Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL AGUIAR PEREIRA | ||
Descritores: | PROPRIEDADE HORIZONTAL TÍTULO CONSTITUTIVO PARTES COMUNS FRAÇÃO AUTÓNOMA DESCRIÇÃO PREDIAL PRESUNÇÃO JURIS TANTUM TERRAÇOS | ||
Data do Acordão: | 09/17/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I) Do título constitutivo de propriedade horizontal consta obrigatoriamente a descrição das partes correspondentes às várias frações autónomas, por forma a serem correctamente identificadas individualmente, bem como a menção do valor relativo de cada uma. II) Do título constitutivo pode também constar a menção do destino de cada fração e a descrição e destino das partes comuns do edifício. III) Ainda que o título constitutivo da propriedade horizontal seja omisso quanto à descrição e finalidade de um espaço situado por baixo e no alinhamento de determinada fração autónoma com a qual não tem ligação directa, presume-se que esse espaço é parte comum do edifício nos termos do artigo 1421.º n.º 2 e) do Código Civil. IV) Tal presunção é ilidível mediante a demonstração da utilização exclusiva desse espaço, em termos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, que permita concluir pela sua aquisição originária por um dos condóminos. | ||
Decisão Texto Integral: |
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: ◊ I - RELATÓRIO Parte I – Introdução 1) O Condomínio do Edifício J..., sito no Gaveto das Ruas ... e Rua ..., no ..., representado pela sua administradora, demandou o Banco BIC Português, SA, com sede em ..., AA e esposa BB, residentes em..., I Marope - Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado, gerido por Millennium BCP - Gestão de Fundos de Investimento, S.A., com sede em ... e B..., com sede no ..., pedindo a sua condenação nos seguintes termos: a) A reconhecer que o autor é dono dos arrumos que se situam na cave menos um ou primeira cave do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, por baixo das frações BG e BQ, no alinhamento destas, sendo partes comuns do edifício; b) a reconhecer que as ocupam ilicitamente ou permitem tal prática e, em consequência, c) a entregá-las ao autor, livres e devolutas de pessoas, bens e animais, no estado anterior à ocupação e a absterem-se de quaisquer atos que violem o direito de propriedade do autor sobre os ditos arrumos; d) Serem os segundos réus condenados a eliminar a ligação da fração BG para o arrumo, na parte inferior desta, e a repor a situação anterior do estabelecimento da passagem para o arrumo. Alegou o autor, em síntese, que é constituído pelo prédio urbano constituído no regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... e Rua ..., composto por cave menos dois, cave menos um, rés-do-chão, cinco andares e um recuado, com logradouro, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...73 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...41-Freguesia ..., dele fazendo parte as fracções autónomas BG, propriedade do primeiro réu e dada em locação financeira aos segundos réus e BQ, propriedade do terceiro réu e de que é arrendatária a quarta ré, ambas destinadas a comércio e as únicas frações do edifício com tal finalidade. Constatou o autor, em agosto de 2020, que os arrendatários das duas indicadas fracções ocupam o arrumo localizado na cave menos um (ou primeira cave), sito no alinhamento dessa fração no piso inferior, os quais são propriedade do condomínio pelo que, ao ocuparem e /ou permitirem a sua utilização, os réus violam o direito de propriedade do condomínio sobre o espaço destinado aos arrumos situados por debaixo das fracções que não se acham identificados como fracções autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal. 2) Todos os réus contestaram a acção, com excepção da quarta ré. Conhecendo do mérito da causa com dispensa de audiência prévio e cumprimento do contraditório quanto aos respectivos fundamentos, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e os réus absolvidos de todos os pedidos formulados. 3) Tendo o Condomínio autor interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação do Porto, por seu acórdão de 8 de janeiro de 2024, julgou a apelação procedente e revogando a sentença proferida em primeira instância: a) condenou todos os réus a reconhecer os arrumos que se situam na cave menos um ou primeira cave do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, por baixo das frações “BG” e “BQ”, no alinhamento destas, como partes comuns do edifício; b) condenou o segundo e quatro réus a entregar os “arrumos” ao autor, livres e devolutos de pessoas, bens e animais, no estado anterior à sua ocupação pelos réus e a absterem-se de quaisquer atos que violem o direito de propriedade dos condóminos sobre os ditos arrumos; c) condenou o segundo réu a eliminar a ligação da fração “BG” para o arrumo, que se situa na parte inferior da fração “BG” e a repor a situação anterior ao estabelecimento da passagem para o arrumo. ◊ ◊ ◊ Parte II – A Revista 4) Inconformado o réu AA (segundo réu) interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões nas respectivas alegações: “1. O título constitutivo da propriedade horizontal do prédio Autor é omisso quanto ao destino dos arrumos descritos na petição inicial, tal como é referido na ata da assembleia de condóminos junta pelo Autor na sua petição inicial, e tal como é referido quer pelo Autor quer pelo Réu, aqui Recorrente. 