Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A940
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
IMÓVEL DESTINADO A LONGA DURAÇÃO
DENÚNCIA
DEFEITOS
CADUCIDADE
INTERPELAÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Nº do Documento: SJ200605180009406
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - Se numa compra e venda de imóvel de longa de duração feita por construtor-vendedor as partes tiverem decidido por mútuo acordo encomendar um estudo para determinar se existiam os defeitos de construção denunciados pelos compradores, não se inicia o prazo de caducidade do art.º 1224º, nº 1, do Código Civil sem que o estudo se conclua e as partes definam com exactidão o seu posicionamento face aos resultados obtidos.
2 - A interpelação do empreiteiro para eliminar os defeitos é dispensável quando a falta de execução da obra em conformidade com o art.º 1208º do Código Civil se tiver tornado um facto adquirido, comprovado.

3 - Nessa situação, o incumprimento definitivo é uma realidade que confere ao comprador o direito de exigir do construtor-vendedor uma indemnização que corresponde, precisamente, ao custo das obras de eliminação dos defeitos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Termos essenciais da causa e do recurso.

No Tribunal de Braga, AA e sua mulher BB, e CC e sua mulher DD propuseram uma acção ordinária contra Empresa-A pedindo a condenação da ré pagar-lhes:
a) A quantia de 37.583,31 € - posteriormente ampliada para 41.650 € - custo das obras necessárias para reparar os defeitos de isolamento acústico que afectam as moradias que a ré lhes vendeu;
b) A quantia de 1.165,19 €, referente ao preço do relatório e parecer técnicos obtidos para apuramento das causas e modos de solução desses defeitos;
c) As despesas a realizar com o seu alojamento durante o decurso das obras, a liquidar em execução de sentença.
Na contestação a ré alegou a caducidade do direito de acção, por esta ter sido proposta mais de um ano após a data em que os autores denunciaram os pretensos defeitos que afectam as moradias, defendeu que a reparação destes seria sempre da responsabilidade da empresa construtora, Empresa-B, e sustentou que quanto ao isolamento acústico foram observadas as normas legais e regulamentares em vigor.
Os autores replicaram, defendendo a improcedência da excepção.
Foi admitida a intervenção principal, como associada da ré, da sociedade Empresa-B, construtora dos imóveis adquiridos pelos autores, que, chamada, acompanhou o articulado apresentado pela ré.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que:

a) Absolveu a interveniente do pedido;
b) Condenou a ré a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre as moradias implantadas nos lotes números 9 e 11 da Urbanização da Bouça da Fonte, freguesia de Nogueira, concelho de Braga, e a pagar-lhes a importância de 42.812,20 €, bem como a quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente às despesas de alojamento no período de realização das obras de insonorização das residências.
Sob apelação da ré a Relação confirmou a sentença.
Mantendo-se inconformada, a ré pede revista, formulando conclusões de que se extraem as seguintes questões úteis:
1ª) A de saber se houve reconhecimento do direito impeditivo da caducidade, nos termos do art.º 331º, nº 2, do CC (pertencerão a este diploma, salvo indicação em contrário, todos os artigos citados);

2ª) A de saber se o direito dos autores caducou, por não ter sido exercido no prazo de seis meses ou um ano a contar da denúncia, consoante se entenda aplicável ao caso o art.º 917º ou o art.º 1225º, nº 2;
3ª) A de saber se o direito de reparação ou eliminação dos defeitos caducou, nos termos do art.º 1220º, por resultar da petição inicial que os recorridos nunca o exerceram;
4ª) A de saber se deve, ou não, aplicar-se à situação ajuizada o regime legal do ruído, e, na hipótese afirmativa, declarar a acção improcedente;
5ª) A de saber se deve, ou não, caso improcedam todas as questões postas nas conclusões anteriores, ser reduzido o montante pecuniário peticionado, tendo em conta a "excessiva onerosidade" da intervenção.
Os recorridos contra alegaram, defendendo a confirmação do julgado.

