Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4978/16.4T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRISÃO PREVENTIVA
SENTENÇA CRIMINAL
DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. O art.º 225.º do Código de Processo penal consagra hoje, expressamente, a responsabilização do Estado, em casos de privação de liberdade, sempre que o réu venha a ser absolvido.

II. Raramente no processo-crime se consegue mais que a absolvição por falta de prova. O réu não tem de provar que está inocente, a acusação é que tem que provar que é culpado.

III. Não existem uns réus mais inocentes que outros consoante a absolvição decorra com mais ou menos intensidade da aplicação do princípio do “in dúbio pro reo”. Só há, em face da lei, duas alternativas possíveis: culpado ou inocente sem possibilidade de qualquer terceira alternativa de suspeita ambígua de que seja culpado ainda que se não tenha conseguido demonstrar que praticou o crime.

IV.  Não importa que tenha sido absolvido porque demonstrou que não praticou o crime, ou porque não ficou provado que o praticou, nem se exige que a decisão que determinou a prisão esteja ferida de qualquer nulidade, invalidade ou excesso.

V. Trata-se simplesmente de o Estado, em nome da comunidade, assumir que este é o custo do compromisso entre os direitos individuais dos cidadãos, o direito fundamental à liberdade, com assento constitucional, e os imperativos sociais de protecção das vítimas, prevenção e perseguição dos criminosos, e garantia da segurança que, também no texto constitucional, vai a par da liberdade. O direito à liberdade individual, confronta-se com o direito à segurança de todos, num equilíbrio difícil de estabelecer e que não deixará de causar alguns “danos colaterais”.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – relatório

AA intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Estado Português, pedindo a condenação deste no pagamento de € 212.815,00 (duzentos e  doze mil, oitocentos e quinze euros) a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em virtude de prisão preventiva de 15 de Julho de 2015 a 03 de Junho de 2016, o que perfaz 325 dias de reclusão, à ordem de processo 71/15...., onde foi proferida sentença pela Instância Central ..., Secção Criminal J... da Comarca ..., que julgou improcedente a acusação pública e absolveu o Autor dos crimes de que vinha acusado, bem como, declarou extinta a medida de coacção de prisão preventiva e determinou a sua libertação.

O Tribunal de 1.ª instância considerou que não ficaram demonstrados quaisquer danos de natureza patrimonial do autor, pelo que, e nesta sede, não é devida a fixação de qualquer indemnização.

No que se refere aos danos de natureza não patrimonial, aquele tribunal considerou que:

Tendo em conta a factualidade dada por provada e não provada e os concretos danos sofridos pelo Autor, a sua forma de vida e a forma como a sua vida se alterou com a detenção e após a detenção, nos termos que em se provaram ou não provaram, resultando provados os 325 dias de privação de liberdade e o sofrimento inerente a essa privação, julga-se equitativo fixar a indemnização devida pelo Estado ao Autor, em € 17.000 (dezassete mil euros), tendo em conta a duração da detenção, quantia essa a que acrescerão os juros de mora, à taxa legal em vigor.”

Em recurso de apelação interposto pelo A. e pelo Magistrado do Ministério Público, o Tribunal da Relação de Coimbra veio a decidir que:

(…) julgar o recurso do réu parcialmente procedente e, consequentemente, agora, condenar-se o mesmo a pagar ao autor a quantia de dez mil euros como compensação a título de danos não patrimoniais.

Interposto pelo A. recurso de revista o mesmo não foi admitido, por decisão proferida em 17 de Outubro de 2022.

Na reclamação por ele apresentada contra a decisão que não admitiu o recurso de revista foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça ser o recurso admissível.

O Autor interpôs recurso de revista onde apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

A. O tribunal da Relação de Coimbra proferiu decisão considerando que a decisão recorrida existe contradição na fundamentação dos factos enunciados nos 1.16, 1.17 e 1.21.

B. Sanou tal vício de forma fundamentada quanto aos factos constantes dos pontos 1.17 e 1.21.

C. Quanto ao facto constante no ponto 1.16 fê-lo de forma que, parece, precipitada e arbitrária, e veio a merecer reparo em voto de vencido.

D.  Tal facto 1.16 diz “O Autor sofreu angústia e ansiedade pela indefinição do seu futuro.” que o Tribunal “a quo” declarou como não provado sem indicar qualquer sustentação para esta conclusão.

E. Sendo certo que a julgadora em primeira instância afirma e o acórdão recorrido reproduz “Pese embora resulte das regras da experiência comum que a reclusão importa danos a nível psicológico para os detidos …”, cfr. Ponto 5.3.2.

F. Tal evidência, que é do conhecimento público, deveria traduzir-se na prova do facto e não o contrário.

G. Pelo que, a conclusão do Tribunal “a quo” deve ser rectificada no sentido de ser declarado como provado o facto constante do ponto 1.16.

H. Quanto à indemnização por danos patrimoniais, no essencial, o Tribunal “a quo” considera que não existe prova segura sobre a prestação do trabalho do recorrente no futuro de forma diária.

I. Retirando da prova de que o recorrente “Presta o seu     trabalho ocasionalmente, quando lhe é solicitado “a conclusão que “… o autor não acalentava ter um trabalho regular …” o que não deixa de insinuar um comportamento indolente ou ocioso, inexistindo nos autos qualquer evidência que justifique tal juízo.

J. Sendo certo que, é do conhecimento geral, que a prestação do trabalho agrícola não é regular dependendo da procura pelos empregadores, da época do ano e das condições climatéricas.

K. Pelo que, é inquestionável que ocorreu um dano de natureza patrimonial, resultante da privação do rendimento que o recorrente poderia obter pela retribuição do seu trabalho, impondo-se a declaração do direito a indemnização pelo valor peticionado.

L. Quanto ao dano não patrimonial, parece-nos que o Tribunal “a quo” assenta as suas conclusões em juízo de valor e mesmo insinuações quanto à inocência do recorrente, persistindo num raciocínio jurídico que o Tribunal Constitucional já censurou e contra o qual o voto de vencido se insurge por ser violador do principio da presunção da inocência, princípio elementar e secular do Direito Penal e alicerce de qualquer sociedade minimamente humanista.

M. Tal atitude evidência o dano moral do recorrente, em especial quanto ao estigma que vai continuar a sofrer pela comunidade e, como agora se demonstra, por parte do sistema judicial.

N. Considerando os critérios que devem orientar um juízo de equidade, o valor indicado pelo recorrente para compensar economicamente cada um dos seus 10.000 dias de esperança de vida insere-se na dimensão da sua condição económica e revela-se adequado.

O. Parecendo-nos que o Tribunal “a quo” não valorizou suficientemente os princípios constitucionais consignados no artº 1º e 27º da Constituição da República.

P. e fez uma aplicação dos disposto nos artº 496º nº 1 e 4 e 494º do Código Civil que carece ser rectificada no sentido de arbitrar compensação monetária a favor do recorrente próxima do montante que foi peticionado.

Q.  em consequência, deve ser concedido provimento ao presente recurso e revogada a Douta Decisão recorrida no sentido de declarar o direito de indemnização do recorrente por danos patrimoniais e não patrimoniais.

O Réu em suporte da decisão recorrida apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Só não há dupla conforme (havendo revista normal nessa parte) no segmento em que a Relação não confirme a decisão da 1ª instância (ou confirme mas com fundamentação essencialmente diferente), ou no segmento em que o adjunto votou vencido.

2. No douto acórdão recorrido decidiu-se: “Termos em que se acorda julgar o recurso do autor improcedente.”

3. Referindo-se no douto voto de vencido “Em suma, manteria a condenação proferida na1ª instância, por se apresentar como valor no limiar mínimo aceitável e julgaria improcedente o recurso do MP e do A.”

4. Assim, no que ao douto recurso do Autor respeita, houve, a nosso ver e no respeito por opinião contrária, dupla conforme.

5. Do exposto, verificando-se dupla conformidade entre as decisões das Instâncias, impeditiva da admissibilidade da Revista Normal [cfr. art.º 671º, nº 3, do CPC] e não tendo sido requerida a Revista Excecional [cfr. art.º 672º do CPC], em nossa opinião e no respeito por diferente entendimento, deverá o presente recurso de Revista ser rejeitado, por inadmissibilidade legal.

6. Do mesmo modo, no que ao recurso do Réu respeita, atento os valores em causa, deverá o presente douto recurso de Revista ser rejeitado, nos termos do art.º 629º, nº 1, do CPC.

