Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
962/22.7T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: ACEITAÇÃO DA HERANÇA
ACEITAÇÃO TÁCITA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
CABEÇA DE CASAL
NULIDADE DE SENTENÇA
CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PENHORA
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I) Não ocorre nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º n.º 1 c) ou e) do Código de Processo Civil se, estando apenas em causa nos autos a titularidade do direito de propriedade sobre determinada fracção de um imóvel na data da sua penhora, o dispositivo da sentença que julga a acção procedente declarar que a ré “é a única titular da fracção autónoma …” omitindo expressa referência ao direito de propriedade;

II) Nessas circunstâncias a sentença não condena em objecto diverso do pedido – que continua a respeitar – e a omissão da referência ao direito de propriedade em causa é insusceptível de tornar a decisão ininteligível;

III) Adquirindo-se o domínio e posse dos bens de uma herança através da aceitação da herança não é suficiente – como tem uniformemente reconhecido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - para integrar o conceito de aceitação tácita a que alude o artigo 2.056º n.º 1 do Código Civil a outorga de escritura de habilitação de herdeiros pelo respectivo cabeça de casal;

IV) Não sendo alegada a prática de actos materiais pelo herdeiro de que resulte, com elevado grau de probabilidade, a evidência de aceitação da herança não pode afirmar-se que os bens que integram a herança passaram a ser propriedade do herdeiro.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:




I - RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA e BB, instauraram acção declarativa de condenação contra CC, pedindo que seja declarado que a ré, na qualidade de executada na acção sob o n.º de processo 3455/20.3..., era a única proprietária de uma fracção de um imóvel que identificada à data de 7 de janeiro de 2021.

Alegaram para tanto, em síntese, que a ré e o seu filho adquiriram tal prédio por sucessão hereditária e, subsequentemente, ante o falecimento deste último, ocorrido em 10 de agosto de 2020, que a ré se tornou a sua única proprietária.

Tendo o registo da penhora levada a cabo a 7 de janeiro de 2021 sido lavrado como provisório por natureza uma vez que o bem se encontraria nessa data titulado a favor da ré e de pessoa diversa – o filho desta –, e com vista à conversão do registo da penhora em definitivo, pretendem os autores que seja declarado que à data da penhora era a ré a única proprietária da fracção do imóvel à data de 7 de janeiro de 2021.

2) A Ré contestou alegando, em síntese, que o imóvel se encontrou primeiramente registado a favor da herança aberta por óbito de DD (marido da ré) e, subsequentemente, além da mesma herança, em benefício da herança aberta por óbito de EE (filho da ré), antes que a favor da autora, obstando, assim, ao reconhecimento da propriedade do bem pela mesma na data da apontada penhora.

3) Teve lugar a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando que “CC era a única titular da fracção autónoma ‘C’ do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...25 da freguesia de ...) na data de 7 de janeiro de 2022”. 1

4) Tendo a ré interposto recurso de apelação o Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 11 de abril de 2024, declarou a nulidade da sentença, por ter incorrido em condenação em objecto diferente do pedido e, ao abrigo do disposto no artigo 665.º n.º 1 do Código de Processo Civil, julgou a apelação procedente e, do mesmo passo, a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.


◊ ◊



Parte II – A Revista

5) Inconformados os autores interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões nas respectivas alegações:

I. Vem o presente Recurso interposto da decisão do Venerando Tribunal da Relação de Évora que, substituindo-se ao Tribunal de 1ª Instância, na sequência do decretamento da nulidade da sentença por este proferida, revogou a decisão dela constante;

II. No que se reporta à decretada nulidade da sentença por alegada condenação em objecto diverso do pedido, entendem os R. que a decisão em causa constitui mera decisão tabelar, escassamente fundamentada e que constitui um mero exercício de retórica semântica que, no caso concreto decorre, por um lado, de errada avaliação do sentido da expressão “titular”, no contexto da acção e, por outro, da completa desconsideração do contexto da mesma e do conteúdo / fundamentação da própria sentença;

III. Como se afigura pacífico, a expressão “titular de um bem” é, imediatamente, conotada com a propriedade do mesmo;

IV. “Titular” significa “dono, possuidor, proprietário” e, tal como decorre do contexto da acção, o único direito em discussão na mesma é o direito de propriedade, sendo que,

