Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7778/21.6T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: RECONVENÇÃO
REJEIÇÃO
CASO JULGADO FORMAL
ABUSO DO DIREITO
FACTO CONSTITUTIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
QUESTÃO NOVA
OBJETO DO RECURSO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
Data do Acordão: 06/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão:
NÃO CONHECIMENTO PARCIAL DO OBJECTO DO RECURSO.
REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e que antes foram submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido e não a criar soluções sobre matéria nova, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso.


II – Numa ação não se podem decidir questões em que é interessada direta quem nela não é parte.


III - Quem invoca o abuso de direito tem o ónus da alegação e prova dos respetivos factos constitutivos.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 7778/21.6T8ALM


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça ( 6ª secção)


B..., Lda intentou ação declarativa com processo comum contra AA, formulando os seguintes pedidos:


“i) Seja reconhecido à Autora o direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “Z”, do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ............. . Z, da mesma freguesia;


ii) Seja a Ré condenada a restituir à Autora a posse da fração autónoma, procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens;


iii) Seja a Ré condenada a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a fração autónoma, desde 19 de novembro de 2019 até 10 de dezembro de 2021, no montante de € 20.235,72 (vinte mil e duzentos e trinta e cinco euros e setenta e dois cêntimos);


iv) Seja a Ré condenada a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a fração autónoma, desde 11 de dezembro de 2021 até à desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens, à razão do valor diário de € 27,31 (vinte e sete euros e trinta e um cêntimos).”


Alega, em síntese, que é proprietária de uma fração autónoma por a ter adquirido ao Novo Banco, S.A , gozar da presunção do registo da propriedade da mesma a seu favor, e invoca ainda a aquisição por usucapião. A Ré está a ocupar essa fração predial, sem título, sem autorização e contra a sua vontade, causando-lhe um prejuízo mensal não inferior a € 819,26 correspondente ao que receberia mensalmente com o seu arrendamento.


A Ré contestou e deduziu reconvenção, pedindo seja declarada nula e de nenhum efeito a alegada venda pelo «Novo Banco» à Autora, ser declarada nula e cancelada igualmente a hipoteca, declarando-se ser dela, em exclusivo, o direito de propriedade da fração autónoma, condenando-se a Autora no pagamento da quantia de € 5.000,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia em que por qualquer forma prejudique o normal gozo do direito de propriedade da Ré.


Alegou, em síntese, que em 2006, adquiriu o direito de propriedade do prédio em causa, que sempre foi a sua morada de família, que não foi citada nas ações executivas, incluindo naquela em que o Novo Banco adquiriu a fração predial, depois vendida à Autora. Alegou ainda que efetuou o pagamento integral e tempestivo das prestações hipotecárias até que o Novo Banco recusou recebê-las, não tendo ocorrido o vencimento de todas as prestações, pelo que deveria a execução prosseguir apenas para cobrança das prestações vencidas pelo decurso do prazo e não realizadas. Alega ainda que a cessão de créditos teve lugar para dificultar a posição da executada e embargante, assim devendo ser considerada nula e de nenhum efeito.


A Autora replicou, defendendo a inadmissibilidade da reconvenção, a sua ilegitimidade caso a mesma seja admitida e impugnando os fundamentos da reconvenção.


**


No despacho saneador proferido em 16.01.2023 a reconvenção foi liminarmente rejeitada, tendo-se procedido à delimitação do objeto do litígio e à fixação dos temas de prova.


O processo prosseguiu os seus ulteriores termos, sem que a Ré tenha interposto recurso da decisão que rejeitou a reconvenção.


Realizada a audiência final foi proferida sentença em 13.06.2023, com o seguinte dispositivo:


“ Pelos fundamentos de facto e de direito que ficaram expressos, julgo a ação procedente, por provada, e, em consequência:


a) Declaro que a autora «B..., Lda» é a proprietária da fração autónoma designada pela letra «Z», correspondente ao sétimo andar C, para habitação, com a área bruta privativa de 100,77 m2 e a área bruta dependente de 11,95 m2, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...........16 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3247 dessa freguesia;


b) Condeno a ré AA a reconhecer o direito de propriedade judicialmente declarado em a), sobre o imóvel descrito em a) deste dispositivo, bem como a condeno a restituí-lo à autora B..., Lda, livre e devoluto de pessoas e bens;


c) Condeno a ré AA a pagar à autora B..., Lda uma indemnização no valor global de € 20.235,72 (vinte mil e duzentos e trinta e cinco euros e setenta e dois cêntimos), acrescida da quantia mensal de € 819,26 (oitocentos e dezanove euros e vinte e seis cêntimos), contabilizada desde a propositura da ação e até à restituição do imóvel, a liquidar em incidente posterior à sentença.”


