Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4667/20.5T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: RECURSO DE REVISTA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DUPLA CONFORME
ÓNUS DO RECORRENTE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I – Tendo a revista por fundamento o (não) uso do poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ.

II - A exigência legal imposta ao recorrente de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação”, indicando “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, traduz-se na necessidade de se assinalar as passagens relevantes do depoimento, pelo que não se satisfaz com o consignar o início e o termo de cada depoimento considerado relevante para a alteração da matéria de facto visada.

IV – Não cumpre o ónus de especificação previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, o recorrente que se limita a consignar a hora do início e do termo de cada depoimento, indicando uma súmula de excertos do teor de tais depoimentos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. AA (1ª Autora), por si e na qualidade de herdeira e cabeça de casal na herança aberta por óbito de seu marido BB, CC (2.ª Autora), DD (3.ª Autor) e EE (4º Autor), estes, na qualidade de herdeiros na herança aberta por óbito de seu pai, intentaram (em 22.11.2020) acção declarativa comum contra Banco Comercial Português, SA (Millennium BCP), pedindo que seja declarada a inexistência de qualquer direito de crédito (ou qualquer outro) do Banco Réu sobre os Autores, por se ter verificado o termo do contrato de mútuo n.º ...63, em 05.3.2020, estando o mesmo integralmente cumprido e pago.

Alegaram essencialmente:

- ter a 1ª Autora e o seu falecido marido celebrado, através de escritura pública outorgada em 29.07.1998, com o então Banco M..., SA., contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual este lhes concedeu um empréstimo no montante de 20 000 000$00 (€ 99 759,67), destinado a compromissos dos mutuários, pelo prazo de 20 anos, amortizado em 240 prestações mensais, de capital e juros;

- terem os mutuários renegociado os termos do referido contrato através da celebração de contrato de cessão de créditos, em 28.12.2004, onde foi estipulado um alargamento do prazo para pagamento, fixando-se o termo do prazo contratual em 05.3.2020;

- terem os mutuários, desde a celebração do primeiro desses aditamentos, procedido ao pagamento das prestações a que estavam adstritos;

- terem os Autores sido confrontados com um extracto bancário, datado de 28.02.2019, no qual se refere que o capital alegadamente em dívida referente ao contrato de mútuo ascenderia nesse momento a € 47 894,73, sendo certo de que s encontravam convictos de que o contrato em questão terminaria em Março de 2020;

- não ter o Banco procedido ao esclarecimento dos Autores não obstante os reiterados pedidos de informação, limitando-se a disponibilizar, em resposta, um suposto plano de amortização do crédito, que não reflecte o acordo plasmado nos mencionados aditamentos, aludindo que o prazo de amortização do crédito teria passado de 260 meses para 380 meses.

2. O Réu contestou defendendo a manutenção do que foi efectivamente acordado com os Autores quando da reestruturação da dívida – 380 prestações mensais da dívida com vencimento da última em Março de 2030. Alegou, nesse sentido, ocorrer divergência entre o acordado e o declarado em consequência de erro (informático) na comunicação relativamente ao valor da dívida e ao respectivo prazo de amortização, estando em causa erro essencial, que era do conhecimento dos Autores desde 15.03.2009.

Concluindo que o facto jurídico que serve de fundamento à acção não conduz à extinção do mútuo, mas tão só à respectiva rectificação, defende a improcedência da acção e a procedência da reconvenção (rectificação do contrato de mútuo em conformidade).

3. Na réplica os Autores invocaram a caducidade do eventual direito da Ré de arguir o vício do negócio (artigo 287.º, do Código Civil), concluindo nos termos da petição.

4. Foi proferido despacho saneador que admitiu o pedido reconvencional, definiu o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

5. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (27.09.2023), que julgou a acção procedente, declarando a inexistência de qualquer direito de crédito (ou qualquer outro) do Banco Réu sobre os Autores, por se haver verificado o termo do contrato de mútuo n.º 18874163, em 05.3.2020, estando o mesmo integralmente cumprido; julgou o pedido reconvencional improcedente, absolvendo os Autores em conformidade.

6. A Ré apelou impugnando a matéria de facto. O tribunal da Relação de Coimbra proferiu acórdão, que rejeitou o recurso sobre a matéria de facto e julgou a apelação improcedente.

7. A Ré vem recorrer de revista formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“1. O Recorrente não pode conformar-se com o teor do Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, pelo que vem do mesmo interpor o presente Recurso de Revista, a admitir como Revista normal, pois que nos encontramos perante uma violação das normas contidas nos art. 620.º e 662.º do CPC (cfr. al b), do n.º 1 do art. 674.º CPC).

2. Pese embora o Acórdão em crise confirme a decisão proferida em Primeira Instância, não tem aplicação “in casu” a regra geral de inadmissibilidade da Revista prevista no n.º 3, do art. 671.º, do CPC.

3. Encontramo-nos, assim, perante uma questão relativa à reapreciação da prova, enquanto poder próprio do Tribunal da Relação, sendo certo que, rejeitada aquela reapreciação, não podemos estar na presença de duas decisões uniformes (de primeira e segunda instância) sobre a mesma questão, tal como previsto no n.º 3 do art. 671.º do CPC. recorrido, como, desde logo, decorre do seu sumário, fez assentar a sua decisão na configuração da natureza processual da acção instaurada, tendo-a qualificado como acção de simples apreciação negativa e, por tal facto, concluiu que era ao Réu, e não ao Autor que competia fazer a prova dos factos constitutivos do direito.

5. Ora, a sentença de primeira instância não se debruçou sobre esta matéria (verificando-se, assim, um excesso de pronúncia que vai para além dos fundamentos que nortearam a decisão de primeira instância), sendo certo que a acção objecto dos presentes autos, e salvo melhor opinião, não poderia assim ser qualificada, porquanto, em acções de simples apreciação negativa não é admissível a reconvenção (a qual foi admitida nos presentes autos).

6. E também por esta razão, não poderemos estar perante uma “dupla conforme”, pois não foi a presente acção assim qualificada em primeira instância, devendo, também, com este fundamento, ser admitida a presente revista nos termos do normativo citado.

7. O Recorrente não concorda com a rejeição do recurso de apelação, nos termos prolatados, centrando-se a questão a apreciar por este Venerando Tribunal em saber se, no recurso apresentado, cumpriu o Recorrente, ou não, os ónus impugnativos constantes constante do art. 640.º do CPC, e, consequentemente, se deveria ou não ter sido rejeitado o recurso interposto, no que concerne à solicitada reapreciação da matéria de facto (matéria esta que apenas foi aferida pela Relação, não tendo sido objecto de decisão pelo então Tribunal Recorrido).

8. O douto Tribunal “a quo” errou na apreciação e valorização que fez da prova testemunhal, incorrendo em erro de julgamento quanto à matéria de facto.

9. Da prova testemunhal produzida em primeira instância e das declarações de parte da Ré, resultaram como provados factos que, não só não poderiam ter determinado a condenação do Banco Réu na acção contra si instaurada, mas que determinavam precisamente o inverso, ou seja, a absolvição do Banco quanto ao pedido(s) contra este formulado(s) – o que se invocou em sede de Apelação.

