Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DO CARMO SILVA DIAS | ||
Descritores: | RECURSO EXTRAORDINÁRIO RECURSO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA PRESSUPOSTOS JURISPRUDÊNCIA OBRIGATÓRIA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ÓNUS DA ALEGAÇÃO INTERPOSIÇÃO DE RECURSO REJEIÇÃO | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 10/02/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
Decisão: | REJEITADO | ||
Sumário : | I. Pressuposto deste recurso extraordinário é que a decisão recorrida seja proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, o que significa que esta (a jurisprudência fixada pelo STJ) tem de estar já publicada no DR (art. 444.º, n.º 1, do CPP), para ter a eficácia que lhe é conferida pelo art. 445.º do CPP, quando a decisão recorrida é proferida. II. A admissibilidade desta modalidade de recurso extraordinário, que é direto para o STJ, depende desde logo do “trânsito em julgado da decisão recorrida”, como estabelece o n.º 1 do art. 446.º do CPP, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Além da tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida – art. 446.º, n.º 1, do CPP), é pressuposto da sua admissibilidade a legitimidade do recorrente (definida nos termos do art. 446.º, n.º 2, do CPP), devendo ser ainda indicada a jurisprudência fixada que foi contrariada pela decisão recorrida (o que é subjacente ao próprio recurso e decorre do art. 446.º, n.º 1, do CPP) e, bem assim, justificada a oposição do julgado, isto é, justificada a oposição da decisão recorrida com a jurisprudência fixada, indicado se há ou não inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes (arts. 438.º, n.º 2 e 446.º, n.º 1 do CPP), se há identidade de situações fácticas nos dois casos, se a decisão recorrida é expressa e, se há ou não razões/motivos supervenientes, que ainda não tivessem sido ponderados, que mostrem que a jurisprudência fixada que foi contrariada, está desatualizada ou que deve ser reexaminada (art. 446.º, n.º 3, do CPP). III. Ao sindicar a decisão recorrida, se esta for do próprio STJ, visto o disposto no art. 445.º, n.º 1 e n.º 2, do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (art. 446.º, n.º 3, do CPP) e, tratando-se de decisão de tribunal inferior (v.g. decisão da 1ª instância, como aqui sucede), determina o seu reenvio para aplicação da jurisprudência fixada no segmento que não foi observado (caso em que é revogada a decisão recorrida e determinada a sua substituição por outra que aplique a jurisprudência fixada injustificadamente contrariada, desde que, claro, não tenha concluído por proceder ao seu reexame nos termos do art. 446.º, n.º 3, citado). IV. Mas, para o STJ poder decidir, tal como no recurso ordinário, também no recurso extraordinário, o recorrente tem o ónus de motivar, isto é, de enunciar especificamente os fundamentos do recurso, observando neste caso os pressupostos subjacentes às normas especiais aplicáveis a este tipo de recurso excecional e terminar com a formulação de conclusões, em que resume as razões do pedido (ver particularmente arts. 412.º, n.º 1, 438.º, n.º 2, 446.º, 448.º do CPP). Portanto, no requerimento de interposição de recurso o recorrente tem de alegar/demonstrar a verificação dos pressupostos formais e materiais do respetivo recurso extraordinário que pretende interpor, independentemente, de no caso de ser Magistrado do Ministério Público, o fazer por a tal ser legalmente obrigado e, de até concordar com a decisão recorrida. V. Repare-se que, esta modalidade de recurso extraordinário, permite precisamente que, na motivação, o recorrente possa argumentar (sem violar a sua consciência, no caso de ser Magistrado e estar obrigado a recorrer) designadamente: i) ou demonstrando que a decisão recorrida não aplicou a jurisprudência fixada injustificadamente, explicando porque é que foi injustificada/infundada essa divergência; ii) ou demonstrando que a jurisprudência fixada que foi contrariada pela decisão recorrida se mostra desatualizada, pelos motivos supervenientes que vier a indicar que não foram nela ponderados e, portanto, explicando que se justifica proceder ao seu reexame nos termos do art. 446.º, n.