II. Matéria de facto.
De entre os factos definitivamente assentes, interessa destacar os seguintes, pertinentes à decisão do recurso:
1 - Em 27.10.97 e 18.6.98, respectivamente, acordaram primeiros e segundos autores e ré na celebração dos contratos de compra e venda e empreitada para a aquisição de lotes de terreno e construção das suas actuais residências, duas moradias situadas no lugar da Bouça da Fonte ou Espírito Santo, freguesia de Nogueira, concelho e comarca de Braga (documentos 1, 2, 3 e 4, juntos com a petição inicial).
2 - As moradias dos primeiros e segundos AA foram edificadas em banda, contíguas e separadas, apenas, por uma parede comum a ambas.
3 - O Relatório de Ensaio efectuado pela Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia, junto como documento n.º 5 com a petição inicial, conclui no seu ponto 7 que, de acordo com as medições efectuadas, os índices de isolamento sonoro a sons de condução aérea (Ia) e a sons de percussão (Ip) não respeitam os limites mínimos legais de isolamento.
4 - A interveniente "Empresa-B." é uma empresa de construção detentora de uma quota de 160.000.000$00 no capital social da ré e pertencente ao mesmo grupo empresarial.
5 - Em Setembro de 2000 a ré transformou-se em sociedade anónima.
6 - No exercício da sua actividade a ré vendeu as moradias aos autores, comprometendo-se segundo o projecto e caderno de encargos que estava a promover.
7 - Essas moradias foram construídas pela firma Empresa-B.
8 - A dos autores AA e sua mulher ficou concluída em 21.9.98 e a dos autores CC e sua mulher em 14.11.98.
9 - Dos estudos acústicos realizados e juntos pelos autores resulta que o que se pretendeu medir foi a capacidade de isolamento da dupla parede que separa as duas habitações e da laje das casas, sendo a parede uma só.
10 - A ré promoveu e prometeu vender aos autores habitações de alta qualidade, de acordo com padrões de construção acima da média e de modo a garantir o máximo conforto, em termos térmicos e acústicos.
11 - Porém, nos quartos da frente das duas moradias, nas salas de estar e nas escadas de acesso ao primeiro piso de cada uma delas, que se dispõem ao longo da parede que as separa, existe um deficiente isolamento sonoro, porquanto são audíveis as conversas, os mais diversos sons e barulhos provocados pela sua normal utilização, desde o simples andar das pessoas, à televisão, música, movimentações e conversas.
12 - Essa situação provoca grande incómodo, perturba o sossego e o descanso e retira a privacidade necessária aos habitantes das moradias em causa, ora autores.
13 - Os índices de isolamento a sons de percussão e de condução aérea entre os compartimentos contíguos das duas habitações situam-se nalguns casos nos mínimos legais e noutros não respeitam sequer esses valores mínimos.
14 - Para a reparação dos defeitos de insonorização existentes é necessária a dessolidarização tanto das escadas (para redução do índice de isolamento a sons de percussão) como dos próprios panos de alvenaria separadores das diferentes divisórias adjacentes das habitações, obras essas que orçarão em 35.000 euros, mais IVA.
15 - Os autores terão de desocupar as respectivas habitações durante a execução de tais obras.
16 - Para apuramento dos defeitos, suas causas e respectivas soluções técnicas os autores pagaram a quantia de 140.000$00 pelo relatório técnico encomendado à Direcção Regional da Indústria e Energia do Norte do Ministério da Economia e a quantia de 93.000$00 pelo parecer técnico encomendado à firma "Empresa-C
17 - Foi a ré que projectou, loteou, licenciou, fiscalizou a execução, promoveu a venda e vendeu as moradias aos aqui autores, tudo em conformidade com os contratos-promessa juntos com a petição inicial como documentos números 2 e 4 e respectivos cadernos de encargos e anexos .
18 - A ré, enquanto dona do empreendimento, entregou a sua construção à Empresa-B.
19 - O defeito invocado na presente acção foi conhecido e denunciado pela primeira vez durante o ano de 1999.
20 - Os contactos estabelecidos pelos autores para denúncia dos defeitos sempre tiveram como destinatária a ré, que sempre respondeu em seu nome, promoveu a perícia elaborada pela Universidade do Minho e dela deu conhecimento àqueles em 26 de Julho de 2000.
21 - A ré sempre se disponibilizou para eliminar qualquer defeito existente nas habitações dos autores, tendo todos acordado na realização de um estudo técnico, que veio a ser encomendado à Universidade do Minho e cujo relatório foi junto com a petição inicial como documento n.º 7, com vista a determinar se existiam os denunciados problemas de isolamento sonoro e, no caso afirmativo, quais as respectivas causas e modos de solução.
22 - Na sequência das conclusões desse relatório, enviado aos autores em 26.7.00, a ré comunicou-lhes que não se responsabilizava pelos defeitos existentes, uma vez que o relatório apontava como possível causa dos defeitos a realização de alterações à construção prevista na moradia n.º 11.
23 - Posteriormente, os autores, não convencidos das razões ou causas apontadas para os defeitos existentes, encomendaram à Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia, entidade certificada pelo IPQ, e à Empresa-C os dois estudos técnicos acima referidos, cujos relatórios lhes foram comunicados em 19 de Março de 2001 e 18 de Junho de 2001, respectivamente.
24 - Esses estudos, juntos com a petição inicial como documentos números 5 e 6, davam conta de deficiências no isolamento sonoro das duas habitações e apontavam as respectivas causas e modos de solução.