A Ré apelou e por acórdão proferido em 06.02.2024, foi a apelação julgada improcedente e confirmada a sentença recorrida.


A Ré interpôs recurso de revista, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:


“1ª - O contrato que está na origem daquilo que foi discutido respeita a um mútuo celebrado entre uma Instituição Bancária e a Ora Recorrente, em 2006.


2º - Tal contrato respeitava a um mútuo hipotecário.


3º -A determinada altura a instituição hipotecária cedeu o crédito a outra entidade.


4º -A Ré e ora Recorrente alegou a prescrição prevista no artigo 310º/al. e) do CC segundo o qual prescrevem no prazo de 5 anos as quotas de amortização do capital pagáveis com juros.


5º - Contrariamente ao sustentado na sentença recorrida, não está em causa o pagamento de uma única obrigação, antes o incumprimento fracionado ou deferido de prestações mensais.


6º - Efetivamente tendo cedido o crédito, a Adquirente está sujeita às mesmas obrigações a que se encontrava adstrita a entidade mutuária e quanto a tal realidade inexistem dúvidas que se tratava do pagamento das prestações de amortização do capital com juros.


7º - Recorde-se que o facto de ter sido efetuada uma cessão de créditos, a mesma só teve lugar para prejudicar a situação da beneficiária do mútuo e ora Recorrente.


8º - Aliás, se fizesse qualquer sentido o teor e conteúdo do defendido pela Exequente bastaria então que tivesse lugar uma cessão de créditos para que uma dívida com 20 anos nunca pudesse ser passível de prescrição!


9º - Encontra-se assim violado o disposto no artigo 310º do CC que consagra a prescrição presuntiva de 5 anos.


10º - A exequente não se dignou alegar e muito menos fazer prova testemunhal ou documental de que a executada e ora Recorrente não pagou a dívida de forma integral e tempestiva e não tendo exercício tal ónus, o Tribunal recorrido deveria, com base em tal omissão ter declarando a extinção da obrigação exequenda.


11ª - Insurge-se a Recorrente contra as cessões de crédito das quais não foi notificada.


12ª -Ora, tal questão concreta não foi e deveria ter sido conhecida


13ª - O tribunal de apelação pode ordenar a renovação de meios de prova, mas não tem de o fazer, e sem ver e reinquirir as testemunhas pode alterar a matéria de facto, quando tal lhe for solicitado com observância do disposto nos art.º 639.º e 640.º do Código de Processo Civil, desde que tenha acesso à gravação dos depoimentos e aos documentos constantes do processo que informaram a decisão de primeira instância.


14ª - Será que as cessões de crédito visaram precisamente impedir tal prova? Poderá essa probabilidade merecer proteção jurídica?


15ª - Incorre em exercício abusivo do direito, por violação da regra de conduta da boa-fé objetiva, o banco credor/exequente que, sendo parte mutuante num contrato de mútuo com hipoteca, garantido também por seguro de vida de grupo contributivo dos mutuários a seu favor, assumindo-se o banco como tomador e beneficiário, com cobertura do evento morte dos mutuários, uma vez conhecedor da morte de um dos dois mutuários, lhes move ou mantém, execução, por incumprimento do plano prestacional convencionado para reembolso do capital mutuado


16º -Resulta do AC cuja cópia se junta como Doc.1 que no caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artº 310º al. e) do CC em relação ao vencimento de cada prestação e no caso de vencimento antecipado, nos termos do art.º 781º o prazo de prescrição mantém-se incidindo o seu termo na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.


17º- Ao assim não julgar o acórdão recorrido decide contra o Ac do STJ sobre a mesma questão, devendo em Revista ser objeto de revogação.


18º -Igualmente nos termos do ac STJ cuja cópia se junta como Doc.2 o abuso de direito é de conhecimento oficioso, estando amplamente demonstrada a sua verificação na medida em que é manifesta tal imputação à recorrida, e atento a falta de conhecimento deve através da presente Revista proceder-se a revogação do acórdão posto em crise.”


A final pede se revogue o acórdão recorrido, absolvendo-se a Ré do pedido; declarando-se o direito de propriedade da Recorrente e ordenando-se repetição do julgamento quanto ao pedido reconvencional.


A A não apresentou contra-alegação.