2. Reputar tais arrumos como parte comum ou parte integrante das frações BG e BQ implica uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. 3. O que só pode ser feito, nos termos do art.º 1419.º do C. Civil, por acordo de todos os condóminos ou, na falta de acordo, através de ação judicial de suprimento desse acordo, quando os condóminos que se oponham representem menos de 1/10 do capital investido. 4. Não sendo os presentes autos o meio próprio para proceder à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. 5. O Tribunal Recorrido serve-se do disposto na al. e) do n.º 2 do artigo 1421.º do C. Civil para erradamente considerar comuns os arrumos cuja propriedade se discute nos presentes autos. 6. O que aquela disposição legal estabelece é uma presunção. 7. Ao contrário das partes referidas no n.º 1 do mesmo normativo, que são imperativamente comuns, as partes referidas neste n.º 2 podem ou não ser, admitindo-se prova de que podem ser partes integrantes de uma fração autónoma. 8. As partes do edifício que não sejam especificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como frações autónomas, nem sejam imperativamente comuns no sentido do artigo 1421.º, n.º 1, do C. Civil são, em princípio, presumivelmente comuns, ao abrigo da presunção contida no n.º 2 da mesma norma. 9. Esta trata-se de uma presunção juris tantum, uma vez que pode ser afastada por prova que se lhes oponha. 10. No caso dos autos não estamos perante coisa imperativamente comum, estamos perante espaços omissos no título constitutivo da propriedade horizontal e suscetíveis de utilização individual e exclusiva, suscetíveis de integrarem frações autónomas. 11. Os arrumos, sitos na primeira cave sob as frações “BG” e “BQ”, cuja propriedade aqui se discute, sempre foram de uso individual e exclusivo dos proprietários dessas frações, nunca tendo sido usados ou ocupados para qualquer efeito, por qualquer outro condómino ou pela própria administração do condomínio, mas sempre pelos proprietários das frações “BG” e “BQ”, respetivamente, por si e seus ante possuidores, no seu interesse, neles guardando os seus pertences, fazendo uso exclusivo deles, detendo em exclusivo as suas chaves. 12. O Autor/ Condomínio nunca foi nem é detentor das chaves dos referidos arrumos, nunca tendo acedido ao interior dos referidos arrumos. 13. O Réu/Recorrente e seus ante possuidores sempre acederam aos arrumos, através da cave menos um, detendo as chaves da porta dos arrumos e das portas da escadaria que dá acesso à mesma cave. 14. As caves do Autor nunca estiveram interditas às frações BG e BQ, como ardilosamente se pretendeu fazer crer o Tribunal recorrido. 15. É na cave menos dois que se situa a sala do condomínio onde se realizam as assembleias a qual não é interdita aos proprietários das frações BG e BQ. 16. É esta a “destinação objetiva e material” a que o Tribunal recorrido se refere e que considera não se verificar in casu, mas que, em nossa humilde opinião, é patente. 17. O próprio Autor nunca afirmou ser detentor das referidas chaves, assim como nunca negou estarem as mesmas na posse dos proprietários das frações BG e BQ, porque, como bem sabe, tais chaves desde sempre estiveram na posse dos proprietários das sobreditas frações, assim como sabe que os referidos arrumos nunca foram ocupados por outrem que não os proprietários das frações BG e BQ. 18. É esta a alegação que o Tribunal recorrido pura e simplesmente ignora e da qual, consequentemente, resulta o acórdão recorrido. 19. É bastante explícita a alegação do Réu neste ponto, no sentido de afirmar que só os proprietários das referidas frações tinham acesso exclusivo aos arrumos, ao contrário do Condomínio aqui Autor. 20. Tal alegação foi efetuada e configura uma “destinação objetiva e material da coisa”, cuja prova tem a capacidade de ilidir a presunção estabelecida no art.º 1421.º n.º 2 al. e), na qual se funda a decisão recorrida. 