Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2024/22.8T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO SOCIAL
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
EMPREGADOR
DEVER DE INFORMAÇÃO
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
PROTEÇÃO DA SAÚDE
Data do Acordão: 11/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

I - A nossa doutrina e jurisprudência tem indicado, com base no art.º 18.º da Lei dos Acidentes de Trabalho e como requisitos específicos para o acionamento da responsabilidade agravada do empregador, os seguintes aspetos:

1) Imputação subjetiva do acidente, na modalidade de dolo ou negligência, cabendo aqui quer a culpa grave como a simples culpa, traduzindo-se tal imputação na circunstância do sinistro ter sido causado intencionalmente por algumas das entidades referidas no art.º 18.º da LAT/2009 ou resultar de uma atuação negligente, por si ou relativamente à observação devida das regras sobre segurança e saúde no trabalho.

2) Existência de um nexo causal entre tais condutas dolosas ou negligentes e o acidente de trabalho.

II - O ónus da prova de tais elementos constitutivos da responsabilidade agravada do empregador ou das demais entidades previstas no art.º 18.º da LAT/2009 recai sobre o sinsitrado ou sobre os beneficiários deste último, em caso de sinistro mortal.

III - O vasto, variado e incisivo quadro normativo, que, até por influência do Direito Comunitário, se vai tornando cada vez abrangente e complexo, não implica que só possa existir violação de regras de higiene, saúde e segurança quando elas estão legalmente ou convencionalmente consagradas, mas mesmo quando, numa dada atividade ou setor, ainda não exista uma regulamentação específica [violação do dever geral de cuidado].

IV - O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, com data de 17/4/2024, prolatado no Proc.º n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A pela Secção Social deste Supremo Tribunal de Justiça determina o seguinte:

«Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º l da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.»

V - Deparamo-nos, assim com um Autor que não somente tinha apenas laborado com a máquina com que se acidentou, já antiga e desconforme com a legislação comunitária em termos de saúde, segurança e ambiente, durante algumas poucas horas da manhã do dia do sinistro, como não tinha tido qualquer formação sobre o seu manuseamento e funcionamento nem tinha sido informado de que deveria desligar previamente da eletricidade o dito equipamento quando o fosse lavar e limpar.

VI - Face a tal ausência de formação e informação por parte da entidade empregadora quanto a esses aspetos essenciais e determinantes da conduta do trabalhador e, no quadro factual que antes deixámos analisado, à verificação do nexo de imputação causal do sinistro dos autos e respetivos lesões e danos a tal conduta omissiva da mesma Ré, o acidente dos autos tem de ser reconduzido juridicamente ao artigo 18.º da LAT e à responsabilidade agravada da empregadora.

Decisão Texto Integral:
RECURSO DE REVISTA N.º 2024/22.8T8PDL.L1.S1 (4.ª Secção)

Recorrentes: AA/GENERALI SEGUROS, S.A.

Recorrida: COPRAVE - SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA.

(Processo n.º 2024/22.8T8PDL – Tribunal Judicial da Comarca … - Juízo do Trabalho de …)

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I – RELATÓRIO

1. Os presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é sinistrado AA e entidades indicadas como responsáveis a GENERALI SEGUROS, S.A., e a empregadora COPRAVE - SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA., foram instaurados sob participação do sinistrado, ocorrida em 05 de Setembro de 2022 (fls. 1 e segs.), por ter a seguradora declinado a sua responsabilidade no dia 13 de Maio de 2022 com fundamento em não haver direito à reparação nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da LAT, por haver violação de regras de segurança pelo sinistrado (fls. 36 verso).

Uma vez finda a fase conciliatória, sem que se alcançasse a conciliação entre as partes, abriu-se então a fase contenciosa com a propositura por AA, com os sinais contantes dos autos, com a inerente apresentação, no dia 18/7/2023, Petição Inicial que despoletou então a ação declarativa de condenação, com processo especial, emergente de Acidente de Trabalho contra:

GENERALI SEGUROS, S.A., e

COPRAVE - SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA., ambas igualmente identificadas nos autos, pedindo, em síntese, o seguinte:

“Em tais termos e nos melhores de direito deve apresentar ação ser julgada procedente, por provada, e por via disso:

a) Condenar as Rés a reconhecer o acidente dos autos como de trabalho (a Ré COPRAVE reconhece-o, a seguradora não), a reconhecer o nexo causal entre as lesões e o acidente, (a Seguradora não o reconhece), a reconhecer a responsabilidade objetiva emergente do acidente (a EE não o reconhece) em função da retribuição anual bruta apurada de € 10.605,50 que ambas aceitam;

b) Condenar as Rés que virgula pese embora IPP fixado de 60%, o Autor está afetado em consequência das sequelas de que padece de uma IPATQP;

c) Condenar a Ré COPRAVE no reconhecimento de nexo causal entre a inobservância de regras de segurança e a ocorrência do acidente, ou seja virgula de que o acidente ocorreu como corolário da verificada a violação de normas de segurança cuja observação lhe era exigível;

d) Condenar-se as Rés no subsídio de elevada incapacidade correspondente a 12 x IAS = € 5.318,40;

e) Condenar as Rés ao abrigo do disposto no artigo 18.º da LAT no pagamento da pensão anual e vitalícia igual à retribuição, ou seja, 1/14 avos de € 10.605,50 = 757,54 € por catorze vezes;

f) Condenar as Rés no pagamento da assistência clínica necessária à aplicação de prótese de acordo com o médico assistente escolhido pelo sinistrado (já que apenas beneficie de tratamento pelo SRS) e bem assim em toda assistência clínica e medicamentosa que venha a necessitar no futuro para completa recuperação.

g) Condenar as Rés no reembolso da importância de € 30,03 despendida pelo sinistrado em medicamentos;

h) Condenar as Rés no pagamento de prestação suplementar decorrente da necessidade de assistência de terceira pessoa no montante mensal de € 559,60, e anual de € 559,60 × 14;

i) Condenar a Ré COPRAVE no pagamento de danos não patrimoniais decorrentes diretamente ocasionados pelo acidente, a indemnização nunca inferior a € 30.000,00;

j) Sobre as importâncias peticionadas, ressalvada a da alínea h), deverão as Rés ser condenadas a pagar os juros de mora que à taxa legal se vencerem a contar a data da data da alta e até integral e efetivo pagamento.

k) Condenar as Rés a caucionarem pagamento das pensões que forem devidas.”


*


Para tanto, o Autor alegou, em síntese, o seguinte:

- Que em 10 de Maio de 2022, trabalhava por conta da 2.ª Ré, no exercício de funções de trabalhador indiferenciado;

- Que nessa data, no exercício das suas funções, ao limpar uma máquina de picagem de carne que tinha no painel da frente os botões de ligar e desligar, e tendo a sua mão direita na engrenagem destinada a picar, para remover a carne que aí se encontrava, deve ter roçado com o corpo onde se encontravam os botões de ligar e desligar, no painel da frente, a máquina começou a funcionar e sofreu a decepagem completa da sua mão direita, lesão que lhe determinou um período de incapacidade temporária e, após a alta, uma incapacidade permanente absoluta (IPA), bem como danos não patrimoniais cujo ressarcimento pretende;

- Que, na altura, a 2.ª Ré tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a 1.ª Ré e que o acidente se deveu a uma conduta culposa da parte da empregadora, 2.ª Ré, quer em relação ao estado da máquina, quer no que diz respeito à ausência de formação ministrada com vista o seu manuseio.


*


A Ré empregadora, depois de citada, apresentou contestação alegando, em suma, que não houve culpa da sua parte na ocorrência deste acidente, não devendo ser responsabilizada pelos danos dele resultantes e que deve ser apenas a seguradora, 1.ª Ré, responsabilizada pela reparação do acidente, sem lhe ser atribuído direito de regresso.

Conclui defendendo a improcedência da ação quanto a si e a sua absolvição do pedido.


*


Também a Ré Seguradora, após a sua citação, contestou a ação, alegando, em suma, que apenas aceita a existência de um contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a 2.ª Ré, por meio do qual se encontrava para si transferida a responsabilidade por acidentes sofridos pelo Autor com base na retribuição anual de € 10.605,50, mas não aceita a responsabilidade pela reparação do acidente em causa nos autos uma vez que o mesmo decorreu da violação de regras de segurança por parte da empregadora e, também, porque não concorda com o resultado do exame médico-legal realizado na fase conciliatória.

Terminou pedindo se reconheça a responsabilidade da Ré empregadora e o seu direito de regresso, nos termos do artigo 79.º, n.º 3, da LAT.

A Ré Seguradora veio ainda responder à contestação da 2.ª Ré, nos termos do artigo 129.º, n.º 3, do CPT, mantendo a posição assumida na sua contestação e alegando que, caso se venha a provar a matéria alegada pela Ré empregadora, se a máquina reunia todas as condições de segurança exigidas, dispondo de proteção dos comandos de ligar e desligar e estando afixados junto desta todos os avisos de perigo existentes, nomeadamente o da proibição de colocar as mãos na “boca” da entrada de carne, e se o Autor dispunha de formação e de todas as informações de segurança necessárias para operar com a máquina “picadora” e estava expressamente proibido de colocar as mãos no seu interior, este violou, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela empregadora para a operação e limpeza da máquina, o que fez de forma grosseiramente negligente e impõe a descaracterização do acidente, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 1, als. a) e b), da LAT.


*


Foi proferido Despacho Saneador, onde foi fixado à ação o valor de € 253.569,89 e enunciados os factos assentes, bem como os temas da prova.

Ordenou-se o desdobramento do processo para fixação da incapacidade laboral do Autor.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com data de 27/12/2023, que terminou com o seguinte dispositivo:

«[…]

Pelo referido, atentas as orientações atrás explanadas, e ponderados todos os princípios e normas jurídicas que aos factos apurados se aplicam, julga o Tribunal a ação nos seguintes termos:

a) Fixa-se, em favor do Autor, AA, pela IPP de 60%, com IPATH, de que se encontra afetado, uma pensão anual no valor de € 6.575,41, com acréscimo de € 2757,43 a título de agravamento por atuação culposa da empregadora, no valor total de € 9332,84;

b) Fixa-se, em favor do Autor, um subsídio por situação de elevada incapacidade, no valor de € 5148,19;

c) Fixa-se, em favor do Autor, uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, no valor mensal de € 400,00;

d) Fixa-se, em favor do Autor, uma prestação de reembolso de quantias despendidas com a aquisição de medicamentos, no valor de € 30,03;

e) Fixa-se, em favor do Autor, o direito a assistência clínica e técnica para colocação de prótese;

f) Fixa-se, em favor do Autor, uma indemnização por danos não patrimoniais, no valor de € 10000,00.

g) Condena-se a 1.ª Ré, GENERALI SEGUROS, SA, a pagar ao Autor a pensão anual fixada em a), calculada sem agravamento, o subsídio por situação de elevada incapacidade, fixado em b), a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, fixada em c), a prestação de reembolso de quantias despendidas com a aquisição de medicamentos, fixada em d), assim como a prestar ao Autor a assistência clínica e técnica necessária para a colocação de prótese de mão direita, nos termos fixados em e), sem prejuízo do eventual exercício do direito de regresso por parte da Ré seguradora sobre a Ré empregadora;

h) Condena-se a 2.ª Ré, COPRAVE – SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA., a pagar ao Autor o agravamento da pensão anual fixada em a) e a indemnização por danos não patrimoniais, fixada em f);

i) Condena-se as Rés, na respetiva proporção, a pagar ao Autor os juros de mora devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, desde a data do seu vencimento até definitivo e integral pagamento.