V. No mundo jurídico, o termo “titular” significando “dono, detentor, proprietário” é usado em legislação diversa, da qual é exemplo o artigo 119º, nº1, do Código do Registo Predial, preceito que prevê, expressamente, a instauração da presente acção;

VI. O objecto da acção nem se reporta à qualidade da Ré, como proprietária, que é, mas sim de saber se, na data de 07.01.2021, é a única ou se existem outros, designadamente o filho;

VII. Porquanto, já por óbito do marido da Ré, esta e o filho haviam adquirido, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a propriedade do imóvel penhorado, aquisição registada através da Ap. ...98, de 15.12.2009, na 2ª Conservatória do Registo Predial ... (cfr. certidão permanente junta como doc.2, com a P.I.);

VIII. Dúvidas não restam que o direito adquirido pela Ré e pelo filho, é o direito de propriedade sobre o imóvel, que o falecido marido havia adquirido, no estado de solteiro;

IX. Carece, assim, do mais elementar sentido a pergunta formulada pelos SD 2: titular de que direito? Seguida de enigmática e obscura conclusão;

X. Caso tivessem atentado na sentença em apreciação teriam, facilmente, concluído que só existe um direito (o de propriedade) objecto dos autos, tal como doutamente considerado pelo Mmº Juiz “a quo”;

XI. Que considerou que “A questão a decidir nestes autos prende-se com a titularidade (bold nosso) da ré do imóvel identificado e descrito nos articulados à data de 07.01.2021, em que o mesmo foi alvo de penhora nos autos do processo executivo com o n.º 3455/20.3..., ou se, diversamente, o imóvel em questão se encontrava no acervo hereditário do marido da ré e, subsequentemente e em acréscimo, no acervo hereditário do filho desta”.

XII. E ainda que “Nesta esteira, atento o facto de haver uma sobreposição integral entre os bens que compõem o acervo hereditário de EE e o direito que a ré tem sobre os mesmos, entende-se inexistir qualquer razão (porquanto qualquer acto subsequente à aceitação não teria a virtualidade de concretizar o direito desta sobre a herança, já fixado através da sua aceitação) para dissociar a titularidade do bem (bold nosso) do direito a suceder sobre o acervo hereditário na medida correspondente à sua quota ideal”.

XIII. Sem que alguém possa questionar que a titularidade mencionada diz respeito à propriedade do imóvel objecto da penhora;

XIV. Donde, importará concluir, que a decisão que julgou a Ré como única titular da fracção não comporta a mínima divergência com a expressão única proprietária (antes se deve ter por sinónima da mesma);

XV. Muito menos, sendo passível de fundamentar a invocada “condenação em objecto diverso do pedido” pois, como vem sendo jurisprudencialmente aceite, tal só ocorre quando a sentença extravasa, em quantidade ou qualidade, os limites constantes do pedido, mas não já quando existe mera divergência formal (também inexistente), que não de substância, entre o pedido e a decisão;

XVI. Contexto em que, por manifesto erro de julgamento, se entende que não ocorre qualquer divergência entre o pedido e a condenação da 1ª instância, soçobrando o argumento que sustenta a nulidade decretada;

XVII (?) …

XVIII. No que se reporta à “nova decisão de mérito”, proferida pelos SD, importa referir, em primeiro lugar, que a mesma é desprovida do mais leve indício de fundamentação, em violação do nº1, do artigo 205º, da Constituição da República Portuguesa sendo, consequentemente, esta sim, flagrantemente nula;

XIX. Tendo em conta a matéria de facto apurada e demais factos instrumentais, constantes da prova documental, sublinhe-se não impugnada, os SD optaram por “realizar” novo julgamento, sem dedicarem uma vírgula, sequer, à decisão sob recurso;

XX. Sabendo-se que, segundo as regras processuais vigentes e a jurisprudência de referência, os recursos ordinários são recursos de reponderação e não de reexame, já que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, mas limita-se a controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último;

XXI. Do mesmo modo, se não pode permitir que a “nova decisão” se “fundamente, de facto” em questão jamais invocada ou discutida, em sede de 1ª instância (ou mesmo de recurso);

XXII. Como acontece quando alegam que … “sempre se acrescenta que, estando subjacente à PI que os AA. pretendem reagir à decisão de atribuição de carácter provisório ao registo da penhora, a lei pressupõe uma recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos (cfr. Art. 140.º do CRP) o que não se verifica já que os próprios AA. afirmam que não ocorreu tal recusa só é provável que venha a ocorrer - cfr artigo 11º da PI.”