21. A qualificação dos arrumos cuja propriedade se discute nos presentes autos como parte comum ou parte integrante das frações BG e BQ trata-se, assim, de matéria controvertida pelas partes, pelo que uma decisão de mérito acerca deste ponto sempre implicaria produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento. 22. O que, em último caso, deverá ocorrer, mas não em sede dos presentes autos. 23. Não constando os “arrumos” do título constitutivo da propriedade horizontal, a sua qualificação como parte comum ou parte integrante das frações BG e BQ implica necessariamente uma alteração do título, inadmissível por via destes autos. 24. O Autor na sua petição inicial, refere que para que os arrumos serem considerados parte integrante das frações BG e BQ é necessária uma alteração do título constitutivo; do mesmo modo, para serem considerados partes comuns é necessária essa alteração. 25. A presunção estabelecida no art.º 1421.º n.º 2 al. e) do C. Civil admite prova em contrário. 26. Nos presentes autos o título constitutivo é omisso quanto a estes espaços, designados arrumos, pois não só não os individualiza como não os refere, não constando os mesmos sequer das plantas do prédio do A. 27. Trata-se de espaços suprimidos, olvidados, postergados na escritura de constituição da propriedade horizontal, que para serem considerados comuns, como defende o Autor/Apelante, ou parte integrante das frações BG e BQ, como defende o Réu/Apelado, sempre teriam de ser incluídos e individualizados na supradita escritura, o que necessariamente implicaria uma alteração do título constitutivo. 28. Tal alteração apenas se poderá efetuar por acordo de todos os condóminos ou, na falta de acordo, através de ação judicial de suprimento desse acordo, quando os condóminos que se oponham representem menos de 1/10 do capital investido. 29. Nunca através dos presentes autos. 30. O aqui Recorrente entende que a alteração do título poderá operar por usucapião. 31. Uma vez que, foram sempre os proprietários das frações BG e BQ, por si e seus ante possuidores, que usaram os referidos espaços, no seu interesse, neles guardando os seus pertences, fazendo uso exclusivo deles, detendo exclusivamente as chaves dos referidos arrumos. 32. E que, o Autor nunca foi detentor das referidas chaves, nunca tendo acedido ao interior dos referidos arrumos. 33. Os proprietários das frações BG e BQ, por si e seus ante possuidores, comportaram-se como proprietários dos arrumos sitos na primeira cave, sob as respetivas frações, sem que o seu comportamento lesasse quaisquer direitos de terceiros, à vista de todos os outros condóminos e da Administração do Condomínio, sem qualquer oposição ou objeção por parte destes ou quaisquer outras pessoas, pelo que a sua posse é pública, pacífica e de boa-fé. 34. A escritura de constituição da propriedade horizontal foi celebrada em 14 de março de 2003, pelo que, embora não titulada, mas exercida há mais de quinze anos, a posse do Réu/Recorrente é apta à aquisição da propriedade por usucapião nos termos do art.º 1296.º do C. Civil. 35. Os proprietários das frações BG e BQ adquiriram por usucapião os arrumos sitos na primeira cave, sob as referidas frações. 36. Os arrumos cumprem os requisitos que o artigo 1415.º do C. Civil impõe para a autonomização de frações. 37. A posse dos Réus cumpre os requisitos para que se configure aquisição por usucapião, pelo que estes devem ser considerados os proprietários dos arrumos sitos sob a fração BG, não obstante estes não estarem (ainda) especificados no título constitutivo da propriedade horizontal. 38. Por maioria de razão, tendo a usucapião aptidão para constituir a propriedade horizontal (cfr. artigo 1417.º, n.º 1, do C. Civil), ela tem a fortiori (a maiori ad minus) aptidão para modificar os termos em que foi constituída a propriedade horizontal, sobretudo quando a modificação física preexiste e se trata apenas de uma modificação jurídica ou formal, como no caso dos autos. 39. Os proprietários das frações BG e BQ adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre os espaços designados pelo Autor como arrumos, sendo os seus donos e legítimos possuidores. 40. Por esse motivo, o Réu/Recorrente deduziu pedido reconvencional contra o Autor, bem como contra todos os Condóminos que o compõem, a fim de que fossem condenados a reconhecer o Primeiro e Segundos Réus como proprietários dos arrumos que se situam na primeira cave do prédio do Autor, por baixo da fração “BG” e no seu alinhamento, abstendo-se da prática de quaisquer atos que violem esse direito. 41. Tal pedido foi julgado improcedente por falta de legitimidade do Réu, aqui Recorrido, uma vez que, à data, era ainda locatário da fração BG, em virtude da celebração de um contrato de locação financeira imobiliária com o Primeiro Réu, o Banco BIC Português, S.A. 42. Situação que se alterou a 6 de fevereiro de 2023 conforme certidão permanente com o código de acesso PP-...841. 