[…]»


*


A Ré COPRAVE – SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. interpôs recurso de Apelação.

A Ré SEGURADORA interpôs recurso subordinado.


*


Tendo esses dois recursos de Apelação sido admitidos e subido ao Tribunal da Relação de Lisboa, onde seguiram a sua normal tramitação e onde foram apreciados e julgados por Acórdão de 8.05.2024, que decidiu o seguinte:

“Em face do exposto:

6.1. Não se conhece do recurso subordinado interposto pela Ré Seguradora,

6.2. Julga-se improcedente o recurso em sede de impugnação da decisão de facto;

6.3. Concede-se provimento ao recurso interposto pela Ré COPRAVE - SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, revogando-a na parte em que condenou a Ré recorrente no pagamento de valores ao sinistrado e em custas, bem como na parte em que ressalva o eventual direito de regresso da Ré Seguradora;

6.4. Condena-se a Ré GENERALI SEGUROS, S.A.:

6.4.1. A pagar ao Autor AA uma pensão anual e vitalícia no valor de € 6.575,41 com início em 14 de Fevereiro de 2023, atualizável, correspondendo cada prestação mensal a 1/14 da pensão anual;

6.4.2. A pagar ao Autor um subsídio de elevada incapacidade, a ser pago de uma só vez, no valor global de € 5.148,19;

6.4.3. A pagar ao Autor uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, no valor mensal de € 400,00;

6.4.4. A pagar ao Autor a quantia de € 30,03 a título de reembolso de quantias despendidas com a aquisição de medicamentos;

6.4.5. A prestar ao Autor a assistência clínica e técnica necessária para a colocação de prótese de mão direita;

6.4.6. a pagar ao Autor juros de mora, à taxa legal sobre as supra referidas quantias desde as datas dos seus vencimentos e até integral pagamento;

6.5. Absolve-se a recorrente COPRAVE - SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. de todo o pedido.

Condenam-se os recorridos Seguradora e Sinistrado nas custas de parte que sejam devidas à recorrente, na proporção do seu decaimento”.


*


O Autor interpôs recurso de revista, tendo para o efeito apresentado as correspondentes alegações e formulado as seguintes conclusões:

«I - Nas circunstâncias expostas na matéria de facto assente e considerada por primeira e segunda instâncias, a douta sentença considerou verificados os pressupostos da condenação da Recorrida na responsabilidade especial excedentária vincada no artigo 18.º da LAT: falta de observância de regras de segurança e disso decorrente em consequência, a produção do acidente. O Venerando Acórdão da Relação considerou que, por na secção em que laborava o sinistrado se encontrar sinal de aviso de perigo de introdução das mãos no engenho, 'Sem fim', por ser intuível e acessível a qualquer um que uma máquina destinada a triturar ou moer pedações de carne é apta a esfacelar a mão que lá se ponha, então não é de imputar à Entidade Empregadora a imputada violação das regras de segurança.

II - Quando se prova que a máquina em que laborava o sinistrado num primeiro dia, embora de características semelhantes à que laborava há cerca de uma semana, dispunha de botoneira em localização diversa, sem resguardo ou cobertura, logo suscetível de acionamento por ato involuntário, como sucedeu, quando se prova que não foi dada qualquer indicação ao sinistrado para que, quando procedesse à lavagem da máquina, função que lhe estava cometida, a desligasse da corrente elétrica, está demonstrado que a Recorrida não deu cumprimento como devia, porque legalmente imposto, adotando as medidas que prevenissem e ou desagravassem o risco da produção de acidente e que de tal incumprimento e só dele decorreu o acidente.

III - Lá por ser intuível e acessível a qualquer um que se não deve colocar as mãos em máquina de corte, até porque está patente a existência de aviso de alerta nesse sentido, não significa concluir que na utilização de equipamento dotado de botoneiras sem resguardo e sem cobertura, que sem qualquer informação dada ao trabalhador que na lavagem da máquina devia desligá-la da corrente elétrica, e que por via disso ocorreu o sinistro, não pode considerar-se face aos princípios e regras em matéria de segurança (Portaria/Regulamento Geral de Segurança e Saúde do Trabalhado em Estabelecimentos Industriais e Decreto-Lei 50/2005) que não é imputável à Entidade Empregadora a verificada inobservância de tais regras.

IV - Nas concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente e tal como as instâncias as considerarem, é manifesto que o acidente só ocorre por a Entidade Empregadora não observou as regras de segurança e saúde que lhe eram legalmente exigíveis, estando assim por preenchidos os pressupostos da responsabilidade excedentária do art.º18.º da LAT.

V - O douto Acórdão ao não considerá-lo, afronta e viola o disposto no artigo 18.º da LAT, mercê da tábua rasa que faz das regras que se impõem à Entidade Empregadora, designadamente quanto às obrigações decorrentes do disposto no artigo 8.º, n.ºs l e 2, a) do Dec.-Lei n.º 50/2005 e art.º 3.º, f), g) e h) do RGSHTEI - Portaria 702/80.

VI - A tese que afaste a necessidade de cumprimento de regras de segurança que legalmente se impõem à entidade empregadora, à luz de princípio naturalístico de que o risco de acidente do trabalho é mais ou menos intuível e acessível a qualquer trabalhador normal, em última análise permitirá afastar, em todo e em qualquer caso, a responsabilidade objetiva da Entidade Empregadora decorrente da violação de regras de segurança.

VII - No caso concreto as circunstâncias que rodearam o sinistro dos autos, por estar provada a inobservância de regras de segurança que impendiam sobre a Recorrida e só de tal inobservância ter resultado o acidente, aconselham outra ponderação e correta aplicação do direito, devendo por conseguinte o douto Acórdão da Relação ser revogado e substituído por outro que em alto aconselhamento julgue verificados os pressuposto da responsabilidade objetiva da Recorrida, como já decorria da sentença de Primeira Instância.

Em tal conformidade deve o presente ser julgado procedente e por via disso revista a decisão tomada no douto Acórdão recorrido, com as legais consequências, assim se fazendo adequada e devidamente aconselhada aplicação do direito.»


*


Também a Ré Seguradora veio interpor recurso de revista, tendo para o efeito igualmente apresentado as correspondentes alegações e formulado as seguintes conclusões:

«A. A Recorrente não se conforma com a decisão e com os fundamentos invocados no Acórdão da Relação de Lisboa, nomeadamente, com a apreciação crítica dos factos assentes e com a interpretação e aplicação da Lei ao caso concreto.

B. A Recorrente não observou cabalmente as disposições relativas à obrigação de informação e formação previstas no artigo 8.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 16 de março, nem o disposto no artigo 3.º, alienas f), g) e h) do RGSHTEI.

C. Como resultou provado, a empregadora não ministrou ao sinistrado formação sobre o manuseamento e a limpeza da máquina de picagem/moagem de carne, nem lhe deu qualquer indicação para desligar a máquina da corrente elétrica no ato de lavagem da mesma.

D. Sendo certo que, conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão uniformizador de jurisprudência proferido no processo n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1: “(...) para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida verificação”.

E. O que manifestamente se verifica no caso concreto.

F. Com efeito, ao contrário do que refere o Tribunal “a quo”, não existia qualquer “proibição expressa” de introdução das mãos na máquina, sendo certo que a mera sinalização, que mais não é do que o cumprimento de um dever geral de cuidado por parte da empregadora, apenas poderia, no limite, servir para relembrar o sinistrado, aquando do exercício das suas tarefas, para a perigosidade das mesmas, mas não afastava a necessidade de formação e informação sobre os riscos de contacto mecânico envolvidos.

G. Acresce que essa sinalização não era de algum modo suficiente para se concluir, como concluiu o douto Tribunal, que o incumprimento da obrigação de formação a cargo da empregadora se tornou indiferente para a produção do dano – se algo for indiferente em matéria de segurança, é essa sinalização, uma vez que nada vale desacompanhada da devida formação e informação, e, na verdade, não resulta dos autos que o sinistrado tenha sido alertado para a sinalização existente, ou que tivesse reparado na sua existência.

H. Por outro lado, à luz das regras da experiência comum, o trabalhador nunca sequer equacionou o risco que corria uma vez que a máquina estava parada, e nenhuma circunstância fazia prever que ia entrar em movimento, pelo que é perfeitamente legítimo que o sinistrado não tenha equacionado os riscos envolvidos da tarefa que executava.

I. Acresce que a circunstância de a máquina estar munida de um taco de plástico que se utilizava para empurrar a carne para baixo também não pode, em caso algum, servir para aligeirar a responsabilidade da empregadora.

J. De facto, tal taco destinava-se a “empurrar a carne para baixo” e não para retirar restos de carne ou qualquer outro corpo que se encontrasse preso na engrenagem da máquina, sendo certo que não foi feita prova de que o taco fosse efetivamente utilizado parar esse efeito.

K. As conclusões do Tribunal “a quo” são, assim, inadmissíveis e esvaziam de escopo de todas as normas violadas, que dispõe sobre segurança no trabalho.

L. É evidente que ao não dar formação ao sinistrado, explicando-lhe que não podia colocar as mãos na máquina, mesmo quando esta está “apenas” desligada, e ao não informar o sinistrado que tem de desligar a máquina da corrente elétrica antes de proceder à sua limpeza, a empregadora aumentou a probabilidade da ocorrência do acidente envolvendo o contacto do trabalhador com os elementos mecânicos do equipamento.

M. Sendo certo que em caso algum se pode considerar “imprevisível e excecional” a circunstância de um trabalhador sem qualquer formação colocar a mão dentro de uma máquina quando esta está desligada, só porque existe uma sinalética de perigo, em cima da máquina, com indicação para não se “colocar as mãos”, assim como não se pode considerar que esse comportamento é “incompreensível”.

N. Face ao exposto, deverá ser revogada a decisão do Acórdão recorrido, sendo substituído por uma decisão que conclua pela verificação dos pressupostos previstos no artigo 18.º, n.º 1, da LAT, condenando a Recorrida a reparar o acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado nos termos aí previstos, e reconhecendo o direito de regresso da ora Recorrente sobre todas as quantias que já pagou e venha a pagar por conta deste acidente.