XXIII. Para além de se tratar de afirmação destituída de fundamento legal e sem qualquer relação com a verdadeira pretensão de fundo dos AA/R., a questão enunciada, como único fundamento apresentado, constitui “questão nova”, que se situa fora do âmbito do recurso, por nunca antes ter sido invocada pela parte vencida, não ter sido objecto de decisão pelo tribunal recorrido, e não ser de conhecimento oficioso, razão pela qual estavam os SD impedidos de sobre ela se pronunciarem;

XXIV. Invocaram os SD que “o direito de propriedade exclusivo da Ré dependeria do apuramento de factos relativos ao direito sucessório, como por exemplo, os relativos à aceitação da herança, que para além do mais, nem sequer foram alegados.”

XXV. Caso tal se verificasse – o que não é, manifestamente, o caso, pelo contrário – é entendimento dos R. que outro teria que ser o caminho – renovação / ampliação da prova – ao abrigo do que dispõem as als. b) e c), do nº2, do artigo 662º, do C.P.C., ao invés da opção pela apreciação do mérito da acção,

XXVI. Situação que, não obstante, se julga inútil, uma vez que os autos dispõem da prova documental necessária e suficiente à boa decisão da causa, como bem decidiu e julgou o Mmº Juiz “a quo”;

XXVII. Centrando-se, aparentemente, a discordância dos SD, quanto ao sentido da decisão da 1ª instância, no facto de, alegadamente não estarem apurados factos que permitam concluir pela aceitação da Ré, da herança do filho???, desde já se afirma que tal consideração é destituída de qualquer sentido;

XXVIII. Pelo contrário, no entender dos R., resulta amplamente comprovada aceitação, por parte da Ré, das heranças do marido do filho,

XXIX. Em primeiro lugar, importará referir que a Ré não repudiou qualquer das heranças, como se demonstra, “a contrário”, da matéria de facto apurada e relevante [c) e h)];

XXX. Como resulta da certidão permanente referida em VII (doc.2, PI), a Ré (sujeito passivo único) vendeu o imóvel penhorado, cujo registo a favor de FF foi efectuado, na 2ª Conservatória do Registo Predial ..., pela Ap. ...47, de 02.09.2021, com a menção expressa de que “o sujeito passivo era a única herdeira de EE”

XXXI. Já antes, em 10.10.2007, a Ré havia outorgado habilitação de herdeiros na qual havia declarado que DD havia falecido na apontada data, “no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos, com CC […] sob o regime da comunhão de adquiridos, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe ficado a suceder como únicos e universais herdeiros: […] CC [e] EE”;

XXXII. Factos estes que, estranhamente, os SD resolveram ignorar, como declaração inequívoca de aceitação expressa das respectivas heranças, por parte da Ré, no âmbito da previsão clara e cristalina do nº2, do artigo 2056º, do Código Civil;

XXXIII. Na consideração ??? dos SD, a outorga pela Ré das escrituras de Habilitação de Herdeiros identificadas e a posterior venda do bem em causa, não constituem manifestação suficiente de aceitação das heranças em causa;

XXXIV. Entendem os R. precisamente o contrário, pois que demonstrada está a aceitação expressa e inequívoca das mesmas, nos termos do preceito supracitado, até porque,

XXXV. Nem se concebe que, á luz dos procedimentos notariais vigentes, alguém possa outorgar contrato ou escritura destinada a vender um prédio do que não seja proprietário (cfr. Artigos 54º e 55º, do Código do Notariado), constando do registo como tendo vendido em nome próprio (sujeito passivo), como é o caso;

XXXVI. Tanto basta para que, salvo melhor opinião, também quanto à questão do mérito da acção, se considere ter a Ré aceite, de forma expressa, as heranças do marido e do filho, na sequência do que dispôs do imóvel, vendendo-o, à luz do que preceitua o referido nº2, do artigo 2056º, do Código Civil;

XXXVII. E que, tal como se identificou na decisão da 1ª instância, se considere que a Ré, à data da morte do filho, se consolidou como única e exclusiva proprietária do imóvel penhorado;

XXXVIII. Contexto em que, não poderá deixar de ser revogada a decisão constante do acórdão recorrido, repristinando-se a decisão que reconheceu a Ré como única titular/proprietária da fracção objecto dos autos.”