º 3 do CPP. O que, depois, naturalmente, lhe permitirá formular as respetivas conclusões em conformidade com o rumo que seguir. VI. Não pode é o recorrente, por ser Magistrado do Ministério Público, por concordar com a decisão recorrida e por ser obrigatório o recurso, abster-se de motivar, ou seja, de alegar e cumprir os pressupostos formais e materiais deste recurso extraordinário, acima indicados e deixar de formular um pedido. VII. Não estando no recurso do MP, estruturalmente justificada a oposição que origina o conflito de decisões, tal como impõe o disposto no art. 438.º, n.º 2, do CPP, aqui aplicável, por força do disposto no art. 446.º, n.º 1, parte final, do CPP (para além de ocorrer a omissão da alegação dos demais requisitos materiais acima indicados), é manifesto que a apontada falta material da motivação deveria ter levado à rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal (arts. 414.º, n.º 2, CPP), impondo-se, por isso, agora, a sua rejeição nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 440.º, n.º 3 e 441.º, n.º 1, do CPP (tanto mais que a admissão do recurso não vincula o tribunal superior, conforme estabelece o art. 414.º, n.º 3, do CPP, também aqui aplicável por força do art. 448.º do mesmo código). VIII. Sendo a falta cometida essencial e total por se prender com os pressupostos materiais desta modalidade de recurso, não há sequer lugar a convite para aperfeiçoamento do requerimento de recurso, não só por tal não estar previsto nos arts. 446.º e 440.º, n.º 2 CPP, como também por a remissão subsidiária do art. 448.º do CPP para o regime dos recursos ordinários, v.g. para o art. 417.º, n.º 3, do CPP, aqui não poder funcionar (por se estar perante uma omissão total do ónus de motivar quanto aos referidos pressupostos materiais que já não pode ser suprido), sendo além disso incompatível com a natureza destes recursos extraordinários. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. Em 24.05.2024 o Ministério Público interpôs recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, nos termos dos artigos 446.º do CPP e 242.º, n.º 1, al. a), CEPMPL, por considerar que o despacho decisório do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, Juiz 3, de 16.04.2024, proferido nos autos de liberdade condicional (Lei n.º 115/2009), registados sob o n.º 318/12.0TXCBR-N, transitado em julgado em 21.05.2024, desrespeitou ou não observou o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 07/2019, publicado no D.R. n.º 230/2019, I.ª Série de 29 de novembro. 2. Para o efeito, apresentou a seguinte argumentação: O recurso é interposto diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, com subida em separado, imediata e efeito devolutivo – cf. artigos 406º, 407º, n.º 1, e 446º, nº 1, do Código de Processo Penal e 242º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. O Ministério Público tem legitimidade e está em tempo - artigos 242º, n.º 4, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Requer-se que o recurso seja instruído com certidão da promoção do Ministério Público prévia ao despacho recorrido e do despacho recorrido. Motivação O recurso é obrigatório porque o despacho recorrido vai contra a jurisprudência fixada no acórdão 7/2019 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no diário da república de 29/11/2019 – I série. O Ministério Público junto deste juízo, apesar de ter observado no processo a jurisprudência fixada, adere aos fundamentos do despacho recorrido. Por isso, abstém-se de tecer mais considerações sobre a matéria controvertida. Realça-se, apenas, que a jurisprudência fixada vai implicar que condenados que se encontrem a cumprir pena remanescente por revogação da liberdade condicional e/ou a cumprir penas sucessivas - remanescente por revogação da liberdade condicional acrescido de novas penas – poderão estar cinco e mais anos em reclusão sem verem a sua situação apreciada para fins de liberdade condicional, o que vai claramente ao arrepio do espírito do legislador, subjacente ao código da execução das penas e medidas privativas da liberdade. Conclusões 1.O despacho recorrido vai contra a jurisprudência fixada no acórdão 7/2019 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no diário da república de 29/11/2019 – I série. 