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O relator por entender que as questões suscitadas nas conclusões 4ª a 14ª, 16ª e 17ª, não podiam ser objeto do presente recurso de revista, notificou as partes para querendo se pronunciarem, nos termos dos artigos 655 º n.º 1 e 3º. n.º 3 do CPC e nada disseram.


*


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


Factos julgados provados e não provados nas instâncias.


Factos provados:


1) Foi inscrita no registo predial, sob a Ap. 17 de 2006/06/28, a favor da ré AA, solteira e maior, a aquisição, por compra à «Caixa Geral de Depósitos, S.A.», da fração autónoma designada pela letra «Z», correspondente ao sétimo andar C, para habitação, com a área bruta privativa de 100,77 m2 e a área bruta dependente de 11,95 m2, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no n.º 49 da Rua ..., na freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...........16 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..47 dessa freguesia.


2) Relativamente ao prédio descrito em 1., foram efetuadas as seguintes inscrições no registo predial:


- Sob a Ap. 18 de 2006/02/15, hipoteca voluntária, a favor de «Banco Espírito Santo, S.A.», para garantia de empréstimo concedido à ré AA, no valor de € 70.000,00 de capital, à taxa de juro anual de 10,5%, acrescida da sobretaxa de 2%, em caso de mora, e de despesas no valor de € 2.800,00, no valor máximo assegurado de € 99.050,00, a qual foi depois cancelada pelo Averbamento — Ap. ..14 de 2017/07/28 15:58:22 UTC;


- Sob a Ap. 19 de 2006/02/15, hipoteca voluntária, a favor de «Banco Espírito Santo, S.A.», para garantia de empréstimo concedido à ré AA, no valor de € 38.000,00 de capital, à taxa de juro anual de 10,5%, acrescida da sobretaxa de 2%, em caso de mora, e de despesas no valor de € 1.520,00, no valor máximo assegurado de € 53.770,00, a qual foi depois cancelada pelo Averbamento — Ap. ..14 de 2017/07/28 16:01:04 UTC;


- Sob a Ap. 1647 de 2011/05/09 13:41:33 UTC, penhora, a favor de «N...», para garantia da quantia exequenda de € 9.999,37, no processo n.º 6615/07.9..., do ... Juízo Cível, do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do ..., no qual foi executada a ré AA, sendo a penhora depois cancelada pelo Averbamento — Ap. ..14 de 2017/07/28 16:00:01 UTC;


- Sob a Ap. 10532 de 2014/06/06 18:17:18 UTC, penhora, a favor da «Fazenda Nacional», para garantia da quantia exequenda de € 551,92, no processo n.º ..............63, do Serviço de Finanças ..., no qual foi executada a ré AA, sendo a penhora depois cancelada pelo Averbamento — Ap. ..14 de 2017/07/28 16:02:30 UTC;


- Sob a Ap. ..15 de 2015/05/12 10:40:00 UTC, penhora, a favor de «Condomínio do Prédio sito na Rua ...», para garantia da quantia exequenda de € 360,00, no processo n.º 7139/14.3..., do ..., da ... Secção de Execução, da Instância Central ..., da Comarca de ..., no qual foi executada a ré AA, sendo a penhora depois cancelada pelo Averbamento - Ap. ..14 de 2017/07/28 16:03:15 UTC; í) Sob o Averb. — Ap. ..48 de 2015/06/04 13:33:30 UTC, a transmissão do crédito garantido pela hipoteca voluntária inscrita no registo pela Ap. 18 de 2006/02/15, por transferência do património de «Banco Espírito Santo, S.A.» a favor de «Novo Banco, S.A.», por medida de resolução deliberada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal, em reuniões de 03.08.2014, 28.10.2014 e 26.01.2015; g) Sob o Averb. — Ap. ..49 de 2015/06/04 13:33:31 UTC, a transmissão do crédito garantido pela hipoteca voluntária inscrita no registo pela Ap. 19 de 2006/02/15, por transferência do património de «Banco Espírito Santo, S.A.» a favor de «Novo Banco, S.A.», por medida de resolução deliberada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal, em reuniões de 03.08.2014, 28.10.2014 e 26.01.2015.


3) Foi inscrita no registo predial, sob a Ap. ..14 de 2017/07/28 18:38:34 UTC, a aquisição do imóvel descrito em 1., a favor do «Novo Banco, S.A.», por compra, por negociação particular, em processo de execução.


