Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
317/22.3PBSTR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CELSO MANATA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NULIDADE INSANÁVEL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O STJ é o tribunal competente para apreciar um recurso interposto de decisão de tribunal coletivo de primeira instância, que aplicou ao arguido a pena aplicada de 19 anos e 4 meses de prisão e no qual apenas se alega a existência da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a), com referência ao n.º 2 do art. 374.º, ambos do CPP e a violação do seu “efetivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa”;
II - Tendo este recurso sido admitido e decidido por Tribunal da Relação, há que declarar a nulidade do despacho que o admitiu e a ilegalidade de todos os atos subsequentes, aproveitando-se apenas o parecer do MP junto deste Alto Tribunal;
III - Não é nula a decisão que, na motivação da decisão de facto, não se reporta especificamente a documentos que, embora constantes dos autos, não contribuíram para a formação da respetiva convicção, limitando-se a aludir à sua existência;
IV - Também não é nula a decisão que, imputando um conjunto de crimes ao arguido, fundamenta esse concreto número de ilícitos criminais através da indicação dos pontos da matéria de facto nos quais se descrevem os comportamentos que os consubstanciam.
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:


A – Relatório


A1. Através de acórdão proferido a 05 de junho de 2023, pelo Juízo Central Criminal ..., AA foi condenado, como autor material e na forma consumada, da prática dos seguintes crimes e, designadamente, nas penas a seguir indicadas:

• Pela prática de vinte e nove crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão, por cada um deles;

• Pela prática de setenta e oito crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de 11 anos de prisão, por cada um deles;

• Pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 mês de prisão.

• Em cúmulo jurídico, ficou o arguido condenado na pena única de 19 anos e 4 meses de prisão.


A2. O arguido não se conformou com essa decisão, pelo que dela recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (transcrição integral):


“CONCLUSÕES


I - O ora Recorrente foi condenado – Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de vinte e nove crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão, por cada um deles.


B – Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de setenta e oito crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de 11 anos de prisão, por cada um deles.


C – Pela prática, (...).


D – Em cúmulo, na pena única de 19 anos e 4 meses de prisão.


E – Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, em conformidade com o preceituado no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, assim como na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, em conformidade com o preceituado no artigo 69.º-C, n.º 2 e 3, do Código Penal, durante o período de 12 anos por cada um dos crimes e, em cúmulo, na pena acessória única de 20 anos.


II - Porquanto, para o que releva e para efeitos do objecto do presente recurso, o Tribunal «a quo», deu como PROVADOS, os factos constantes em II), de 7 a 15 e em III), designadamente de 16 a 32 e 34 a 44, concluindo que: “A execução de gestos de masturbação com o auxílio


forçado da mão de BB, tal como descrito a factos 15, 21 e 23, perfectibilizam a prática de vinte e oito crimes. Em ambos os casos se preenche o conceito de ato sexual de relevo, enquadrando-se a conduta no crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal”. (vd. Pág. 18, ponto 28 do douto Acórdão).


Bem como:


Os atos de cópula são narrados a 17, 22, 23, 26, 27, 31, 32, 36, 37 e 38 e são reiterados por setenta e seis vezes, tanto quanto o número de crimes assim praticados”. (vd. Pág. 18, ponto 29 do douto Acórdão).


III - O Tribunal recorrido baseou a sua convicção “na conjugação e análise crítica da prova produzida devidamente descrita na acusação, carreada documentalmente para os autos e resultante das atas de julgamento, gerada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e, salvaguardadas as presunções legais e naturais, valorada em harmonia com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência”.


E, “ponderou as declarações do Arguido, quer as prestadas em audiência de julgamento, quer as anteriormente prestadas perante juiz de instrução criminal, as declarações para memória futura de BB e de CC, bem como as declarações da assistente e demandante DD, mãe dos ofendidos. Releva ainda salientar os seguintes elementos documentais: comunicação de notícia de crime, fls. 2 e 4; assento de nascimento de BB, de fls. 119; auto de notícia, de fls. 126 a 128; mensagens de fls. 129 e 130; auto de busca e apreensão, de fls. 162 e 163; auto de inspeção judiciária, de fls. 164 a 168; assento de nascimento de CC, de fls. 268; informação clínica de BB, de fls. 315 a 317; acordos de promoção e proteção, de fls. 395 a 403 e declaração de fls. 448. E os seguintes elementos periciais: relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 310 a 314; exame pericial, de fls. 409 a 412 e relatório de exame pericial, de fls. 419 a 441.”


IV - O arguido, ora recorrente, AA, entende que o mesmo enferma de nulidade, por deficiente fundamentação da matéria de facto em violação do disposto no art. 374º, nº 2 e 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, e artº 205º Constituição da República Portuguesa, bem assim como, em violação do efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.