2.O Ministério Público junto do tribunal de execução das penas /juiz 3, apesar de ter observado no processo a jurisprudência fixada, adere aos fundamentos do despacho recorrido, pelo que, sendo o recurso obrigatório, se abstém de tecer mais considerações sobre a matéria controvertida. 3.Realça-se, apenas, que a jurisprudência fixada vai implicar que condenados que se encontrem a cumprir pena remanescente por revogação da liberdade condicional e/ou a cumprir penas sucessivas - remanescente por revogação da liberdade condicional acrescido de novas penas – poderão estar cinco e mais anos em reclusão sem verem a sua situação apreciada para fins de liberdade condicional, o que vai claramente ao arrepio do espírito do legislador, subjacente ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. 3. Notificado o sujeito processual (arguido) interessado respondeu, sustentando o provimento do recurso do MP, por o despacho recorrido não merecer reparo, ao abrigo do art. 204.º da CRP, ao ter entendido ser igualmente admissível a liberdade condicional no que tange à pena remanescente, não exigindo o cumprimento da mesma por inteiro para apreciação da liberdade condicional e, por isso, decidiu que esta devia ser reapreciada entre 23.06.2021 e 23.06.2026, ao contrário do preconizado no acórdão uniformizador, o qual vai implicar que os condenados abrangidos por esse entendimento possam estar cinco anos ou mais em reclusão sem verem a sua situação apreciada para fins de liberdade condicional, o que contraria o espírito do legislador subjacente ao CP e ao CPEMPL, além de violar a CRP e seus princípios fundamentais, como o princípio da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2, da CRP), “na vertente, segunda a qual, a privação da liberdade assume carácter de último recurso (e seus subprincípios da adequação, exigibilidade e justa medida) e o princípio da socialização, nos termos do qual, incumbe ao Estado promover a socialização do condenado, na decorrência do princípio da dignidade humana (art. 1.º da CRP), questão que o acórdão uniformizador não abordou.” 4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer concluindo: -Deverá o presente recurso ser rejeitado por ausência de motivação, conclusões e pedido (I); -Se assim não se entender, deve ser rejeitado o recurso por ausência do pressuposto específico formal de fundamentação da oposição de julgados (II). 5. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais e, realizada a conferência, incumbe, agora, decidir. II. Fundamentação 6. O recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art. 446.º do CPP, tem por finalidade a “unidade do direito”, visando manter a uniformidade da jurisprudência já fixada, sendo um meio de corrigir divergências infundadas de jurisprudência fixada, que não tiverem sido corrigidas em recurso ordinário. Também aqui está em causa «o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito», como se assinala no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006. Pressuposto deste recurso extraordinário é que a decisão recorrida seja proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, o que significa que esta (a jurisprudência fixada pelo STJ) tem de estar já publicada no DR (art. 444.º, n.º 1, do CPP), para ter a eficácia que lhe é conferida pelo art. 445.º do CPP, quando a decisão recorrida é proferida. Compreende-se que as divergências infundadas de jurisprudência fixada pelo STJ possam ser corrigidas através de recurso ordinário e, caso assim não suceda (ou esgotado aquele meio), então, face ao elevado interesse público em jogo, o legislador admita este recurso extraordinário direto para o STJ, para promover a referida correção, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promover a igualdade dos cidadãos, assim como garantir a uniformização da jurisprudência. Por isso, a admissibilidade desta modalidade de recurso extraordinário, que é direto para o STJ, depende desde logo do “trânsito em julgado da decisão recorrida”, como estabelece o n.º 1 do art. 446.º do CPP, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Além da tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida – art. 446.º, n.