Nestes termos, e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deverá a presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão do Tribunal da Relação, condenando-se a Recorrida a reparar o acidente nos termos do artigo 18.º, n.º 1 da LAT, e reconhecendo-se o direito de regresso da ora Recorrente, assim se fazendo a costumada Justiça!»


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Por despacho judicial de 21.06.2024, os dois recursos de Revista foram admitidos.

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O ilustre Procurador Geral Adjunto colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça proferiu, ao abrigo do número 3 do artigo 87.º do Código de Processo do trabalho, Parecer com data de 17/09/2024 e que vai no seguinte sentido: «Em suma, somos de parecer que os recursos interpostos devem ser considerados procedentes, revogando-se o douto acórdão recorrido, repristinando-se a douta sentença de 1.ª instância.»

***


Tendo as partes sido notificadas do teor de tal Parecer, vieram as mesmas responder-lhe dentro do prazo legal de 10 dias, tendo cada uma delas manifestado a sua concordância ou discordância, de acordo com o que já haviam sustentado nas suas alegações de recurso.

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Cumpre apreciar e decidir em Conferência.

II – OS FACTOS

O tribunal da 1.ª instância – dado que o Tribunal da Relação de Lisboa julgou totalmente improcedente a impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto - considerou provados e não provados os seguintes factos:

«1. Desde o dia 9 de Agosto de 2019, AA exercia funções no interesse e sob as ordens, direção e fiscalização de COPRAVE – SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA., com a categoria profissional de ‘trabalhador indiferenciado’.

2. Auferindo, a partir de Janeiro de 2022, uma retribuição base no valor correspondente a € 740,25 (x 14 prestações por ano), com acréscimo de € 22,00 (x 11 prestações por ano), a título de subsídio de alimentação, num valor anual de € 10605,50.

3. COPRAVE – SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. dedica-se ao fabrico de produtos à base de carnes.

4. Quando foi admitido ao serviço da 2.ª Ré, COPRAVE, LDA., o Autor foi colocado na secção de congelados.

5. Cabendo-lhe, por determinação da 2.ª Ré:

- movimentar ‘blocos de carne’ congelada;

- proceder ao seu descongelamento; e,

- após separada a carne, proceder ao seu embalamento, à sua pesagem, à sua etiquetagem e ao seu acondicionamento para fornecimento aos clientes.

6. A atividade descrita no número anterior era exercida sem maquinaria de picagem/moagem de carnes.

7. O Autor manteve-se nesta secção até duas semanas antes do dia 10 de Maio de 2022.

8. Nessa altura, foi transferido para a secção de picagem/moagem de carnes.

9. Nesta secção, cabia-lhe, por determinação da 2.ª Ré:

- movimentar caixas de carne, de forma manual, para junto da máquina de picagem /moagem;

- acionar esta máquina;

- colocar a carne na máquina de picagem/moagem, de forma manual;

- recolher e acondicionar a carne já moída para ser embalada;

- proceder à lavagem da máquina, após a sua utilização.

10. Na primeira semana em exercício de funções nesta secção, o Autor esteve afeto à máquina de corte de carnes.

11. E, na segunda semana, por indicação da responsável/encarregada pela produção e qualidade, BB, o Autor passou a proceder à picagem/moagem de carnes, em máquina que lhe foi indicada para tal, nas condições descritas em 9);

12. Esta máquina era encimada por uma abertura, com bocal redondo, onde era colocada a carne destinada à picagem/moagem, tendo no seu interior uma engrenagem, denominada moinho/‘sem-fim’, para onde esta carne seguia e era picada/moída;

13. Tal máquina tinha os seus botões de ‘ligar e desligar’ na parte lateral, atrás;

14. E era munida de um taco de plástico que o manobrador utilizava para empurrar a carne para baixo (para o moinho/‘sem fim’).

15. No dia 9 de Maio de 2022, esta máquina avariou.

16. Na sequência desta avaria, a 2.ª Ré substituiu esta máquina por uma outra que tinha em armazém.

17. Esta máquina de substituição:

- tinha as mesmas características definidas em 12) e 14);

- tinha, pelo menos, 1,00 metro de altura;

- não tinha certificação ‘CE’;

- dispunha dos seguintes elementos identificativos: “IPACEC”, “1999”, “MECANIPOL”, “105080/22”;

- tinha os seus botões de ‘ligar e desligar’ na parte lateral, à frente;

- ambos estes botões dispunham de anilha de metal à sua volta;

- mas não dispunham de resguardo ou cobertura.

18. No dia 10 de Maio de 2022, nas circunstâncias descritas em 16), os serviços da 2.ª Ré colocaram esta máquina, identificada no número anterior, à disposição do Autor, para o exercício das suas funções.

19. O Autor, em tais circunstâncias, manuseou esta máquina, no exercício das suas funções.

20. E, após a picagem/moagem de carne, ainda no período da manhã, iniciou a lavagem da máquina.

21. Estando colocado, então, em cima de um estrado.

22. Nesse procedimento de lavagem, o Autor colocou a sua mão direita no interior da engrenagem (moinho/‘sem-fim’) para retirar um pedaço de carne que aí se encontrava agarrado.

23. Nesse momento, sem que mais alguém, para além do Autor, estivesse em contacto com esta máquina, a mesma foi acionada e começou a funcionar.

24. E, na sequência do descrito nos dois números anteriores, a engrenagem destinada à picagem de carne atingiu o membro superior direito do Autor.

25. Decepando a sua mão direita.

26. Como consequência do descrito nos dois números anteriores, o Autor:

a) sofreu amputação traumática da sua mão direita (lado ativo);

b) ficou sujeito a incapacidade temporária absoluta (ITA), desde 11 de Maio de 2022 até 13 de Fevereiro de 2023, com alta fixada nesta última data;

c) já recebeu, da parte da empregadora, a indemnização calculada por referência ao período de incapacidade temporária;

d) recebeu tratamento de fisioterapia e de terapia ocupacional (com treino de transferência de lateralidade);

e) despendeu, com a aquisição de medicamentos, a quantia de € 30,03;

f) recebeu indicação, na especialidade de cirurgia plástica, para regularização do coto ao nível do radio distal, imobilização da articulação radio cubital distal, revestimento ósseo com retalhos locais e enxerto de pele total;

g) apresenta-se, após a alta, com uma incapacidade permanente parcial (IPP), com o coeficiente arbitrado de 60% (tendo como referência o Capítulo I, 8.5.7.1, da Tabela Nacional de Incapacidades);

h) e apresenta-se com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH);

i) encontra-se afetado em termos psicológicos, com ‘flashbacks’ na presença de instrumentos cortantes;

j) apresenta diagnóstico de perturbação depressiva e de perturbação de stress pós-traumático;

l) é acompanhado em consultas de psicologia;

m) sente-se revoltado, irritável e ansioso ;

n) sente dores na zona da lesão (coto);

o) com a transferência de lateralidade, tem dificuldades em escrever com a mão esquerda;

p) necessita da ajuda de uma outra pessoa para:

- lavar e enxaguar as costas;

- vestir-se;

- atar calçado;

- confecionar e cortar alimentos;

- lavar a loiça;

- vestir e mudar a fralda à sua filha;

27. Nas circunstâncias descritas em 8) a 25), a 2.ª Ré não havia ministrado ao Autor formação sobre o manuseamento e a limpeza de uma máquina como a identificada em 17);

28. Nas mesmas circunstâncias, na sala onde o Autor se encontrava a exercer funções, existia sinalização gráfica de alerta para o ‘risco de utilização de equipamentos de cortes’.

29. Essa sinalização estava colocada por cima da máquina picadora.

30. E consistia num aviso de ‘perigo’ com referência a este engenho, com proibição de se ‘colocar as mãos’.

31. Nas mesmas circunstâncias, não existia indicação dada pelos serviços da 2.ª Ré, junto dos seus funcionários, para desligar esta máquina da corrente elétrica no ato de lavagem da mesma.

32. Desde 10 de Maio de 2022 até ao presente, a 2.ª Ré pagou ao Autor a sua retribuição mensal, de forma integral.

33. No dia 10 de Maio de 2022, COPRAVE, LDA. tinha a sua ‘responsabilidade por acidente de trabalho’ transferida para GENERALI SEGUROS, SA, mediante a apólice n.º …13.

34. O Autor nasceu no dia ... de Julho de 1993.


**


Não se provou que:

a) A máquina identificada em 17) fosse 70 centímetros mais alta do que a máquina identificada em 12), 13) e 14);

b) Nas máquinas identificadas em 12), 13), 14) e 17), a distância entre a orla da ‘boca’ e o ‘sem-fim’ fosse de 20 a 30 centímetros;

c) A máquina identificada em 17), à data destes factos, não dispusesse de marca com indicação do ano de fabrico;

d) A 2.ª Ré, através das suas funcionárias, técnicas responsáveis pela ‘segurança, saúde e higiene no trabalho’, BB e CC, tenha prestado, em favor do Autor, formação para lidar com máquinas de corte e picagem/moagem de carnes, como as identificadas em 12), 13), 14) e 17);

e) A mesma formação tenha sido prestada pela 2.ª Ré, em favor do Autor, através de ‘empresa de segurança e saúde no trabalho’, S…, Lda.;

f) Nas condições descritas nas duas alíneas anteriores, a 2.ª Ré tenha transmitido ao Autor a proibição de introduzir os seus membros na ‘boca’ da máquina, por perigo de corte e esfacelo, mesmo no caso de necessidade de ‘desimpedir’ algum pedaço de carne ‘agarrado’ ao ‘sem-fim’;

g) E tenha transmitido ao Autor que, para limpeza desta máquina, deveria retirar o ‘sem-fim’ com o engenho desligado e retirado da sua fonte de energia (eletricidade);

h) O Autor tenha o 9.º ano de escolaridade;

i) A mulher do Autor, DD, tenha sido admitida ao serviço da 2.ª Ré após 10 de Maio de 2022;

j) Quaisquer outros factos com relevância na decisão da presente causa.».


***


III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 679.º, 639.º e 635.º, n.º 4, todos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).


*


A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação (na sua fase conciliatória - cf. artigo 26.º, números 2 e 3 e 99.º do Código do Processo do Trabalho de 1999) ter dado entrada em tribunal em 05 de Setembro de 2022, ou seja bastante depois da entrada das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.

Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.

Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas nestes dois recursos de Revista.

Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.

Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos, face à data em que se verificou o acidente de trabalho – 10/05/2022 – terem todos ocorrido na vigência das normas constantes do Código do Trabalho de 2009 – que entrou em vigor em 17/02/2009 - relativas aos acidentes de trabalho (artigos 281.º e seguintes) e da legislação especial que só veio a encontrar a luz do direito com a Lei n.º 98/2009, de 4/09 e que, segundo os seus artigos 185.º, 186.º e 187.º, revogou o regime anterior (ou seja, a Lei dos Acidentes do Trabalho aprovada pela Lei n.º 100/97, de 13/09 e a respetiva regulamentação inserida no Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04) e está em vigor desde 1/01/2010 e para eventos infortunísticos de carácter laboral ocorridos após essa data.

B – OBJETO DA PRESENTE REVISTA

A única questão de índole substantiva que se discute neste recurso de revista é saber se, no caso concreto dos autos, estão verificados os pressupostos da responsabilidade agravada da Ré COPRAVE – SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. nos termos do artigo 18.º da LAT e, subsequentemente, do reconhecimento do direito de regresso da Ré Seguradora sobre a empregadora, relativamente aos valores liquidados pela Companhia de Seguros ao Autor, a título das prestações normais decorrentes do regime jurídico em questão.

C – FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA

A sentença do Juízo do Trabalho de … reconheceu, nos moldes constantes da sua argumentação que adiante se reproduz, o direito do Autor a receber da Ré empregadora:

«No caso em apreciação, e face aos factos dados como provados, é desde logo de concluir que os mesmos configuram um acidente de trabalho, a atingir o Autor no dia 10 de Maio de 2022. Com efeito, nesta data, AA, no exercício das suas funções de ‘trabalhador indiferenciado’/‘operário’ por conta de COPRAVE – SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. (com quem havia celebrado um contrato de trabalho), ao manusear uma máquina de picagem/moagem de carne, ao proceder à lavagem desta máquina, no momento em que introduziu o seu membro superior direito no interior deste engenho, procurando retirar um pedaço de carne que se encontrava agarrado à engrenagem que pica a carne (moinho/‘sem-fim’), e porque esta máquina, naquele momento, foi acionada (sendo seguro afirmar, atentos os factos provados, que assim ocorreu de forma inadvertida, com algum contacto fortuito do próprio Autor com o seu botão de acionamento), foi atingido por esta engrenagem no seu membro superior direito, sofrendo amputação traumática dessa sua mão. Como consequência, e para além do mais, o Autor ficou sujeito a um período de incapacidade temporária absoluta (ITA) até 13 de Fevereiro de 2023, data da alta, ficando, após, com uma incapacidade permanente parcial (IPP) com o coeficiente arbitrado de 60%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH).


*


[…]

*


Os factos provados, de forma distinta, levam a considerar, sim, que há responsabilidade da Ré empregadora na ocorrência deste acidente, por inobservância das regras de segurança, nos termos do art.º 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro. Como se viu, o Autor, ao operar uma máquina de picagem/moagem de carne no exercício das suas funções, procedia, na altura, à sua lavagem, procurando, naquele momento, retirar um pedaço de carne que se encontrava agarrado à engrenagem que procede à picagem da carne, o denominado moinho/‘sem-fim’. Mesmo admitindo que, na lavagem desta máquina, o Autor tinha de retirar o ‘sem-fim’ para fora – e os factos provados não permitem concluir se o Autor ia fazê-lo, ou não –, a verdade é que, de uma forma ou de outra, sempre teria, neste procedimento de lavagem, de ter algum contacto com essa engrenagem. A máquina, naquele instante, foi acionada, começou a trabalhar, assim tendo ocorrido de forma inadvertida, seguramente com algum contacto fortuito do corpo deste trabalhador com os botões do equipamento, e o que também é certo é que esses botões, apesar da tal anilha de metal à sua volta, não tinham qualquer cobertura ou resguardo de forma a impedir, efetivamente, este acionamento involuntário do equipamento. O Autor, de resto, estava a lavá-lo sem ter desligado o mesmo da corrente elétrica, não existindo indicação dada pelos serviços da 2.ª Ré, junto dos seus funcionários, para desligar o aparelho da sua fonte de alimentação em tais circunstâncias. É verdade que existia alguma sinalização de ‘perigo’ nesta sala onde estava a trabalhar, mesmo com referência ao contacto das mãos com equipamentos potencialmente perigosos, mas, ainda assim, não pode ignorar -se: era função do Autor, determinada pela sua empregadora, e para além do mais, lavar a máquina, o que sempre exigia o contacto com o ‘sem-fim’, não sendo essa sinalização, de todo, suficiente para garantir as condições de segurança necessárias ao manuseio deste equipamento por um determinado trabalhador, neste caso pelo Autor. De resto, e como já vimos, ao Autor não tinha sido ministrada formação sobre os cuidados a ter em matéria de segurança na utilização em concreto de uma máquina como esta (de picagem /moagem de carne). Tratava-se de um ‘trabalhador indiferenciado’, pouco qualificado. E mesmo com muito pouca experiência nesta função em particular, sendo, naquela manhã, o primeiro dia que tinha contacto com aquela máquina em concreto, estando apenas há uma semana a operar com máquinas de picagem/moagem de carne, e estando mesmo só há duas semanas naquela secção da empresa. Tudo isto, então, sem se observar o disposto nos arts. 3.º, alíneas a) e e), 8.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d), 11.º, n.ºs 1, 2 e 5, 12.º, n.º 1 e 13.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro (prescrições mínimas de segurança e saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho), sendo exatamente por estar em contacto com esta máquina, nas condições acima descritas, que o Autor, no exercício das suas funções, acabou por ser atingido na sua mão direita pelo movimento da engrenagem deste aparelho, dando-se, assim, a lesão, neste caso a própria amputação dessa mão.

Pelo referido, estão reunidas todas as condições, do ponto de vista material, atentos os factos provados, para estabelecer um nexo de imputação objetiva entre essa ação/omissão/violação das regras de segurança, o sinistro ocorrido e as consequências danosas produzidas pelo mesmo. Houve, pois, uma conduta negligente imputável à empregadora, em diversos planos, podendo concluir-se que este acidente resultou dessa ação/omissão negligente da 2.ª Ré, consistente na citada falta de observância das regras de segurança.»

D – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

O Tribunal da Relação de Lisboa, chamado a decidir os recursos de Apelação que foram interpostos pela Ré empregadora [a título principal] e pela Ré Seguradora [a título subordinado] da mencionada sentença final, não veio a conhecer este último e a julgar o primeiro procedente com base na seguinte fundamentação jurídica [tendo a impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto sido julgada improcedente]:

«Analisando as regras legais aplicáveis, deve começar por se dizer que o dever de o empregador observar as regras de segurança no trabalho se encontra genericamente previsto nos artigos 127.º, n.º 1, alíneas g) e h) e 281.º do Código do Trabalho.

A Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, que veio estabelecer o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho após o Código do Trabalho de 2009, estabelece como princípio geral, no n.º 1 do seu artigo 5.º, que “o trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições que respeite a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou coletiva, que detenha a gestão das instalações em que a atividade é desenvolvida”.

Quanto às obrigações gerais do empregador, o artigo 15.º estabeleceu no seu n.º 1 que “[o] empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho”, dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que o empregador deve “zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador”, tendo em conta os princípios gerais de prevenção que enuncia nas alíneas a) a i) do preceito.

Há ainda a considerar as regras constantes do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 20 de Fevereiro, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativas às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, e revoga o Decreto-Lei n.º 82/99, de 16 de Março. O diploma define na alínea a) do seu artigo 2.º “equipamento de trabalho” como “qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho” e na alínea a) do seu artigo 3.º, a obrigação do empregador de “[a]ssegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efetuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização”.

Por seu turno o artigo 8.º , sob a epígrafe “Informação dos trabalhadores”, estabelece no seu n.º 1 que “[o] empregador deve prestar aos trabalhadores e seus representantes para a segurança, higiene e saúde no trabalho a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados” e no n.º 2 que “[a] informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre:

a) Condições de utilização dos equipamentos;

(…)

d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afetar os trabalhadores, ainda que não os utilizem diretamente”.

Os artigos 11.º, 12.º e 13.º do diploma, também invocados na decisão recorrida, dispõem ainda nos seguintes termos:

“Artigo 11.º

Sistemas de comando

1 - Os sistemas de comando de um equipamento de trabalho que tenham incidência sobre a segurança devem ser claramente visíveis e identificáveis e ter, se for caso disso, uma marcação apropriada.

2 - Salvo nos casos de reconhecida impossibilidade, os sistemas de comando devem ser colocados fora das zonas perigosas e de modo que o seu acionamento, nomeadamente por uma manobra não intencional, não possa ocasionar riscos suplementares.

(…)

5 - Os sistemas de comando devem ser seguros e escolhidos tendo em conta as falhas, perturbações e limitações previsíveis na utilização para que foram projetados”.

Artigo 12.º

Arranque do equipamento

1 - Os equipamentos de trabalho devem estar providos de um sistema de comando de modo que seja necessária uma acção voluntária sobre um comando com essa finalidade para que possam:

a) Ser postos em funcionamento;

b) Arrancar após uma paragem, qualquer que seja a origem desta;

c) Sofrer uma modificação importante das condições de funcionamento, nomeadamente velocidade ou pressão.

(…)”.

Artigo 13.º

Paragem do equipamento

1 - O equipamento de trabalho deve estar provido de um sistema de comando que permita a sua paragem geral em condições de segurança, bem como de um dispositivo de paragem de emergência se for necessário em função dos perigos inerentes ao equipamento e ao tempo normal de paragem.

2 - Os postos de trabalho devem dispor de um sistema do comando que permita, em função dos riscos existentes, parar todo ou parte do equipamento de trabalho de forma que o mesmo fique em situação de segurança, devendo a ordem de paragem ter prioridade sobre as ordens de arranque.

3 - A alimentação de energia dos acionadores do equipamento de trabalho deve ser interrompida sempre que se verifique a paragem do mesmo ou dos seus elementos perigosos”.

E, finalmente, há que atentar no Regulamento Geral de Higiene e Segurança no Trabalho nos Estabelecimentos Industriais, aprovado pela Portaria n.º 53/71, de 3 de Fevereiro, com as alterações constantes da Portaria n.º 702/80, de 22 de Setembro (RGSHTEI), diploma que tem em vista a prevenção técnica dos riscos profissionais e a higiene nos estabelecimentos industriais (artigo 1°). Do seu artigo 3.° constam as obrigações gerais do empregador, designadamente, “[a]dotar as medidas necessárias, de forma a obter uma correta organização e uma eficaz prevenção dos riscos que podem afetar a vida, integridade física e saúde dos trabalhadores ao seu serviço” [alínea b)], “[p]romover as ações necessárias à manutenção das máquinas, dos materiais, das ferramentas e dos utensílios de trabalho em devidas condições de segurança» [alínea c)], “[f]ornecer gratuitamente aos trabalhadores os dispositivos de protecção individual e outros necessários aos trabalhos a realizar, assegurando a sua higienização, conservação e utilização” [alínea f)], “[i]nformar os trabalhadores dos riscos a que podem estar sujeitos e das precauções a tomar, dando especial atenção aos casos dos admitidos pela primeira vez ou mudados de posto de trabalho” [alínea g)], e “[p]romover uma conveniente informação e formação em matéria de higiene e segurança no trabalho para todo o pessoal ao seu serviço” [alínea h)].