V - Desde logo, o tribunal recorrido na respetiva fundamentação para prova dos factos dados por provados invoca a totalidade dos documentos constantes dos autos, sem que, contudo, discrimine qual, ou quais os concretos documentos contribuíram para prova de cada um dos crimes de abuso sexual de criança, pois que, com excepção dos invocados assentos de nascimento, nenhum dos demais identificados documentos serviu como concreto fundamento, seja isoladamente, seja em conjunto com qualquer outro meio de prova constante douto Acórdão, para prova de qualquer e cada um dos crimes pelos quais o arguido/recorrente foi condenado.


VI - Ora, tal circunstância, determina por si só a nulidade da decisão, por manifesta falta/insuficiência da fundamentação, nos termos do disposto no artº 379º, nº1, al. a), com referência ao artº 374º, nº2, ambos do CPP.


VII – A este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de 06/11/2012, Proc. de Évora 220/09.2GAGLG.E1: “1. É nula, por deficiente fundamentação da matéria de facto, a sentença que omite a análise da prova por declaração de arguido e que não diz quais os “documentos juntos aos autos” a que se refere e o que deles retira.


3. Exceptuando casos residuais em que a extrema simplicidade do tema probando ou a literalidade do próprio documento falem por si, “remeter para o valor probatório dos documentos juntos aos autos é o mesmo que nada dizer.”


VIII – Por outro lado, importa referir que o Tribunal “a quo” deu por provada a prática de vinte e oito crimes de ato sexual de relevo, enquadrando-se a conduta Penal”. no crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código e também, de setenta e seis crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, quando, com base exactamente na mesma prova já existente nos autos, o Ministério Público acusou o arguido/recorrente por apenas dois crimes, sendo certo que, mais nenhuma relevante prova foi produzida em sede de audiência de julgamento, onde aliás, apenas foi produzida prova testemunhal arrolada pela defesa do arguido.


IX - Efectivamente, da leitura do douto Acórdão recorrido, resulta claramente que a fundamentação da matéria de facto se baseia exclusivamente em provas obtidas ainda antes da prolação do despacho de acusação, isto é, das declarações para memória futura e de toda a documentação vertida precisamente na acusação, mas em momento algum se descortina como exatamente o tribunal “a quo”, chega à conclusão do número de crimes (28 +76), que dá como efetivamente praticados e provados.


X - Mais, o tribunal recorrido, pese embora admitindo não ter logrado a necessária precisão quanto ao número de vezes que a ação foi reiterada, discorre com recurso à jurisprudência, ter “optado uma margem de segurança, com assumida redução da quantidade de ações desenvolvidas pelo arguido, por apelo ao princípio in dubio pro reo”, porém, na respectiva fundamentação, apenas faz referência à pratica reiterada dos factos, não concretizando, ainda que minimamente, as circunstâncias de cada um daquelas crimes, nem a forma “calculo” que lhe permitiu chegar aquela quantidade de crimes, nem qual a dita “margem de segurança” concretamente aplicada.


XI- Na verdade, da leitura da fundamentação do Acórdão recorrido, não se consegue perceber forma objectiva, o porquê exactamente de serem dados por provados, aqueles referidos 28 + 76 crimes e não uma outra quantidade “qualquer”, seja para menos, ou mesmo para mais, motivo pelo qual, e perante tal circunstância, o arguido/recorrente fica impossibilitado de exercer cabalmente o seu direito de defesa, mormente através de recurso da matéria de facto.


XII - Ora, tal circunstância impossibilita o arguido/recorrente de exercer cabalmente o seu direito de defesa, mormente através de recurso da matéria de facto, porquanto, na verdade, o arguido/recorrente não consegue, isto é, não pode, assim, defender-se/insurgir-se, perante cada um dos crimes (não suficientemente concretizados pelo tribunal recorrido), pelos quais foi condenado e nem sequer, contra pelo menos alguns deles, pois que todos e cada um destes 28 + 76 crimes estão insuficientemente concretizados, pelo que, perante esta insuficiente fundamentação do Acórdão recorrido em termos que priva o arguido/recorrente do cabal e pleno exercício de defesa, foi violado o disposto no artº 32º da C.R.P..


XIII – Porquanto, a fundamentação da decisão, mormente da Sentença/Acórdão, deve revelar as razões da respectiva bondade, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador, sendo através da fundamentação da decisão que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.