º 1, do CPP), é pressuposto da sua admissibilidade a legitimidade do recorrente (definida nos termos do art. 446.º, n.º 2, do CPP), devendo ser ainda indicada a jurisprudência fixada que foi contrariada pela decisão recorrida (o que é subjacente ao próprio recurso e decorre do art. 446.º, n.º 1, do CPP) e, bem assim, justificada a oposição do julgado, isto é, justificada a oposição da decisão recorrida com a jurisprudência fixada, indicado se há ou não inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes (arts. 438.º, n.º 2 e 446.º, n.º 1 do CPP), se há identidade de situações fácticas nos dois casos, se a decisão recorrida é expressa e, se há ou não razões/motivos supervenientes, que ainda não tivessem sido ponderados, que mostrem que a jurisprudência fixada que foi contrariada, está desatualizada ou que deve ser reexaminada (art. 446.º, n.º 3, do CPP)1. Ao sindicar a decisão recorrida, se esta for do próprio STJ, visto o disposto no art. 445.º, n.º 1 e n.º 2, do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (art. 446.º, n.º 3, do CPP) e, tratando-se de decisão de tribunal inferior (v.g. decisão da 1ª instância, como aqui sucede), determina o seu reenvio para aplicação da jurisprudência fixada no segmento que não foi observado (caso em que é revogada a decisão recorrida e determinada a sua substituição por outra que aplique a jurisprudência fixada injustificadamente contrariada, desde que, claro, não tenha concluído por proceder ao seu reexame nos termos do art. 446.º, n.º 3, citado). Mas, para o STJ poder decidir, tal como no recurso ordinário, também no recurso extraordinário, o recorrente tem o ónus de motivar, isto é, de enunciar especificamente os fundamentos do recurso, observando neste caso os pressupostos subjacentes às normas especiais aplicáveis a este tipo de recurso excecional e terminar com a formulação de conclusões, em que resume as razões do pedido (ver particularmente arts. 412.º, n.º 1, 438.º, n.º 2, 446.º, 448.º do CPP). Portanto, no requerimento de interposição de recurso o recorrente tem de demonstrar a verificação dos pressupostos formais e materiais do respetivo recurso extraordinário que pretende interpor, independentemente, de no caso de ser Magistrado do Ministério Público, o fazer por a tal ser legalmente obrigado e, de até concordar com a decisão recorrida. Repare-se que, esta modalidade de recurso extraordinário, permite precisamente que, na motivação, o recorrente possa argumentar (sem violar a sua consciência, no caso de ser Magistrado e estar obrigado a recorrer) designadamente: i) ou demonstrando que a decisão recorrida não aplicou a jurisprudência fixada injustificadamente, explicando porque é que foi injustificada/infundada essa divergência; ii) ou demonstrando que a jurisprudência fixada que foi contrariada pela decisão recorrida se mostra desatualizada, pelos motivos supervenientes que vier a indicar que não foram nela ponderados e, portanto, explicando que se justifica proceder ao seu reexame nos termos do art. 446.º, n.º 3 do CPP. O que, depois, naturalmente, lhe permitirá formular as respetivas conclusões em conformidade com o rumo que seguir. Não pode é o recorrente, por ser Magistrado, por concordar com a decisão recorrida e por ser obrigatório o recurso, abster-se de motivar, ou seja, de alegar e cumprir os pressupostos formais e materiais deste recurso extraordinário, acima indicados e deixar de formular um pedido. 7. Feitas estas considerações genéricas, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados. Assim. 7.1. Requisitos formais Analisados os autos não há dúvidas que o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário (art.446.º, do CPP) considerando o seu interesse em agir e também face ao disposto nos arts. 446.º, n.º 2, do CPP, 241.º, al. a) e 242, n.º 1, al. a) do CEPMPL, por ser para si obrigatório, visto que invoca tratar-se de decisão proferida contra jurisprudência obrigatória, isto é, contrária ao decidido no AFJ n.º 7/2019, publicado no DR n.º 230/2019, I.ª Série de 29 de novembro, que ganhou a eficácia indicada no art. 445.º do CPP. Acresce que, nos termos do art. 446.º, n.