Tendo presente este quadro normativo e a factualidade que se apurou, é manifesto que a Ré empregadora não adotou todas as medidas de segurança que se lhe impunham para que o sinistrado realizasse em absoluta segurança a tarefa de limpeza da máquina com que operava.

Com efeito, resulta dos factos provados que, por determinação da Ré empregadora, duas semanas antes do dia 10 de Maio de 2022, o Autor foi transferido para a secção de picagem/moagem de carnes do estabelecimento desta, aí lhe cabendo: movimentar caixas de carne, de forma manual, para junto da máquina de picagem/moagem; acionar esta máquina; colocar a carne na máquina de picagem/moagem, de forma manual; recolher e acondicionar a carne já moída para ser embalada e proceder à lavagem da máquina, após a sua utilização (factos 7. a 9.).

Incluía-se, pois, no âmbito das suas tarefas, operar com a máquina em causa e proceder à sua lavagem.

Resulta também de tais factos que na primeira semana em exercício de funções nesta secção, o Autor esteve afeto à máquina de corte de carnes e na segunda semana, por indicação da responsável, passou a proceder à picagem/moagem de carnes, em máquina que lhe foi indicada para tal e que veio a ser substituída no dia 10 de Maio de 2022 por uma outra máquina que a R. tinha em armazém por se ter avariado a primeira, tendo a segunda máquina as mesmas características da primeira, destacando-se as seguintes diferenças: não tinha certificação “CE”, tinha os seus botões de ‘ligar e desligar’ na parte lateral, à frente (enquanto a primeira os tinha na parte lateral, atrás), ambos estes botões dispunham de anilha de metal à sua volta e não dispunham de resguardo ou cobertura (factos a 10. a 19.).

Quanto às circunstâncias específicas do acidente, recorde-se ter ficado provado que nesse dia, após a picagem / moagem de carne, ainda no período da manhã, o Autor iniciou a lavagem da máquina e, nesse procedimento, colocou a sua mão direita no interior da engrenagem (moinho/‘sem-fim’) para retirar um pedaço de carne que aí se encontrava agarrado e “nesse momento, sem que mais alguém, para além do Autor, estivesse em contacto com esta máquina, a mesma foi acionada e começou a funcionar”, vindo a engrenagem destinada à picagem de carne a atingir o membro superior direito do Autor, decepando a sua mão direita (factos 18. a 25.).

E, com maior relevo nesta matéria, ficou também provado que nas circunstâncias descritas em 8. a 25., a 2.ª Ré não havia ministrado ao Autor formação sobre o manuseamento e a limpeza de uma máquina como a identificada em 17. (facto 27.), bem como que não existia indicação dada pelos serviços da 2.ª Ré, junto dos seus funcionários, para desligar esta máquina da corrente elétrica no ato de lavagem da mesma (facto 31.).

Perante estes factos, é manifesto que a empregadora não adotou todas as medidas ao seu alcance para prevenir o risco de acidente com a máquina em causa, não tendo observado cabalmente as disposições relativas à obrigação de informação e formação contidas no artigo 8.º, n.º 1, e 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 16 de Março (incluindo a indicação de que a alimentação de energia dos acionadores do equipamento de trabalho deve ser interrompida sempre que se verifique a paragem do mesmo ou dos seus elementos perigosos, tal como previsto no artigo 13.º, n.º 3, deste diploma), e no artigo 3.º, alíneas f), g) e h), do RGSHTEI aprovado pela Portaria n.º 53/71, de 3 de Fevereiro, na redação que foi conferida pela Portaria n.º 702/80, de 22 de Setembro.

Entendemos contudo ter a recorrente observado, ainda ao nível da obrigação de informação, a prevista no artigo 8.º, n.º 2, alínea d), do Decreto-Lei n.º 50/2005, pois ficou provado que nas mesmas circunstâncias, na sala onde o Autor se encontrava a exercer funções, existia sinalização gráfica de alerta para o ‘risco de utilização de equipamentos de cortes’, sinalização que estava colocada por cima da máquina picadora e que consistia num aviso de ‘perigo’ com referência a este engenho, com proibição de se ‘colocar as mãos’ (factos 28. a 30.).

[…]

Temos de todo o modo por adquirido que a recorrente não observou todas as medidas ao seu alcance para prevenir o risco de acidente com a máquina em causa, não tendo observado cabalmente as supra citadas disposições relativas à obrigação de informação e formação, com exceção, ainda ao nível da obrigação de informação, da obrigação prevista no artigo 8.º, n.º 2, alínea d), do Decreto-Lei n.º 50/2005 (factos 28. a 30.).


*


[…]

5.4. A questão que se coloca prende-se, essencialmente, com saber se, em face da factualidade apurada, pode afirmar-se a verificação do requisito do nexo de causalidade adequada entre a violação destas cautelas que se impunham ao empregador e o concreto acidente que vitimou o sinistrado.

Resulta claramente do artigo 18.º da LAT, e tem sido afirmado pela jurisprudência, constante e pacífica, das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça, que para ser imputada ao empregador a responsabilidade infortunística agravada prevista na lei reparadora dos acidentes de trabalho, não basta que se prove ter ocorrido violação das regras segurança, exigindo-se, também, a demonstração de factos dos quais se possa concluir que foi do desrespeito por tais regras que resultou o evento danoso.

O artigo 18.° da LAT prevê um agravamento da medida da reparação por acidente de trabalho, já que havendo culpa do empregador, seu representante ou pessoa por ele contratada, passa a existir responsabilidade solidária por todos os danos sofridos pelo sinistrado e não apenas pelos danos resultantes da perda da capacidade de trabalho ou de ganho (artigos 23.º e ss. e 48.º e ss. da LAT).

Por este agravamento não responde a seguradora de acidentes de trabalho, podendo a mesma ser demandada nos termos do artigo 79.°, n.º 3 da LAT apenas quanto às prestações que seriam devidas se não houvesse atuação culposa, cabendo-lhe direito de regresso sobre o empregador quanto ao que satisfizer ao sinistrado.

[…]

A teoria da causalidade adequada que este preceito consagra impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado; e, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em geral e abstrato, adequado e apropriado para provocar o dano1. De acordo com esta doutrina na sua formulação negativa, a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a sua produção, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excecionais ou extraordinárias. E assim sendo, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais ou excecionais, que intervieram no caso concreto [2].

Na palavra do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2023.11.03, além de ser condição do dano, é necessário que, “em abstrato, o facto seja idóneo a produzir o tipo de dano ocorrido ou, mais exatamente, que se conclua que provavelmente o lesado não teria sofrido os danos se o facto não tivesse tido lugar (ou, por outras palavras, que o facto não tenha sido indiferente à produção do dano, não tendo este sobrevindo devido à ocorrência de um evento anormal, extraordinário), devendo este juízo de prognose póstuma basear-se naquilo que um observador experiente teria conhecido no momento da prática do facto e ainda naquilo de que o lesante, à data, efetivamente conhecia3.

Sobre a específica questão de saber se, no caso de violação culposa de regras de segurança a imputação do acidente de trabalho exige que a conduta do empregador ou das pessoas indicadas no artigo 18.º da LAT tenha sido condição necessária (conditio sine qua non) da ocorrência do dano ou se se basta com a demonstração de que o sinistro é uma consequência normal, previsível da violação das regras de segurança, foi proferido muito recentemente pelo Pleno da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão de 17 de Abril de 2024, no Processo n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência) e ainda não publicado no Diário da República, que uniformizou jurisprudência no sentido de que:

«(…) para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.°, n.° 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação».

O recurso para uniformização de jurisprudência visa a interpretação e aplicação uniforme do direito e especificamente assegurar a uniformidade da jurisprudência (cfr. artigos 695.º e 686.º, n.º 1, do CPC), o que justifica também a ulterior publicação do acórdão na 1.ª série do Diário da República.

Não pode pois deixar de se aplicar à situação em apreço nos autos a doutrina que decorre da interpretação sufragada em tal aresto relativamente à mesma questão jurídica que aqui nos ocupa – o que, aliás, sempre seria indicado pelo artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, segundo o qual “[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” –, aferindo se, in casu, pode concluir-se que o acidente sofrido pelo autor resultou da conduta inadimplente da recorrente ao inobservar as supra indicadas regras relativas à formação e informação do sinistrado, tal como prevê o artigo 18.º da LAT. O que passa por responder à questão de saber se, nas circunstâncias deste caso concreto, a constatada violação da obrigação de formação e informação do sinistrado por parte da recorrente se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.

[…]

Tendo em consideração a doutrina que emerge deste acórdão, e visto o condicionalismo factual apurado, entendemos que no caso vertente se verifica uma circunstância anómala e excecional impeditiva da afirmação de que o acidente resultou da violação de regras de segurança pelo empregador nos termos do artigo 18.º da LAT.

Senão vejamos.

Ficou provado, quanto ao acidente que no dia 10 de Maio de 2022, após a picagem/moagem de carne, o Autor iniciou a lavagem da máquina e, nesse procedimento, colocou a sua mão direita no interior da engrenagem (moinho/‘sem-fim’) para retirar um pedaço de carne que aí se encontrava agarrado e nesse momento, sem que mais alguém, para além dele, estivesse em contacto com esta máquina, a mesma foi acionada e começou a funcionar, vindo a engrenagem destinada à picagem de carne a atingir a sua mão direita (factos 18. a 25.).

Como se viu, a recorrente não observou cabalmente as disposições relativas à obrigação de informação e formação contidas no artigo 8.º, n.º 1, e 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 16 de Março e no artigo 3.º, alíneas f), g) e h), do RGSHTEI, pois ficou provado que nas circunstâncias descritas em 8. a 25., a 2.ª Ré não havia ministrado ao Autor formação sobre o manuseamento e a limpeza de uma máquina como a identificada em 17. (facto 27.), bem como que não existia indicação dada pelos serviços da 2.ª Ré, junto dos seus funcionários, para desligar esta máquina da corrente elétrica no ato de lavagem da mesma (facto 31.).

É patente que a prestação daquela formação sobre o manuseamento e limpeza da máquina e da indicação no sentido de se desligar a mesma da corrente no ato da lavagem, seriam – em abstrato – aptas a diminuir o risco da verificação do acidente tal como ocorreu.