6) A ré recorrida apresentou articulado de resposta às alegações dos autores, as quais rematam pela forma seguinte:

“1.ª) Os recorrentes não formularam conclusões respeitadoras do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil.

2.ª) Apresentaram como conclusões matéria que não consta sequer da parte expositiva das suas alegações, o que tem como consequência a sua inutilidade e não existência.

3.ª) O requerimento recursivo do recorrente deve ser indeferido (artigo 641.º do Código de Processo Civil).

4.ª) É até à data de 7/01/2021 que releva a consideração de factos (data delimitada pelos recorrentes no pedido que formularam na petição inicial e não foi objecto de qualquer alteração).

5.ª) O que é posterior a 7/01/2021 não pode ser considerado é inútil.

6.ª) No artigo 219.º do Código do Registo Predial a palavra “titular” é usada única e exclusivamente com referência abstracta ao titular do direito inscrito no registo predial (titular de um direito inscrito).

7.ª) Sendo que os direitos que podem ser objecto de inscrição registral constam do artigo 2.º do mesmo Código de Registo Predial.

8.ª) Podendo ser diversos: propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície, servidão, habitação periódica, compropriedade, mera posse, hipoteca, locação, arrendamento e muitos outros mais.

9.ª) Ou seja, qualquer pessoa pode ser titular de um ou mais dos diversos direitos taxativamente previstos no referido artigo 2.º do Código do Registo Predial.

10.ª) O que confirma a nulidade da Sentença proferida no Tribunal de 1ª Instância.

11.ª) Para o apuramento de um direito de propriedade decorrente de um fenómeno sucessório, é essencial, é indispensável, entre outros, o apuramento dos relativos à aceitação da herança.

12.ª) Nestes autos nenhum consta a tal respeito, tão pouco sequer foi alegado pelos recorrentes que a recorrida tenha aceite uma herança (fosse ela qual fosse)

13.ª) A palavra e conceito “aceitação nunca foi usada pelos recorrentes, que não só poderiam tê-los articulado, como, no mínimo, o deveriam ter tentado, quer em 24/03/2022 (data de em que apresentaram a sua petição inicial, quer em 29/06/2022 (momento em que aditaram factos à sua própria petição inicial), mas não o fizeram, certamente porque tais factos não existiam à data de 7/01/2021.

14.ª) Mas os recorrentes nunca o fizeram e, consequentemente, sempre houve, a tal respeito, insuficiência da matéria de facto.

15.ª] Há muito que é jurisprudência uniforme de todos os Tribunais que não é pela celebração de escritura de habilitação de herdeiros que quem a outorgue pode ser considerado como tendo aceite a herança, ainda que de forma tácita.

16.ª) A do Supremo Tribunal de Justiça é reiteradamente unânime, como recentemente foi reafirmado pelo Acórdão de 30/05/2023 e de cujo sumário se salienta:

“I – Não havendo uma noção clara do que é uma aceitação tácita (a que se refere o art. 2056.º do CC), deve a mesma recolher-se a partir dos comportamentos do que se arroga a qualidade de herdeiro, a fim de apurar se deles resulta, com grande probabilidade, a evidência de aceitação, sem descurar que mesmo sem aceitação o suposto herdeiro pode praticar certos atos sem que daí decorra a consequência de os mesmos se terem por demonstrativos da aceitação.

II – A jurisprudência do STJ é unânime em considerar que a celebração da escritura de habilitação de herdeiros e participação às Finanças da ocorrência da morte, são atos insuficientes, como atos inequívocos, de aceitação tácita da herança.”

17.ª) O que também confirma o acerto do Venerando Acórdão “sub judice”.

18.ª) Os recorrentes nos artigos 11º e 12º da sua petição inicial são claros na afirmação de que querem, com a presente acção, reagir a uma eventual e hipotética recusa de acto registral que pratiquem, sem que tal recusa, até então – 24/02/2022 – se tenha verificado.

19.ª) O que torna esta acção não só inútil, como a pretensão dos recorrentes violadora do disposto no artigo 140.º do Código do Registo Predial.