III. Matéria de Direito.
Deve aplicar-se ao caso sub judice o regime jurídico dos defeitos da obra no contrato de empreitada, como a Relação decidiu, e não o regime da compra e venda de coisa defeituosa. Nesse sentido apontam decisivamente os factos 1, 4 , 5, 6, 7, 17 e 18. Deles resulta com nitidez, numa palavra, que a ré não agiu na veste de um particular simples dono duma obra, mas sim na qualidade de verdadeira construtora-vendedora, de alguém que exerce a actividade lucrativa de construção e venda de imóveis. Assim, por ter sido (no sentido exposto) a construtora das moradias vendidas aos autores, ficou sujeita ao regime legalmente instituído no art.º 1225º (e não nos art.ºs 916º/917º) para os imóveis destinados a longa duração.

a) Alega a recorrente que foi erradamente aplicada a norma do art.º 331º, nº 2, segundo a qual o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido impede a caducidade; na sua tese, tal reconhecimento não existiu, pelo que o direito accionado se extinguiu por via da apontada caducidade. A este respeito, o entendimento da Relação foi o de que "o acordo das partes relativamente à determinação da existência e extensão dos mesmos [defeitos ] e das respectivas causas e modos de solução,
porque tendente numa normal projecção da boa fé contratual a um possível reconhecimento daqueles, tem de se considerar como facto interruptivo relativamente ao prazo de caducidade". Consideramos que está certa a decisão da 2ª instância quanto à improcedência da excepção peremptória em causa. Não acompanhamos, todavia, a fundamentação apresentada.
Segundo o art.º 328º, o prazo de caducidade não se suspende nem interrompe senão nos casos em que a lei o determine. Ora, no âmbito do contrato de empreitada tendo por objecto os imóveis a que alude o art.º 1225º a lei não prevê que o acordo das partes relativamente à existência de defeitos da obra tenha por efeito interromper a caducidade; e é lógico que assim seja, de resto, já que na caducidade é o decurso do tempo, sem mais, que determina a extinção do direito, nenhuma influência exercendo sobre esta a vontade do respectivo titular. Simplesmente, dispõe o art.º 329º que o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido. E quanto, concretamente, ao direito aqui em causa - denúncia dos defeitos - estabelece o art.º 1224º, nº 1, que esta deve ser feita dentro do prazo de um ano após a sua descoberta, devendo a indemnização ser pedida no ano seguinte à denúncia. Ora, devidamente conjugados e interpretados à luz destas normas, os factos 19, 20, 21 e 22 evidenciam claramente que o prazo de caducidade do direito accionado deve contar-se a partir de 26.7.00, data em que os autores ficaram a saber que, enjeitando a ré qualquer responsabilidade pelos defeitos da obra detectados, dispunham de um ano para em juízo a convencer do contrário. Antes disso, não pode com razoabilidade sustentar-se que o direito estava em condições de legalmente ser exercido. Tendo as partes decidido, por mútuo acordo, encomendar um estudo para confirmar ou infirmar a existência dos defeitos e determinar as suas causas, claro está que, sem o estudo concluído e sem a definição exacta da posição dos contraentes face aos resultados obtidos, nenhum sentido faz aludir à caducidade; se esta, por assim dizer, é o morrer de um direito em consequência do esgotamento de um prazo, torna-se uma incongruência chamá-la à colação quando ainda não é seguro que ele, direito, tenha sequer nascido e ficado alojado na esfera jurídica do interessado. Deste modo, como a partir de 26.7.00 até à propositura da presente acção (5.6.01) decorreu menos de um ano, não se verifica a caducidade arguida, improcedendo, portanto, as questões 1ª e 2ª.