7. A previsibilidade dos danos futuros patrimoniais inculca, pois, um elevado grau de probabilidade, atendendo aos efeitos geralmente associados à lesão causada e às especificidades das circunstâncias concretas do lesado e do evento.

8. Daqui resulta a necessidade da existência de “suficiente segurança”: i.e., os danos futuros devem ser previsíveis com segurança bastante. Se o não forem, o tribunal não pode condenar o lesante a reparar danos que não se sabe se virão a produzir-se.

9. Por conseguinte, se os danos futuros não forem previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem.

10. Quanto aos danos não patrimoniais, o montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º (cfr. artigo 496º n.º 3 do Código Civil).

11. Estabelece-se, pois, um critério de mera equidade, que deve atender ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado e às demais circunstâncias do caso, designadamente a gravidade e a extensão da lesão.

12. Assim, o montante da reparação há-de ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

13. Termos em que, a nosso ver e sempre no respeito por opinião diversa, serão de improceder as conclusões do douto recurso de Revista, mantendo-se, em consequência, o douto acórdão recorrido, com o que se fará a habitual, Justiça!

                                                          *

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Por decisão proferida pela relatora em 29 de Novembro de 2022, em sede de reclamação ao abrigo do disposto no art.º 643.º do Código de Processo Civil foi admitida a revista.

Nas decisões proferidas pelas instâncias existem dois segmentos decisórios completamente autónomos, aliás seguindo a segmentação do pedido constante da petição inicial, um quanto à indemnização por danos patrimoniais e outro quanto à indemnização por danos não patrimoniais.

No que à indemnização por danos patrimoniais diz respeito ambas as instâncias consideraram não ter sido efectuada prova bastante da respectiva existência e, nem mesmo o voto de vencido disside nesta questão, formando-se quanto a ela dupla conforme, impeditiva da admissibilidade, nesta parte de recurso de revista.

O próprio autor aceitou este entendimento no requerimento inicial da reclamação que apresentou contra a decisão do Tribunal da Relação que não admitiu o recurso dizendo:

“5. por despacho proferido em 17/10/2022 pelo Tribunal da Relação de Coimbra –... Secção foi decidido não admitir tal recurso com os fundamentos seguintes:

“Primus, e em relação ao pedido do autor, há dupla conforme, pois que mesmo o elemento do coletivo que votou vencido quanto à redução da indemnização, confirmaria a sentença na sua globalidade, ou seja, incluindo no atinente ao valor indemnizatório que ao impetrante foi concedido na 1ª instância.

Destarte, queda-lhe vedado o direito de ver mais uma vez dilucidada na última instância um pedido/questão que já foram perscrutados e decididos univocamente nas duas primeiras instâncias – artº 671º nº3 do CPC.

Secundus, e em relação ao recurso do réu, o parcial provimento do mesmo nesta Relação traduziu-se na diminuição do quantum arbitrado na 1ª instância em apenas sete mil euros. Assim, e sendo este valor inferior a metade do valor da alçada deste Tribunal ad quem – 30.000,00 euros –, metade esta que, assim, ascende a 15.000,00 euros, tal sucumbência queda insuficiente parar alicerçar o recurso para o Tribunal Supremo: artº 629º nº1do CPC.”.

6. quanto ao primeiro dos fundamentos referidos o recorrente terá que reconhecer a existência da designada dupla conforme e respeitar a estabelecido na norma referida.

Tendo em conta o valor da acção e da sucumbência nada obsta à admissibilidade da revista quanto à indemnização por danos não patrimoniais, relativamente à qual foi emitido um voto de vencido, que afasta a dupla conforme.


*

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Contradição na matéria de facto.

2. Indemnização por danos não patrimoniais.


*

I.4 - Os factos

As instâncias consideram provados os seguintes factos:

1. Em 15 de Julho de 2015, no âmbito do inquérito 71/15.... da Secção Única do DIAP ..., Comarca ..., o A. foi detido em cumprimento de despacho de autoridade de policia criminal, com a mesma data, proferido nos termos do artigo 257º nº 2 alíneas a), b) e c) do Código do Processo Penal, e com fundamento na existência de indícios da prática dos crimes de violação (previsto e punido pelo artigo 164º Código Penal) e abuso sexual de menor dependente (previsto e punido pelo artigo 172º Código Penal).

2. Em 17/07/2015 o A. foi submetido a primeiro interrogatório judicial no referido processo 71/15...., distribuído pela Instância Central ..., Secção de Instrução Criminal J..., da Comarca ....

3. Por despacho proferido no referido acto, em 17/07/2015 foi aplicada ao A. a medida de coacção de prisão preventiva, nos seguintes termos:

 “A detenção do arguido é legal porque efectuada ao abrigo do disposto nos arts. 254º n.º 1 al. a) e 257º, todos do Código de Processo Penal, pelo que valido a mesma. Foi dado cumprimento ao disposto no art. 259º do mesmo diploma legal. O arguido foi apresentado no prazo legal a que se reporta o art. 141º do Código de Processo Penal. Indiciam fortemente os autos que:

1 – BB nasceu em ... .09.1998 e é filha de CC e do arguido AA.

2 – Entre os 8 anos e os 13 anos de idade, a BB, devido ao mau ambiente familiar dos progenitores, caraterizado por hábitos no consumo de álcool e agressões mútuas, esteve institucionalizada no Lar ..., na ....

3 – Quando perfez os 13 anos, a BB foi residir com a sua progenitora, em ..., à qual viria a ser atribuída a guarda da menor, ficando, nessa altura, o pai, ora arguido, com direito a visitas à menor, que poderiam ocorrer aos fins-de-semana (quinzenalmente) e nas férias.

4 – Entretanto, ao que tudo indica, devido ao facto de a mãe da menor continuar a beber e de negligenciar alguns cuidados com a menor, esta, em data não concretamente apurada do mês de Maio de 2014, decidiu fugir da casa da mãe, em ..., ligando para o efeito ao arguido, seu pai, para a ir buscar, o que ele fez.

 5 – Desde então, e até à data da detenção do arguido, a menor ficou a residir com ele em ..., ..., tendo tal situação sido comunicada à GNR, à CPCJ ... e ao Tribunal de Família e de Menores, para efeitos de Promoção e Proteção e eventual alteração da Regulação do Poder Paternal.

6 – Passando o arguido, também desde então, a ter a guarda e confiança efetiva da filha, assumindo inclusive o papel de encarregado de educação da BB na Escola Secundária ..., onde a mesma estudou no presente ano letivo, tendo frequentado, recentemente, um Estágio Profissional de CEF, práticas comerciais.

7 – Em data não concretamente apurada mas seguramente entre março e abril de 2015, o arguido, não obstante saber que a BB era sua filha, que tinha apenas 16 anos de idade e bem assim que estava à sua guarda e dependência, quer afetiva quer educacional e económica, confiando igualmente em si, decidiu ter relações sexuais de cópula com a mesma. 8 – Assim, em data não apurada, mas situada entre os primeiros dias do mês de março e o final do mês de abril de 2015, numa das muitas vezes que a menor o acompanhou, para o ajudar, como habitualmente fazia, nos trabalhos agrícolas que levavam a cabo numa quinta que ele cultiva, em ..., ..., afastada do aglomerado habitacional, o arguido, a dada altura, dirigiu-se a um barracão ali existente e chamou-a ao interior do mesmo.

 9 – Sem desconfiar das intenções do pai, a BB entrou no barracão, tendo aquele de imediato fechado a porta.

 10 – De seguida abeirou-se da filha e começou a encostar-se a ela, roçando o seu corpo no dela, começando a desapertar o cinto das calças que trazia vestidas.

11 – Depois, através da força de braços e contra a vontade e resistência da menor, que fazia força em sentido oposto, o arguido empurrou-a em direção ao chão, baixando-se ele, igualmente nessa direção, agarrando-a pelos braços no sentido de a impedir de se levantar. 12 – Após a ter assim segura no chão, deitou-se com o seu corpo por cima do da filha, começando a beijá-la na boca, não obstante a BB afastar, tanto quanto podia, a sua cara e boca da dele, pedindo-lhe, por várias vezes, para ele parar e que não queria.