20.ª) O Venerando Acórdão “sub judice” respeitou todos os ditâmes legais e merece ser confirmado.

21.ª) Os recorrentes também não alegam que normas jurídicas foram violadas, ou erradamente aplicadas no mesmo Venerando Acórdão e, tão pouco, o sentido em que essas eventuais normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas.

22.ª) Termos em que (…) deve a Revista ser julgada improcedente e o Venerando Acórdão “sub judice” mantido e confirmado.”


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7) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir.

Tendo em conta o teor da decisão impugnada e das alegações do recurso interposto pelos autores, as questões a decidir na presente revista são as seguintes:

- A nulidade da sentença proferida em primeira instância por ambiguidade e/ou condenação em objecto diverso do pedido (artigo 615.º n.º 1 alínea c) e e) do Código de Processo Civil);

- O mérito do acórdão recorrido na parte em que, substituindo-se ao tribunal de primeira instância, conheceu do mérito da acção e proferiu decisão que não reconheceu o direito invocado pelos autores.

Vejamos, antes de mais, os factos apurados pelas instâncias.



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II - FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

1) São os seguintes os factos considerados provados pelas instâncias:

(a) A ré casou com DD a ........2002 no regime de comunhão de adquiridos, o qual findou por óbito deste a ........2007;

(b) De tal relacionamento nasceu EE a ........2002;

(c) Por instrumento público denominado “Habilitação de Herdeiros” lavrado no dia 10.10.2007 em Cartório Notarial sito em ... e pelo notário GG, outorgado pela ré, foi declarado que DD havia falecido na apontada data, “no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos, com CC […] sob o regime da comunhão de adquiridos, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe ficado a suceder como únicos e universais herdeiros: […] CC [e] EE […]”;

(d) Os autores intentaram acção executiva contra a ré, que corre os seus termos no Juiz 2 do Juízo de Execução ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... sob o n.º de processo 3455/20.3..., visando o pagamento de quantia certa equivalente a € 39.956,58;

(e) No contexto de tal acção, foi penhorada a 07.01.2021 a fracção autónoma ‘C’ do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...25 da freguesia de ...);

(f) Através da ap. ...48 de 07.01.2021 tal penhora foi registada como provisória por natureza, porquanto a titularidade do prédio se encontrava registada a favor não apenas da ré (ali executada) mas também do seu filho EE, através da ap. ...98 de 15.12.2009, aquisição registada com causa “na dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária” e “em comum e sem determinação de parte ou direito”;

(g) No dia ........2020 faleceu EE;

(h) Por instrumento público denominado “Habilitação de Herdeiros” lavrado no dia 03.09.2020 em Cartório Notarial sito em ... e pela notária em substituição HH, outorgado pela ré, foi declarado que EE havia falecido na apontada data, “no estado de solteiro, maior, sem ter feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo deixado como única e universal herdeira, sem ter quem lhe prefira ou que com ela possa concorrer à sucessão, a sua mãe CC […]”;

(i) Através da ap. ...47 de 02.09.2021 foi registada a alienação do prédio descrito em (e) pela ré a favor de FF, constando igualmente a menção de que “[o] Sujeito Passivo era a única herdeira de EE”.



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Parte II – O Direito

1) Apreciemos em primeiro lugar a questão da nulidade da sentença proferida em primeira instância.

Os autores pretendiam com a acção que instauraram contra a ré ver declarado que a fração do imóvel a que os autos se reportam, objecto de penhora por eles anteriormente promovida, era propriedade exclusiva da ré, sendo ela a única titular do direito de propriedade incidente sobre essa fracção do imóvel.

É a este propósito inequívoco o pedido formulado em consonância com a causa de pedir articulada – e posteriormente desenvolvida a convite do tribunal: que seja declarado que a ré é a única proprietária da fração do imóvel que identifica.

O pedido em causa era justificado pela circunstância de a penhora da fração do imóvel por si promovida ter sido inscrita no registo em 7 de janeiro de 2021 como provisória por natureza, nos termos do artigo 92.º n.º 2 alínea a) do Código de Registo Predial.

Na verdade, de acordo com os elementos inscritos no registo na data da penhora o direito de propriedade relativo à fração do imóvel em causa encontrava-se inscrito desde 15 de dezembro de 2009 a favor da ré e de EE, por aquisição com origem em dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária.