10. O Tribunal “a quo” rejeitou o recurso interposto onde se requereu a reapreciação da matéria de facto, por considerar que o Banco não cumpriu os ónus impugnativos estabelecidos no art. 640.º do CPC (como referiu, verificou-se “ostensivo desrespeito das exigências claramente estabelecidas na Lei sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, na medida em que o recorrente aparenta discordar do decidido, mas não indica as passagens da gravação em funda o seu recurso”)

11. A verdade é que cumpriu o Banco Recorrente todos os requisitos legalmente impostos pelo normativo em apreço, e do qual resultam (no entendimento de alguma Doutrina e Jurisprudência sobre a matéria) dois tipos de ónus: um ónus, dito primário, e correspondente às alíneas a), b) e c) do n.º 1; e um ónus dito secundário, a que correspondem as al. a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito.

12. O Recorrente indicou nas suas alegações e, também, nas conclusões oferecidas os concretos factos que considerou incorrectamente julgados, em cumprimento do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.

13. O Recorrente indicou nas suas alegações e, inclusivamente, nas conclusões oferecidas os concretos meios probatórios constantes das gravações que impunham decisão diversa da recorrida, como impõe a al. b) do citado normativo, referindo expressamente os concretos meios probatórios, constantes das gravações que, relativamente aos factos constantes da sentença recorrida correspondentes aos n.ºs 10, 14, 15, 25 e 39, impunham decisão diversa da recorrida: ou seja, que tais factos fossem dados como não provados.

14. Relativamente aos três factos que foram considerados como não provados na sentença recorrida, indicou o recorrente os concretos meios probatórios, constantes das gravações, designadamente os depoimentos descritos e identificados e cujos excertos/resumos o recorrente reproduziu, que impunham decisão diversa da recorrida: ou seja, que tais factos fossem dados como provados.

15. Em cumprimento do disposto na al. c) do n.º 1, do referido art. 640.º, do CPC, indicou o recorrente nas alegações e, nomeadamente, nas conclusões oferecidas, fundamentadamente, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as concretas questões de facto impugnadas, aí fazendo constar que:

- os factos constantes da sentença recorrida correspondentes aos n.ºs 10, 14, 15, 25 e 39, deveriam ser dados como não provados;

- os três factos que foram considerados como não provados na sentença recorrida, deveriam ser dados como provados.

16. No que concerne ao dito ónus primário, explicitou o Banco, de modo claro, inequívoco e absolutamente fundamentado, as razões pelas quais considerava que determinados factos deveriam ter sido dados como provados, e fê-lo de forma sistematizada, transcrevendo as declarações prestadas, isto é, indicado os meios de prova em que sustentava a invocada incorrecção do julgamento efectuado, e concluindo sobre qual deveria ser o sentido (a alteração) da decisão sobre a matéria de facto.

17. O Recorrente cumpriu também, escrupulosamente, o dito ónus secundário (as imposições previstas no n.º 2 do art. 640.º do CPC), indicando com exactidão as passagens da gravação em fundou o seu recurso, e transcrevendo os excertos dos depoimentos que considerava mais relevantes, indicando os meios de prova em que baseava a sua pretensão, identificando as passagens de gravação que considerava como importantes, em cumprimento do disposto nas als. a) e b) do n.º 2 daquele preceito.

18. O Banco Recorrente, nas alegações e conclusões formuladas, cumpriu todos os requisitos previstos na lei, de modo a que fosse reapreciada a matéria de facto, indicando, com precisão, os depoimentos e concretas passagens onde alicerçava a sua discordância com a decisão sobre a matéria de facto, razão pela qual não deveria o Tribunal Recorrido rejeitado o recurso interposto, antes devendo apreciá-lo, ouvindo a prova indicada pelo Banco, analisando-a e reapreciando-a, nos termos requeridos.

19. O Acórdão posto em crise parte de uma premissa errada, a de que o Recorrente “não indicou as passagens da gravação onde funda o seu recurso”, quando a verdade é que, no recurso apresentado, se encontram explicitadas, de forma clara, as passagens da gravação em que assenta cada argumento do Recorrente.

20. Sem prescindir, certo é ainda que, neste caso concreto, estão em causa os breves depoimentos de duas testemunhas indicadas pelo Banco e o depoimento da Autora (sendo a duração dos mesmos de: 21 minutos para a testemunha FF, 15 minutos para a testemunha GG, e 8 minutos para a Autora), não podendo compreender-se, rectius aceitar-se, que o Tribunal alegue que não pode localizar algum excerto dos mesmos (se alguma dúvida tivesse, até pela brevidade dos depoimentos e pela sua alegada [em sede de alegações de recurso] relevância, poderia tê-los ouvido na sua totalidade, como, aliás, decorre do disposto da al. b) do n.º 2 do art. 640.º do CPC.

21. Sem conceder, ainda que pudéssemos admitir que as alegações não cumpriram, com absoluto rigor, todos os requisitos formais, previstos no art. 640.º do CPC, nem assim deveria o douto Tribunal Recorrido ter rejeitado o recurso interposto, impondo-se uma decisão distinta, em cumprimento dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, e da prevalência do mérito e substância sobre a forma, subjacentes à actual filosofia que perpassa todo o CPC, expressamente consagrada nos arts. 6.º e 7.º deste diploma, tudo em prol da descoberta da verdade material e da realização da Justiça (que, “in casu” saíram prejudicadas).

22. Como bem tem entendido a Jurisprudência firmada deste Venerando Tribunal, “quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens de gravação de depoimentos a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 640.º, tal sanção (a rejeição) deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificado nos casos em que essa omissão ou inexactidão dificultem, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame por banda do Tribunal de Recurso” e, não existindo tal dificuldade, ainda que a indicação do Recorrente “não seja totalmente exacta e precisa, não se justifica a rejeição do recurso” (cf. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, proferido no âmbito do processo 383/16.6T8CBR.C.1S2).

23. “É necessário que a verificação do cumprimento do cumprimento do ónus regulado no art. 640.º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material, por força a não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no mesmo artigo, havendo, por isso, que extrair do texto legal soluções conformes a estes princípios.” (cf. Acórdão do STJ datado de 20/04/2016 – Processo 1006/12.2TBPRD.p1.S1).

24. O douto Acórdão recorrido, ao proceder à rejeição da reapreciação da matéria de facto, violou o disposto nos arts. 640.º, e 662.º, n.º 1, todos do CPC, pelo que deve ser revogado, ordenando-se a “baixa” do processo ao Tribunal da Relação, para que este tome conhecimento da impugnação do Recorrente, no que à matéria de facto diz respeito, seguindo o disposto no art. 662.º do CPC.