13 – Porém, indiferente aos pedidos da filha, o arguido não só continuou a beijá-la, como continuou a forçá-la a ficar deitada no chão, debaixo dele, agarrando-lhe pelos braços que puxava para trás, mantendo-a assim imobilizada, ao mesmo tempo que, com lascívia, lhe dizia “ai filha… ai filha”, acabando por lhe introduzir o pénis erecto na vagina, e friccionando-o diversas vezes até estar prestes a ejacular, altura em que o retirou e ejaculou para o chão.

14 – Após o arguido sair de cima da menor, esta saiu do barracão e foi para casa, não tendo nenhum deles falado o que quer que fosse sobre o sucedido.

15 – Passados alguns dias, igualmente em data não concretamente apurada, mas situada no período de tempo atrás referido, igualmente durante o dia, numa altura em que a BB arrumava o quarto e fazia a cama dele, o arguido, que se encontrava até aí na sala, dirigiu-se àquela dependência e agarrou-a pelos braços, atirando-a sobre a cama e imobilizando-a por debaixo dele, segurando-a com as suas mãos, ora com uma ora com outra ora com ambas.

16 – De seguida, e não obstante lhe pedir que não o fizesse, o arguido indiferente e contra a vontade da filha, introduziu-lhe o pénis ereto na vagina, e aí o friccionou por diversas vezes, até estar prestes a ejacular, altura em que o retirou e ejaculou ao que tudo indica para cima da própria cama ou para o chão.

17 – Depois dessa vez, e até pelo menos à segunda semana do mês de julho de 2015, em número de vezes não concretamente apuradas, mas seguramente não inferior a dez vezes, quer na casa onde apenas os dois residiam, sita na Rua ..., ..., ..., quer no barracão da quinta atrás referida, o arguido, sempre contra a vontade da filha, teve relações de cópula com a mesma, introduzindo-lhe sempre o pénis ereto na vagina que friccionava, até ejacular sempre para fora da mesma.

18 – Dessas vezes o arguido limitava-se a empurrar a filha, designadamente para cima da cama, quando isso acontecia em casa, mas já sem necessidade de a agarrar e imobilizar porque a mesma temia que ele se matasse, pois que a dada altura, não concretamente apurara, lhe passou a dizer “que se contasse a alguém desaparecia” e por isso deixou de se debater e resistir, uma vez que para ela, apesar de tudo, ele é a única pessoa com quem sempre pode contar.

19 – O arguido só não repetiu por mais vezes a conduta atrás descrita, porque em maio de 2015 alguém cuja identidade completa ainda se não apurou, denunciou à GNR do ... a suspeita de envolvimento sexual do arguido com a BB, vindo ele a saber que a filha fora ouvida pela PJ em 26 de maio.

20 – Assim, e embora não sabendo do verdadeiro motivo dessa inquirição, fê-lo refrear a sua atitude, pelo menos até à segunda semana do mês de julho de 2015, altura em que, em dia não concretamente apurado mas situado entre o dia 6 e o dia 11 de julho, ocorreu a última das situações descritas em 17 e 18, de novo no quarto do arguido.

21 - O arguido, em nenhum dos atas sexuais de cópula sexual, havidos com a menor BB e acima referenciados, usou preservativo nem ela utilizava qualquer método contracetivo.

22 – Pelo que a mesma começou a recear poder encontrar-se grávida do arguido, o que no entanto não ocorreu conforme decorre do exame médico cuja informação consta da cota elaborada a fls.111, acabando a BB, no dia 15.07.2015 por contar à sua amiga de escola, DD, o que o pai lhe fazia, amiga essa que, por a encontrar a chorar, a questionou sobre o motivo e, que nesse mesmo dia, a levou à CPCJ ..., onde aquela transmitiu a situação elaborada no relatório de ocorrência de f1s.76.

 23 - O arguido, com as condutas atrás descritas agiu sempre deliberada, voluntária e conscientemente.

 24 - Quis, o que conseguiu sempre, satisfazer os seus instintos libidinosos, apesar de bem saber que o fazia, algumas das vezes, pelo uso da força física e sempre contra a vontade da filha, menor, e em desrespeito e com total indiferença, por ser querida a sua conduta, para o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade daquela na sua esfera de liberdade e de desenvolvimento sexual.

25 - Fê-lo, ainda, aproveitando-se, da sua relação de ascendência familiar com a filha sabendo igualmente que a mesma, por ausência de laços afetivos com a mãe, se encontrava a seu cuidado, nele confiando.