Simplesmente no caso vertente, não pode perder-se de vista que a máquina descrita nos factos 11. a 17. tem, em si, um grau de perigosidade patente e intuível a qualquer pessoa normal. Na verdade, é acessível a qualquer um que uma máquina destinada a triturar ou moer pedaços de carne que ali se introduzam e que funciona com a simples colocação da carne no bucal e posterior recolha da mesma já moída (o que o sinistrado bem sabia pois operava com ela há pelo menos uma semana) é apta a esfacelar uma mão que se introduza no seu mecanismo. O que nos leva a considerar que, no caso, a formação aos trabalhadores no que concerne à sensibilização dos riscos a que podem estar sujeitos e às precauções a tomar, não constituiria uma formação imprescindível para aportar novos conhecimentos quanto ao modo de operar com a máquina e aos riscos em causa nas operações a efetuar (como acontece por exemplo com a formação de um gruista)4, traduzindo-se tão só num meio de reforço do que é acessível a qualquer um, colocado na posição concreta do trabalhador.

Além disso, ficou provado que a máquina era munida de um taco de plástico que o manobrador utilizava para empurrar a carne para baixo (para o moinho/‘sem fim’) – facto 14. – equipamento específico de que o Autor dispunha para empurrar a carne, enquanto metodologia do trabalho que desenvolvia diariamente pelo menos há uma semana. Este equipamento destina-se justamente a evitar que as mãos alcançassem o moinho/‘sem fim’, o que para o Autor era certamente evidente, não resultando dos factos provados por que razão não terá o mesmo utilizado o taco de plástico ao seu dispor para tentar remover qualquer corpo que estivesse no “sem-fim” ou, sequer, se o utilizou ou não, como bem nota a recorrente.

Finalmente, e com decisiva importância, ficou também provado que, nas circunstâncias do acidente, na sala onde o autor se encontrava a exercer funções, existia uma sinalização gráfica de alerta para o ‘risco de utilização de equipamentos de cortes’, sinalização que estava colocada por cima da máquina picadora e que consistia num aviso de ‘perigo’ com referência a este engenho, com proibição de nele se colocar as mãos (factos 28. a 30.)5. Ou seja, estava claro, em sinalização colocada em cima da própria máquina, que era proibido nela introduzir as mãos, proibição que é absoluta, pois que não se diz que tal é apenas quando a máquina está ligada, não tendo a empregadora restringido de qualquer modo a proibição.

Com esta sinalização, a recorrente cumpriu em parte – embora não cabalmente – o seu dever de formação e informação. E reforçou-o com o comando que inere a uma efetiva proibição de introdução das mãos. Pelo que a conduta do autor que inobservou esta proibição e introduziu a mão direita na máquina a despeito de tal proibição, deve ser perspectivada como um evento anómalo e imprevisível que torna o incumprimento (parcial) da obrigação de formação indiferente para a produção do dano. Procedendo a um juízo de prognose póstuma baseado naquilo que um observador experiente teria conhecido no momento da prática do facto e ainda naquilo que o empregador, à data, efetivamente conhecia, é de considerar que o acidente se ficou a dever a um outro fator imprevisível e excecional (o não acatamento da proibição de introduzir a mão no interior da máquina) que não a conduta do empregador ao incumprir parcialmente o dever de formação do trabalhador.

Bem sabemos que não é necessário para se afirmar o nexo de imputação que se possa afiançar, com toda a certeza, que se a formação e informação em falta houvesse sido proporcionada o dano teria sido evitado.

Seja como for, os factos provados não revelam, a nosso ver, que no caso concreto a omissão – parcelar – do dever de formação e informação por parte da empregadora ora recorrente se tenha traduzido num aumento da probabilidade de ocorrência do acidente sofrido pelo sinistrado recorrido, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, na medida em que havia uma proibição expressa de introdução das mãos na máquina em que se deu o acidente, a qual se encontrava sinalizada (com um sinal gráfico e com uma referência escrita), e a mesma não foi, incompreensivelmente, atendida pelo sinistrado, o que constituiu um fator anómalo e imprevisível e patentemente decisivo para a verificação do dano.»

E – RESPONSABILIDADE AGRAVADA DO EMPREGADOR

A nossa doutrina e jurisprudência tem indicado, com base no artigo 18.º da Lei dos Acidentes de Trabalho e como requisitos específicos para o acionamento da responsabilidade agravada do empregador, os seguintes aspectos:

1) Imputação subjetiva do acidente, na modalidade de dolo ou negligência, cabendo aqui quer a culpa grave como a simples culpa, traduzindo-se tal imputação na circunstância do sinistro ter sido causado intencionalmente por algumas das entidades referidas no artigo 18.º da LAT/2009 ou resultar de uma atuação negligente, por si ou relativamente à observação devida das regras sobre segurança e saúde no trabalho.

2) Existência de um nexo causal entre tais condutas dolosas ou negligentes e o acidente de trabalho.

O ónus da prova de tais elementos constitutivos da responsabilidade agravada do empregador ou das demais entidades previstas no artigo 18.º da LAT/2009 recai sobre o sinsitrado ou sobre os beneficiários deste último, em caso de sinistro mortal.

O artigo 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4/09 possui a seguinte redação:

SECÇÃO IV

Agravamento da responsabilidade

Artigo 18.º

Atuação culposa do empregador

1 - Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.

2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que os responsáveis aí previstos tenham incorrido.

3 - Se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante do empregador, este terá direito de regresso contra aquele.

4 - No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por atuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes:

a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição;

b) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, compreendida entre 70 % e 100 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;

c) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, tendo por base a redução da capacidade resultante do acidente.

5 - No caso de morte, a pensão prevista no número anterior é repartida pelos beneficiários do sinistrado, de acordo com as proporções previstas nos artigos 59.º a 61.º

6 - No caso de se verificar uma alteração na situação dos beneficiários, a pensão é modificada, de acordo com as regras previstas no número anterior.

Importa, nesta matéria, olhar ainda para o que os artigos 126.º a 129.º do Código do Trabalho de 2009, , ao nível dos deveres, direitos e garantias do empregador e do trabalhador e até por força do disposto nos artigos 1.º, 18.º, 24.º, 25.º, 26.º, 59.º, n.ºs 1, als. b), c), d), f) e 2, al. e) da Constituição da República Portuguesa e da legislação europeia, consagra uma grande atenção ao desenvolvimento das funções laborais em condições ótimas em termos de higiene, segurança e saúde, numa relação quadripartida entre o Estado, a comunidade, os empregadores e os trabalhadores, quer a título individual, como ao nível dos seus órgãos representativos (sindicatos, comissões de trabalhadores e representantes para a higiene, saúde e segurança no trabalho).

Vejam-se também os artigos 281.º a 284.º do Código do Trabalho de 2009, que traçam os grandes princípios norteadores do quadro legal dos acidentes de trabalho e doenças profissionais que consta, fundamentalmente, da Lei n.º 98/2009, de 4/09, bem como as normas essenciais contidas no artigo 74.º da LAT/2009, relativas ao sistema e unidade de seguro.

Sem prejuízo dos inúmeros textos normativos que preveem e regulam os riscos próprios de atividades e setores específicos, veja-se, naturalmente, a Lei n.º 102/2009, de 10/09, que estabelece o «regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho», que transpõe para o ordenamento nacional as Diretivas elencadas no seu artigo 2.º.

Este vasto, variado e incisivo quadro normativo, que, até por influência do Direito Comunitário, se vai tornando cada vez abrangente e complexo, não implica que só possa existir violação de regras de higiene, saúde e segurança quando elas estão legalmente ou convencionalmente consagradas, mas mesmo quando, numa dada atividade ou setor, ainda não exista uma regulamentação específica.

Não será despiciendo citar, a este propósito, NUNO CALVÃO DA SILVA [6], que, com fundamento no direito comunitário (v.g. Diretiva 89/391/CEE, alterada pela Diretiva n.º 2007/30/CE, do Conselho, de 20/06, vertida na Lei n.º 102/2009, de 10/09) alude a uma cláusula geral constante do artigo 6.º, número 1, desse ato comunitário, que consagra uma obrigação genérica de segurança e saúde no trabalho que se impõe ao empregador, alegando que:

«a fixação de regras precisas e absolutas poderia revelar-se insuficiente para proteger os trabalhadores, dada a evolução científica e técnica dos nossos dias (…) Deste modo, o cumprimento das obrigações específicas - primeiros socorros e luta contra incêndios, informação, consulta e participação e formação dos trabalhadores - pelos empresários não os isenta de responsabilidade, no caso de produzirem danos na saúde dos trabalhadores, porquanto a existência de uma obrigação geral impõe a adoção de todas as medidas racionalmente necessárias e tecnicamente possíveis e praticáveis, ainda que não elencadas na lei».

A posição que deixámos exposta, no que toca a essa obrigação geral de segurança e saúde, encontra acolhimento, designadamente, nos artigos 281.º, n.ºs 1 a 3 do Código do Trabalho e 15.º da Lei n.º 102/2009.

A nossa jurisprudência tem também sufragado tal tese, conforme ressalta dos seguintes Arestos:

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 31/03/2004, Processo n.º 0440072.dgsi.Net, relatora: Fernanda Soares:

I - A culpa da entidade patronal na produção do acidente de trabalho pode resultar da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho e da falta de observação dos deveres gerais de cuidado.

II - A não utilização de determinado equipamento de segurança (o cinto de segurança, por exemplo) não configura uma situação de culpa por violação das regras de segurança se existir norma legal que especificamente obrigasse a utilizar tal equipamento.

III - Se tal norma não existir, só há culpa se os deveres gerais de cuidado impusessem o uso daquele equipamento.

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/06/2005, processo 05S1037.dgsi.Net, em que foi relator Fernandes Cadilha:

É imputável à entidade patronal a título de culpa o acidente de trabalho que resulta da violação de um dever geral de cuidado, independentemente de terem ou não sido violadas especificas disposições legais ou regulamentares relativas à segurança no trabalho.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/01/2006, C.J., 2006, Tomo I, página 143 (Sumário):

Mesmo que o acidente de trabalho se não deva a violação de normas de segurança no trabalho, a entidade patronal age com culpa se o acidente se dever a ato do representante do empregador, por violação do dever geral de cuidado, imputável àquele representante a título de culpa.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/04/2006, Processo n.º 477/06.dgsi.Net (Sumário), em que foi relator Serra Leitão:

I – Quando um acidente de trabalho ocorre por violação das regras relativas à segurança, higiene e saúde no trabalho, imputado culposamente à empregadora, devendo notar-se que basta a culpa genérica, passa esta a ser a primeira responsável pela reparação infortunística .

II – O empregador está obrigado a assegurar aos seus trabalhadores condições de segurança, higiene e de saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, importando o desrespeito desta obrigação a sua responsabilização se se consubstanciar casuisticamente em factualidade donde resulte de modo inequívoco essa violação – art.ºs 1.º, 4.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, do D.L. n.º 441/91, de 14/11.