8. Em contra-alegações os Recorridos defendem a inadmissibilidade da revista e formulam as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1.ª O douto acórdão recorrido confirmou integralmente a também douta decisão proferida em primeira instância (sem qualquer voto de vencido e/ou fundamentação diversa). Pelo que,

2ª.- Nos termos do disposto no nº 3 do art.º 671º do C.P.C. (não se verificando – nem tão pouco tal foi alegado pelo recorrente – qualquer das hipóteses previstas no art.º 672º e que, dessa forma, pudessem justificar a admissão de revista excepcional), é manifesta a inadmissibilidade legal do recurso interposto, por absoluta ausência de fundamento que o possa sustentar, devendo o mesmo ser liminarmente rejeitado, por incidir sobre decisão que não comporta revista.

3ª.- Para a hipótese de assim se não entender, sempre se dirá que nenhuma razão assiste ao réu recorrente, uma vez que o douto Tribunal a quo – a par e na sequência da decisão proferida em primeira instância – procedeu a uma irrepreensível interpretação e aplicação da lei. Pelo que,

4ª.- Sempre com o respeito devido, ainda que o presente recurso viesse a ser admitido – o que se rejeita liminarmente –, o mesmo é absolutamente desprovido de qualquer sentido ou fundamento fáctico-legal. Com efeito,

5ª.- No que concerne à primeira questão que o réu recorrente pretende suscitar, usar a qualificação processual da acção (de simples apreciação negativa) para tentar obter um pretenso fundamento para o recurso sempre configuraria um claro e ostensivo abuso de direito, na modalidade de um condenável venire contra factum proprium, devendo ser desconsiderado e energicamente censurado pelo Tribunal.

6ª.- Analisando os termos (e cronologia) da acção, é manifesto que em momento algum o réu recorrente se insurgiu, opôs ou tão pouco questionou a natureza processual da acção, nos exactos termos em que foi configurada pelos autores recorridos e expressamente aceite e sedimentada pelo Tribunal e também pelo réu recorrente. Aliás,

7ª.- Se houve alguém que questionou a admissibilidade da reconvenção deduzida, esse alguém foram – apenas e só – os autores recorridos (parecendo até, sempre com o respeito devido, pretender agora o réu recorrente aproveitar-se da questão suscitada pelos autores recorridos, no decurso da acção; além do mais, se a aludida reconvenção foi admitida pelo Tribunal, tal circunstância poderia aproveitar, apenas e só, ao réu recorrente). Acresce que,

8ª.- Proferida douta sentença em primeira instância, julgando “totalm ente procedente a presente ação e totalmente improcedente, o pedido reconvencional” (sic), também aqui nenhuma questão foi suscitada a este respeito pelo réu recorrente, em sede de recurso (ou qualquer outra), pelo quanto a este trecho e segmento decisório (ou seja, atinente ao pedido reconvencional), ter-se-ia formado desde logo caso julgado.

9ª.- O mesmo se passando muito antes, quanto à natureza processual da acção – repete-se, a qual não foi questionada fosse por quem fosse, em momento algum – seja em sede de contestação, de reacção ao despacho saneador, de recurso à decisão proferida em primeira instância, ou em qualquer outro momento.

10ª.- Tentar agora fazer-se valer da espécie da acção, além de não fazer sentido algum, sempre constituiria um ostensivo abuso de direito, na aludida modalidade de venire contra factum proprium, pois o réu recorrente estaria deliberadamente a tentar aproveitar-se de uma posição que expressamente assumiu e aceitou.

11ª.- Não se verifica, como tal, qualquer excesso de pronúncia do douto acórdão recorrido. Além de que,

12ª.- A ‘questão’ que o recorrente pretende agora suscitar jamais poderia configurar um pretenso fundamento para qualquer recurso – ao invés, sempre ressalvado o devido respeito, o réu recorrente pretende agora justificar o injustificável, sustentar o insustentável, apelar ao inapelável. Como tal,

13ª.- Por manifestamente destituída de sentido e/ou fundamento, terá de ser desatendida tal alegação.

14ª.- É igualmente manifesto que o recorrente, ao contrário do que dispõe o art.º 640º do C.P.C., incumpriu ostensivamente o ónus que sobre si impendia, quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Pois,

15ª.- Como bem se salienta no acórdão recorrido, o certo é que o recorrente, apesar de identificar os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, bem como os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imporiam (no seu entendimento) decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, não indicou as passagens da gravação em que deveria sustentar o seu recurso (limitando-se a indicar o início e fim de cada um dos depoimentos) – como se lhe impunha, por força da al. a) do nº 2 do art.º 640º do C.P.C. (dando-se por integralmente reproduzido, com a devida vénia, o que se faz consignar a este respeito no douto acórdão recorrido, extensamente transcrito na motivação supra).

16ª.- Bem andou o Tribunal a quo, ao rejeitar o recurso nesta parte, nos termos do disposto no aludido normativo legal, pelo que nenhuma censura ou crítica pode ser apontada ao douto acórdão, também no que concerne a este particular.

17ª.- O Tribunal a quo procedeu a uma irrepreensível e exímia aplicação da Lei, alicerçada numa sólida fundamentação de direito, demonstrando, de forma perfeitamente inteligível e sustentada, o iter cognitivo que levou à decisão, não merecendo nenhuma censura ou reparo o douto acórdão recorrido. Posto isto,

18ª.- Deverá, desde logo, ser rejeitado o recurso interposto, por processualmente inadmissível, nos termos preditos.

19ª.- À cautela, na hipótese de assim se não entender (o que, repete-se, apenas se cogita por hipótese académica) e ser admitido e apreciado o recurso, deverá o mesmo improceder, pelas razões expostas e com as legais consequências daí advenientes.”.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações e em face do posicionamento assumido pelos Recorridos, impõe-se conhecer as seguintes questões:

Questão prévia: (in)admissibilidade da revista

Violação do dever de reapreciação da matéria de facto

1. Os factos

1.1 As instâncias deram como provada a seguinte factualidade:

1) O marido da 1ª A. e pai dos 2º a 4º Autores, BB, faleceu no dia ....02.2020.

2) O Réu incorporou, por fusão, o “Banco M..., SA.”, fusão registada na Conservatória do Registo Comercial ..., assumindo a posição contratual de mutuante naquele contrato

3) Através de escritura pública outorgada em 29.07.1998, a 1ª A., e o seu falecido marido BB contraíram mútuo com hipoteca e mandato junto do então “Banco M..., SA..”, mediante o qual este lhes concedeu um empréstimo no montante de vinte milhões de escudos (€ 99 759,67), destinado a compromissos anteriores dos mutuários, a qual foi entregue nessa data pelo Banco.

4) Nos termos convencionados, o empréstimo regular-se-ia pelas disposições legais aplicáveis, bem como pelas condições constantes do Documento Complementar anexo, tendo o mesmo sido concedido pelo prazo de 20 anos, devendo assim ser amortizado em 240 prestações mensais, de capital e juros (cláusula Quarta do referido Documento Complementar).