26 - Sabia, outrossim, que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Pelo exposto, forçoso será concluir que existem já fortes indícios de que o arguido cometeu, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, e sem prejuízo de ulterior qualificação face à investigação ainda em curso, pelo menos dois crimes de violação e em número não inferior a dez de crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1 al. a) e 172° nº 1, por referência ao art. 171º nº 2 e 177º nº 1 al. a) e nº 5, ambos do Código Penal. Os fortes indícios da prática de tais factos e das intenções do arguido, consubstancia dores dos referidos crimes resultam da seguinte prova (artigo 141.°, n.º 4, alínea d), do Código de Processo Penal): Documental: Toda a constante dos autos, designadamente de fls. 7 e 8, 48 a 53, 56 a 66, 76 a 77, 106 a 109. Testemunhal: 1. BB, melhor id. a fls.; 2. DD, melhor id. a fls. 15; Toda esta prova conjugada entre si, não obstante a negação dos factos por parte do arguido, permite, nesta fase, concluir com a certeza que se exige, que os factos se encontram suficientemente indiciados. Desde logo, as declarações da menor mostram-se credíveis e são compatíveis com o exame médico realizado (cfr. cota de fls. 111), sendo certo que o arguido não dá qualquer explicação para a menor ter prestado as declarações que prestou, caso as mesmas não fossem verdadeiras. Antes, pelo contrário, o que resulta dos autos é que a menor sempre tentou proteger o pai, inclusive negando toda a situação, apesar das suspeitas que já existiam, só tendo denunciado a situação agora, por desconfiar que estava grávida e não aguentar mais a situação, acabando por desabafar com uma amiga, que já foi inquirida nos autos e que corroborou a versão da ofendida. Assim, o depoimento da ofendida é credível, mostra-se já corroborado nos autos e não foi infirmado pelas declarações do arguido, que não apresenta qualquer versão ou motivo para a menor não estar a dizer a verdade, limitando-se o arguido a dizer que é tudo mentira, apesar de acrescentar que tinha uma ótima relação com a filha. Perante a mencionada factualidade, fortemente indiciada, há que aferir da necessidade de aplicar, ou não, ao arguido uma medida de coação, e em caso afirmativo qual? De acordo com o artigo 193 do CPP: "As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venha a se aplicadas". Acrescentando o artigo 204 do mesmo diploma que: "Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196, pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, e nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou; c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas". No artigo 193º estão consagrados quatro princípios no que tange à aplicação das medidas de coação: - O princípio da proporcionalidade; - O princípio da necessidade; - O princípio da adequação; - E o principio da proibição em excesso. O principio da proporcionalidade mais não é do que a consagração do artigo 18 da CRP e que se desdobra nos outros três princípios. Assim, de acordo com o princípio da necessidade a medida tem de ser indispensável ao fim a que se destina, de acordo com o princípio da adequação tem ainda de ser idónea a esse fim e finalmente não pode exceder esse fim. Cada medida de coação tem de ser aplicada de acordo com o caso concreto, devendo ser proporcional, necessária e adequada a essa causa, devendo acautelar os perigos que em concreto se verifiquem, sendo que nenhuma medida de coação pode ser aplicada se, em concreto não se verificar um dos perigos do artigo 204 do CPP (à exceção do TIR). No que tange ao artigo 204 o mesmo fixa os requisitos gerais para a aplicação de qualquer medida de coação, à exceção do TIR, requisitos esse que não alternativos. Os crimes em causa são punidos com pesadas penas de prisão e integram a apelidada criminalidade especialmente violenta (artigo 10, a/.l) do CPP). Os factos são gravíssimos e causadores de enorme alarme social, ainda mais que foram praticados num meio pequeno, em que a vitima e o arguido têm uma relação de parentesco, tratando-se de pai e filha, encontrando-se esta confiada àquele. Além disso, na situação concreta parece manifesto o perigo de continuação da atividade criminosa, pelos motivos a seguir mencionados. Tal perigo em nosso ver resulta desde logo da forma reiterada como os factos ocorreram e do número de vezes. O arguido, apesar da vítima ser sua filha e apenas, atualmente com 16 anos, não se inibiu de com ela se relacionar sexualmente, recorrendo à força física, o que só lhe foi permitido, precisamente por se aproveitar da relação de paternidade, da idade da menor e da sua superioridade física. Além disso, o arguido, não dá qualquer explicação para a sua atuação, nega a prática dos factos, acrescentando que a menor inventou a situação descrita nos autos, o que demonstra uma ausência de espirito crítico sobre a factualidade em causa, não obstante a sua gravidade. A forma de atuação do arguido, relatada nos factos comunicados é muito grave e não indicia a prática de atas isolados, mas de uma eventual falta de controlo do próprio arguido, que não se inibiu de ter o comportamento descrito, completamente desadequado, não só penalmente mais ainda moral e socialmente. Além disso, conforme relato da vítima quando foi inquirida pela PJ já anteriormente o arguido terá tentado abusar da filha mais velha. É assim, manifesto em concreto, atenta a personalidade do arguido o perigo de continuação da atividade criminosa. No entanto, além desse perigo existe ainda perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente para a aquisição e conservação da prova, na medida em que o arguido, como resulta fortemente indiciado dos factos comunicados não se inibiu de usar a força física para manter relacionamento sexual com a mesma, sendo de prever que o arguido tudo fará para evitar, inclusive que a menor deponha nos autos como testemunha. Aliás, como também resulta dos factos comunicados, tudo indicia que o arguido afirmou à vitima que se ela contasse o sucedido a alguém se matava, aproveitando-se da influência que tinha sobre a menor e do medo que a mesma tinha de perder o pai, pois apesar de tudo é a sua única referência, tendo passado parte da sua infância institucionalizada e, posteriormente, com a mãe, com quem tinha um mau relacionamento devido inclusive aos consumos excessivos de álcool por parte desta. Ora, para acautelar tais perigos só a prisão preventiva nos parece adequada, sendo ainda proporcional e necessária à gravidade extrema da situação. Desde logo a previsibilidade do arguido vir a ser condenado, em sede de julgamento, a prisão efetiva é muita elevada. Assim, qualquer medida de coação que não seja a prisão preventiva é manifestamente insuficiente para acautelar os perigos em causa, nomeadamente para evitar o perigo da continuação da atividade criminosa. Sem dúvida que se encontram verificados quer os pressupostos do artigo 204 do CPP, quer os do artigo 202 do mesmo diploma. Na verdade, como analisado existe perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação da prova e da ordem e tranquilidade pública. Os ilícitos penais que os autos indiciam fortemente que o arguido cometeu são puníveis com penas de prisão muito superiores a cinco anos. Além disso, qualquer outra medida menos gravosa não acautela tais perigos, atenta a proximidade entre a vítima e o arguido, inclusive não evita que este a procure, mesmo ordenando-se a proibição de contactos com a menor. Também, tendo em conta o tipo de crime em causa e os meios ao dispor do arguido, inclusive na sua residência para cometer factos idênticos, tornam desde logo inadequada a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mesmo com vigilância eletrónica. Aliás, não podemos esquecer que foi na sua residência que o arguido encetou contactos com a menor e foi aí que teve contactos de cariz sexual com a mesma. Tal como se escreve no ac. da RC de 28.2009 (in http://www.dgsi.pt/jtrc): "A medida de coação, obrigação de permanência na habitação, revela-se insuficiente e inadequada nos crimes de natureza sexual, visto poder ser cometido aliciando crianças a vir a Sua casa, dado que normalmente as vítimas são amigos, vizinhos, conhecidos ou até familiares". Não ignoramos o carater excecional da medida de coação da prisão preventiva. Contudo, atento o exposto, qualquer outra se mostra inadequada para cautelar os perigos em causa, não inibindo o arguido de, caso pretendesse, como pensamos que o faria, praticar factos idênticos e de tudo fazer para que a menor não prestasse declarações ou alterasse as mesmas. Assim, por todo o exposto decide-se: - Nos termos dos artigos 191, 192, 193, n.º1, 2 e 3, 202, n. º1, al. a) e b) e 204, al. b) e c) do CPP sujeitar o arguido à medida de coação de prisão preventiva, para além do TIR já prestado, por considerar ser tal medida a única que se revela adequada, necessária e suficiente a salvaguardar as elevadas exigências cautelares que se fazem sentir, sendo ainda proporciona', quer à gravidade dos crimes quer às sanções que previsivelmente serão de aplicar. Notifique, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 194, nº 10 do CPP. Proceda-se à emissão de mandados de condução do arguido ao EP competente.

Notifique.”

4. Em resultado de tal decisão, em 17/07/2015 o A. foi conduzido para o Estabelecimento Prisional ... onde se manteve em reclusão ininterrupta até ao dia 03/06/2016, data da sua libertação.

5. A 29.7.2015 o A. apresentou recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da medida de coação aplicada, pugnando pela sua revogação e substituição por medida menos gravosa.

6. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 7.10.2015, foi julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido, e mantida a medida de coacção de prisão preventiva, constando da fundamentação do referido aresto, designadamente:

2. No despacho recorrido foi entendido estar suficientemente indiciada a prática pelo arguido de dois crimes de violação, p. e p. pelo art, 164°, nº 1, a) do C. Penal com referência ao art. 177°, n.ºs 1, a) e 5) do mesmo código, e de dez crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, p. e p. pelo art, 172°, nº 1, com referência aos arts. 171°, n° 2 e 177°, nºs 1, a) e 5, todos do mesmo código, crimes dolosos, tendo a violação a moldura penal de quatro a treze anos e quatro meses de prisão e o abuso sexual de menor dependente agravado a moldura penal de um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão. Entendimento diferente tem o recorrente para quem os elementos de prova existentes no inquérito que sustentam a imputação são precários e insuficientes, uma vez que se baseiam nas declarações da ofendida e na opinião de um médico, até ao momento não fundamentada cientificamente. Vejamos. Consta do despacho recorrido que o arguido é pai da ofendida, nascida a .../.../1998, factualidade que se encontra indiciariamente provada por cópia do assento de nascimento desta, junta a fls. 22 destes autos. Consta do despacho recorrido que a ofendida viveu com a mãe, à guarda de quem se encontrava, até Maio de 2014, vindo a partir de então a viver com o arguido, situação comunicada à GNR, à CPCJ ... e ao Tribunal de Família e Menores, que passou a exercer a guarda efetiva, factualidade que se encontra indiciariamente provada pela cópia da «Informação de serviço» da GNR de 20 de Maio de 2014 a fls. 8 a 9 destes autos e cópia da cota da PJ de 26 de Maio de 2015, a fls. 16 destes autos, conjugados com os depoimentos da ofendida, prestado em 26 de Maio de 2015, a fls. 13 a 15 destes autos e da testemunha EE, prestado em 15 de Julho de 2015, a fls. 34 destes autos, e com as declarações prestadas pelo arguido à PJ, em 15 de Julho de 2015, a fls. 38 a 40 destes autos. Consta também do despacho recorrido que em dia não concretamente apurado de Março ou Abril de 2015, numa quinta situada em ..., ..., o arguido chamou a ofendida a um barracão, fechou a porta e, recorrendo à força física, empurrou-a para o chão, deitou-se sobre ela, beijou-a, e sempre contra a sua vontade, manteve com ela relação de cópula, situação que se repetiu, dias depois, já na casa do arguido, quando a ofendida lhe fazia a cama, atirando-a sobre esta, imobilizando-a debaixo de si e mantendo relação de cópula contra a sua vontade. Depois destes acontecimentos e até à segunda semana de Julho de 2015, continua o despacho, em dez distintas ocasiões, na casa do arguido ou no barracão da quinta, este, sempre contra a vontade da ofendida, com ela manteve relações de cópula, mas já sem a agarrar e imobilizar, por temer que o pai se matasse e ser ele a única pessoa com quem sempre pôde contar. A Mma. Juíza de instrução considerou fortemente indiciada esta factualidade, com base 110 depoimento da ofendida, que qualificou de credível e compatível com a informação médica constante da cota de fls. III, tendo ainda ponderado a circunstância de o arguido não ter apresentado qualquer explicação para a filha ter produzido as declarações que produziu, caso não fossem verdadeiras. Vejamos. A ofendida tinha já 16 anos de idade quando ocorreram os factos descritos e, conforme relato de diligência externa de fls. 11 destes autos, realizada a 26 de Maio de 2015, é referida pela directora da escola que frequente a pela sua directora de turma como uma aluna aplicada, com bom rendimento escolar, respeitada e admirada por todos os colegas com quem tem bom relacionamento. Estaremos, portanto, perante uma adolescente, já pré adulta, equilibrada e bem inserida. Confrontando as declarações prestadas pela ofendida em 26 de Maio de 2015 e em 15 de Julho de 2015 fácil é concluir que ali nega o que aqui afirma, isto é, que foi violada e tem sido abusada pelo pai. O 'discurso' usado nestas últimas declarações apresenta-se estruturado e internamente coerente, revelando a ofendida ponderação e, de alguma forma, preocupação com o progenitor, o que, aliado ao afirmado temor de gravidez, ajuda a explicar a existência de dois depoimentos absolutamente opostos. Por outro lado, na cota de fls. 51 destes autos, relativa ao exame sexual a que a ofendida foi submetida no Gabinete Médico-Legal de ..., confirma-se ter a mesma tido relacionamento sexual recente, mas não estar grávida. Porém, o que não é possível extrair do depoimento, posto que nunca afirmado pela ofendida [esta, aliás, disse não saber quantas vezes terá ocorrido o relacionamento], e O número de abusos sexuais, não inferior a dez, indiciariamente praticados pelo arguido, mencionado no ponto 17 dos factos indiciados no despacho recorrido, uma vez que, com a necessária certeza, do mencionado ponto conjugado com o ponto 20 dos factos indiciados, apenas se pode retirar a ocorrência de dois abusos sexuais. Por outro lado, cabe dizer que, mesmo que o arguido não tivesse apresentado qualquer justificação para a atitude da filha [ouvidas pela Relação as declarações por si prestadas no 10 interrogatório judicial de arguido detido, afirmou estar admirado com a conduta da ofendida, pois são amigos, não saber a razão das suas declarações que não correspondem à verdade, e parecer-lhe que tal se deve à mãe da filha, embora tenha reconhecido que não têm contactos], não só a tanto não estava obrigado, como a ausência da dita explicação nada permite inferir. Em suma, a ofendida surge como uma jovem estudante interessada e bem considerada no meio, sem indício de distúrbio comportamental, que produziu um segundo depoimento coerente e consistente, parcialmente corroborado pela informação médica disponível. Os crimes sexuais, na esmagadora maioria dos casos, não têm espectadores que os possam, depois, testemunhar, por isso que, face às especiais dificuldades que a sua indiciação suscita, os depoimentos das vítimas revistam sempre particular importância, ainda que, pela mesma razão, devam ser submetidos a rigoroso escrutínio probatório. Ora, o depoimento da ofendida, pelas razões supra expostas, sujeito a tal escrutínio, revelou-se credível e está. Parcialmente corroborado pela informação médica disponível pelo que, tendo em conta a fase embrionária da investigação em que ainda estamos, se concorda com a decisão recorrida quanto à existência de fortes indícios de ter o arguido praticado dois crimes de violação e dois crimes de abuso sexual de menor dependente, qualquer deles, como se viu, punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos. (…) 4. No despacho recorrido entendeu-se que a debelação dos perigos previstos no art. 204°, b) e c) do C. Processo Penal apenas poderia ser alcançada com a sujeição do arguido à medida de prisão preventiva, considerando-se insuficientes para assegura os efeitos cautelares requeridos as medidas coação de proibição de contactos e de obrigação de permanência na habitação. Diferente entendimento tem o recorrente para quem, invocando a 'institucionalização' da ofendida, a medida de proibição de contactos, prevista no art. 200°, n" 1, d) do C. Processo Penal, se mostra apta a assegurar as exigências cautelares ou, caso assim não se entenda, cumprirá tais exigências a medida de obrigação de permanência na habitação, prevista no art. 201° do mesmo código. Vejamos. A escolha da medida de coação deve observar os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (art. 193°, nº 1 do C. Processo Penal). O princípio da necessidade significa que a medida a aplicar deve ser indispensável para a satisfação das exigências cautelares. O princípio da adequação significa que a medida a aplicar deve ser a mais ajustada, amais idónea à satisfação-das exigências cautelares requeridas pelo caso concreto. O princípio da proporcionalidade significa que na ponderação da medida a aplicar deve ser considerada a gravidade do crime e a pena que previsivelmente venha a ser aplicada. No caso específico da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação há ainda que observar o princípio da subsidiariedade, só devendo ser aplicadas quando nenhuma das demais medidas de coação se mostre adequada e suficiente para assegurar as exigências cautelares do caso concreto (arts. 193°, n.ºs 2, 201°, n" 1 e 202°, n" 1, do C. Processo Penal). Por outro lado, quando as exigências cautelares do caso concreto impuserem a aplicação de medida de coação privativa da liberdade, a obrigação de permanência na habitação prefere à prisão preventiva, desde que se revele suficiente para satisfazer aquelas exigências (art. 193°, n° 3, do C. Processo Penal). Os crimes a que os factos indiciariamente praticados pelo arguido conduzem têm elevada gravidade e representam grande dano social, sendo por isso necessário criar as condições necessárias para que o seu cometimento não se volte a repetir, o que passa desde logo pela necessidade de impedir de forma eficaz qualquer contacto entre pai e filha. A medida de obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas, atento o concreto circunstancialismo e, em particular, a residência comum e a indefinição da situação da ofendida, afigura-se-nos incapaz de assegurar eficazmente o efeito preventivo visado. Relativamente à obrigação de permanência na habitação estão, de facto, verificados os requisitos específicos da sua aplicação portanto, a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos. Acontece que, como se sustenta 110 acórdão desta Relação de 28 de Janeiro de 2009, proc. n" 664/08.7TACTB-A.CI, in www.dgsi.pt, aliás. citado no despacho recorrido, esta medida de coacção pode revelar-se insuficiente e inadequada em crimes de natureza sexual, crimes onde, na esmagadora maioria dos casos, os respectivos agentes negam ou minimizam os seus comportamentos, e podem ser facilmente praticados em casa, uma vez que as vítimas são, frequentemente, conhecidos e familiares. Ora, tendo sempre presente que nos encontramos no âmbito da indiciação de factos e numa fase embrionária da investigação, é esta a situação com que deparamos nos autos. Com efeito, o arguido não assumiu os factos que tem por vítima a sua filha, então com 16 anos de idade, e que consigo vivia, tendo parte significativa dos abusos, ocorrido na residência. Por isso, sujeitar o arguido à obrigação de permanência na habitação, quando nesta residia com a ofendida, sem que esteja definitivamente afastada a possibilidade de esta aí deixar de habitar [para além do já referido acionamento de procedimento de emergência para acolhimento temporário, quanto a este aspeto, apenas consta do «Relatório de ocorrência» de fls. 25 a 26 que a ofendida recusou ir para casa da mãe ou para casa da irmã] seria um manifesto contrassenso e a negação do fim visado com a aplicação da medida de coação. Deste modo, sendo insuficiente e inadequada, atentas as exigências cautelares requeridas pelo caso, a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, conclui-se que, pelo menos, de momento, a prisão preventiva decretada se deve manter, com a consequente improcedência do recurso, não se mostrando inobservados os arts. 27° e 28° da Constituição da República Portuguesa [que o recorrente se limita a invocar]. III. DECISÁO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

7. Em 03/12/2015 foi deduzida acusação pública contra o A., imputando-lhe a prática de doze crimes de violação previstos e punidos pelos arts. 164º, agravados pelo disposto no art. 177º, ambos do Código Penal – 5º PI. 8. No despacho de acusação, a final, foi promovida a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 213º, n.º 1, al. b), do CPP (reexame dos pressupostos da medida de coacção), tendo por despacho judicial de 7.12.2015 sido mantida a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao A..

8. Desta decisão não recorreu o Autor, ali arguido.

9. Em 23/05/2015 foi iniciada audiência de julgamento, sem a presença da ofendida BB, que não foi encontrada.

10. Com data de 01.06.2016, consta uma cota do processo comum colectivo do seguinte teor: “Contactado o técnico de informática deste tribunal – FF, foram efetuadas diligências no sentido de tornar audível as declarações da menor, não tendo sido possível recuperar a sua audição”.