º 1, do CPP, o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Ora, face ao teor das certidões juntas aos autos, verificando-se que a referida decisão do TEP de Coimbra, Juiz 3, de 16.04.2024, proferido nos autos de liberdade condicional (Lei n.º 115/2009), registados sob o n.º 318/12.0TXCBR-N, transitou em julgado em 21.05.2024, é manifesto que o recurso extraordinário em análise interposto pelo Ministério Público em 24.05.2024 entrou tempestivamente porque dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, aludido no art. 446.º, n.º 1, do CPP. Mostra-se, pois, preenchido o pressuposto formal da tempestividade da interposição deste recurso extraordinário. Além disso, como se viu, a decisão sob recurso é posterior à publicação do AFJ n.º 7/2019, publicado no DR n.º 230/2019, I.ª Série de 29 de novembro, que o recorrente invoca ter sido inobservado e contrariado. Estão, pois, preenchidos todos os requisitos formais. Resta, por isso, verificar se estão preenchidos e, portanto, analisar se estão para o efeito alegados os pressupostos materiais da decisão recorrida ter sido proferida contra a referida jurisprudência fixada pelo STJ, de haver (como se assinala no ac. do STJ de 8.02.20182) “justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência e inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes”, de a decisão recorrida ser expressa, para além de igualmente ter sido alegada a identidade de situação fáctica nos dois casos. 7.2. Requisitos materiais Do recurso do Ministério Público, apenas consta que a decisão recorrida contraria a jurisprudência fixada no AFJ n.º 7/2019, sem apresentar argumentação que, como bem diz o Sr. PGA junto deste STJ, demonstre desde logo a suposta oposição de julgados. Alegar que se concorda com o despacho recorrido e que se adere aos seus fundamentos, abstendo-se de tecer mais considerações sobre a matéria controvertida, que também não identifica, é inócuo e não satisfaz minimamente os pressupostos exigidos legalmente nos arts. 437.º, n.º 1, 438.º, n.º 2 e 446.º, do CPP. A única referência que consta marginalmente no ponto 3 do título formal “Conclusões”3 , que é repetição da parte final do anterior título igualmente formal “Motivação”, do requerimento de interposição de recurso, não satisfaz os pressupostos deste recurso excecional, sendo até ininteligível, na falta do prévio ónus de motivar e concluir, que não foi materialmente cumprido. Com efeito, há uma omissão completa (como bem refere o Sr. PGA) quanto “ao ónus específico de demonstração (justificação) do pressuposto da oposição do julgado com o AUJ 7/2019, conforme resulta do articulado transcrito, não colhendo qualquer eventual propósito de mera concordância e remissão para os fundamentos da decisão recorrida e para a promoção que a antecedeu. Simplesmente, não procede a qualquer tentativa de evidenciação fundamentada da alegada oposição de julgados entre a decisão recorrida e o AUJ em causa, pelo cotejo lógico entre ambos, de forma a garantir que num mesmo silogismo judiciário (sempre na dialéctica do Facto/Direito), foram seguidas duas vias divergentes de raciocínio, viabilizando que de duas séries de premissas iguais se alcancem conclusões diversas. Então (…) constituirá pura ilogicidade pretender que seja declarado tal vício sem que se adiante qualquer fundamentação para o efeito e - como se não bastasse - sem que seja formulado o próprio pedido.” Ora, não estando, desde logo, estruturalmente justificada a oposição que origina o conflito de decisões, tal como impõe o disposto no art. 438.º, n.º 2, do CPP, aqui aplicável, por força do disposto no art. 446.º, n.º 1, parte final, do CPP (para além de ocorrer a omissão da alegação dos demais requisitos materiais acima indicados), desde logo a apontada falta material da motivação deveria ter levado à rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal (arts. 414.º, n.º 2, CPP), impondo-se, por isso, agora, a sua rejeição nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 440.º, n.º 3 e 441.º, n.º 1, do CPP (tanto mais que a admissão do recurso não vincula o tribunal superior, conforme estabelece o art. 414.º, n.º 3, do CPP, também aqui aplicável por força do art. 448.