4) Mostra-se inscrita no registo predial, sob a Ap. 303 de 2019/11/19 09:57:32 UTC, a aquisição do imóvel descrito em 1., a favor da autora B..., Lda por compra ao «Novo Banco, S.A.


5) Mostra-se inscrita no registo predial, sob a Ap. .04 de 2019/11/19 09:5737 UTC, hipoteca voluntária, a favor de «Novo Banco, S.A.», para garantia de contratos financeiros concedidos à autora e a terceiros, à taxa de juro anual de 4%, com a sobretaxa de 3% em caso de mora e despesas no valor de € 9.880.000,00.


6) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de bens imóveis e à revenda dos adquiridos para esse fim.


7) Em data não concretamente apurada, mas após o facto descrito em 4, e há cerca de três anos a esta parte, a autora, através de prestador de serviço para o efeito incumbido, deslocou-se ao imóvel descrito em 1., para proceder à respetiva limpeza e verificação do seu estado de conservação.


8) Nessa ocasião, a autora constatou que a fração se encontrava ocupada pela ré.


9) Desde o facto descrito em 1, que a ré permanece nesse imóvel, juntamente com a sua família, o qual tem constituído a sua habitação desde então.


10) Perante o conhecimento da permanência da ré no mesmo imóvel, a autora, através da notificação judicial avulsa instaurada em julho de 2020, no Juiz ..., do Juízo Local Cível ..., que correu termos sob o n.º 797/20.1..., intimou a ré a restituir-lhe essa fração autónoma.


11) Essa notificação foi concretizada com hora certa, no dia 17 de julho de 2020, à ré sendo entregue o requerimento e documentos, mas tendo a ré recusado assinar a certidão de sua notificação, conforme consta do documento de fls. 29 a 30 verso, cujo teor se dá por reproduzido.


12) Nessa sequência, a ré não respondeu à autora e continuou a ocupar a dita fração autónoma até ao presente.


13) Caso a autora concedesse a terceiros o gozo temporário do descrito imóvel, em regime de arrendamento, o valor da contrapartida pecuniária mensal que poderia obter ascenderia ao montante de € 819,26 (oitocentos e dezanove euros e vinte e seis cêntimos), ao qual corresponde o valor diário de € 27,31 (vinte e sete euros e trinta e um cêntimos).


Factos não provados:


14) Para além da ré, até ao facto descrito em 4., a autora e todos os que antes dela adquiriram o imóvel descrito em 1., desde há mais de 15, 20 e 30 anos, utilizaram a fração para sua habitação permanente e dos respetivos agregados familiares, nela pernoitando e tomando refeições, recebendo amigos e familiares, procedendo à sua limpeza, manutenção e reparação, pagando seguros e licenças, fazendo melhoramentos, pagando impostos, taxas e contribuições e defendo-a da apropriação de terceiros, o que fizeram à vista de todos, sem violência e na convicção de não lesarem direitos alheios.


15) Foi no dia 24 de setembro de 2019 que ocorreu o evento mencionado em 7.


16) A ré não foi citada no processo de execução 6615/07.9... e no seu apenso A.


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Fundamentação:


Objeto do Recurso


O acórdão recorrido decidiu não conhecer da exceção da prescrição da dívida respeitante às prestações de amortização do mútuo hipotecário que a Ré celebrou com entidade bancária; da extinção da obrigação exequenda e ainda da falta de notificação da executada das cessões de créditos, suscitadas pela Ré no recurso de apelação.


Para tanto, adiantou seguinte fundamentação:


“Invoca a apelante de novo, nos termos do artigo 310.º, al. e), do Código Civil, a prescrição da dívida respeitante às prestações de amortização do mútuo hipotecário que celebrou. A prescrição não é de conhecimento oficioso, como decorre do artigo 303.º, do Código Civil. Pelo que, tratando-se de questão nova e nunca antes suscitada ou apreciada, não pode ser conhecida no âmbito do presente recurso.


Também a invocada extinção da obrigação exequenda configura uma questão nova que não pode ser apreciada, e que respeita mesmo a partes diversas daquelas que nesta ação intervieram. Ainda, a falta de notificação da executada das cessões de créditos foi questão que a apelante apenas suscitou em sede de recurso, e não em momento anterior. Nem sobre a mesma o tribunal a quo, se pronunciou.”


A Recorrente, contudo, nas conclusões 4ª a 14ª, 16ª e 17ª continua a pretender que se conheça da exceção da prescrição prevista no artigo 310º al. e) do Código Civil e da invalidade da cessão de crédito, por dela não ter sido notificada.


