgado aos pais e respectivos Mandatários. De tal facto e do despacho que assim determinou foi dado conhecimento aos pais das crianças e respectivos Mandatários, os quais foram informados pelo Tribunal apenas da pretensão das crianças, ou seja, que as crianças pretendem conviver com o pai mas sem pernoita. Tendo as crianças manifestado, ao abrigo do seu direito à confidencialidade, reserva e intimidade pessoal, que não pretendem a divulgação das suas declarações e cartas, o Tribunal, atendendo ao seu superior interesse e bem-estar, assim determinou em conformidade, sem, porém, deixar de dar a conhecer aos pais a posição das crianças relativamente ao exercício do direito de convívios com o pai, por elas pretendido. Para tomar posição acerca da fixação do regime provisório promovido pelo Ministério Público, a pretensão das crianças é, por si só, suficiente para o efeito uma vez que o Ministério Público, na promoção exarada em acta, não se fundou em quaisquer outros factos resultantes das declarações e das cartas juntas aos autos pelas crianças. Pelo exposto, indefiro o requerido pelo Progenitor o qual vai condenado nas custas do incidente, cuja taxa de justiça fixo em 2UC (duas unidades de conta), face à extensão do processado a que, injustificadamente, deu causa com tal requerimento - art." 527° do CPC e art.° 7o do RCP.»
Mais se condenou o requerente nas custas do incidente, com 2 UC’s de taxa de justiça.
A final o tribunal considerou
«Face ao conflito que divide os progenitores, o qual inviabiliza o recurso à mediação, e por tal não ter sido requerido, determino a suspensão dos trabalhos da presente conferência bem como, nos termos previstos no art.0 38°, ai. d) ex vi art.° 41°, n.° 7, do RGPTC, a remessa das partes para a audição técnica especializada, solicitando-se à Segurança Social que nos remeta, antes de decorrido o prazo legal, o relatório da audição técnica especializada.
Remeta à Segurança Social cópia dos articulados, documentos, requerimentos, promoções e despachos dos presentes autos, com excepção das declarações das crianças e respetivas cartas nos termos do despacho proferido no início da presente diligência, bem como cópia da decisão final proferida em cada um dos autos apensos e, no caso de ainda não ter sido proferida decisão em cada um desses apensos, cópia dos articulados, documentos, requerimentos, promoções e despachos desses autos.
Como resulta patente da postura dos intervenientes deste processo impõe-se a prolação de uma decisão provisória nos termos do art.0 28° e 38° do RGPTC, que regule a questão dos convívios das crianças com o pai, suspendendo o regime em vigor, o qual não tem assegurado o bem-estar das crianças, devido aos comportamentos desenvolvidos por ambos os progenitores. Considero para tal relevante os seguintes factos, os quais emergem directamente das declarações nesta data prestadas velos pais bem como da posição assumida nos articulados pelo Sr. patrono das crianças, em representação destas:
- os pais das crianças não conseguem dialogar de forma pacífica entre si e transferem as crianças a animosidade que os anima em relação à figura do outro progenitor;
- as crianças sofrem com o conflito que divide os pais, o que lhes causa intranquilidade e afecta o seu bem estar:
- as crianças pretendem conviver com o pai avenas durante o dia, sem pernoita:
- as crianças não pretendem a divulgação das suas declarações em relação ao litígio que divide os pais.
Resulta patente do factualismo que antecede que as crianças não se sentem confortáveis com o regime em visor, no que concerne aos convívios com o pai fruto da incapacidade revelada por ambos os progenitores de transmitirem uma imagem positiva do outro progenitor, o que necessariamente as afecta, pondo em causa os sentimentos de pertença a uma família composta por pai e mãe, não obstante a separação dos progenitores./ Uma vez que é o superior interesse das crianças que dita o desfecho destes autos e não o interesse egoístico de cada um dos pais, ou a satisfação dos interesses e comodidades destes, impõe-se proferir decisão provisória que acautele o direito que as crianças têm de conviverem com ambos os progenitores, sem pôr em causa o seu conforto e bem estar e ainda o seu direito à saúde psíquica./ Estando em causa uma decisão sumária relativamente a uma situação de conflito que os numerosos apensos dos presentes autos bem evidenciam, mostrando que estes pais não se mostram capazes de assegurar o bem-estar das filhas, impõe-se assim que o Tribunal, pelo menos provisoriamente, se substitua aos mesmos na determinação do que seja o seu superior interesse.»
Fixando o seguinte regime provisório:
«l.a - O pai passa a conviver com as filhas e estas com o pai todos os domingos, a contar do próximo domingo, entre as 10:00 horas e as 18:00 horas, indo o pai levá-las e buscá-las à casa da mãe.
2.a-0 regime fixado na cláusula anterior não prejudica a frequência pelas crianças de todas as actividades extracurriculares previstas no regime em vigor que não se encontrem suspensas em virtude das restrições legalmente estabelecidas em consequência do perigo de contágio pandémico.
A mãe das crianças assegurará o transporte das filhas de e para os locais onde tais actividades são desenvolvidas.
3." - No dia de aniversário de cada criança, nos anos pares, as crianças almoçarão com o pai, entre as 11:00 horas e as 14:00 horas, e jantarão com a mãe, entre as 18:00 horas e as 21:00 horas, invertendo-se nos anos
ímpares.
4.a - No dia do Pai e no dia da Mãe e no dia de aniversário de cada progenitor, as crianças, nos anos pares, almoçarão entre as 11:00 horas e as 14:00 horas com o progenitor homenageado/aniversariante e nos anos ímpares jantarão com o mesmo entre as 18:00 horas e as 21:00 horas.
5." -As crianças passam a estar sujeitas, no prazo máximo de quinze dias, a acompanhamento psicológico a financiar por ambos os pais, com vista a fomentar e fortalecer a imagem do pai
6." - Os pais ficam obrigados a indicar nos autos, no prazo máximo de cinco dias, uma Psicóloga da escolha de ambos.
7.a - O pai poderá contactar diariamente as crianças através do telemóvel da criança AA (...), entre as 19:30 horas e as 20:00 horas, obrigando-se a mãe a manter disponível esse telemóvel para esse concreto efeito.
8." - Nos dias em que as crianças estiverem com o pai, a mãe poderá contactar com as filhas pela mesma forma referida na cláusula anterior, entre as 15:30 horas e as 16:00 horas, ficando o pai obrigado a manter disponível o telemóvel para o efeito.
9." - O pai poderá ainda contactar as filhas através das redes sociais, sempre que estas se mostrarem receptivas para o efeito.»
E foi, ainda, decidido
«Porque o estado psicológico em que se encontram as crianças se apresenta deteriorado, afigura-se conveniente a realização de uma perícia, necessária para o desfecho final dos autos, que tenha por objeto:
Io - saber o impacto dos convívios como pai, com pernoita, no bem-
estar das filhas;
2o - saber se os pais se mostram capazes de promover uma imagem positiva do outro perante as filhas;
3o - saber se as crianças apresentam sinais de terem sido manipuladas por algum dos progenitores para ficarem com uma imagem degradada do outro;
4o - saber se as crianças sentem efectivamente receio de sofrerem algum mal por banda do pai e da companheira deste e se tal medo, a existir, foi incutido pela mãe ou se foi criado por comportamentos do próprio pai e da companheira. (...)»
Inconformado, em 29JUN2020, apelou o Requerente (Apenso R) concluindo por erro na determinação do elenco factual relevante; por não poder em autos de incumprimento ser decretada pelo tribunal uma alteração, ainda que provisória, ao regime vigente; pela falta de fundamentação da audição das crianças em privado; pela ilegalidade da recusa de acesso às declarações e cartas das crianças; por a eliminação das pernoitas em casa dos pais não corresponder ao superior interesse da criança; pela ilegalidade da remessa para audição técnica especializada; pela ilegalidade da sua condenação nas custas do incidente.
Na Informação Sobre Audiência Técnica Especializada de 06.7.2020 fez-se constar, nomeadamente:
"há cerca de duas semanas que vigora, aparentemente sem problemas, o regime provisório recente, decretado pelo tribunal (...), decisão que não parece ter sido do agrado do progenitor, o qual, segundo a mãe das menores, preferia o regime anterior, de um fim-de-semana completo, de quinze em quinze dias"; o decidido adequa "os referidos convívios ao real estado do relacionamento entre as menores e o pai" e deveria ser "motivo de análise" para os progenitores e "visto como uma oportunidade, especialmente para o pai, de procurar, de um modo gradual e progressivo, tornar o mais atractivo possível o tempo (actual e futuro) de convívio com as filhas, procurando restaurar o seu relacionamento e comunicação com estas, em moldes substancialmente diferentes para além dos inquestionáveis afectos que os ligam"; "não foi de todo possível obter qualquer forma de consensos, não se nos afigurando nada fácil, a possibilidade de um acordo, nos tempos mais próximos".
A Relação, em 20OUT2020, julgou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Irresignado, veio o Requerente, em 06NOV2020, interpor recurso de revista concluindo, em síntese, pela nulidade por falta de fundamentação do despacho que impediu o patrono de Requerente de estar presente aquando da audição das crianças; que essa audição ocorreu sem a presença de um técnico especializado; que não deu causa a qualquer incidente susceptível de condenação em custas; pela ilegalidade da recusa de acesso ao teor das declarações e cartas das crianças; pela ilegalidade de em autos de incumprimento se alterar, ainda que provisoriamente, a regulação das responsabilidades parentais fixada; e não acautelar a decisão proferida o superior interesse do menor.
Apenas as Crianças contra-alegaram, propugnando pela manutenção do decidido.
Dos Relatórios de Avaliação Psicológica junto aos autos (Apendo P) em 28JAN2021
constam as seguintes sínteses conclusivas:
“… parece parecer concluir-se que a BB apresenta memórias traumáticas associadas à existência de violência na relação entre o pai e a mãe o que desempenha um papel importante na forma como interpreta o mundo e as relações interpessoais. Da informação recolhida a BB parece poder preencher os critérios diagnósticos (…) para Perturbação de Stress Pós-Traumático”;
“(…) parece-nos que a AA respondeu no sentido da desejabilidade social e da protecção do seu sistema familiar, tendo não só noção do motivo da avaliação bem como do impacto das suas respostas para o processo judicial. Neste sentido, e por forma a se poder perceber ao longo do tempo se os resultados por si manifestados são consistentes e correspondem efectivamente às suas vivências e representações internas considera-se- benéfico, ainda que de forma espaçada, que a AA possa beneficiar de acompanhamento psicológico com o objectivo de a ajudar a lidar adaptativamente com a suas emoções, pensamentos e comportamentos, no sentido da promoção da sua saúde mental”.
II – Da admissibilidade e objecto do recurso
Por despacho de relator e acórdão da formação a que alude o art.º 672º, nº 3, do CPC, oportunamente proferidos, a revista foi já admitida.
A verificação dos requisitos gerais da revista efectuada pelo Relator, porque efectuada em termos genéricos, não tem, no entanto, a virtualidade de vincular o colectivo.
No caso entende-se que a impugnação do acórdão da Relação na parte em que não acolheu a arguição de nulidade da falta de fundamentação do despacho que determinou que a audição das crianças fosse reservada e da falta de presença de técnico especializado nessa audição, porque se referem a decisões interlocutórias que recaiam sobre relação processual, não é passível de recurso de revista, nos termos do art.º 671º, nº 2, do CPC.
Pelo que nessa parte se não admite a revista.
Quanto ao mais, o recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento.
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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- da legalidade da sua condenação do Recorrente em custas pelo incidente;
- da legalidade da recusa de acesso ao teor das declarações e cartas das crianças;
- da legalidade de, em autos de incumprimento, se alterar, ainda que provisoriamente, a regulação das responsabilidades parentais fixada;
- do acautelamento do superior interesse dos crianças.
III – Os factos
A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.
IV – O direito
O Processo Tutelar Cível (categoria em que se inserem os procedimentos tendentes à regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução das questões conexas, como é o caso dos autos) é um processo de jurisdição voluntária, conforme determina o art.º 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (doravante, RGPTC).
A jurisdição voluntária implica o exercício de uma actividade essencialmente administrativa, diferentemente da jurisdição contenciosa, que implica o exercício duma actividade verdadeiramente jurisdicional (cf. ALBERTO DOS REIS, Processos especiais, vol. II, pg. 398). Enquanto nos processos de jurisdição contenciosa há um conflito de interesses entre as partes que ao tribunal compete dirimir de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo, nos processos de jurisdição voluntária há, diversamente, um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes) que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes e oportunos (cf. VARELA/BEZERRA/NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, pg. 69-70).
Da apontada natureza dos processos de jurisdição voluntária decorre um particular regime processual, que se afasta do regime do processo contencioso, amovendo determinados princípios que enformam o processo civil por modo a que o tribunal avoque a defesa do interesse que a lei lhe entrega (cf. acórdão do STJ de 31JAN2019, proc. 3064/17.4T8CSC-A.L1.S1): simplificação processual (art.º 986º do CPC); vigora o princípio do inquisitório, cabendo ao juiz um papel activo na indagação e apuramento dos factos (art.º 986, nº 2, do CPC); não sujeição a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar-se em cada caso a solução mais conveniente e oportuna (art.º 987º do CPC); a não definitividade das resoluções que podem ser alteradas em face de alteração das circunstâncias (art.º 988º do CPC).
A esse particular regime geral acrescem as especificidades processuais estabelecidas no RGPTC:
- o ‘superior interesse da criança’ como critério decisório primordial (art.º 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança – CDC –, adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 20NOV1989, artigos 1º, nº 1, e 6º, al. a), da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças – CEEDC –, aprovada pela Resolução da Assembleia da República 7/2014, 27JAN, e art.º 4º, al. a) da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo – doravante, LPCJP –, por remissão do nº 1 do art.º 4º do RGPTC);
- a audição da criança (artigos 4º e 5º do RGPTC);
- a conjugação e harmonização de decisões (artigos 11º e 27º do RGPTC e 81º da LPCJP);
- o respeito pelo contraditório relativamente à informação e provas (art.º 25º do RGPTC);
- a possibilidade de decisões provisórias ou de alterar provisoriamente decisões já adoptadas (art.º 28º do RGPTC).
Delineado, em traços largos, o regime processual do processo tutelar cível, debrucemo-nos agora mais detalhadamente sobre as duas questões essenciais postas no recurso: a audição da criança e a alteração provisória do regime fixado.
Quer o art.º 12º da CDC quer o art.º 6º da CEEDC estatuem que o tribunal deve, antes de tomar a decisão e na medida da sua capacidade de discernimento, consultar a criança, dando-lhe oportunidade de expressar, livremente e se necessário em privado, o seu ponto de vista sobre os assuntos com ela relacionados, para ser tido em consideração.
Esse mesmo direito de audição é consagrado nos artigos 4º e 5º do RGPTC, embora com um âmbito mais alargado do que o estabelecido naquelas Convenções. Com efeito, o art.º 5º do RGPTC consagra duas modalidades de audição da criança (cf. acórdãos da Relação de Lisboa de 06JUN2019, proc. 3573/14.7T8FNC-C.L1-6, e 10NOV2020, proc. 3162/17.4T8CSC-L1-7): uma, enquanto procedimento para realização do direito de audição estabelecido naquelas Convenções e na al. c) do nº 1 do art.º 4º do RGPTC (nºs 1 a 5); outra, enquanto procedimento de recolha antecipada da prova por declarações da criança (nºs 6 e 7).
Consultar a criança, se necessário (tendo em vista proteger as crianças de eventuais reacções dos progenitores ou evitar a instrumentalização das suas declarações nos conflitos parentais – cf. acórdão da Relação de lisboa, proc. 3573/14.7T8FNC-C.L1-6 – e o respeito pela sua privacidade) em privado, significa, desde logo, ouvi-la sem a presença dos pais e dos seus advogados, mas também, e sobretudo se tal for solicitado, que o que foi transmitido ao tribunal não seja retransmitido aos seus pais (cf. acórdão da Relação de Lisboa de 10NOV2020, proc. 3162/17.4T8CSC.L1-7).
Sendo que compete especialmente ao juiz, em função do interesse superior da criança, aferir do modo e extensão da privacidade da audição da criança, em função da capacidade de discernimento desta e das particulares circunstâncias do caso.
Não sendo, na situação, invocável o exercício do contraditório dado que o campo de aplicação deste se limita, quando estão em causa declarações da criança, às que são prestadas enquanto meio de prova; ou seja, na situação prevista nos nºs 6 e 7 do art.º 5º do RGPTC.
No caso dos autos o juiz entendeu como mais conveniente, em função das circunstâncias do caso (a que certamente não foram alheios os anteriores comportamentos dos pais que o levaram a considerar a necessidade de nomeador patrono ‘ad litem’ às crianças), que a (obrigatória) auscultação das crianças quanto à situação da causa deveria ocorrer em privado, sem a presença dos progenitores e seus mandatários; e no decurso dessa auscultação as crianças declararam que pretendiam manter as suas declarações confidenciais, que não fossem comunicadas aos seus progenitores, ao que o tribunal anuiu, mantendo reservado e recusando-se a conceder ao Requerente o acesso ao conteúdo das declarações prestadas e cartas apresentadas (embora tenha feito saber o conteúdo geral dessas declarações – “manifestaram que apenas pretendem conviver com o pai durante o dia não pretendendo qualquer pernoita”).
E o conteúdo dessas declarações nada foi utilizado como meio de prova de qualquer elemento factual externo ao propósito dessas declarações, uma vez que com fundamento nelas nada foi levado ao elenco factual relevante para a decisão final (não há sequer decisão final) nem, tão pouco, para a factualidade tida por relevante para justificar a prolação de uma decisão provisória de alteração do regime vigente.
Tal situação encontra-se em conformidade com o regime legal acima enunciado, não se vislumbrando que a actuação do tribunal seja merecedora de qualquer censura, não procedendo, nessa parte, as conclusões do Recorrente.
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Como acima já referido o ‘superior interesse da criança’ é o critério primordial de decisão nos processos tutelares cíveis.
Trata-se de um conceito indeterminado, sem definição legal, a preencher de acordo com as circunstâncias de cada caso, tendo o legislador optado por um conceito desta natureza por entender que uma norma legal não pode jamais apreender o fenómeno familiar na sua infinita variedade e imensa complexidade.
Deve ser entendido como “o direito do menor ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (ALMIRO RODRIGUES, Interesse do Menor, contributo para uma definição, Infância e Juventude, nº 1, 1958, pg. 18-19) e que se concretiza na potenciação da efectividade do exercício dos seus direitos primordiais (vida, integridade física, dignidade, liberdade pessoal, identidade pessoal, autonomia e desenvolvimento da personalidade, integridade moral, bem estar físico e psicológico, consideração dos seus pontos de vista e opinião) através de uma abordagem abrangente do concreto quadro circunstancial relativamente ao qual tem lugar a intervenção do tribunal. Numa palavra: no confronto das várias posições defendidas ou adoptáveis deve dar-se preferência e prevalência àquela que melhor garanta o exercício dos direitos da criança, mostrando-se a mais conveniente e oportuna para o efeito (cf. TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, Regime Geral do Processo Tutelar Cível, 2015, pg. 21-22).
Do estabelecimento do ‘superior interesse da criança’ como critério primordial de decisão resulta desde logo a necessidade de conjugação e harmonização, em função daquele interesse, de todas as decisões que apliquem medidas tutelares ou de promoção e proteção que venham a ser decretadas (art.º 27º do RGPTC), desde logo se estabelecendo um conjunto de mecanismos adequados à satisfação dessa necessidade.
Designadamente:
- atribuindo ao juiz o dever de assegurar essa conjugação e harmonização, revendo, se necessários, as medidas anteriormente decretadas (art.º 27º, nº 2, do RGPTC);
- determinando a apensação de todos os processos relativos a mesmo menor ao instaurado em primeiro lugar, cujo juiz passa a ser competente para conhecer de todos eles (artigos 11º e 27º, nº 3, do RGPTC, 81º da LPCJP).
Por outro lado estabelece-se a possibilidade de o juiz, em qualquer estado da causa, decidir provisoriamente sobre as questões que devam ser apreciadas a final ou alterar provisoriamente decisões já tomadas a título definitivo (art.º 28º do RGPTC).
Desse conjunto normativo entendemos resultar atribuído ao juiz um amplo poder de, para cabal promoção do ‘superior interesse da criança’, ao longo do desenrolar do processo e seus incidentes, em qualquer momento e em qualquer procedimento, decretar decisões provisórias, quer inovatórias quer modificativas de regimes já decididos, conforme as concretas circunstâncias do caso se forem mostrando convenientes e oportunas.
No caso concreto dos autos o juiz, no âmbito da sua actividade inquisitória no decorrer do apenso de incumprimento, constatou que os termos da execução do regime de visitas fixado estava a interferir no bem-estar das crianças, concluindo pela necessidade de intervenção sobre esse regime, tendo em vista obviar a essa interferência, e em conformidade proferiu, no apenso de incumprimento, alteração provisória do regime de visitas, decretado no processo principal.
Actividade essa que é conforme ao regime legal acima exposto, concluindo-se não ocorrer qualquer ilegalidade na prolação daquela decisão provisória (cf., no mesmo sentido, acórdão do STJ de 31JAN2018, proc. 3064/17.4T8CSC-A.L1.S1 – no caso fixação de regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais em processo de promoção e protecção).
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Já quanto ao concreto conteúdo da mesma está vedada a este Supremo Tribunal qualquer pronúncia, pelo nº 2 do art.º 988º do CPC, porquanto nos situamos já no campo da sua conveniência (melhor satisfação do interesse protegido) ou oportunidade (maior adequação à satisfação do interesse protegido).
Essa limitação haverá, no entanto, de se ter por afastada em situações extremas em que as decisões extravasem de todo a prossecução do interesse protegido (tipicamente situações de desvio ou abuso de poder), porque aí voltamos ao domínio do controlo da legalidade, ou seja, ao respeito pelo critério decisório legalmente estabelecido.
No caso, porém, não se vislumbra que a actuação nas instâncias se tenha afastado do seu dever de promover o ‘superior interesse da criança’, mas antes que estabeleceram o regime que, nas circunstâncias do momento, mais conveniente e oportuno se mostrava para assegurar aquele interesse.
Improcedem também aqui as conclusões do Recorrente.
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Relativamente à condenação nas custas do incidente consubstanciado no requerimento, quando confrontado com a possibilidade de alteração provisória do regime de visitas no sentido de eliminar a pernoita em sua casa, para que lhe fosse facultado o acesso ao conteúdo das declarações das crianças para que se pudesse pronunciar sobre a questão, não se nos afigura que tal comportamento possa ser qualificado como “deveras estranho ao normal desenvolvimento da lide”, mas antes como um comportamento adequado ao particular circunstancialismo da lide, que não provocou qualquer significativo acréscimo no decorrer ou complexidade do procedimento. Pelo que não encontramos fundamento para sujeitar tal acto a tributação, havendo de revogar a aludida condenação em custas.
V – Decisão
Termos em que, concedendo parcialmente a revista, se revoga a condenação do Recorrente em custas pelo incidente de requerimento de acesso ao conteúdo das declarações das crianças e no mais se confirma o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente (dada a exiguidade da parte em que obteve ganho de causa).
Lisboa, 29ABR2021
Rijo Ferreira (relator)
[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,
conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com
a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]
Cura Mariano
Fernando Baptista