43. E que poderá justificar a propositura de uma nova ação pelo aqui Recorrente, já enquanto proprietário da fração BG, para que o título constitutivo da propriedade horizontal seja alterado por usucapião, ao abrigo do art.º 1415.º do C. Civil, portanto, através de meio próprio. 44. Ao passo que, no âmbito dos presentes autos, tal alteração não poderá operar, caindo por terra a pretensão do Autor. 45. Uma vez que a qualificação dos arrumos aqui em crise como partes comuns ou partes integrantes das frações BG e BQ implica, na prática e necessariamente, uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal que não pode ter lugar pela via judicial, mas apenas por acordo de todos os condóminos ou, na falta de acordo, através de ação judicial de suprimento desse acordo, quando os condóminos que se oponham representem menos de 1/10 do capital investido. 46. Devendo, deste modo, ser revogado o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão proferida na primeira instância, absolvendo-se os Réus de todos os pedidos formulados.” ◊ 5) O Condomínio autor, ora recorrido, apresentou resposta às alegações da revista interposta pelo segundo réu, pugnando pela improcedência do recurso interposto. ◊ 6) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir. Tendo em conta o teor das decisões impugnadas e o das conclusões das alegações do recurso interposto as questões a decidir na presente revista são as seguintes: Se a decisão que se pronuncie sobre se o espaço existente na cave menos um por baixo das fracções BG e BQ e no seu alinhamento representa uma modificação não permitida do título de constituição da propriedade horizontal; Concluindo-se não haver qualquer obstáculo à apreciação do pedido formulado, se esse espaço existente na cave menos um por baixo das fracções BG e BQ e no seu alinhamento deve ser considerado parte comum do Edifício João de Deus. ◊ ◊ ◊ II - FUNDAMENTAÇÃO Parte I – Os Factos 1) São os seguintes os factos provados relevantes, tal como resultam do decidido pelas instâncias: “1. O Autor é formado pelo prédio urbano constituído no regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... e Rua..., composto por cave menos dois, cave menos um, rés-do-chão, cinco andares e um recuado, com logradouro, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...73 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...41-Freguesia ...; 2. O Autor é representado pela administradora de condomínio E..., Lda.; 3. A instauração da presente ação foi previamente deliberada em assembleia de condóminos realizada em 28 de setembro de 2020, conforme proposta por maioria, constando da ata, neste ponto, o seguinte: “análise e discussão da posse de dois arrumos omissos na propriedade horizontal do prédio”; 4. Em 14 de Março de 2003, na Secretaria Notarial de ..., foi celebrada escritura pública de constituição de propriedade horizontal do prédio em causa, mediante a qual o A. ficou constituído por frações autónomas, independentes e isoladas entre si, todas com saída própria para a via pública ou para uma parte comum do prédio. 5. Dez dias depois, essa escritura de constituição de propriedade horizontal foi retificada; 6. A fração BG e a fração BQ fazem parte do condomínio, sendo ambas destinadas a comércio e as únicas frações do edifício com esse fim; 7. Sendo que nas descrições na respetiva Conservatória do Registo Predial, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, consta que a fração BG “compõe-se de estabelecimento com um quarto de banho no rés-do-chão com entrada pelo nº ...24 da Rua ..., com a área de 40,20m2, com a permilagem de 5 por mil; 8. E que a fração BQ compõe-se de estabelecimento no rés-do-chão, com um quarto de banho com entrada pelo nº ...98 da Rua ..., com a área de 62,39m2, com a permilagem de 7 por mil 9. As referidas frações estão edificadas no logradouro do prédio Autor, em unidades urbanísticas distintas entre si, localizadas em cada um dos topos do edifício que acolhe as demais frações autónomas, e deitam diretamente para o domínio público; 10. Destinando-se ambas a comércio, o público acede diretamente ao interior de cada estabelecimento sem utilizar as partes comuns do edifício Autor; 11. Mais consta do título constitutivo da propriedade horizontal que: “2 – As fracções BG e BQ têm acesso aos compartimentos de ventiladores existentes, respectivamente, na primeira cave e junto à rampa exterior de acesso às caves para instalação e manutenção de aparelhos de ventilação mecânica e ar condicionado.” ◊ 2) Ao abrigo do disposto no artigo 662º n.