No entanto, estas questões não podem ser objeto do presente recurso de revista, como passamos a justificar.


O acórdão recorrido ao decidir não conhecer das referidas exceções seguiu o entendimento unânime da doutrina e jurisprudência, há muito consolidado, segundo o qual as questões novas não podem ser apreciadas no recurso. Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e que antes foram submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido e não a criar soluções sobre matéria nova, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso ( cf., entre outros, os acórdãos do STJ. de 12.6.91, B.M.J. n.º 408, pág.521 e 6.2.87, B.M.J. n.º 364, pág. 719 e os mais recentes citados no acórdão recorrido e na doutrina Castro Mendes, “Recursos”, 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, “Recursos em Processo Civil”, 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes “ Recursos no Novo Processo Civil, 2ª edição págs. 92 e 93).


Por outro lado, importa recordar, que por despacho proferido em 16.01.2023, foi rejeitada a reconvenção e a Ré não interpôs recurso dessa decisão.


Nos termos do artigo 644º n.º 1 al. b) do Código Processo Civil essa decisão de rejeição liminar da reconvenção admitia apelação autónoma. ( cf. neste sentido Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2ª edição, pág. 159 e Lebre de Freitas, Robeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. III, 3ª edição, pág. 118).


Por não ter sido objeto de recurso, essa decisão que não admitiu a reconvenção, transitou em julgado e formou-se sobre esta questão, dentro do processo, caso julgado formal, nos termos do disposto nos artigos 620º e 628º do CPC.


Como resulta do citado artigo 620º, o caso julgado formal apesar de recair unicamente sobre a relação processual, como no caso da não admissibilidade da reconvenção, impede o tribunal nesta ação de voltar a pronunciar-se sobre questões suscitadas na reconvenção.


Por isso, é manifestamente improcedente, o pedido formulado pela Recorrente que se ordene a repetição do julgamento quanto ao pedido reconvencional.


Por outro lado, a exceção da prescrição, que nem sequer foi arguida na contestação, como impunha o artigo 573º do CPC, respeitava à amortização do capital do contrato de mútuo celebrado entre a Ré e o BES, posteriormente transferido para o Novo Banco SA e não à indemnização peticionada pela autora na presente ação, enquanto proprietária do prédio, pela ocupação, sem título por parte da Ré.


Também como se depreende da contestação a cessão de crédito que a Ré alega no artigo 43º da reconvenção “que só teve lugar para dificultar a posição do Executado e ora Embargante deve ser considerada nula e de nenhum efeito”, teve por partes o Novo Banco e a N... (cf. artigo 2º da contestação).


No entanto, nem da factualidade julgada provada supra descrita, nem da alegada pela Ré na contestação/ reconvenção resulta que a Autora tenha sucedido a qualquer posição contratual do Novo Banco, S.A. e/ou que assumido perante a Ré qualquer obrigação que haja sido anteriormente convencionada entre a Ré e o Novo Banco, S.A.


Por isso, as arguidas exceções não podiam, desde logo, por inutilidade ser objeto de decisão pelas instâncias por não serem parte na ação o Novo Banco SA, nem a sociedade a quem este alegadamente cedeu o crédito.


Pelas razões expostas, é manifesto, que a exceção da prescrição prevista no artigo 310º al. e) do Código Civil do crédito do Novo Banco SA e a arguida invalidade da cessão de créditos, suscitadas pela Recorrente nas conclusões 1ª a 14ª e 16ª e 17ª, não podem ser conhecidas no presente recurso de revista.


Abuso de direito


Nas conclusões 15ª e 18ª a Recorrente retoma a arguição do abuso de direito, defendendo na 18ª ser de conhecimento oficioso.


No entanto, a alegação que o abuso de direito é de conhecimento oficioso carece de qualquer sentido, pois, foi nesse pressuposto que o acórdão recorrido, conheceu dessa exceção apesar da Ré não a ter suscitado na sua contestação.


Segundo o artigo 334º do Código Civil há abuso de direito quando o titular deste exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.


Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral ”, vol. I, 9ª edição, pág. 564, refere que “para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.”


Coutinho de Abreu, “ Do Abuso de Direito”, pág. 43, entende que “ há abuso de direito quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.”


Como expressamente refere o citado artigo 334º, para se estar perante abuso de direito é necessário que o titular o exerça com manifesto excesso.


Assim, Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, pág. 296, escreve: “Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso”.