2) Porém, a sentença proferida em primeira instância não deu acolhimento exacto no seu dispositivo ao pedido formulado, omitindo referência ao direito de propriedade cuja titularidade constituía o fundamento da acção, tal como resulta do pedido formulado pelos autores.

Não cremos, no entanto, que tal omissão seja susceptível de conduzir à configuração de uma condenação em objecto diverso do pedido, objecto esse supostamente referente à titularidade de um qualquer outro direito que não foi sequer abordada ao longo dos articulados ou da sentença proferida em primeira instância.

De facto, a sentença centra-se sobre o domínio e a posse dos bens da herança e sua transmissão aos sucessores através da aceitação da herança, que considera, no caso, coincidir com a outorga pela ré da escritura de habilitação de herdeiros por óbito do seu marido e do filho, tenha sido apreciada na acção a titularidade de qualquer outro direito eventualmente incidente sobre a fração do imóvel penhorada.

3) A sentença é, tal como prevê o artigo 152.º n.º 2 do Código de Processo Civil, o acto formal através do qual o juiz decide a causa principal ou algum dos seus incidentes com a estrutura de uma causa.

Enquanto acto destinado a ser publicado e comunicado às partes para lhes dar conhecimento do teor do direito em litígio concretamente definido, a sentença tem a natureza de uma declaração receptícia que, salvaguardadas que sejam as exigências de rigor e de certeza que lhe são inerentes, está sujeita às regras de interpretação e integração constantes do artigo 236.º do Código Civil, valendo com o sentido que “um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”.

4) Nessa perspectiva afigura-se-nos não ser legítima a dúvida expressa no acórdão recorrido sobre a que direito se poderia referir a decisão que reconheceu ser a ré a única titular da fracção do imóvel penhorada, atendendo a que de nenhum outro direito se questionou nos autos a respectiva titularidade.

Estamos, de resto, em considerar que, se o autor da sentença de primeira instância tivesse dado integral cumprimento ao artigo 641.º n.º 1 do Código de Processo Civil no despacho que admitiu o recurso de apelação, e se se tivesse pronunciado sobre a invocada nulidade por violação do artigo 615.º n.º 1 e) do Código de Processo Civil, não teria deixado de esclarecer que a titularidade a que o dispositivo da sentença se referia só podia ser entendida como estando em linha com o pedido e reportada ao direito de propriedade sobre a fracção do imóvel objecto da penhora.

O acórdão recorrido, de resto, para além de a exteriorizar de forma liminar, não esclarece em que se funda a dúvida manifestada, nem de que forma a omissão de referência ao direito de propriedade é susceptível de constituir obscuridade ou ambiguidade que torne a sentença ininteligível.

Ora é essa ininteligibilidade ou ambiguidade da decisão que justifica a sua nulidade, a qual só ocorre em função da sua incapacidade intrínseca de tornar claro e compreensível o respectivo conteúdo dispositivo.

5) Do que vem de ser dito se conclui que a objectiva omissão, na parte dispositiva da sentença proferida em primeira instância, da referência ao direito de propriedade como sendo aquele a que a declarada titularidade exclusiva da ré sobre a fração do imóvel se referia, sendo esta a única questão submetida a julgamento e apreciada pelo tribunal, não torna ininteligível nem para as partes directamente interessadas na solução do litígio, nem para o público em geral, o direito assim nela definido.

O dispositivo da sentença pode não ser – e não é – irrepreensível, porque se impunha que a definição do direito feita na sentença fosse juridicamente mais precisa e clara e esclarecedora quando cotejada com o pedido formulado;

Mas sendo – como também é – inteiramente inteligível no contexto do processo em que foi proferida e sendo inteiramente compreensível o seu sentido e alcance, não podemos acompanhar o acórdão recorrido que declarou a nulidade da sentença.

Procede, pois, a revista interposta pelos autores quanto à questão da nulidade da sentença que foi indevidamente decretada pelo acórdão recorrido.


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6) A segunda questão colocada pelos recorrentes prende-se com o mérito do acórdão recorrido proferido nos termos do artigo 665.º do Código de Processo Civil e na sequência da declaração de nulidade da sentença.

O preceito em causa prevê que a Relação deve conhecer do objecto da apelação quando declare nula a decisão que põe termo ao processo, sendo certo que, no caso, apesar da parca fundamentação do acórdão proferido sobre o mérito da causa, a Relação conheceu do objecto da apelação nos termos com que os autores, ora recorrentes se não conformam.