III – A violação das referidas regras traduz-se na ofensa de normas relativas à segurança no trabalho e que constarão dos diversos diplomas legais que regem para cada tipo de atividade profissional, embora se admita, sem esforço, que na previsão legal cabem quadros fácticos em que ainda não existindo ofensa a um normativo concreto, a conduta da entidade patronal omita deveres tão evidentes de cuidado que não pode deixar de ser integrada na dita previsão legal genérica .

IV- Mas é também necessário, para assacar à entidade patronal a responsabilidade pela reparação infortunística, que fique provado que esse incumprimento foi causa adequada do acidente, ainda que na formulação negativa da teoria da causalidade, que é a que o nosso ordenamento jurídico acolhe (art.º 563.º do C. Civil).

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2009, Processo n.º 09S0375, relator: Vasques Dinis, em www.dgsi.pt, no seu Sumário afirma o seguinte:

I - O artigo 18.º do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, constante da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, que consigna o agravamento das prestações destinadas à reparação de acidentes de trabalho, em casos especiais, prevê, no seu n.º 1, dois fundamentos autónomos para o agravamento: (i) um comportamento culposo da entidade empregadora ou seu representante; (ii) a não observação pela empregadora das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

II - A única diferença entre aqueles dois fundamentos reside na prova da culpa, que é indispensável no primeiro caso e desnecessária no segundo, ambos exigindo, para além, respetivamente, da demonstração do comportamento culposo ou da violação normativa, a prova do nexo causal entre o ato ou a omissão – que os corporizam – e o acidente que veio a ocorrer.

Importará, no que respeita ao vulgarmente chamado nexo de causalidade adequada, atender ao que foi decidido a esse respeito pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, com data de 17/4/2024, prolatado no Proc.º n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência) pela Secção deste Supremo Tribunal de Justiça e que, podendo encontrar-se publicado em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/6-2024-864543698, determina o seguinte:

«Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º l da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.»

Finalmente, no que concerne à repartição do ónus da prova, interessa convocar o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 07/09/2022, Proc.º n.º 940/15.2T8VFR.P1.S1, Relator: Pedro Branquinho Dias e publicado em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9bdf84d610a82fd0802588b70043fb27?OpenDocument, com seguinte Sumário:

I. Não tendo a Ré Seguradora logrado provar que a entidade patronal do sinistrado violou as regras de segurança do trabalho, conforme havia alegado, só ela poderá ser responsabilizada pelo pagamento da totalidade da pensão anual a que o Autor tem direito, nos termos da Lei dos Acidentes de Trabalho.

II. Com efeito, segundo jurisprudência constante do STJ, a prova dos pressupostos do agravamento da responsabilidade pelos danos causados em acidente de trabalho, nos termos do art.º 18.º n.º 1, da LAT, recai sobre a parte que o invoca.

Abarcando, de alguma forma, as diversas vertentes que deixámos antes abordadas, veja-se o Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, Proc.º n.º 151/21.8T8OAZ.P1.S1, Relator: Mário Belo Morgado, publicado em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:151.21.8T8OAZ.P1.S1.F8/, com o seguinte Sumário:

1. A responsabilidade agravada do empregador pode ter dois fundamentos autónomos: um comportamento culposo da sua parte (a título de dolo ou negligência), criador de uma situação perigosa (e inerente esfera de risco); ou a violação pelo empregador de regras de segurança ou saúde no trabalho que ele estivesse diretamente obrigado a observar e de cuja omissão resulte o acidente (hipótese em que é desnecessária prova da culpa, ao contrário do que acontece naquele primeiro caso).

2. Ambos os fundamentos exigem (para além do "comportamento culposo" ou da violação normativa) a prova do nexo causal entre determinada conduta (ato ou omissão) e o acidente.

3. O ónus de alegar e provar os factos que agravam a responsabilidade do empregador compete ao respetivo beneficiário, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

4. In casu mostra-se violada uma regra de segurança específica e nitidamente densificada nos seus contornos, que é possível enunciar da seguinte forma: sempre que se utilizem cavaletes durante a realização dos trabalhos de manutenção de moldes, deverá ser assegurada a estabilidade destes, através de adequados dispositivos de segurança, que garantam que os moldes não tombam sobre os trabalhadores, mesmo em caso de rutura das soldas ou queda dos cavaletes, mediante, por exemplo, a fixação do mesmo a uma cota mais elevada, prendendo-o através de um gancho.

5. Não fora a infração desta regra, o acidente não se teria produzido. E, lançando mão do critério da causalidade adequada (mesmo sem recorrer às "correções" que a doutrina e a jurisprudência vêm introduzindo nesta teoria), também não suscita dúvida que era objetivamente provável que a omissão das medidas de segurança que deveriam ter sido implementadas era suscetível de originar um acidente de trabalho, atingindo a integridade física do trabalhador que estivesse a realizar os sobreditos trabalhos.

F – LITÍGIO DOS AUTOS

Abordemos então, por referência ao acidente de trabalho dos autos, sobre cuja qualificação jurídica não existe divergência entre as partes ou as instâncias, face ao disposto nos artigos 8.º e 10.º da LAT/2009 e aos factos cosntantes dos Pontos 19. a 25. da Factualidade dada como Assente e que descrevem a maneira como o sinistro ocorreu, a única questão que se coloca nesta Revista é a que se radica na imputação culposa do mesmo à Ré empregadora.

Como resulta do que antes deixámos sintetizado, a sentença do Juízo do Trabalho de … tipificou o sinistro aqui em análise ao abrigo do artigo 18.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, ao passo que a Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa desonerou, em termos da responsabilidade agravada, a referida empresa, remetendo o julgamento do pleito para o regime jurídico que se acha previsto para os acidentes de trabalho reparados ao abrigo da responsabilidade objetiva ou pelo risco.

Marcando já posição quanto a tal divergência jurisprudencial, diremos que não subscrevemos a posição defendida pela 2.ª instância mas antes aquela sustentada pela 1.ª instância, pois afigura-se-nos que, nas condições e circunstâncias particulares em que o acidente de trabalho se verificou não se pode afirmar, como sustenta o Aresto recorrido, que a entidade patronal observou as regras mínimas de saúde e segurança que lhe eram exigíveis.

Não nos parece que os factos referenciados nos Pontos 28. a 30. da Matéria de Facto dada como Provada [7] e que se referem à existência de sinalização gráfica de alerta/perigo, colocado por cima da máquina que decepou a mão do Autor seja suficiente para afastar a culpa da COPRAVE - SOCIEDADE AVÍCOLA, LDA. na ocorrência do trágico sinistro dos autos.

Importa, nesta matéria, fazer uma resenha dos factos e considerações que nos parecem relevantes:

- O Autor foi admitido por tal empresa, que se dedica ao fabrico de produtos à base de carne, no dia 9/8/2019, como «trabalhador indeferenciado» [Pontos 1. e 3.];

- O Autor, até duas semanas antes do dia 10/5/2022, desempenhou sempre as funções que se mostram elencadas nos Pontos 4. a 7. e que nunca implicaram o manuseamento pelo mesmo de qualquer máquina de picageme moagem de carnes;

- O Autor foi transferido, duas semanas antes do dia 10/5/2022, para a secção de picagem/moagem de carnes [Ponto 8.], onde deveria desempenhar as funções descritas no Ponto 9.;

- O trabalhador, após transitar para essa secção, operou uma máquina de corte de carnes durante a primeira semana que aí esteve [Ponto 10.];

- O Autor, na segunda semana passou a trabalhar com uma máquina de picagem e moagem de carnes, cujas características se acham sumariadas nos Pontos 12. a 14.;

- Essa máquina avariou no dia 9/5/2022 [Ponto 15.];

- Tal máquina foi substituída por uma outra, com as caracteríticas e diferenças relativas à anterior referenciadas no Ponto 16.;

- O Autor começou a operar esta máquina no dia 10/5/2022 e logo na parte da manhã sofreu o acidente de trabalho dos autos, quando lavava/limpava a mesma e retirava do seu interior um pedaço de carne que ali se encontrava alojado [Pontos 18. a 25.], tendo sofrido as lesões clínicas e consequências de cariz privado e pessoal aludidas no Ponto 26.;

- O Autor não teve qualquer formação relativamente ao manuseamento, limpeza e riscos envolvidos em tais operações [Ponto 27. e 31. [8]];

- Os factos que descrevem o sinistro indicam-nos que a dita segunda máquina de picagem e moagem de carne não estava a ser operada, na altura e para esse efeito, pelo Autor – numa palavra, não se achava a desenvolver aquela atividade mecânica - mas antes a ser limpa após ter estado a trabalhar, tendo começado durante tal operação de lavagem a funcionar, sem que haja na factualidade assente, qualquer indicação de que a mesma tenha sido inadvertidamente acionada pelo sinistrado ou por qualquer outra pessoa [ao contrário do que parece ter sido entendido pela 1.ª instância].

- As instâncias divergem quanto a esta questão – funcionamento inesperado da máquina por gesto involuntário do Autor -, mas, salvo melhor opinião, os factos produzidos não explicam como é que o dityo equipoamento voltou a funcionar, ceifando a mão do Autor;

- A argumentação apresentada pelo Tribunal da Relação de Lisboa para desagravar o sinsitro dos autos não nos convence, dado que a factualidade dada como provava indica claramente que a picadora, não obstante se encontrar ligada à eletricidade, estava parada, ou seja, o Autor não a estava a lavar enquanto o seu motor e mecanimo de picagem e moagem se achava a funcionar;

- Por outro lado, não fazia qualquer sentido que para esse efeito estivesse a utilizar o taco de plástico para lavar e limpar a máquina, por inadequado e, por isso, inútil, sendo certo, por outro lado, que nada nos autos nos diz que aquela necessária operação de lavagem e limpeza podia ser realizada pelo trabalhador sem o uso das mãos nem, finalmente, que a Ré tivesse disponibilizado ao Autor quaisquer ferramentas adequadas que lhe permitissem proceder a todos os referidos procedimentos de lavagem e limpeza daquele equipamento sem precisão de utilizar, em quaisquer circunstâncias, as suas mãos, como o veio a fazer no caso dos autos;

- A perigosidade óbvia de que fala o Aresto recorrido e que seria intuída, de imediato, por qualquer cidadão comum relativamente a um equipamento como o dos autos, não só ignora que cada máquina tem a sua forma própria de ser operada e de funcionar [muitas vezes se diz que até têm manias], como parece esquecer que, sem a necessária formação, refrescamento e atualização, criação persistente de boas práticas e fiscalização atenta da entidade empregadora ou do seu representante no local da atividade dos trabalhadores que com elas laboram, facilmente estes se habituam à perigosidade do trabalho executado, descuidando cautelas e precauções que antes adotavam ou adquirem uma confiança por força da sua experiência profissional, que os torna temetários ou inconscientes de todos os riscos envolvidos ou afeiçoam-se aos usos da profissão, mesmo quando impróprios ou arriscados [cf., a este respeito, embora no âmbito da negligência grosseira, o disposto na segunda parte do número 3 do artigo 14.º da LAT/2009];