º 1 do Código de Processo Civil o Tribunal da Relação considerou ainda provado, por acordo das partes (artigo 12º petição e artigos 28º a 30º da contestação do réu AA) o seguinte facto: “O réu AA realizou obras no sentido de proceder à ligação interior da loja nº ...24 da Rua ... ao arrumo situado na parte inferior e sob a mesma na primeira cave, e abriu no pavimento da fração BG uma passagem para o arrumo.” ◊ ◊ ◊ Parte II – O Direito 1) Importa agora apreciar as questões colocadas pelo recorrente e a que importa dar resposta, as quais se prendem com a definição do direito de propriedade (ou de compropriedade) sobre o espaço de “arrumos” situado na cave menos um por baixo e no alinhamento das fracções “BG” e “BQ” do Edifício J..., sito no gaveto da Rua ... e da Rua.... Deve esse espaço, apesar de a sua descrição não constar do título constitutivo da propriedade horizontal, ser considerado como parte comum do edifício? 2) A sentença proferida em primeira instância julgou improcedente a acção por considerar haver um obstáculo legal à apreciação do pedido, já que da procedência da acção resultava a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal em termos não autorizados pelo artigo 1419.º do Código Civil Ponderou-se em primeira instância que “as partes admitem que o título constitutivo da propriedade horizontal é omisso quanto ao destino dos arrumos descritos na petição inicial, pelo que uma decisão judicial a considerar os mesmos como sendo parte comum, ou mesmo a considerar que fazem parte das frações descritas, implicaria uma alteração do título constitutivo.” Já o acórdão recorrido teve entendimento diferente, assumindo que uma vez que do título constitutivo da propriedade horizontal não constava a referência aos “arrumos” como parte integrante das frações “BG” e “BQ”, não sendo tal espaço físico imperativamente parte comum – porque não subsumível à previsão do artigo 1421.º n.º 1 do Código Civil – era forçoso concluir serem tas espaços parte comum do prédio, dada a presunção estabelecida no artigo 1421.º n.º 2 alínea e) do Código Civil e não se demonstrar que eles estivessem afetos ao uso exclusivo dos condóminos das frações “BG” e “BQ”. Mais se ponderou que a decisão não importava qualquer alteração ou modificação do título constitutivo da propriedade horizontal já que o reconhecimento dos aludidos espaços de “arrumos” como parte comum do prédio, não importava qualquer alteração ou modificação na composição e descrição das frações “BG” e “BQ”. Cremos que o Tribunal da Relação decidiu correctamente ambas as questões. Senão vejamos. 3) O Edifício J..., sito no gaveto da Rua ... e da Rua ... no ..., está constituído em regime de propriedade horizontal. O título constitutivo da propriedade horizontal do edifício João de Deus é omisso quanto à existência de um espaço para arrumos sito na cave menos um, por baixo e no alinhamento das frações autónomas “BG” e “BQ”, não constando a identificação de um tal espaço na composição das fracções autónomas nem lhe sendo feita referência nas partes comuns do edifício. Do título constitutivo da propriedade horizontal sobre o edifício também não consta a afectação especial desses espaços a qualquer condómino nem a sua integração em qualquer fracção autónoma, nomeadamente, nas fracções BG e/ou BQ. 4) O regime legal da propriedade horizontal é caracterizado pela titularidade na esfera jurídica de cada um dos condóminos de um direito de propriedade exclusiva sobre uma determinada fracção autónoma, devidamente individualizada e identificada no título constitutivo, e pela cumulativa co-titularidade do direito de propriedade (compropriedade) sobre as partes comuns do edifício, sendo a existência dessas partes comuns absolutamente essencial para permitir a autonomia funcional das fracções autónomas do edifício. Sendo essencial a identificação no título constitutivo da propriedade horizontal das fracções autónomas objecto de direito de propriedade exclusivo de cada condómino, todas as partes do edifício que não estiverem ali identificadas como fração autónoma ou afectas ao uso exclusivo de uma dada fracção, serão tidas como partes comuns do edifício de que cada condómino é comproprietário na proporção do valor da sua fracção. 5) O artigo 1421.º n.º 1 do Código Civil prevê que determinadas partes do edifício são obrigatoriamente comuns, elencando como tal as partes que constituem a estrutura do edifício e as partes mais usuais de uso comum como entradas, vestíbulos, corredores utilizados por mais do que dois condóminos, etc. As partes do edifício descritas neste n.º 1 do artigo 1421.º do Código Civil nunca poderão ser objecto de apropriação individual, exactamente porque a sua existência é essencial à autonomia funcional de mais do que uma fração. No seu n.