11. Em 03/06/2016 foi proferida sentença no referido processo 71/15...., entretanto, distribuído pela Instância Central ..., Secção Criminal J... da Comarca ..., que julga improcedente a acusação pública e absolve o A. dos crimes que vinha acusado, bem como, declara extinta a medida de coacção e determina a sua libertação.

12. O A. esteve privado da sua liberdade entre os dias 15 de Julho de 2015 e 03 de Junho de 2016 o que perfaz 325 dias de reclusão.

13. Tanto a decisão que aplica a prisão preventiva como o acórdão da Relação de Coimbra que o confirma fundamentam-se, entre outras, nas declarações da menor ofendida e exame médico realizado, conforme transcrito.

14. O exame médico consta de fls. 229 do processo 71/15...., do qual foi lançada uma cota a fls. 111 que refere: “…- que a observação efetuada, nomeadamente permeabilidade da vagina, é coincidente com relações sexuais recentes e o que corrobora o relato da vitima “nada no exame físico contradiz o que foi dito pela BB”. - que na sua opinião o relato da vítima é bastante convincente e credível, quer pela firmeza das suas palavras, quer pela forma ordenada e precisa, com que descreve os factos de que foi vitima, aos quais se refere como “aquele calvário”, mostrando grande sofrimento e angustia. …”.

15.  Os factos criminosos imputados ao arguido na acusação deduzida foram declarados não provados com os seguintes fundamentos:

Convicção do Tribunal quanto à matéria de facto: Funda-se esta no conjunto da prova produzida em audiência, salientando-se que:

1 – O arguido prestou declarações, negando de forma veemente e peremptória a prática dos factos descritos na acusação pública, afirmando que as declarações acusatórias da sua filha deverão ter sido fabricadas/engendradas pela sua ex-companheira, com vista a prejudicá-lo, por a menor ter, entretanto, vindo viver consigo, em detrimento da mãe. Descreveu ainda o arguido o percurso da menor BB até ter vindo viver a seu cargo, e esclarecendo que esta pernoitava em casa de sua irmã EE quando esteve a seu cargo. Descreveu ainda o arguido as suas condições pessoais e modo de vida.

2 - A atitude de negação (da prática dos factos imputados na acusação) do arguido não foi infirmada por qualquer meio de prova credível produzido nos autos e em sede de audiência de julgamento. Desde logo, não foi possível proceder à reprodução em audiência de julgamento e à audição do depoimento prestado pela menor (testemunha) BB antecipadamente para memória futura, por a respetiva gravação se mostrar inaudível, de forma irrecuperável, como resulta do exposto e consignado a fls. 698, 699 e 730 dos autos. Convocada a referida testemunha para prestar depoimento presencialmente, em sede de audiência de julgamento (o que sempre se determinaria, em face da prova produzida em audiência, nos termos do disposto no art. 271°, nº 8, do C.P.P., mesmo que fosse audível a aludida gravação áudio, tendo em conta a actual idade da menor), veio esta recusar-se a depor, faculdade que lhe é reconhecida pelo art. 134°, nº 1, al. a), do C.P.P., por ser filha o arguido. Ora, o modo como a testemunha se recusou a depor, e mesmo a identificar-se, de início, revelando desconforto e desagrado por lhe ser pedido novo depoimento, mesmo após repetidamente esclarecida da razão da sua convocação, suscitou sérias dúvidas ao Tribunal Colectivo sobre a seriedade de quaisquer declarações pela mesma proferidas, mesmo perante outras pessoas. Por essa razão, e considerando ainda o preceituado no art.º 129°, n° 1, do C.P.P., não se revelou possível atribuir qualquer relevo ou credibilidade aos depoimentos das testemunhas (…), na parte em que se referiram ao que a menor BB lhes contou acerca dos pretensos actos praticados pelo seu pai, aqui arguido. E é certo que as referidas testemunhas não denotaram ter conhecimento directo de quaisquer factos que pudessem de algum modo sustentar a tese fáctica da acusação pública.

3 – Por outro lado, a testemunha EE, filha do arguido e irmã da menor BB, que com ela pernoitava e tomava grande parte das refeições, negou peremptoriamente ter conhecimento de qualquer acto de abuso sexual praticado pelo arguido, seu pai, quer na pessoa da BB, quer na sua pessoa (da própria testemunha). Referiu mesmo que o seu pai sempre as tratou com total respeito, e que a BB nunca lhe falou de quaisquer actos de abuso sexual perpetrados pelo arguido, nem sequer evidenciou estar perturbada, retraída ou triste com qualquer facto ou situação. Afirmou, por isso, esta testemunha que a BB, acusando o arguido seu pai da prática de violação, está indubitavelmente a mentir. Referiu ainda esta testemunha que a BB já havia mantido vários relacionamentos sexuais com rapazes, quer na ..., quando vivia com a mãe, quer já em ..., o que lhe foi contado pela menor e pela sua mãe. Disse ainda que o seu pai controlava de forma apertada as saídas nocturnas da BB, o que a deixava desagradada. Daí que esta testemunha atribua a atitude mentirosa da menor BB a este facto, e ainda à preocupação que tinha de estar grávida. O depoimento desta testemunha foi corroborado e confirmado pelo depoimento do seu companheiro GG, que consigo vive, e já vivia na altura em que a BB pernoitava em sua casa. Negou esta testemunha ter alguma vez abusado, ou sequer tentado abusar sexualmente da menor. Os depoimentos destas testemunhas revelaram-se sérios, esclarecidos, congruentes e credíveis, abalando inapelavelmente a tese fáctica da acusação pública.

4. A testemunha HH, antiga colega de escola da BB, confirmou que esta manteve um relacionamento amoroso e sexual com um namorado em ..., factos que observou e a própria menor lhe confidenciou.

 5. As testemunhas II (vizinho e amigo do arguido), JJ (irmã do arguido), KK (amiga do arguido), e LL (amigo do arguido), limitaram-se a afirmar o bom relacionamento mantido pela menor BB com o seu pai, aqui arguido.

6. Como se pode observar, a prova por declaração e testemunhal não logrou sustentar minimamente a tese fática exposta na acusação pública. E é certo que tal corroboração também não é operada por intermédio da prova documental e pericial junta aos autos, sublinhando-se a este propósito que o relatório médico-legal de fls. 229 a 231 não permite afirmar a ocorrência de qualquer acto abusivo de que a menor tenha sido vítima.

7. Por conseguinte, analisando conjugadamente todos os mencionados meios de prova, e as suas insuficiências, inconsistências, contradições e incongruências, acima apontadas, não conseguiu o tribunal coletivo atribuir qualquer credibilidade ou sustentação à tese fáctica da acusação pública, pelo que tal factualidade foi dada como não provada”. Fundamentação: Relativamente aos factos provados, assenta a respectiva prova no teor dos documentos juntos aos autos, que se referem no local próprio. Os factos declarados como não provados resultam igualmente da análise da fundamentação do despacho e acórdão a que se reportam, e se reproduziram na factualidade provada, para melhor compreensão e inteligibilidade do que está em causa nos autos.

16. O A. tem uma filha, EE que por sua vez tem uma filha com 7 anos de idade, familiares com quem tem grande proximidade afectiva e, durante o período da sua reclusão ficou privado de afectos da família e convívio social, passando o Natal, o Carnaval e a Páscoa privado da família, dos amigos e da liberdade.

17. A prisão do Autor e os factos ilícitos que lhe foram imputados chegaram ao conhecimento de toda a comunidade onde se encontra inserido.

18. O Autor à data da detenção ficou associado à prática dos crimes que lhe foram imputados e pelos quais foi socialmente condenado.

19. O Autor nasceu em .../.../1963.

20. O autor desenvolve actividade profissional como trabalhador agrícola, prestando o seu trabalho a quem o solicita, auferindo a quantia de € 40,00 (quarenta euros) por cada dia inteiro de trabalho.

21. Presta o seu trabalho ocasionalmente, quando lhe é solicitado.

22. A filha do Autor, EE, pagou a importância de € 175.00 (centos e setenta e cinco euros) pela renda de Julho de 2015 da casa de habitação que o autor tinha arrendada.

23. A sua filha EE semanalmente entregava ao Autor, quando o visitava, quantias variadas, em média € 20,00, tendo chegado a entregar-lhe a importância de € 40,00 para assegurar despesas correntes com artigos de higiene e tabaco.