5) Os mutuários renegociaram com o Banco Réu os termos do empréstimo, nos seguintes moldes:

a) Celebração de contrato de cessão de créditos com o Réu, em 28.12.2004, no montante global de € 23 943,75, tendo sido utilizado o montante de € 7 609,49 para liquidação parcial dos créditos MLS ...43 e MLS ...63;

b) Celebração de dois aditamentos à Escritura Pública/Contrato de Mútuo com Hipoteca de 29.07.1998, um datado de 05.03.2005 e o outro de 14.03.2007, tendo-se estipulado entre as partes um alargamento do prazo para pagamento em 19 meses adicionais e fixando-se, como tal, o termo do prazo contratual em 05.03.2020, não tendo tal previsão sido objecto de modificação no segundo aditamento (apenas se incluindo a previsão de uma carência de pagamento de capital, a qual apenas se ateve ao mês de Abril de 2007, uma vez que a partir de Maio de 2007 os pagamentos foram retomados, de acordo com o plano de amortização ocorrido que o Réu facultou aos Autores.

6) Quanto ao contrato com o n.º ...43 encontra-se finalizado.

7) Embora os mutuários, desde a celebração do primeiro desses aditamentos, tenham procedido ao pagamento assíduo e escrupuloso das prestações a que estavam adstritos, a partir da data aprazada (05.04.2005), sem qualquer incumprimento, foram confrontados com um extracto bancário (datado de 28.02.2019), no qual se refere que o capital alegadamente em dívida ascenderia nesse momento a € 47 894,73.

8) Perante tal informação, os mutuários procuraram, por si e através do seu mandatário, esclarecer esta situação junto dos serviços do Réu, convictos de que, de acordo com o que haviam convencionado com o Banco Réu e nos precisos termos dos aditamentos por si celebrados, o mútuo em questão terminaria em Março de 2020, nada mais havendo a pagar a partir dessa data.

9) O falecido marido da 1ª A. cancelou o seguro de vida associado ao mesmo.

10) Apesar de reiterados pedidos de informação e de longa espera, após as suas interpelações para obtenção de informação, inicialmente, a 1ª A. e o seu falecido marido e, posteriormente, todos os Autores, o Réu disponibilizou um “plano de amortização do crédito”, aludindo-se em tal missiva que o prazo de amortização do crédito teria passado de 260 meses (nos termos dos aditamentos anexos) para 380 meses, não prestando qualquer outra informação.

11) A 1ª interpelação levada a cabo pelo mandatário dos Autores data de Março de 2019.

12) O Plano apresentado pelo Réu, aludido em 10), não reflecte o acordo plasmado nos aditamentos outorgados válida e eficazmente entre os mutuários e o Réu.

13) Os Autores deram conhecimento deste problema ao Banco de Portugal, solicitando a sua intervenção enquanto entidade reguladora da actividade bancária.

14) Apesar dos reiterados pedidos para que o Banco Réu comprovasse, por qualquer meio, o seu pretenso direito, aquele não demonstrou junto dos Autores qual a razão de ser para o direito que invocava, recusando-se a apresentar qualquer suporte documental ou fundamento bastante, comprovativo de que o prazo de reembolso do empréstimo foi alterado por acordo para 380 meses, em detrimento dos 259 meses.

15) Os Autores e o falecido BB nunca se pretenderam eximir às suas responsabilidades e compromissos.

16) O Réu BCP assumiu perante os Autores que terá havido um “manifesto lapso” dos seus serviços informáticos, os quais “carregaram” o empréstimo em sistema como correspondendo a um prazo de amortização prestacional de 380 meses e não de 260 meses, como acordado entre as partes.

17) As partes convencionaram a alteração do prazo de 241 para 260 meses e fixaram o termo do prazo contratual no dia 05.3.2020.

18) O Réu teve conhecimento, em Setembro de 2008, na sequência da reclamação da 1ª A., e seu falecido marido BB, do suposto “lapso informático”.

19) O valor em dívida, relativamente ao contrato n.º ...63, em 28.12.2004 era de € 86 319,34, o valor em dívida em 05.03.2005 era de € 84 817,06 e o valor em dívida a 14.03.2007 era de € 83 662,61.

20) Em 03.02.2020 o Réu comunicou aos Autores que, a 05.04.2007, estava em dívida o montante de € 85 272,29.

21) Ainda que correspondesse à vontade do Réu a amortização do empréstimo em 380 meses, a 1ª A. e o falecido marido não aceitariam tal hipótese.

22) A 1ª A. e o falecido marido aceitaram a alteração do prazo inicialmente fixado, na medida correspondente ao período de tempo em que não conseguiram pagar a prestação a que estavam adstritos e nos termos acordados por escrito.

23) A 1ª A. e o falecido marido acordaram com o Réu uma cessão de créditos, para cumprimento das suas obrigações, nos termos contratualizados por escrito.

24) Os AA., no total e até à data da última prestação contratualizada (05.03.2020) suportariam, na hipotética execução do denominado “Plano Amortização Contratado do Empréstimo n.º ...63” apresentado pelo Réu, a quantia de € 20 917,07, a título de juros, tendo suportado, cumprindo o denominado “Plano Amortização Ocorrido do Empréstimo n.º ...63”, a quantia de € 26 060,01.

25) Foi a consulta do conteúdo dos extractos bancários que motivou a primeira reclamação da 1ª A. e falecido marido em 15.09.2008, não tendo havido um único esclarecimento ou resposta do Réu até Fevereiro de 2020.

26) A 1ª A. apenas tem permitido que a prestação lhe continue a ser descontada da sua conta bancária, por débito directo, com receio de que lhe seja instaurada uma acção executiva e lhe seja penhorada a sua casa de morada de família.

27) Tais pagamentos, efectuados desde 05.04.2020 não estão ao abrigo de nenhum contrato celebrado entre a 1ª A. e o Réu Banco.

28) Por Escritura Pública denominada de “Mútuo com Hipoteca e Mandato” celebrada em 29.07.1998, a 1ª A. e o falecido marido confessam-se devedores da quantia mutuada de 20 000 000$00 (que corresponde a € 99 759,58).

29) Por via da referida Escritura Pública, foi convencionado, na cláusula 4ª do Documento Complementar, que o reembolso do empréstimo seria efectuado, no prazo de 20 anos, correspondente a 240 prestações mensais, constantes e sucessivas.

30) Posteriormente, o empréstimo foi renegociado, com vista a permitir o regular cumprimento, por parte dos mutuários, das obrigações que haviam sido assumidas perante o Banco, culminando com a outorga dos correspondentes aditamentos.

31) Através do primeiro aditamento celebrado entre os mutuários e o Banco Réu, houve lugar à reformulação do plano prestacional que havia sido convencionado, com a correspondente alteração do prazo de amortização e, por consequência, do número de prestações do empréstimo.

32) A 1ª A. e o falecido marido declararam, à data da celebração do referido aditamento (05.03.2005), o valor em dívida de € 84 817,06, tendo o prazo contratado sido alterado para 260 meses, mantendo-se inteiramente válidas e subsistentes todas as demais condições fixadas na Escritura Pública celebrado com o Banco Réu.

33) Através da outorga do segundo aditamento (de 14.o3.2007), foi restabelecido o “cumprimento do plano de reembolso do empréstimo, a partir da prestação com vencimento 05/03/2007, com capitalização do capital vencimento e inclusão de uma carência de pagamento de capital”, tendo sido fixado, em sede do primeiro aditamento, o termo do prazo contratual para 05.03.2020.