º 2 o mencionado preceito identifica as partes do edifício que se presumem comuns (pátios e jardins anexos, ascensores, casa de porteiro e garagens), contendo a sua alínea e) uma cláusula aberta ao considerar que, em geral, se presumem comuns todas as partes ou “coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.” Quanto a estas admite-se que o condómino que queira ver reconhecida como própria uma parte presumidamente comum realize prova que contrarie a presunção legal. Em que circunstâncias? 6) Tal como se extrai do artigo 1418.º do Código Civil o título constitutivo da propriedade horizontal tem obrigatoriamente que especificar quais são as partes do edifício que correspondem às várias fracções autónomas, individualizando-as e fixando o seu valor relativo por referência ao total do edifício. As especificações a que alude o artigo 1418.º n.º 1 do Código Civil são as únicas obrigatórias e a sua omissão tem como consequência a nulidade do título constitutivo. O título constitutivo da propriedade horizontal pode conter, além delas, outras referências, nomeadamente a descrição/identificação das partes comuns e o fim de cada fração ou das partes comuns que descreva. 7) Desta diferença de regime infere-se que, não existindo qualquer obrigação legal de definição das partes comuns do edifício no título constitutivo da propriedade horizontal, se deve presumir, sem prejuízo do disposto no artigo 1421.º do Código Civil, que todas as partes ou elementos do edifício que não estejam especificadas no título constitutivo como sendo autónomas e próprias de cada um dos condóminos ou integradas numa determinada fracção autónoma, são partes comuns. 8) Da redação do artigo 1421.º n.º 2 e) do Código Civil resulta, numa interpretação a contrario que se afigura legítima, a possibilidade de afastamento da presunção da compropriedade sobre elementos ou partes do edifício que estejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. Não é unânime a doutrina nem a jurisprudência sobre os requisitos para o afastamento da presunção de compropriedade nessas condições. Para uma determinada corrente, “se a coisa é objectivamente destinada ao gozo de todos os condóminos, não basta para vencer a presunção de comunhão a utilização prática exclusiva. A afectação susceptível de vencer a presunção de comunhão prevista no n.º 2 do artigo 1421.º terá de ser uma afectação formal, a realizar no título constitutivo. Ou seja, tudo o que não estiver descrito no título constitutivo como parte própria é propriedade comum dos condóminos. O legislador presume que, em geral, as partes que não estão descritas no título constitutivo como pertencendo exclusivamente a um dos condóminos são partes comuns do edifício.” 1 Para outros, porém, a presunção estabelecida pelo artigo 1421.º n.º 2 e) do Código Civil pode ser ilidida desde que se prove que as partes comuns em causa “foram atribuídas pelo título constitutivo da propriedade horizontal a algum ou alguns dos condóminos ou adquiridos por estes através de actos possessórios”. 2 9) No caso dos presentes autos não se afigura necessário tomar posição sobre a divergência acabada de identificar, já que não constando do título constitutivo da propriedade horizontal qualquer referência formal à afectação do espaço de “arrumos” em questão, também não está em causa a sua possível aquisição originária através de actos possessórios praticados pelo réu recorrente em relação ao espaço situação por baixo e no alinhamento da fracção “BG”. ◊ 10) Aqui chegados cremos estar em condições de responder negativamente à primeira questão atrás equacionada e de afirmar que nada impede a prolação de decisão do pedido formulado pelo condomínio autor porquanto ela não é susceptível de implicar a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal. Recorde-se que o que está em causa é saber se, apesar da omissão do título constitutivo da propriedade horizontal do edifício, se devem considerar os espaços em causa partes comuns, por efeito de presunção legal estabelecida no artigo 1421.º n.º 2 e) do Código Civil, isto é, por não estarem afectados ao uso exclusivo de qualquer fração. Da procedência do pedido formulado nesta acção resultará o esclarecimento de que se trata de partes comuns do edifício não descritas no título constitutivo da propriedade horizontal e não afectas a qualquer fração. 11) Da procedência dos fundamentos deduzidos na contestação, e uma vez que não foi admitido o pedido reconvencional formulado pelo segundo réu, (então locatário financeiro da fracção “BG”) por na qualidade que detinha de locatário financeiro os actos possessórios que invoca não conduzirem à aquisição originária do referido espaço para arrumos, não resultará senão a improcedência da acção. 12) Como se salienta na decisão recorrida, do conhecimento do pedido e pronúncia sobre o objecto da acção, seja qual for o seu sentido, não resulta alterada a característica de parte comum dos aludidos espaços para “arrumos”: “mantêm-se as mesmas partes comuns do prédio, como constam do título constitutivo da propriedade horizontal sendo que a consideração dos arrumos como parte comum, mais não é do que o resultado da aplicação do regime especifico da propriedade horizontal ( artigo 1418º e 1421º Código Civil).” Nada obsta, portanto, ao conhecimento do pedido nem à decisão sobre a natureza dos “arrumos” como parte comum do Edifício J.... ◊ 13) Vejamos a questão na perspectiva do prosseguimento da acção para permitir ao recorrente a prova do uso exclusivo, por si e pelos anteriores proprietários, do espaço de “arrumos” situado na cave menos um por baixo e no alinhamento da fração autónoma “BG” de que é agora proprietário. Entende o recorrente que a acção deveria prosseguir para a fase de julgamento a fim de ali poder demonstrar o uso exclusivo do recorrente do espaço de “arrumos” e assim ilidir a presunção contida no artigo 1421.º n.º 2 e) do Código Civil. 14) A propósito do prosseguimento da acção para julgamento o acórdão recorrido teceu, pertinentemente, as seguintes considerações: “Decorre dos factos provados que os “arrumos” situados na primeira cave do prédio não constam referenciados no título constitutivo da propriedade horizontal, seja como uma fração, parte de uma fração, ou, como parte comum do prédio. Por outro lado, nas especificações das frações “BG” e “BQ” nada se refere quanto aos arrumos. Apenas se apurou que os proprietários das frações têm acesso aos compartimentos técnicos de ventiladores existentes, respetivamente, na primeira cave e junto à rampa exterior de acesso às caves para instalação e manutenção de aparelhos de ventilação mecânica e de ar condicionado. Estes compartimentos são espaços distintos dos alegados arrumos, como resulta admitido nos autos, pois os arrumos em causa situam-se na parte inferior da área das respetivas frações “BG” e “BQ”, no alinhamento destas, na cave menos um ou primeira cave do prédio (cfr. ata da assembleia de condóminos inserida a páginas 1303 a 1309 do processo eletrónico - doc.nº 4 da petição). O primeiro e terceiro réus admitem que adquiriram as frações com as especificações que constam do título constitutivo da propriedade horizontal, arrogando-se proprietários apenas de tais frações. Ambos negam ter cedido os referidos espaços designados como “arrumos”, nos respetivos contratos de locação financeira e arrendamento que celebraram com o segundo e quatro réus, respetivamente. Apenas o réu AA veio alegar o que se passa a transcrever: “13.º Tendo a visita ao imóvel sido promovida e acompanhada pela mesma. 14.º Que mostrou ao Segundo Réu, para além do espaço comercial com entrada pelo n.º ...24 da Rua ..., um arrumo situado na primeira cave, afirmando tratar-se de parte integrante da loja. 15.º Mais explicou ao Segundo Réu que tinha adquirido aquele espaço para instalar um estabelecimento comercial de venda de roupa de criança, juntamente com um familiar, mas que, por motivos pessoais, tinham desistido do projeto. 16.º Adiantando que, o arrumo situado na primeira cave serviria para armazém, o que poderia ser uma mais-valia para o Segundo Réu, já que, no exercício da sua atividade, teria certamente também necessidade de armazenar stocks. 17.º Ora, o Segundo Réu, tendo constatado que o imóvel servia as necessidades exigidas para o exercício da sua atividade comercial, solicitou à dona do mesmo a certidão e caderneta prediais. 18.º Tendo verificado que tais documentos eram omissos quanto aos arrumos sitos na primeira cave, solicitou à proprietária do imóvel os devidos esclarecimentos. 19.º Tendo aquela, imediatamente, referido que os arrumos não constavam da propriedade horizontal, mas que sempre estiveram na posse dos proprietários da fração “BG”. 20.º Tanto que era detentora das chaves do referido espaço, que lhe tinham sido entregues pelos antigos proprietários, e que nunca ninguém tinha levantado qualquer questão a esse respeito. 21.º Referindo ainda que também o Quarto Réu que labora no estabelecimento comercial com entrada pelo n.º ...38 da Rua ..., tinha as chaves do arrumo que se situava por baixo da respetiva loja, na primeira cave, servindo-se dele para armazenar livros. 22.º Tendo o Segundo Réu verificado, junto do arrendatário daquele espaço comercial o que lhe tinha sido transmitido pela vendedora, não mais se preocupou com o assunto”. Resulta da alegação do réu que tomou conhecimento através dos documentos que consultou, que a fração “BG” não comportava qualquer arrumo. Todos os restantes factos mostram-se irrelevantes para aferir da efetiva composição da fração “BG” e por isso, não se determina que o processo prossiga os seus termos para julgamento.” 