- Se tal evidência de perigosidade fosse suficiente para afastar o normal cidadão de conduzir de forma imprudente e violadora dos direitos dos outros condutores, o seu veículo-automóvel, tornava-se desnecessária a existência de muitas das regras do Código da Estrada e de algumas do Código Penal, sem olvidar que cada marca e modelo são assaz distintos quanto à particular e correta maneira de os tripular, o que exige manuais cada vez mais grossos e complicados de ler e compreender;

- Temos para nós que, num quadro de normalidade e para um cidadão comum colocado na posição do trabalhador, nada indicava que a dita máquina, que estava desligada ou parada, iria reiniciar o seu funcionamento, pelo mero facto de estar a ser lavada e limpa nos moldes em que o recorrido o estava a fazer, pois existem muitos equipamentos de índole industrial ou doméstica, que quando inativos e desde que não ligados no repetivo botão, não funcionam pelo mero facto de serem manuseados em tal estado, com vista à sua limpeza ou lavagem;

- Tal raciocínio não é prejudicado pela circunstância de existir a sinalética de perigo e alerta que estava colocada junto à máquina de picagem e moagem, pois a mesma estava, em nosso entender, direcionada fundamentalmente para as situações em que ela estaria a ser operada pelos trabalhadores e não para outros cenários, em que ela estava parada e a ser manuseada com vista a ser lavada e limpa;

- Mesmo que assim não se entendesse, seguro é que em parte alguma de tais sinais se alertava o Autor ou os outros colegas do mesmo que também trabalhassem com a dita máquina que tinham obrigatoriamente de a desligar da corrente elétrica, antes de a lavar, limpar, reparar ou a sujeitar a outros atos que impusessem a sua imobilização mecânica;

- Não será despiciendo realçar que a dita máquina foi fabricada no ano de 1999 – afigura-se-nos que é esse o sentido da menção dela constante «1999» -, evidenciava algumas diferenças quando comparada com a sua congénere [v.g., colocação e características dos botões] como não se mostrava certificada com a menção “CE” [9], o que tem de ser igualmente considerado e pesado no julgamento desta questão da culpa ou ausência de culpa da Ré empregadora;

- Deparamo-nos, assim com um Autor que não somente tinha apenas laborado com essa máquina, já antiga e desconforme com a legislação comunitária em termos de saúde, segurança e ambiente, durante algumas poucas horas da manhã do dia do sinistro, como não tinha tido qualquer formação nem tinha sido informado de que deveria desligar previamente da eletricidade o dito equipamento quando o fosse lavar e limpar.

A questão da formação prende-se, mais concretamente, com o disposto nos artigos 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho, e 5.º do Dec.-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, que estabelece as Prescrições Mínimas de Segurança e de Saúde na Utilização de Equipamentos de Trabalho [dado estar uma máquina envolvida no sinistro dos autos].

Efetivamente, prescreve o art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, que, sempre que a utilização de um equipamento de trabalho possa apresentar risco específico para a segurança ou a saúde dos trabalhadores, o empregador deve tomar as medidas necessárias para que a sua utilização seja reservada a operador especificamente habilitado para o efeito, considerando a correspondente atividade.

Acrescentando-se no art.º 15.º da Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro, que, (4) sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde; (5) sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário; (6) o empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.

Ora, chegados aqui e face a tal ausência de formação e informação por parte da entidade empregadora quanto a esses aspetos essenciais e determinantes da conduta do trabalhador e, no quadro factual que antes deixámos analisado, à verificação do nexo de imputação causal do sinistro dos autos e respetivos lesões e danos a tal conduta omissiva da mesma Ré, afigura-se-nos que, ao contrário do sustentado no acórdão recorrido, o acidente dos autos tem de ser reconduzido juridicamente ao artigo 18.º da LAT e à responsabilidade agravada da empregadora.

Achamos relevante chamar à colação os dois seguintes Arestos deste Supremo Tribunal de Justiça [sublinhados a negrito da nossa responsabilidade]:

- Acórdão de 25/06/2009, Rec. n.º 320/09-4, em Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, Junho de 2009 (Sumário parcial):

II - A responsabilidade agravada do empregador prevista no artigo 18.º da LAT pressupõe que se verifique o incumprimento, por parte do empregador, de prescrições legais destinadas a prevenir a ocorrência de acidente e um nexo de causalidade entre esse incumprimento e o evento danoso.

III - O que releva, para efeito de se apurar se houve violação do dever de informação, é a demonstração de que o empregador não teve em consideração, devidamente, os conhecimentos e aptidões, em matéria de segurança, relativamente às tarefas cometidas a um concreto trabalhador e que os conhecimentos deste, por deficiência, exigiam instruções que foram omitidas.

IV - Não pode concluir-se que houve violação do dever de informação se o autor, embora desempenhando funções de estucador, «era um trabalhador com larga experiência na execução de trabalhos no âmbito da construção civil e sabedor das tarefas relacionadas com a descofragem, trabalho que havia já por diversas vezes executado», ignorando-se se as operações concretas a que procedia eram diferentes, em termos de exigirem procedimentos de segurança distintos dos adotados em trabalhos de descofragem que já tinha executado.

V - Não pode afirmar-se a verificação de um nexo de causalidade entre a omissão de instruções e o evento danoso, uma vez provado que o autor estava convencido de que era seguro trabalhar sobre a plataforma, e que foi por isso, e não por ignorância dos procedimentos e cuidados a observar, que o sinistro ocorreu: o que quer dizer que, com ou sem instruções, o sinistro sempre teria ocorrido.

VI - Não é possível, em juízo de prognose póstuma, afirmar-se que o acidente não teria ocorrido se pela empregadora, antes do início dos trabalhos houvessem sido dadas ao sinistrado instruções relativamente aos cuidados a observar para evitar os riscos de queda, se se demonstrou que ela aconteceu devido ao facto de alguém ter retirado os prumos de sustentação da plataforma e não os ter recolocado, facto esse desconhecido do autor, como dos demais trabalhadores, nada permitindo ligar diretamente a ausência de instruções ao facto de o autor se ter instalado na plataforma sem ter averiguado das suas condições de segurança.

- Acórdão de 3/11/2023, Proc.º n.º 1694/20.6T8CSC.C1.S1, Relator: Júlio Gomes, em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:1694.20.6T8CSC.C1.S1.06/, com o seguinte Sumário:

1. A formação profissional pode servir para alertar para regras do bom senso, da prudência ou do senso comum, contribuindo para uma melhor consciencialização das mesmas.

2. Para prova do nexo causal, basta a demonstração de que o sinistro é uma consequência normal, previsível da violação das regras de segurança, independentemente de se provar ou não, com todo o rigor e extensão, a chamada dinâmica do acidente.

3. No entanto, para que a violação das regras de segurança se possa considerar causal relativamente ao acidente ocorrido é necessário apurar se no caso concreto ela se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.

Logo, pelo conjunto de argumentos deixados expostos, tem estes recursos de Revista de serem julgados procedentes, assim se revogando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e se repristinando a sentença da 1.ª instância.

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 679.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedentes os presentes recursos de Revista interpostos pelo Autor AA e pela Ré GENERALI SEGUROS, S.A., assim se revogando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e se repristinando a sentença da 1.ª instância.


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Custas do presente recurso a cargo da recorrida Ré empregadora - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 6 de novembro de 2024

José Eduardo Sapateiro - relator

Albertina Pereira – 1.ª Adjunta

Mário Belo Morgado – 2.º Adjunto

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1. Vide Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 1984, p. 807.↩︎

2. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2024.02.21, processo n.º 36/21.7T8SNT.L1.S1 e de 2018.10.25, processo n.º 92/16.0T8BGC.G1.S2, ambos in www.dgsi.pt.↩︎

3. Proferido no processo n.º 151/21.8 T8OAZ.P1.S1, in www.dgsi.pt.

4. O modo de operar é relativamente simples, como se infere do facto 9. (acionar a máquina, colocar a carne de forma manual, recolher e acondicionar a carne já moída e proceder à lavagem da máquina após a utilização) e os riscos de esfacelo de partes do corpo que nela se introduzam são óbvios.↩︎

5. Analisando as fotografias em que se baseou o Mmo. Juiz a quo para considerar provados estes factos 28. a 30., constantes de fls. 180 e 181 (como indicado na motivação da decisão de facto), verifica-se que, além da frase escrita “proibido introduzir as mãos”, consta da indicada sinalização afixada em cima da máquina um desenho com duas mãos e um sinal de proibido, a cor vermelha, por cima de ambas (como se constata também da análise do histórico do processo no sistema CITIUS, em que é ostensiva a cor vermelha que os autos físicos não revelam).↩︎

6. Cfr., relativamente à evolução, até 2005, da problemática relativa à higiene, segurança e saúde no trabalho no seio do ordenamento jurídico comunitário, JOÃO NUNO CALVÃO DA SILVA, “Segurança e saúde no trabalho - a responsabilidade civil do empregador por atos próprios em caso de acidente de trabalho», texto publicado na obra coletiva “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita”, Volume II, 2009, Coimbra Editora, páginas 907 a 943.↩︎

7. E que têm o seguinte teor:

«28. Nas mesmas circunstâncias, na sala onde o Autor se encontrava a exercer funções, existia sinalização gráfica de alerta para o ‘risco de utilização de equipamentos de cortes’.

29. Essa sinalização estava colocada por cima da máquina picadora.

30. E consistia num aviso de ‘perigo’ com referência a este engenho, com proibição de se ‘colocar as mãos’↩︎

8. Tais dois Pontos, que nos parecem fundamentais, possuem a seguinte redação:

«27. Nas circunstâncias descritas em 8) a 25), a 2.ª Ré não havia ministrado ao Autor formação sobre o manuseamento e a limpeza de uma máquina como a identificada em 17)

31. Nas mesmas circunstâncias, não existia indicação dada pelos serviços da 2.ª Ré, junto dos seus funcionários, para desligar esta máquina da corrente elétrica no ato de lavagem da mesma.»↩︎

9. Conforme se pode ler no site da EU [https://europa.eu/youreurope/business/product-requirements/labels-markings/ce-marking/index_pt.htm]: «Muitos produtos só podem ser vendidos na UE se ostentarem a marcação CE, que certifica que foram avaliados pelo fabricante e considerados conformes com os requisitos da UE em matéria de segurança, saúde e proteção do ambiente. Isto aplica-se a produtos fabricados em qualquer parte do mundo e depois comercializados na UE.»↩︎