34) Verificado o “desacerto” do prazo acordado com os mutuários, o Banco promoveu a regularização da situação, com a possibilidade de continuação do serviço de dívida, cuja liquidação teria lugar em Março de 2030.

35) Na sequência do lapso dos serviços informáticos do Banco, “carregaram” o empréstimo em sistema como correspondendo a um prazo de amortização prestacional de 380 meses e não de 260 meses, o que originou que cada uma das prestações fossem calculadas sobre o mesmo capital em dívida e à taxa de juro remuneratória, mas por um período de 380 meses, resultando numa prestação inferior aquela que deveria ter sido liquidada pelos mutuários calculado o prazo de 260 meses.

36) O empréstimo foi fraccionado ou parcelado, por parte do Banco Réu, num número fixado de 380 prestações mensais, originando uma prestação unitária e global (de capital e juros) significativamente inferior aquela que os mutuários deveriam ter liquidado, no pressuposto de que o empréstimo atingiria o seu “términus” em Março de 2020.

37) O Banco Réu ensaiou o plano prestacional que deveria ter sido praticado no empréstimo dos autos, calculando, em termos de quotas de amortização de capital pagáveis com juros, o valor médio mensal da prestação em € 650, com reporte a Março de 2007 e a liquidar em 155 prestações (“términus” em 25/03/2020).

38) A 1ª A. tem vindo a liquidar uma prestação média mensal de cerca de € 400.

39) Os AA. continuam a proceder ao pagamento das prestações do empréstimo aqui em apreço, não obstante o conhecimento efectivo que têm do sucedido.

40) À data de 05.03.2020, encontrava-se por pagar o valor de € 43 534,95, correspondente a capital referente ao contrato de mútuo n.º ...63.

41) No período compreendido entre 05.03.2020 e 11.08.2022, os Autores entregaram ao Réu, a título de pagamentos efectuados por força do contrato de mútuo n.º ...63 o montante de € 10 367,98, a título de “capital” e o valor de € 1 221,86, a título de juros.

42) Desde o dia 31.8.2022 até … os Autores entregaram ao R. o valor adicional de € 2 411,69.

43) Por carta datada de 03.02.2020, do Banco Réu (resposta): “Reportamo-nos à exposição de V. Exas., apresentada pelo Senhor Dr. HH em Vossa representação, cujo conteúdo mereceu a nossa melhor atenção. Conforme já é do vosso conhecimento, o serviço de dívida do empréstimo hipotecário n.º ...63 observou um prazo de amortização de 380 meses, quando bem seria de 260 meses. Esta situação permitiu o pagamento de prestações de valor mais reduzido do que aquelas que teria pago, caso o financiamento tivesse observado o prazo contratado. Sem prejuízo de qualquer outra solução que pretendam ver analisada, deixamos novamente à vossa consideração uma das duas soluções abaixo: i) A liquidação do diferencial apurado entre os valores pagos e o que deveria ter pago, com a consequente liquidação do empréstimo. Esta solução implica que na data do vencimento da prestação de março 2020 seja efetuado o pagamento no valor de 38 391,94 euros. ii) Permitir a continuação do serviço de dívida atual, o que implicaria a sua liquidação em março de 2030. Em anexo remetemos os planos de amortização (contratado e ocorrido). Sem outro assunto de momento, apresentamos os nossos melhores cumprimentos.”.

1.2 Foi considerada pelas instâncias a seguinte matéria de facto não provada:

a) Foram cumpridos, por parte do Banco, todos os deveres de informação/esclarecimento necessários para que fosse possível a compreensão, por parte dos mutuários, da situação, bem assim, a sua resolução quanto ao erro informático e contrato de mútuo.

b) Quanto ao aditamento celebrado entre as partes em 05.03.2005, exista uma clara divergência entre o pretendido e o contratado pelo Banco.

c) “Essencialidade da declaração” que era conhecida pelos Autores (no caso e à data pela 1ª A e o seu falecido marido) ou, pelo menos, não poderiam os AA. e o falecido marido da 1ª A. ignorar tal circunstância.

2. O direito

2.1. Questão prévia - Da admissibilidade da revista normal

De acordo com as conclusões da revista, a Recorrente visa, além do mais, sindicar a decisão do tribunal da Relação que não conheceu do recurso da matéria de facto, que a mesma quis impugnar no recurso de apelação que interpôs.

Consideram, porém, os Recorridos que, no caso, a pretendida revista “normal” se mostra inadmissível por se verificar uma situação de dupla conformidade de julgados.

Carecem de razão.

Com efeito, não obstante verificar-se uma situação de dupla conforme no que se reporta ao mérito da causa (o acórdão da Relação confirmou a sentença da 1ª instância com idêntica fundamentação e sem voto de vencido), tal não ocorre relativamente a uma questão objecto da revista - legalidade da recusa por parte do Tribunal da Relação em reapreciar a prova – porquanto o poder da Relação relativamente ao conhecimento da matéria de facto fixada pela 1ª instância assenta em normas específicas que são privativas de uma 2ª instância nesse âmbito; nessa medida, como tal, inaplicáveis à 1ª instância, ou seja, nos casos em que o fundamento da revista se dirige à rejeição do recurso sobre a matéria de facto decidida pelo tribunal da Relação, a censura tem por subjacente uma ilegalidade cometida ex novo no tribunal da Relação, não se podendo formar, por natureza, uma dupla conformidade decisória.1.

Estando, pois, em causa na revista o (não) uso do poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ.

Acresce que constitui entendimento pacífico deste Tribunal considerar que assume cabimento em sede de revista sindicar a recusa da Relação em conhecer do recurso da matéria de facto com fundamento no incumprimento de ónus processual previsto no artigo 640.º, do CPC, por se tratar de uma situação de violação da lei processual reconduzida à questão da legalidade da interpretação feita pelo tribunal da Relação quanto ao poder/dever que a lei lhe confere para reapreciar a prova gravada2.

Mostra-se, por isso, admissível o recurso de revista normal.

2.2 Da violação do dever de reapreciação da matéria de facto

O tribunal recorrido rejeitou na apelação o conhecimento do recurso relativo à impugnação da matéria de facto tendo por fundamento o incumprimento pela Apelante do ónus de alegação previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, ou seja, indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida.

Considerou o acórdão que a Recorrente “não menciona, na “fundamentação/corpo” da alegação de recurso ou nas respetivas “conclusões” (entendendo-se que seria suficiente a indicação/concretização na respetiva fundamentação), quaisquer passagens da gravação tidas como relevantes para a pretendida modificação da decisão sobre a matéria de facto, limitando-se a remeter para o tempo integral das declarações e dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento [e a emitir o seu juízo conclusivo sobre o teor dos mesmos e/ou a indicar o que diz ser o respetivo “resumo” das “partes mais relevantes”/cf. fls. 206 verso], sendo que, e tratando-se de um procedimento facultativo, também não indica os excertos de tais depoimentos a relevar (…) ante o descrito regime jurídico, verifica-se, pois, ostensivo desrespeito das exigências claramente estabelecidas na lei sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, na medida em que o recorrente aparenta discordar do decidido, mas não indica “as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”.

Foi ainda entendido pelo tribunal a quo, no que respeita à realização de outras diligências de prova a serem levadas a cabo, oficiosamente, pela Relação para dissipar dúvidas quanto à matéria de facto:

- “Acresce que se o Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-las com a realização de outras diligências de prova [devendo ordená-las oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes-deveres conferidos pelos art.ºs 6º, 411º, 607º, n.º 1, 2ª parte, e 662º, n.º 2, alíneas a) e b)], verifica-se, contudo, por um lado, que não se explicita quais as diligências necessárias com vista a alcançar a verdade material, no âmbito do poder-dever de direção do processo, e, por outro lado, que decorre dos meios de prova produzidos nos autos e em audiência de julgamento a impossibilidade de obter outros e novos elementos suscetíveis de conduzir a uma diferente configuração da realidade, pelo que a dúvida porventura subsistente cai no campo de aplicação do preceituado no art.º 414º (que reza o seguinte: a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita).

De resto, cremos, eventuais incongruências que possamos divisar - principalmente, e aparentemente, derivadas do que, provindo da contestação, ficou vertido em II. 1. 34) a 38) [e bem assim no ponto 40)], supra -, se, ainda, ou de novo, questionada a matéria da 2ª alínea dos factos não provados (cf., principalmente, “conclusões 13ª e 26ª”, ponto I., supra), não as poderíamos ver sanadas fazendo uso de qualquer dos procedimentos adjetivos atrás mencionados, quando é certo que, por exemplo, relativamente ao período de 2008/2009 a 03.02.2020, nada se deu a conhecer, nos autos, quanto a qualquer eventual informação/esclarecimento (clara, objetiva e devidamente corporizada/materializada - em documento escrito), por parte do Réu, efetivamente levada ao conhecimento da 1ª A. e seu falecido marido [cf., sobretudo, II. 1. 25) e 43), supra]”.

Defende a Recorrente ter cumprido o referido requisito legal, pelo que atribui ao acórdão recorrido uma interpretação formal desadequada e desproporcionada, desconforme ao sentido efectivo da norma.

2.3 O estatuído no artigo 662.º, do CPC, evidencia, sem margem para grandes dúvidas, a intenção do legislador de, relativamente à matéria de facto, o Tribunal da Relação produzir um novo julgamento em função da sua própria convicção, exercendo, assim, um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição da matéria de facto3.

A autonomia decisória do Tribunal da Relação no julgamento da matéria de facto mediante a reapreciação dos meios de prova constantes do processo mostra-se, porém, confinada à observância do princípio do dispositivo no que respeita à identificação da matéria objecto de discordância. Para tal efeito, impõe a lei ao recorrente o cumprimento de um conjunto de pressupostos (previstos nas alíneas a), b) c) do n.º1 do artigo 640.º do CPC) de que depende a (re)apreciação da matéria de facto, exigindo a concretização e a motivação das alterações relativamente a cada facto ou a um conjunto de factos, arredando, por isso, a admissibilidade de recursos genéricos com fundamento em erro na decisão de facto.

De acordo com o artigo 640.º, n.º1, alíneas a), b) c), do CPC, a pretensão de impugnar a matéria de facto obriga o recorrente a especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (a), os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida (b) e aludir a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (c).

O ónus tripartido que impende sobre o recorrente, assenta nos princípios da cooperação, lealdade e boa-fé processuais e tem por finalidade garantir a seriedade do recurso4.

A necessidade de preservar o uso sério do sistema de recurso da matéria de facto, impedindo o uso abusivo de instrumentos processuais com efeitos dilatórios tem de ser perspectivada sob princípios de proporcionalidade e razoabilidade, por forma a não sacrificar o direito das partes denegando a reapreciação da decisão da matéria de facto em função de um rigorismo formal que desconsidere os aspectos substanciais constantes das alegações, que não casa com o espírito do sistema neste âmbito5.

Deste modo os requisitos formais que se impõem assegurar são os relacionados com a definição clara do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido.6

Temos, pois, por adequado que o critério interpretativo na verificação das exigências legais impostas ao recorrente quanto ao recurso da matéria de facto deverá ter em conta dois aspectos orientadores que nortearam as alterações legislativas produzidas nesta matéria: impedir a impugnação generalizada da matéria de facto, delimitando-a a determinados pontos concretos, em função de concretos meios de prova; não inviabilizar, por razões meramente formais, o recurso quanto à matéria de facto que a lei quis proporcionar7.

Importa sublinhar, conforme alerta o citado acórdão de 16.01.2024 “a aplicação destes princípios gerais basilares não significa, de modo algum, que a parte que decide impugnar a matéria de facto se possa sentir desobrigada ou dispensada de cumprir, com o zelo e rigor devidos, todas e cada uma das obrigações processuais fixadas no nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, que no fundo constituem a efectiva manifestação das razões da sua discordância relativamente ao veredicto de facto proferido pela 1ª instância.”.

Assim sendo, ao invés do que parece defender a Ré, o artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC, impõe uma inequívoco dever processual ao recorrente: deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

E o n.º2, alínea a) do preceito em causa, quanto à concretização dos meios de prova, exige ao recorrente que indique com exactidão as passagens da gravação em que fundamenta o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Relativamente à caracterização deste ónus e à razão que lhe está subjacente, refere o acórdão deste Supremo de 10.12.2015 (Processo n.º 724/09.7TBAMT.P1.S1)8“a lei, cooptando o recorrente para a colaboração com o tribunal e para a autorresponsabilização, visa agilizar a intervenção da Relação na reapreciação (que é pontual, no sentido de circunscrita a certos factos e a certas provas) da matéria de facto, dispensando-a da compulsão de ter de ir à procura da concreta informação que o recorrente julga ser interessante. Deste modo, a Relação passa à avaliação da informação tida por relevante sem ter de dissipar tempo a localizá-la em todo um acervo desinteressante no mais e, por vezes, extensíssimo. A indicação com exatidão das passagens tem o seguinte significado: indicação do segmento da gravação onde está contida a informação que o recorrente entende apoiar o seu ponto de vista. Donde, a simples indicação do momento do início e do fim da gravação de um certo depoimento não cumpre só por si a exigência legal”.

Explicita ainda o acórdão deste tribunal de 26.01.2017, proferido no Processo n.º 599/15.7T8CLD.C1.S19, quanto a este dever que impende sobre o impugnante, “o que o preceito determina, é que o recorrente indique o início e o fim das passagens da gravação ou seja, as passagens do depoimento e não o início e o fim do depoimento. Se bastasse esta indicação do início e do fim do depoimento, a exigência legal careceria totalmente de fundamento, pois que a localização do início e do fim do depoimento não apresenta quaisquer dificuldades, ela consta da ata e é fornecida pelo próprio sistema de gravação. A indicação precisa do início e termo das concretas (…) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto. De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador”10.

2.4 No caso, conforme já referido, a rejeição do recurso sobre a matéria de facto pelo tribunal a quo resultou de ter sido entendido que o banco Recorrente não havia cumprido o dever ínsito na alínea b) do citado artigo 640.º do CPC, justificando para o efeito que o mesmo “não menciona, na “fundamentação/corpo” da alegação de recurso ou nas respetivas “conclusões” (entendendo-se que seria suficiente a indicação/concretização na respetiva fundamentação), quaisquer passagens da gravação tidas como relevantes para a pretendida modificação da decisão sobre a matéria de facto, limitando-se a remeter para o tempo integral das declarações e dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento [e a emitir o seu juízo conclusivo sobre o teor dos mesmos e/ou a indicar o que diz ser o respetivo “resumo” das “partes mais relevantes”/cf. fls. 206 verso], sendo que, e tratando-se de um procedimento facultativo, também não indica os excertos de tais depoimentos a relevar.”.

Não podemos deixar de concordar, porquanto tal entendimento encontra-se em consonância com o posicionamento consolidado neste tribunal relativamente à caracterização deste dever, concluindo pelo incumprimento sempre que “ (…) o recorrente que mais não faz do que mencionar, sem qualquer outra particularização ou esclarecimento, o início e o termo das horas em que se processaram os depoimentos das pessoas em que se apoia, tudo como constante (com ligeiríssima diferença) do que consta da ata da audiência.”11 .

Vejamos.

Com relevância para a questão em apreciação importa salientar o que a Recorrente fez consignar nas alegações da apelação.

A Recorrente reportou a sua discordância quanto à decisão fáctica relativamente à matéria provada sob os n.ºs 1.10, 1.14, 1.15, 1.25 e 1.39, que no seu entender, em face da prova produzida, deveria ter sido dada como não provada.

Por sua vez e segundo a Recorrente, aos três factos que na sentença foram considerados não provados caberia dar resposta positiva.

Visando tal pretensão (quanto ao factualismo dado como não provado), na indicação dos meios de prova para cumprimento do ónus previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, a Ré fez constar do corpo das alegações:

Ora, dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 15:33 h e terminus às 15:54h), II (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 16:03h e terminus às 16:18h) e JJ (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 16:19h e terminus às 16:47h), as quais mereceram a plena confiança do douto Tribunal “a quo”, resultou inequívoco que existiu uma clara divergência entre o pretendido e o contratado pelo Banco na celebração do aditamento em causa. Aliás, do depoimento de tais testemunhas resulta, ainda, claro que o mutuário originário, o falecido BB, conhecia o erro, aliás, “a divergência que constatou entre o que havia acordado com o Banco Réu quanto ao número e prestações e amortização do capital em dívida referente ao contrato de mútuo objeto dos autos”, porquanto este se havia deslocado à agência procurando mais informações por diversas vezes.

O depoimento de tais testemunhas atestaram o conhecimento da existência do erro do Banco, quer da 1.ª Autora, quer do mutuário falecido BB. De facto, a 1.ª Aurora - (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 15:24h e terminus às 15:32h refere, expressamente, nas suas declarações que o seu marido foi várias vezes ao Banco, “fazer” esclarecimentos, porque o valor da dívida não baixava… e apercebeu-se que havia ali um lapso.

A testemunha FF(gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 15:33 h e terminus às 15:54h: Referiu que, para esclarecer o Cliente, contactou a área de operações do Banco que, a qual respondeu, de imediato que já havia esclarecido o Cliente em 2009, mas que, de todo o modo, iria enviar novamente a resposta que lhe havia transmitido. Foi explicado ao mutuário de que em vez de terminar em 2020, por força do erro informático, o empréstimo terminaria em 2030, e que em vez de estar a pagar a prestação de cerca de 700 € que deveria pagar, que estava a pagar só 550€ por mês. No entanto, a partir do momento em que foi detectado o erro foi sugerido ao Cliente um de duas soluções, com duas simulações dos valores a pagar para repor a situação, sendo que o mutuário respondeu que ia ver e nunca mais disse nada. Aliás o Cliente, quando assinou o aditamento, estaria a contar pagar uma prestação de cerca de 750 €. O Cliente ficou ciente e esclarecido do erro, sem dúvida nenhuma e sabia que se continuasse a pagar a prestação de cerca de 500€ que se encontrava a pagar, quando chegasse a 2020 faltaria pagar valor ao Banco. O Cliente depositava apenas mensalmente o suficiente para a prestação de cerca de 500 €.

A testemunha II - gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 16:03h e terminus às 16:18h - refere que: O Cliente sabia do erro, sabia que o valor que pagava mensalmente era inferior ao montante que deveria pagar para respeitar o prazo de 20 anos pretendido e sabia que estavam pendentes as duas propostas do Banco no sentido de corrigir os valor a pagar de forma a poder ajustar o plano prestacional do empréstimo do prazo pretendido. O Cliente estava ciente que com o valor que pagava mensalmente o crédito não estaria todo pago em 2020 (não atingiria sequer o valor de capital em dívida). Em 2015 mas o Cliente já tinha sido esclarecido antes e estavam pendentes da aceitação do mesmo a adopção das formas de reestruturar os pagamentos mensais, de forma a que o empréstimo pudesse estar todo liquidado em 2020. O Banco não poderia alterar unilateralmente o contrato e o mutuário recusou-se a colaborar no sentido da resolução do lapso de que conhecia. E chegou a referir que, quando chegasse 2020 logo se veria Assim, tais depoimentos permitiriam ao douto Tribunal “a quo”, “com razoável grau de segurança e em conformidade com as regras da experiência comum”, considerar, também, que deveria ter sido considerado que ficou provado nos autos:

“2.3. Que esta essencialidade da declaração era conhecida pelos Autores (no caso e à data pela 1ª A e o seu falecido marido) ou, pelo menos, não poderiam os AA. e o falecido marido da 1ª A Autora ignorar tal circunstância.”

Na verdade, tal facto resulta, não só, da matéria que acabou por constar como assente mas não pode deixar de ser considerado como provado se atentarmos no conteúdo das declarações de parte da 1.ª Autora (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 15:24h e terminus às 15:32h).”.

Relativamente à matéria de facto provada, refere a Recorrente no corpo das alegações:

Da prova testemunhal produzida nos Autos, não se vislumbra a alusão, por qualquer testemunha, a qualquer facto que pudesse determinar resposta positiva aos factos supra indicados, pelo que, carece de fundamentação a resposta dada aos mesmos.”.

Das conclusões das alegações consta:

5) Da prova testemunhal produzida nos Autos, não se vislumbra a alusão, por qualquer testemunha, a qualquer facto que pudesse determinar resposta positiva aos factos supra indicados, pelo que, carece de fundamentação a resposta dada aos mesmos.

6) Dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 15:33 h e terminus às 15:54h), II (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 16:03h e terminus às 16:18h) e JJ (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 16:19h e terminus às 16:47h), as quais mereceram a plena confiança do douto Tribunal “a quo”, resultou inequívoco que existiu uma clara divergência entre o pretendido e o contratado pelo Banco na celebração do aditamento em causa.

7) Do depoimento de tais testemunhas resulta, ainda, claro que o mutuário originário, o falecido BB, conhecia o erro, aliás, “a divergência que constatou entre o que havia acordado com o Banco Réu quanto ao número e prestações e amortização do capital em dívida referente ao contrato de mútuo objeto dos autos”, porquanto este se havia deslocado à agência procurando mais informações por diversas vezes.

8) O depoimento de tais testemunhas atestaram o conhecimento da existência do erro do Banco, quer da 1.ª Autora, quer do mutuário falecido BB.

9) A testemunha FF (gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 15:33 h e terminus às 15:54h): Referiu que: Para esclarecer o Cliente, contactou a área de operações do Banco que, a qual respondeu, de imediato que já havia esclarecido o Cliente em 2009, mas que, de todo o modo, iria enviar novamente a resposta que lhe havia transmitido; Mais referiu tal testemunha que foi explicado ao mutuário, uma vez mais, que em vez de terminar em 2020, por força do erro informático, o empréstimo terminaria em 2030, e que em vez de estar a pagar a prestação de cerca de 700 € que deveria pagar, estava a pagar só 550€ por mês; No entanto, a partir do momento em que foi detectado o erro foi sugerido ao Cliente um de duas soluções, com duas simulações dos valores a pagar para repor a situação, sendo que o mutuário respondeu que ia ver e nunca mais disse nada; Aliás o Cliente, quando assinou o aditamento, estaria a contar pagar uma prestação de cerca de 750 €. O Cliente ficou ciente e esclarecido do erro, sem dúvida nenhuma e sabia que se continuasse a pagar a prestação de cerca de 500€ que se encontrava a pagar, quando chegasse a 2020 faltaria pagar valor ao Banco; O Cliente depositava apenas mensalmente o suficiente para a prestação de cerca de 500;

10) A testemunha II - gravações da sessão de 07/03/2022, com início às 16:03h e terminus às 16:18h - referiu que: O Cliente sabia do erro, sabia que o valor que pagava mensalmente era inferior ao montante que deveria pagar para respeitar o prazo de 20 anos pretendido e sabia que estavam pendentes as duas propostas do Banco no sentido de corrigir os valor a pagar de forma a poder ajustar o plano prestacional do empréstimo ao prazo pretendido; O Cliente estava ciente que com o valor que pagava mensalmente o crédito não estaria todo pago em 2020 (não atingiria sequer o valor de capital em dívida). Isto ocorreu em 2015, mas o Cliente já tinha sido esclarecido antes e estavam pendentes da aceitação do mesmo a adopção das formas de reestruturar os pagamentos mensais, de forma a que o empréstimo pudesse estar todo liquidado em 2020. O Banco não poderia alterar unilateralmente o contrato e o mutuário recusou-se a colaborar no sentido da resolução do lapso de que conhecia. E chegou a referir que, quando chegasse 2020 logo se veria.

11) Assim, tais depoimentos não permitiriam ao douto Tribunal “a quo”, “com razoável grau de segurança e em conformidade com as regras da experiência comum”, considerar como provados os factos enunciados e constantes da sentença recorrida correspondentes aos n.ºs 1.10, 1.14, 1.15, 1.25 e 1.39.”.

Verifica-se, assim, que na apelação (das conclusões e corpo das alegações) a Recorrente limitou-se a mencionar o início e o termo de cada depoimento que reputou relevante para a alteração da matéria de facto visada. Nessa medida, como foi entendido no acórdão de 18.06.2019 a que vimos fazendo referência, tal procedimento traduz-se num “ato inútil e que nada esclarecia o tribunal de recurso quanto aos momentos das concretas passagens que o Recorrente entendia justificarem uma decisão diferente.” A indicação genérica “teria o efeito legalmente indesejado de forçar o tribunal de recurso a incidir sobre toda a extensão dos depoimentos das testemunhas em causa”.

Acresce que a Recorrente não procedeu a uma transcrição dos depoimentos das testemunhas, pois que para isso “caberia reproduzir objetivamente- sem a mínima possibilidade de fazer intervir qualquer subjetividade, resumo conclusivo ou juízo apreciativo - aquilo que as pessoas ouvidas declararam (verbalizaram)”, e a transcrição não pode ser confundida, como bem refere o tribunal a quo, com o “emitir o seu juízo conclusivo sobre o teor dos mesmos e/ou a indicar o que diz ser o respetivo “resumo” das “partes mais relevantes”/cf. fls. 206 verso], sendo que, e tratando-se de um procedimento facultativo, também não indica os excertos de tais depoimentos a relevar.”.

Assim, embora a Recorrente tenha cumprido o dever de indicar os pontos de facto que considerava mal julgados, somos de entender que desrespeitou, de forma inultrapassável, o dever que se lhe impunha de especificar “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação”, indicando “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”, justificando, assim, a rejeição do recurso nos termos decididos pelo tribunal recorrido.

Improcede, por isso, a revista.

IV. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 17 de Setembro de 2024


Graça Amaral (Relatora)

Ricardo Costa

Rosário Gonçalves




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1. Não se está perante decisões (de facto) alicerçadas no âmbito do mesmo âmbito normativo. Cfr. neste sentido, entre outros, acórdão do STJ de 18.06.2019, proferido no âmbito do Processo n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1↩︎

2. Cfr. Acórdão deste Tribunal de 28-01-2016, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1-A.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.↩︎

3. Cfr. entre outros, acórdão deste Tribunal de 06-12-2016, Processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.↩︎

4. Cfr. justificação do legislador para a instituição de um efectivo 2.º grau de jurisdição quanto à matéria de facto e que fez consignar no preâmbulo do DL n.º 39/95, de 15 de Fevereiro.↩︎

5. A atribuição da prevalência de aspectos de ordem material na apreciação dos requisitos legais de admissibilidade do recurso da matéria de facto e a defesa de entendimentos que rejeitam posicionamentos excessivamente formais que exponenciam os efeitos cominatórios previstos no artigo 640.º, do CPC, constitui tendência jurisprudencial que tem vindo a ser defendida neste Tribunal – cfr. entre outros Acórdão deste Tribunal de 29-10-2015, Processo n.º233/09.4TBVNG.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.↩︎

6. Abrantes Geraldes, obra citada, p. 165.↩︎

7. Cfr. neste sentido e entre outros acórdão do STJ de 16.01.2024, proferido no Processo n.º 818/18.8T8STB.E1.S1(acessível através das Bases Documentais do IGFEJ), citando, aliás, relativamente a este aspecto, vasta jurisprudência.↩︎

8. Citado pelo acórdão do STJ de 18-06-2018, Processo n.º152/18.3T8GRD.C1.S1, este acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.↩︎

9. Acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.↩︎

10. No mesmo sentido cfr. já citado acórdão do STJ de 18.06.2019, proferido no âmbito do Processo n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ).↩︎

11. Ponto II do sumário do citado acórdão de 18.06.2019.↩︎