15) Salienta ainda o acórdão recorrido que, conforme alegado, as informações prestadas ao recorrente não o foram pelo autor / condomínio e que aquele nem sequer alega que este tinha conhecimento ou dado consentimento à utilização do espaço em causa, pelo que não lhe é oponível o uso que o recorrente tenha feito do referido espaço à sua revelia. Em todo o caso, a afectação do espaço à fracção autónoma “BG” e o seu uso exclusivo, tal como reconhece o recorrente, não tem qualquer suporte documental. Por outro lado, também não foi alegado pelo recorrente “que a situação de facto preexistia à constituição da propriedade horizontal ou que o preço pela aquisição englobava o dito espaço, ou que ao longo do tempo só os proprietários das referidas frações tinham acesso exclusivo a tal espaço ou ligação direta entre estes espaços e as frações, circunstâncias que a ocorrerem poderiam configurar a “destinação objetiva ou material da coisa”. 16) Aderindo à fundamentação do acórdão recorrido parcialmente transcrita, não pode senão ter-se por manifestamente inútil o prosseguimento da acção para, na fase de instrução e julgamento, permitir ao réu recorrente provar o eventual uso exclusivo do espaço de “arrumos” sito por baixo e no alinhamento da sua fração e desse modo ilidir a presunção constante do artigo 1421.º n.º 2 e) do Código de Processo Civil. A prova dos factos alegados pelo recorrente não permitiria conduzir à conclusão que o espaço para arrumos em discussão nos autos sempre esteve exclusivamente afecto à utilização do condómino titular do direito de propriedade da fracção “BG”, mas apenas eventualmente que “os arrumos” estiveram na posse dos proprietários da fração “BG” o que, de resto, é negado pelo próprio réu locador financeiro primeiro réu e não é confirmado pela anterior proprietária a avaliar pela alegação do recorrente transcrita. Acresce que não foi sequer alegado que o condomínio (a assembleia de condóminos) tenha tido conhecimento e dado consentimento ou aprovado a utilização dos espaços existentes por baixo e no alinhamento das fracções autónomas “BG” e “BQ”, em termos de se poder afirmar a sua afectação exclusiva e de facto ao uso dos respectivos condóminos. Assim sendo, não se mostra suficientemente indiciada a afectação do espaço de arrumos existente por baixo e no alinhamento da fracção “BG” ao uso exclusivo do respectivo condómino, que constitui o fundamento para que a presunção de compropriedade não possa funcionar. 17) Manda a tutela da segurança jurídica na definição do direito de cada condómino que preside à exigência da descrição formal das fracções autónomas e da finalidade a que se destina cada fração e as partes comuns no título constitutivo da propriedade horizontal, que a dúvida sobre a qualificação das partes do edifício como comuns ou afectas a determinada fracção não seja resolvida com sacrifício das condições de uso e valor relativo das fracções ou do fim a que elas se destinam. É inquestionável que o título constitutivo da propriedade horizontal do Edifício J..., no ..., sendo omisso em relação à sua existência e destino, não afecta o uso exclusivo do espaço de “arrumos” em discussão a qualquer condómino. Sem embargo da possibilidade de prova da sua aquisição originária com base na prática de actos possessórios que não se mostram suficientemente alegados nem indiciados, não poderia o recorrente valer-se, contra a vontade dos demais condóminos representados pelo condomínio, do eventual uso exclusivo de uma parte comum do edifício como se tal espaço lhe tivesse sido formalmente afectado. 18) Em conformidade com tudo o que vem de ser exposto a revista interposta pelo réu recorrente é julgada improcedente, confirmando-se o julgamento feito no acórdão recorrido. O recorrente, porque vencido é responsável pelo pagamento das custas do recurso que interpôs para esta instância. ◊ ◊ ◊ III - DECISÃO Termos em que os Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal de Justiça acordam em julgar improcedente a revista interposta pelo réu AA e confirmar o acórdão recorrido. As custas do recurso ficam a cargo do recorrente. Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 17 de setembro de 2024 Manuel José Aguiar Pereira (relator) Jorge Manuel Leitão Leal Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues _____________________________________________ 1. Assim, Sandra Passinhas, – “A Assembleia de Condóminos e o administrador na propriedade horizontal” – Almedina – 2.ª reimpressão da segunda edição 2006, a páginas 40 e seguintes↩︎ 2. Assim Pires de Lima e Antunes Varela no “Código Civil Anotado”↩︎ |