b) A terceira e a quarta questão que identificámos não têm um fundamento jurídico consistente. Segundo o disposto no art.º 1208º o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato. Que tal não sucedeu no caso presente é um dado incontornável: os factos 1, 2, e 10 a 13 não autorizam duas leituras possíveis, mas uma só, toda ela no sentido de que houve, mais do que simples mora, verdadeiro e próprio incumprimento definitivo por parte da ré, estabelecido no preciso momento em que declarou à contraparte que a causa dos defeitos residia nas alterações à construção de uma das casas (facto 22), e não na execução da obra em desconformidade com o acordado. Logo que verificada uma situação de incumprimento definitivo perde sentido a exigência duma interpelação judicial ou extra-judicial do empreiteiro para realizar as obras tendentes a eliminar os defeitos; é que, como resulta do disposto no art.º 798º, o incumprimento definitivo de uma obrigação dá ao credor o direito de exigir uma indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento; e estes correspondem, no caso em exame, ao custo das obras de eliminação dos defeitos a efectuar pelo dono da obra, ou por terceiro por ele contratado (neste exacto sentido cfr. João Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro Pelos Defeitos da Obra, pág. 112). Também não sofre dúvida que o direito do credor abrange as despesas efectuadas para isolar e localizar os defeitos que o devedor se recusou a eliminar (facto 16); como observa o autor citado - pág. 104 - são despesas indemnizáveis complementarmente a qualquer um dos direitos conferidos ao dono da obra nos artigos 1221º e 1222º.

É um falso problema a aplicação do regime legal do ruído ao caso dos autos, pois, como se salientou, o que releva para o efeito de definir os direitos das partes no presente litígio é a conclusão já tirada de que a ré violou o contrato porque construiu e vendeu as moradias com defeitos, defeitos estes que, tempestivamente denunciados, não se resumem, consoante ficou provado, a infracções à Lei do Ruído. Tais infracções não esgotam o conceito de defeito que opera no âmbito do contrato de empreitada e, no caso presente, não podem ser consideradas isoladamente da restante factualidade. De qualquer modo, devendo prevalecer a vontade livremente expressa pelos contraentes e o equilíbrio contratual daí resultante, - art.ºs 405º/406º - certo é que foi acordada a construção de habitações de alta qualidade, segundo padrões de construção acima da média e de modo a garantir o máximo conforto em termos técnicos e acústicos (facto 10); ora, não há qualquer indício de que o padrão aceite pelas partes para assegurar o pretendido isolamento sonoro das habitações tenha coincidido com os valores fixados naquele diploma legislativo, que, por isso, não vem ao caso.
c) A 5ª e última questão colocada também não é atendível.

Havendo desproporção entre as despesas necessárias para a eliminação dos defeitos ou a nova construção e o proveito para o dono da obra, cessa o direito conferido pelo art.º 1221º à eliminação dos defeitos. Acontece, porém, que de nenhum dos factos coligidos resulta minimamente demonstrada aquela desproporção; aliás, em termos rigorosos, a ré não chegou a alegá-la no momento oportuno, que foi o da contestação.
Improcedem, deste modo, todas as conclusões da minuta.

IV. Decisão
Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Maio de 2006
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira