Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99/22.9T8EPS.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 10/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
Em consonância com os artigos 640.º e 674.º do Código de Processo Civil, deve distinguir-se o juízo sobre matéria de facto e o juízo sobre o preenchimento dos ónus do artigo 640.º em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Reclamante: AA

Reclamados: BB, CC e marido, DD, EE e marido, FF, GG e HH

I. — RELATÓRIO

1. BB, CC e marido, DD, EE e marido, FF, GG e HH, na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de II, intentaram a presente acção declarativa de condenação contra AA pedindo que o Réu seja condenado a

a) Reconhecer o direito de propriedade das autoras sobre o prédio rústico composto de terreno de pastagem, a confrontar de norte com JJ, Sul e Poente C......, e Nascente Caminho, no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito matriz predial rústica sob o artº ..83º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .89/...;

b) Restituir às autoras o prédio referido, livre de pessoas e bens, no estado em que o mesmo se encontrava antes da invasão e das edificações que nele colocaram.

c) Pagar uma indemnização às autoras em quantia não inferior a €100 por cada dia que decorrer entre a citação e a restituição às autoras do prédio referido, no estado em que o mesmo se encontrava antes da invasão do réu;

d) Pagar às autoras a quantia global de €30.000, a título de danos morais, acrescida de juros até integral e efetivo pagamento, e custas.

2. O Réu contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção.

3. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção parcialmente procedente.

4. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação.

5. O Tribunal da Relação:

I. — rejeitou a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

II. — e, em consequência, julgou a apelação totalmente improcedente.

6. Inconformado, o Réu interpôs recurso de revista.

7. Em 4 de Julho de 2024, o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso.

8. Inconformado, o Réu reclamou para a conferência. “nos termos do artigo 666.º do Código do Processo Civil”.

9. Finalizou a sua reclamação com as seguintes conclusões:

I) O Recorrente, no recurso de apelação interposto, indicou os factos que considerou incorrectamente julgados, a decisão que devia ser proferida sobre os mesmos, e indicou as passagens da gravação em que se fundava o seu recurso e transcreveu as mesmas.

II) Porém, o Tribunal da Relação de Guimarães considerou que o Recorrente não indicou os meios de prova para cada facto impugnado que determinavam decisão diversa.

III) No entanto, tal não se verifica em relação ao facto 6), (“ ocupando-o (o prédio em discussão), cortando erva e mato “).

IV) O recorrente indicou que não foi feita qualquer prova, nessa matéria, para além do depoimento da testemunha KK e indicou no corpo das alegações a prova deficientemente valorada (concretizada no enxerto do depoimento da referida testemunha).

V) Em relação a este facto, o recorrente cumpriu integralmente o ónus de impugnação, que lhe era exigido.

VI) O Tribunal ad quem, relativamente a esse facto, não deu razão ao Tribunal da Relação de Guimarães, reconhecendo que o Recorrente, acabou, por individualizar suficientemente esse facto.

VII) Mesmo assim, o Tribunal recorrido entendeu que “ a alegação de que o facto foi dado como provado com base no depoimento de uma única testemunha e que o depoimento da testemunha em causa foi “vago, sem concretizar, a duração, o período, a qualidade, e sem efectiva localização do prédio em questão “ não é suficiente para que se possa considerar que a impugnação cumpre os requisitos do artigo 640º, n.º 2, do Código de Processo Civil “.

VIII) O Tribunal ad quem, acaba, nessa parte, por fazer uma valoração da prova, o que lhe esta vedado.

IX) Nem se diga que houve prejuízo da inteligibilidade do fim e do objecto do recurso, que tenha prejudicado a possibilidade de um contraditório esclarecido, já que a parte contrária respondeu ao recurso.

X) Assim, o segmento impugnado do douto Acórdão recorrido é nulo por violação do disposto no n.º 1, do artigo 615º, n.º 1, alínea d), aplicável ex vi do artigo 679º; e artigos 662º, nº 4; 674º, nº 3 e 683º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.

Nestes termos, e nos mais de Direito, deve a presente reclamação ser admitida e julgada procedente e, em consequência deve ser declarada a nulidade do segmento do Acórdão recorrido, na parte relativa ao facto 6), e remetidos estes autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, para ser apreciada a impugnação desse facto. FAZENDO V. EX.AS JUSTIÇA.

10. Os Autores não responderam à reclamação apresentada pelo Réu.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

11. O artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por remissão dos artigos 666.º e 585.º, é do seguinte teor:

É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

12. O Reclamante invoca a nulidade do acórdão recorrido, poe excesso de pronúncia — o Supremo Tribunal de Justiça ter-se-ia pronunciado sobre a apreciação da prova para decidir sobre a matéria de facto, em violação do artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

13. O teor dos artigos 640.º e 674.º do Código de Processo Civil determina que deva distinguir-se o juízo sobre matéria de facto e o juízo sobre o preenchimento dos ónus do artigo 640.º em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

14. O acórdão reclamado não se pronunciou nunca sobre a apreciação da prova; não proferiu nenhum juízo sobre a matéria de facto; pronunciou-se tão-somente sobre o preenchimento dos ónus do artigo 640.º — proferiu tão-somente um juízo sobre o preenchimento dos ónus do artigo 640.º em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

15. Entre os corolários do ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação está o de que o recorrente “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” 1.

16. O acórdão reclamado, ao dizer que “a alegação de que o facto foi dado como provado com base no depoimento de uma única testemunha e que o depoimento da testemunha em causa foi ‘vago, sem concretizar, a duração, o período, a qualidade, e sem efectiva localização do prédio em questão’ não é suficiente para que se possa considerar que a impugnação cumpre os requisitos do artigo 640.º, n.º 2, do Código de Processo Civil” está a dizer, tão-só, que não é suficiente para que se considerem especificados, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.

17. Em lugar de uma qualquer valoração da prova, houve tão-só uma valoração da suficiência ou insuficiência da impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente.

18. Estando em causa uma questão suscitada pelo Réu, agora Reclamante, nas conclusões do seu recurso de revista, não há nenhuma nulidade por excesso de pronúncia.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação.

Custas pelo Recorrente AA, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Lisboa, 3 de Outubro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Maria de Deus Correia

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1. Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao artigo 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.`ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, pág. 165.