Independentemente da revogação da declaração de nulidade da sentença proferida em primeira instância, porque na sequência do recurso de apelação foi validamente proferido acórdão pelo Tribunal da Relação sobre a matéria da acção e tal decisão foi impugnada pelos autores cumprirá apreciar a revista também quanto ao mérito do acórdão ora recorrido nessa parte, tendo em conta as alegações dos recorrentes.

7) O acórdão recorrido julgou a acção improcedente com a fundamentação que agora integralmente se transcreve.

“No nosso entender a matéria de facto provada é claramente insuficiente para conduzir à procedência da acção.

O direito de propriedade exclusivo da Ré dependeria do apuramento de factos relativos ao direito sucessório, como por exemplo, os relativos à aceitação da herança, que para além do mais, nem sequer foram alegados.

De qualquer forma, sempre se acrescenta que, estando subjacente à PI que os AA. pretendem reagir à decisão de atribuição de carácter provisório ao registo da penhora, a lei pressupõe uma recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos (cfr. Art. 140.º do CRP) o que não se verifica já que os próprios AA. afirmam que não ocorreu tal recusa só é provável que venha a ocorrer- cfr art. 11º da PI.

Tanto basta para a improcedência da acção.

Ficam assim prejudicadas as demais questões.”

8) A sentença proferida em primeira instância partira do princípio de que era suficiente a outorga da escritura de habilitação de herdeiros pela ré para se considerar verificada a aceitação tácita da(s) herança(s), daí decorrendo que a ré seria em 7 de janeiro de 2021 a titular exclusiva dos bens que compunham o acervo hereditário do seu marido, primeiro, e do seu filho, depois.

Mais se considerou que, tendo já falecido à data da penhora o outro titular do bem imóvel “cuja titularidade é apontada à ré” a ré assumiu a qualidade de sua única e universal herdeira, tendo “inclusivamente alienado subsequentemente o bem a favor de terceiro”.

9) O Supremo Tribunal de Justiça não tem acompanhado o entendimento segundo o qual é suficiente para se considerar ocorrer aceitação tácita da herança a outorga de escritura de habilitação de herdeiros.

Como se dá conta no acórdão de 30 de maio de 2023, desta mesma secção do Supremo Tribunal de Justiça, proferido na revista 28471/17.9T8LSB.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), em cujo sumário se pode ler:

“I – Não havendo uma noção clara do que é uma aceitação tácita (a que se refere o artigo 2056.º do Código Civil), deve a mesma recolher-se a partir dos comportamentos do que se arroga a qualidade de herdeiro, a fim de apurar se deles resulta, com grande probabilidade, a evidência de aceitação, sem descurar que mesmo sem aceitação o suposto herdeiro pode praticar certos atos sem que daí decorra a consequência de os mesmos se terem por demonstrativos da aceitação.

II. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é unânime em considerar que a celebração da escritura de habilitação de herdeiros e participação às Finanças da ocorrência da morte, são atos insuficientes, como atos inequívocos, de aceitação tácita da herança.”

O acórdão em causa identifica diversos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça que confirmam a unanimidade de um tal entendimento e cita, a propósito, doutrina em cujos ensinamentos se apoia e para a qual agora se remete.

10) Ora no caso dos autos extrai-se da matéria de facto apurada tão somente que a ré outorgou em data anterior à da penhora duas escrituras de habilitação de herdeiros:

- Uma, celebrada em 10 de outubro de 2007, em que a ré declarou que DD tinha falecido deixando como herdeiros a ré CC e EE - [(facto descrito na alínea c)];

- Outra, celebrada em 3 de setembro de 2020, em que a ré declarou que EE havia falecido deixando como única e universal herdeira a ré - [(factos descrito na alínea h)].

Estes os únicos dois actos relevantes dados como provados que, numa determinada perspectiva, poderiam ser reveladores de aceitação tácita da(s) herança(s) de DD e de EE por parte da ré, sendo certo que na data da penhora (7 de janeiro de 2021) os titulares inscritos do direito de propriedade eram a ré e EE, já então falecido.