Factos não provados:

O tribunal de 1.ª instância considerou que:

Da prova documental e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, não se logrou provar que:

2.1. A medida de coação aplicada ao A. foi, também, sustentada nos sérios indícios sobre a prática de atos semelhantes sobre a sua filha mais velha, EE, o que se inferiu pela referência feita pela agente da Polícia Judiciária quanto à recusa desta prestar depoimento sobre tais factos.

2.2. A absolvição do A. resulta da demonstração de que não praticou os factos de que ia acusado.

2.3. A comunidade prisional onde o Autor foi integrado recebeu-o de forma ofensiva, designadamente com agressões físicas e psicológicas que o fizeram temer pela sua integridade.

2.4. Em resultado das agressões de que foi vítima houve necessidade de mudar o Autor de cela.

2.5. O Autor sofreu angústia e ansiedade pela indefinição do seu futuro.

 2.6. O Autor sofreu, igualmente, profunda angústia e ansiedade pela injustiça da sua detenção.

2.7. Tais sentimentos foram traduzidos em emoções como insónia, agitação, nervosismo e choro espontâneo e descontrolado que se esforçava em reprimir e ocultar dos restantes reclusos.

2.8. Durante a sua reclusão o Autor sofreu estado depressivo grave que determinou tratamento com medicamentos tranquilizantes   e ansiolíticos.

2.9. O A. tem uma filha, EE que por sua vez tem uma filha com 7 anos de idade, familiares com quem tem grande proximidade afetiva e, durante o período da sua reclusão ficou privado de afetos da família e convívio social, passando o Natal, o Carnaval e a Páscoa privado da família, dos amigos e da liberdade.

2.10.  Durante o período da sua reclusão o A. escreveu diversas cartas a esta sua filha EE com conteúdo comovente, expressando um profundo estado depressivo e desprendimento pela vida.

Perante tais circunstâncias considerou por termo à vida, o que foi percebido pela sua filha EE e serviços do Estabelecimento Prisional.

2.12.  A prisão do Autor e os factos ilícitos que lhe foram imputados teve divulgação nacional através da comunicação social chegando ao conhecimento de milhares de pessoas.

2.13.  O Autor tenha ficado, após a sua absolvição, associado à prática dos crimes que lhe foram imputados e pelos quais foi socialmente condenado e é tido como seu autor.

2.14.  A absolvição do Autor não teve qualquer divulgação pela comunicação social que anunciou a sua prisão.

2.15.  A reclusão sofrida pelo Autor perpetua-se na sua mente e irá acompanhá-lo para o resto da sua vida, pelo menos, durante os próximos 27 anos.

2.16.  Tal sentimento traduz-se em emoções de nervosismo, sono inquieto inesperadamente despertado pela sensação de ainda estar preso, bem como, vergonha perante os seus familiares, amigos e conterrâneos.

2.17.  Cada dia que viveu privado da liberdade foi para o Autor um dia de inexistência e sofrimento e cada dia que viva no futuro será um dia de vergonha, inquietação, incertezas e memórias dolorosas.

2.18.  O Autor sofreu um dano de natureza moral que irá persistir no tempo enquanto existir e que tem como causa direta e adequada a privação da liberdade que lhe foi imposta

2.19.  Aufere diariamente a importância de € 40,00 (quarenta euros) a que acresce a alimentação correspondente às refeições de lanche da manhã, almoço e lanche da tarde.

2.20.  Presta o seu trabalho entre segunda e sábado e durante todo o ano. 2.21.   Durante o período de 325 dias de reclusão o Autor perdeu 270 dias úteis de trabalho entre segunda a sábado, excluindo os feriados.

2.22.  Durante o referido período o Autor teria auferido a importância de € 10.800,00 (270 x € 40,00).

2.23.  O A. deve à sua filha EE, a importância de € 175.00 (centos e setenta e cinco euros) que esta pagou pela renda de julho de 2015 da casa de habitação que tinha arrendada.

2.24.  A sua filha EE semanalmente entregava ao Autor, quando o visitava, a importância de € 40,00 para assegurar despesas correntes com artigos de higiene e tabaco.

2.25.  Durante 46 semanas de reclusão acumulou uma divida a esta sua filha no montante de € 1.840,00 (mil, oitocentos e quarenta euros).

2.26.  Em resultado da reclusão o A. sofreu um dano patrimonial no montante de € 12.815,00 (doze mil, oitocentos e quinze euros).


*

II - Fundamentação

1. Contradição na matéria de facto

O recorrente alega que no recurso subordinado de apelação que deduziu invocou a existência de contradição na fundamentação de facto e a existência de prova suficiente para a declaração do direito a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que foi sanada, de forma fundamentada pelo tribunal recorrido quanto aos factos constantes dos pontos 1.17 e 1.21, mas fê-lo de forma que, parece, precipitada e arbitrária, que veio a merecer reparo em voto de vencido. Tal facto 1.16 diz “O Autor sofreu angústia e ansiedade pela indefinição do seu futuro.” que o Tribunal “a quo” declarou como não provado sem indicar qualquer sustentação para esta conclusão.

Entende que a conclusão do Tribunal “a quo” deve ser rectificada no sentido de ser declarado como provado o facto constante do ponto 1.16.

Não é absolutamente claro se o recorrente invoca uma nulidade do acórdão por falta de fundamentação ou se pretende uma rectificação do mesmo.

O Tribunal da Relação de Coimbra, sobre esta questão disse o seguinte:

Liminarmente.

Tal como alega o autor, os mesmos factos foram dados como provados e não provados nos pontos 1.16, 1.17 e 1.21 (factos provados), e nos pontos 2.5., 2.9 e 2.19 (factos não provados).

Tais factos tem o seguinte teor:

1.16. O Autor sofreu angústia e ansiedade pela indefinição do seu futuro.

1.17. O A. tem uma filha, EE que por sua vez tem uma filha com 7 anos de idade, familiares com quem tem grande proximidade afetiva e, durante o período da sua reclusão ficou privado de afetos da família e convívio social, passando o Natal, o Carnaval e a Páscoa privado da família, dos amigos e da liberdade.

1.21. O autor desenvolve atividade profissional como trabalhador agrícola, prestando o seu trabalho a quem o solicita, auferindo a quantia de € 40,00 (quarenta euros) por cada dia inteiro de trabalho.

Existe, pois, contradição da decisão fáctica.

Não obstante o poder de anulação conferido a esta Relação pelo artº 662º nº2 al. c) do CPC, entendemos, até por razões de economia e celeridade processual, que existem nos autos elementos suficientes para sanar este vício nesta instância recursiva.

Assim.

Quanto aos factos 1.17 e 1.21 a julgadora aduziu para eles prova concreta: foram os depoimentos das testemunhas MM, que chegou a dar trabalho ao autor, EE, filha do autor, e GG, companheiro desta.

Tais factos foram referidos na decisão de direito, o que inculca a ideia que a Srª juíza os teve por provados.

Aliás, o teor do facto 1.17 resulta inelutável de o autor ter estado detido e, ainda, da normalidade das coisas e da experiência comum.

Destarte, estes factos devem ter-se por provados. Já o mesmo não acontece com o facto 1.16.

Nenhuma referência probatória relativamente ao mesmo foi efetivada pela julgadora na fundamentação da decisão fática.

E em sede de apreciação jurídica foi mesmo expendido que tal facto não se provou. Nesta conformidade, a aludida contradição quanto a este facto deve ser resolvida no sentido da sua não prova, devendo ele ser eliminado do acervo factual provado.

Na fundamentação da sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, sobre estas questões consta o seguinte:

Pese embora resulte das regras da experiência comum que a reclusão importa danos a nível psicológico para os detidos, não resultou provado que a comunidade prisional onde o Autor foi integrado o tenha recebido de forma ofensiva, designadamente com agressões físicas e psicológicas que o fizeram temer pela sua integridade; que em resultado das agressões de que foi vitima houve necessidade de mudar o Autor de cela; que o Autor sofreu angustia e ansiedade pela indefinição do seu futuro, nem em que medida o fez. Não se provou que o Autor tenha sofrido profunda angústia e ansiedade pela injustiça da sua detenção, nem que tais sentimentos tenham sido traduzidos em emoções como insónia, agitação, nervosismo e choro espontâneo e descontrolado que se esforçava em reprimir e ocultar dos restantes reclusos.