º do mesmo código). De notar que, sendo a falta cometida essencial e total por se prender com os pressupostos materiais desta modalidade de recurso, não há sequer lugar a convite para aperfeiçoamento do requerimento de recurso, não só por tal não estar previsto nos arts. 446.º e 440.º, n.º 2 CPP, como também por a remissão subsidiária do art. 448.º do CPP para o regime dos recursos ordinários, v.g. para o art. 417.º, n.º 3, do CPP, aqui não poder funcionar (por se estar perante uma omissão total do ónus de motivar quanto aos referidos pressupostos materiais que já não pode ser suprido), sendo além disso incompatível com a natureza destes recursos extraordinários4. Impõe-se, pois, a rejeição deste recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada interposto pelo Ministério Público, através de requerimento, por incumprimento do disposto nos arts. 411.º, n.º 3, 412.º, n.º 1, 438.º, n.º 2 e 446.º n.º 1, do CPP, uma vez que, sob a epígrafe formal de “motivação” acaba por se limitar a manifestar que “adere aos fundamentos da decisão recorrida” e “por isso, abstém-se de tecer mais considerações sobre a matéria controvertida”, que nem sequer identifica, não cumprindo materialmente o ónus de motivar e concluir, deixando de alegar/demonstrar os pressupostos materiais e substantivos de que depende o prosseguimento deste recurso excecional5. Em conclusão: por insuprível falta de preenchimento dos referidos pressupostos materiais legalmente exigíveis para que o presente recurso extraordinário pudesse prosseguir, deve o mesmo ser rejeitado (artigo 441.º, n.º 1, do CPP). * III - Decisão Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada, interposto pelo Ministério Público. Sem custas, por delas estar isento o MP. * Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos. * Supremo Tribunal de Justiça, 02.10.2024 Maria do Carmo Silva Dias (Relatora) Antero Luís (Adjunto) José Luís Lopes da Mota (Adjunto) _______
1. Sobre esta matéria, ver mais desenvolvidamente a anotação ao art. 446.º do CPP de Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, tomo V, Almedina, Coimbra, 2024, p. 476 a p.494. 2. Nesse ac. do STJ de 8.02.2018, relatado por Isabel São Marcos, acrescenta-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem referido ainda outros dois pressupostos “que se reportam à necessidade de a questão decidida em termos contraditórios ser objecto de decisão expressa nos dois arestos e de a identidade das situações de facto estar subjacente à questão de direito.” 3. Consta a seguinte referência isolada no contexto do requerimento do recurso, acima integralmente transcrito: Realça-se, apenas, que a jurisprudência fixada vai implicar que condenados que se encontrem a cumprir pena remanescente por revogação da liberdade condicional e/ou a cumprir penas sucessivas - remanescente por revogação da liberdade condicional acrescido de novas penas - poderão estar cinco e mais anos em reclusão sem verem a sua situação apreciada para fins de liberdade condicional, o que vai claramente ao arrepio do espírito do legislador, subjacente ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. 4. Assim, entre outros, para citar os mais recentes, ac. do STJ de 15.04.2021 (Eduardo Loureiro). No mesmo sentido, ac. do STJ de 8.02.2018 (Isabel São Marcos), esclarecendo que “de acordo com a jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, o texto da motivação do recurso constitui o limite intransponível ao convite à sua correcção, de que decorre que se a motivação não contiver os elementos considerados em falta ou tidos por deficientemente expostos nas conclusões que dela tenha extraído o recorrente não há lugar ao convite a que alude a norma do número 3 do artigo 417.2 do Código de Processo Penal com vista à sua correcção, uma vez que, nessa concreta situação, inexiste qualquer viabilidade de aditamento dos mencionados elementos em falta ou deficientemente expostos nas conclusões. Sendo que, tratando-se de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (e bem assim de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça), mais claramente ainda que em sede de recurso ordinário resulta a impossibilidade de tal convite numa situação idêntica.” 5. Assim, entre outros, Acórdãos do STJ de 8.02.2018 (Isabel São Marcos), de 18.03.2021 (Clemente Lima) e de 15.04.2021 (Eduardo Loureiro). |