No mesmo sentido vem alinhando a jurisprudência do S.T.J, conforme acórdãos de 8.5.91, B.M.J. n.º 407, pág. 273 e de 11.3.99, B.M.J. n.º 485 onde, a pág. 375, se escreveu “ o abuso de direito existe, quando o direito se exerce em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante” e de 24.09.09, relatora Maria dos Prazeres Beleza. proferido no processo n.º 09B0659 do sítio do IGFEJ, onde se decidiu que o exercício, para ser abusivo tem de ser ostensivamente contrário aos referidos princípios.


O abuso de direito abrange várias modalidades. Menezes Cordeiro, “ Da Boa Fé no Direito Civil”, vol. II, pp. 719 e ss. e mais sinteticamente no Tratado de Direito Civil, Parte Geral, tomo I, p. 198 e ss, faz o elenco das situações que integram o instituto.


Assim, aponta como comportamentos abusivos: a «excpetio doli », que é o poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor por este ter incorrido em dolo; o «venire contra factum proprium» - que censura a conduta contraditória do demandante, em violação do princípio da confiança da contraparte - abrange a situação em que uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem manifeste a intenção de não praticar determinado ato e depois o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa atuação e depois a negue; a «suppressio» que é a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé; o «tu quoque» contratual, que traduz o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa norma lhe tivesse atribuído e, por último, o desequilíbrio no exercício jurídico, que abrange duas variantes principais, o exercício danoso inútil e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o exercício imposto pelo exercício jurídico.


No caso, a Recorrente limita-se a alegar que “incorre em exercício abusivo do direito, por violação da regra de conduta da boa-fé objetiva, o banco credor/exequente que, sendo parte mutuante num contrato de mútuo com hipoteca, garantido também por seguro de vida de grupo contributivo dos mutuários a seu favor, assumindo-se o banco como tomador e beneficiário, com cobertura do evento morte dos mutuários, uma vez conhecedor da morte de um dos dois mutuários, lhes move ou mantém, execução, por incumprimento do plano prestacional convencionado para reembolso do capital mutuado.”


No entanto, como supra se referiu, o Novo Banco SA, banco credor, que vendeu o prédio reivindicado à Autora não é parte na presente ação, por conseguinte, ainda que nela se viesse a decidir que a sua conduta violou o princípio da boa fé e era abusiva, essa decisão era irrelevante, por não ter efeito de caso julgado quanto ao Novo Banco.


De qualquer forma, como decidiu o acórdão recorrido, “o cenário, invocado pela apelante para a invocação que faz do abuso de direito, não encontra eco na matéria de facto provada. Não se mostra demonstrado qualquer facto que o suporte. Designadamente, nada ficou demonstrado nos autos quanto ao banco mutuante ter movido execução, por incumprimento do plano prestacional convencionado para reembolso do capital mutuado execução e por tê-lo feito em contexto de ser beneficiário de seguro de vida de grupo contributivo dos mutuários a seu favor.”


Era à Ré que invocou o abuso de direito que incumbia a prova dos respetivos factos constitutivos ( cf. artigo 342º n.º 2 do Código Civil e acórdão do STJ de 24.09.2009, proc. n.º 09B0659).


Por outro lado, quanto ao objeto da ação, como decidiu o acórdão recorrido, não resulta dos factos provados que a Autora tenha agido em situação de abuso de direito em qualquer das suas manifestações.


A Autora depois de ter adquirido o prédio e de interpelar judicialmente a Ré para o restituir, limitou-se a intentar a ação de reivindicação nos termos do artigo 1311º do Código Civil, peticionado o reconhecimento do direito de propriedade do imóvel e a sua restituição e a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização, pela ocupação abusiva.


Assim, não estando provado qualquer facto donde resulte que a Autora tivesse agido conluiada com o Banco mutuante, ou seja, não há qualquer indício que tenha violado o principio da boa fé e, por outro lado, não há qualquer exercício de direito pela Autora que contrarie o fim económico e social dos direitos de que é titular - limitou-se a revindicar o prédio que legalmente adquiriu a título oneroso e a pedir indemnização por estar privada da sua fruição – é indiscutível que não agiu em abuso de direito.


Decisão


Pelo exposto:


Não se conhece das questões da exceção da prescrição e da invalidade da cessão de créditos, suscitadas pela Recorrente nas conclusões 1ª a 14ª e 16ª e 17ª.


No mais julga-se improcedente a revista e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


Lisboa, 11.06.2024


Leonel Serôdio (Relator)


Maria Olinda Garcia (1ª adjunta)


Luís Correia de Mendonça (2ª adjunto)