Não se logrou provar que, durante a sua reclusão o Autor sofreu estado depressivo grave que determinou tratamento com medicamentos tranquilizantes e ansiolíticos e que muitas vezes, tenha deixado de ter controlo sobre a sua pessoa e tenha sido sujeito a diversos exames e consultas do foro psiquiátrico.

Pese embora tais factos não se tenham provado, nos termos em que foram alegados pelo autor, é certo, carecendo de demonstração, que “a privação da liberdade causa sempre sofrimento moral do visado por afetar diretamente um bem essencial do ser humano, inerente à sua personalidade” (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/10/2011, Proc. n.º 1268/03.6TBPMS.L1.S1, Relator: Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt).

Sendo certo que são muito limitados os poderes do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à matéria de facto fixada pelas instâncias, nos termos do disposto no art.º 674.º do Código de Processo Civil e não tendo sido invocada qualquer uma das circunstâncias nele mencionadas, tão pouco se apresenta a questão suscitada como podendo obter enquadramento no disposto no art.º 682.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

Não há qualquer contradição nos pontos de facto assinalados susceptível de inviabilizar a decisão de mérito, tanto mais que, como ambas as instâncias consideraram, a privação do direito fundamental à liberdade gera, por si só, um dano quanto ao direito fundamental à liberdade de que são tributários todos os cidadãos que não é menor se não for acompanhado de estado depressivo, de angústia ou ansiedade exteriormente detectáveis, como terá ocorrido na presente situação.

Nada obsta ao conhecimento da revista, improcedendo este fundamento apresentado pelo A..


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2. Indemnização por danos não patrimoniais

Nos termos do disposto no art.º 225.º do Código de Processo penal, “Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:

c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime.”

Neste dispositivo legal encontra completo enquadramento a presente situação em que o autor foi sujeito a prisão preventiva durante 325 dias - de 15 de Julho de 2015 a 03 de Junho de 2016 – sem que possa indicar-se qualquer ilegalidade na decisão que determinou a sua prisão preventiva, ou naquela que a manteve, vindo em julgamento a ser absolvido da acusação contra ele formulada, por falta de prova, com determinação da sua imediata restituição à liberdade.

 Não se detecta, neste caso, qualquer erro judiciário que tenha causado quer a reclusão, quer a sua duração.

Para a absolvição pode ter concorrido a inutilização da gravação do depoimento da pretensa vítima à data em que participou os eventos que deram origem à investigação criminal, inutilização essa também da responsabilidade do sistema judiciário que ou não teve meios técnicos e/ou humanos para a realizar devidamente, ou, para a conservar, ou agiu inadequadamente. Raramente no processo-crime se consegue mais que a absolvição por falta de prova. O réu não tem de provar que está inocente, a acusação é que tem que provar que é culpado e, quando não lograr consegui-lo o réu é declarado inocente para todos os efeitos legais. Não existem uns réus mais inocentes que outros consoante a absolvição decorra com mais ou menos intensidade da aplicação do princípio do “in dúbio pro reo”. Só há, em face da lei, duas alternativas possíveis: culpado ou inocente sem possibilidade de qualquer terceira alternativa de suspeita ambígua de que seja culpado ainda que se não tenha conseguido demonstrar que praticou o crime.

O art.º 225.º do Código de Processo penal consagra expressamente hoje, como já consagrava no momento da detenção do recorrente, a responsabilização do Estado, em casos de privação de liberdade, sempre que o réu venha a ser absolvido. Não importa que tenha sido absolvido porque demonstrou que não praticou o crime, ou porque não ficou provado que o praticou, nem se exige que a decisão que determinou a prisão esteja ferida de qualquer nulidade, invalidade ou excesso. Trata-se simplesmente de o Estado, em nome da comunidade, assumir que este é o custo do compromisso entre os direitos individuais dos cidadãos, o direito fundamental à liberdade, com assento constitucional, e os imperativos sociais de protecção das vítimas, prevenção e perseguição dos criminosos, e garantia da segurança que, também no texto constitucional, vai a par da liberdade. O direito à liberdade individual, confronta-se com o direito à segurança de todos, num equilíbrio difícil de estabelecer e que não deixará de ter alguns “danos colaterais” como aqui ocorre.

Assim não é legitima qualquer dúvida sobre a qualidade da inocência de um réu quando, em processo-crime, não foi provada a sua culpa.

Inquestionável, pois, do ponto de vista do direito constitucional e infra constitucional que assiste ao recorrente o direito a ser indemnizado pelos danos não patrimoniais que sofreu com a privação de liberdade a que se seguiu a sua absolvição, como também entenderam as instâncias, ainda que possa fazer-se de algumas considerações ali tecidas uma interpretação pelo menos aparentemente mais restritiva.

A medida de tal indemnização, decorre do disposto no art.º 496.º do código civil a fixar em termos equitativos tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494.º, a saber: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

Como referimos anteriormente, no processo-crime não se localiza qualquer cumprimento defeituoso ou ilegal dos trâmites processuais, encontrando-se as decisões proferidas a respeito da aplicação da medida de coacção – prisão preventiva – correctas, devidamente fundamentadas e em consonância com os preceitos legais aplicáveis. Não há, pois, a ter em conta qualquer atitude menos correcta por parte do funcionamento do sistema de justiça.

Sobre a situação económica do lesado sabemos que é modesta de uma pessoa que não exerce profissão por conta própria e realiza apenas alguns trabalhos agrícolas esporádicos, quando alguém o chama, recebendo nestes casos, quando trabalha o dia todo 40,00€ por dia, que viva numa casa com grande probabilidade pequena e modesta, tendo em conta a renda mensal de 175,00€ que pagava pelo seu arrendamento.

As circunstâncias que assumem alguma relevância neste caso reportam-se ao meio social a que pertence, pobre, com alguma desestruturação, com a filha entregue aos cuidados da mãe, institucionalizada e, depois a viver consigo e que o acusou de um crime grave que, depois, não quis esclarecer, permitindo antever um relacionamento interpessoal difícil.

A privação da liberdade durou 325 durante os quais esteve afastado do convívio em situação de liberdade com a sua filha mais velha e neta, com quem tem um relacionamento próximo, o tempo todo, mas também no Natal e na Páscoa. Não se provou que tenha no meio prisional sofrido particulares agruras, desentendimentos ou perigo provocado por outros reclusos sem que essa ausência de demonstração dos factos a este propósito alegados sejam indício seguro de que a sua vida ali decorreu com a normalidade, dentro do contexto anormal de privação de liberdade.

Sendo a liberdade um valor humano absoluto, a compensação a atribuir à privação da liberdade que veio a demonstrar-se indevida há-de permitir ao lesado obter bens, serviços ou tranquilidade quanto ao seu futuro que possam atenuar as consequências do dano sofrido. Se compararmos os valores que têm vindo a ser fixados pela Jurisprudência pela privação do direito à vida a pessoas de faixa etária similares às do recorrente que oscilam entre 90 000,00€ e 120 000,00€  de que são exemplo as decisões proferidas nos processos 3710/18.2T8FAR.E1 e 33/12.4GTSTB.E1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt, respectivamente, poderemos divisar uma ordem de grandeza do que seria a privação de quase um ano de vida em liberdade, sendo certo que a privação da liberdade e a possibilidade que teve de retomar, no fim dela, a sua vida, mesmo que com incómodos e inconvenientes que perdurarão no tempo, não aconselham uma equiparação directa, permitindo, embora concluir que o valor fixado pelo tribunal recorrido se afigura insuficiente para a reparação do dano sofrido pelo autor. Ponderados os elementos antes indicados consideramos ajustado o valor de 15 000,00€ que supera em 50% o definido pelo tribunal recorrido. Tal montante de cariz iminentemente compensatório permite que o recorrente obtenha num só momento um montante monetário que a sua capacidade e motivação para o trabalho, com grande probabilidade, nunca alcançariam na vida, podendo fazer dele o aproveitamento que entender assim obtendo aquilo que doutro modo não alcançaria, ou satisfazer com mais amplitude as suas necessidades pessoais.

Procede, pois, parcialmente a revista.

III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em conceder parcialmente a revista, revogar parcialmente o acórdão recorrido, fixar em 15 000,00€ o valor da indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo recorrente com a privação de liberdade, confirmando no mais o acórdão recorrido.

Custas por ambas as partes, em todas as instâncias, na proporção do respectivo decaimento.

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Lisboa, 02 de Fevereiro de 2023

Ana Paula Lobo (relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria da Graça Trigo