Anota-se que o facto descrito na alínea i) do elenco dos factos provados teve lugar em momento posterior à data da penhora, razão pela qual não releva em termos de constituir acto fortemente indiciador de aceitação tácita da(s) herança(s) até à data da penhora.

11) Vejamos como, numa situação de facto algo semelhante, o já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2023 abordou a questão que aqui agora se coloca.

“Está em causa em primeiro lugar saber se os atos praticados pela Autora configuram uma aceitação tácita, para efeitos do disposto nos artigos 2052.º e 2056.º do Código Civil, em especial deste último, que diz:

“1. A aceitação pode ser expressa ou tácita.

2. A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.

3. Os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança.”

Na situação dos autos não existem elementos demonstrativos da ocorrência de uma aceitação expressa, faltando um documento escrito em que o sucessível declare aceitar a herança ou assuma o título de herdeiro com intenção de a adquirir, ainda que exista uma habilitação de herdeiros em que a Autora se arroga a qualidade de única e universal herdeira, sem manifestação de vontade que espelhe a intenção da avocação.

Não havendo uma noção clara do que é uma aceitação tácita, deve a mesma recolher-se a partir dos comportamentos do que se arroga a qualidade de herdeiro, a fim de apurar se deles resulta, com grande probabilidade a evidência de aceitação, sem descurar que mesmo sem aceitação o suposto herdeiro pode praticar certos atos (os indicados no n.º2, como atos de administração) sem que daí decorra a consequência de os mesmos se terem por demonstrativos da aceitação.

12) Tal como referido pelo acórdão recorrido os factos alegados e provados pelos autores são manifestamente insuficientes para se poder concluir que a ré aceitou qualquer das heranças antes de 7 de janeiro de 2021.

Sendo a aceitação da herança o acto jurídico através do qual produz efeito a transmissão do direito de propriedade dos bens que integram a herança a favor dos herdeiros, enquanto ela não acontecer – ou não acontecer o seu repúdio – a herança permanece indivisa mantendo-se o domínio e a posse dos bens que a integram em situação de comunhão jurídica entre os herdeiros habilitados ainda que estejam sob administração do respectivo cabeça de casal.

13) No caso dos autos, não estando demonstrada a aceitação pela ré, ainda que tácita, das heranças em que se integrava o direito de propriedade sobre a fração autónoma a que corresponde a letra “C” do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...25 da freguesia de ... do concelho de ..., - em especial da herança aberta por óbito de EE que à data da penhora ainda figurava como titular do respectivo direito de propriedade - não pode afirmar-se, como vem pedido, que à data da penhora (7 de janeiro de 2021) a ré era a única titular do direito de propriedade sobre essa fração.

Improcede nesta parte a revista apresentada pelos autores.


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14) Em conclusão deve a presente revista ser julgada parcialmente procedente, reconhecendo-se a razão dos recorrentes quanto à não ocorrência de nulidade da sentença proferida em primeira instância, mas não a reconhecendo quanto à questão da titularidade exclusiva do direito de propriedade sobre a fracção do imóvel por parte da ré na data em que foi realizada a penhora (7 de janeiro de 2021).

Os recorrentes suportarão, porém, integralmente as custas da revista que interpuseram dado que, apesar do vencimento quanto a uma das questões colocadas, não tiraram de tal vencimento qualquer proveito por terem ficado vencidos quanto ao mérito do acórdão recorrido na parte relativa à titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel na data da penhora (artigo 527.º do Código de Processo Civil).



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III - DECISÃO

Termos em que os Juízes Conselheiros subscritores decidem:

- Julgar parcialmente procedente a revista interposta pelos autores;

- Revogar o acórdão recorrido na parte em que declarou ser nula a sentença proferida em primeira instância por condenação em objecto diverso do pedido;

- Confirmar o acórdão recorrido na parte em que, julgando procedente a apelação, revogou a sentença proferida em primeira instância e julgou improcedente a acção, absolvendo a ré do pedido.

Os recorrentes suportarão integralmente as custas do recurso de revista que interpuseram.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 12 de novembro de 2024

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Leitão Leal

Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro

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1. A referência a 7 de janeiro de 2022 foi corrigida a requerimento das partes, esclarecendo-se que a data correcta é a de 7 de janeiro de 2021.↩︎

2. Os recorrentes usavam a sigla SD para designar os “Senhores Desembargadores” que subscrevem o acórdão recorrido.↩︎