XIV – Ora, in casu, o tribunal recorrido motivou a decisão de facto de forma insuficiente e incompleta nos pontos supra assinalados, ou seja, relativos aos factos constantes em II), de 7 a 15 e em III), designadamente de 16 a 32 e 34 a 44, não explicitando a convicção de modo perceptível e objectivado no que respeita à prova dos factos que considerou como tal, pelo que se conclui que o douto Acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação da


matéria de facto, devendo ser substituído por outro que proceda ao exame de todas as provas produzidas e/ou examinadas em audiência.


XV – Assim, ao motivar, o tribunal tem de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).


XVI - Em conclusão, o douto Acordão recorrido enferma, pois, do vicio de nulidade por deficiente fundamentação da matéria de facto, tendo sido violados os arts. 374º, nº 2 e 379º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal, e 32º, nº 1, 210ºº nº 1 e 205º, da Lei Fundamental.


A3. Este recurso foi admitido, por despacho de 12 de setembro de 2023, do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., nos seguintes termos:


“§2- Requerimento de 04.09.2023 (referência .....82):


O arguido AA tem legitimidade processual, o douto requerimento em apreço é tempestivo e a decisão judicial ora posta em crise admite recurso – conforme artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alínea b), 411.º, n.º 1, alínea b) e 414.º, todos do Código de Processo Penal.


Nestes termos, o Tribunal admite o recurso interposto do acórdão judicial depositado a 5 de junho de 2023, o qual é para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, subindo de imediato e nos próprios autos, tendo efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 1, alínea a) e 427.º, todos do Código de Processo Penal.


Dê cumprimento ao disposto nos artigos 411.º, n.º 6 e 413.º, ambos do Código de Processo Penal.


Aferida a tempestividade da resposta ou respostas apresentadas, dê cumprimento ao disposto 413.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e, oportunamente, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Évora.


Notifique.”


A4. Na sequência desse despacho foi apresentada, no Juízo Central referenciado, resposta do Ministério Público, na qual se concluiu da seguinte forma:


“CONCLUSÕES:


1. O dever de fundamentação das decisões judiciais resulta, desde logo, de imposição constitucional, no quadro do n.º 1 do artigo 205.º da CRP, densificando-se legalmente, quanto às decisões em matéria penal, no prescrito nos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2 do CPPenal


2. Tal dever constitucional e legal tem por objectivo a explicitação pelo julgador dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, de forma a tornar essa decisão inteligível para os respectivos destinatários e, assim, persuadi-los da sua bondade ou, ao invés, permitir-lhes reagir contra a mesma.


3. Perscrutado o acórdão recorrido, ao invés do propugnado pelo recorrente, constata-se que, apesar de não ser prolixa e linear, a fundamentação do tribunal a quo é perfeitamente suficiente para se perceber como se atingiu o número de vezes por que aquele praticou os ilícitos pelos quais veio a ser condenado, ou seja, a exposição do tribunal observa o intuito primacial da exigência de fundamentação das decisões: é inteligível para o destinatário.


4. Para compreender o raciocínio, inequívoco, seguido pelo tribunal a quo, cumpre atentar, conjugadamente, nos factos provados propriamente ditos e, mormente, nos atinentes à periodicidade da verificação dos abusos – v.g., Pontos 23., 31., 32., 38. – e nos elementos probatórios em que o tribunal radicou a sua convicção para considerar tais factos assentes.


5. Elemento probatório decisivo, o depoimento da vítima BB, pelas características intrínsecas e extrínsecas de que se revestiu, foi merecedor de tal credibilidade por parte do tribunal, que lhe serviu de escora para dar como provado o número exacto de crimes cometidos, apenas se eximindo de o quantificar para além dos vinte e nove mais setenta e oito quando BB, em virtude da natural erosão da memória, não logrou, ela própria, com a certeza necessária, calcular um número.


6. Em momento algum, o recorrente põe em crise a credibilidade desse depoimento, a qual, é, portanto, consensual.


7. Carece de acolhimento a tese da deficiente fundamentação da matéria de facto, bastando ao destinatário fazer uma exegese simples, mas completa, do texto da decisão para alcançar os seus motivos.


8. Detendo-nos em todos e cada um dos documentos citados na fundamentação, detectando a respectiva “epígrafe”, logo intuímos a que factos serviram de suporte, ou seja, tais documentos, pela sua própria natureza – auto de busca e apreensão, assento de nascimento, informação clínica, etc. –, bastam-se por si só, sem necessidade de elucubrações, para atestar determinado pedaço de vida.


9. O acórdão encontra-se bem fundamentado e, por conseguinte, não enferma de nenhuma das nulidades previstas no artigo 379.º, n.º 1 do CPenal.


10. O acórdão recorrido não violou quaisquer normas, nem está ferido de qualquer outra nulidade.”


A.5. Tramitação no Tribunal da Relação de Évora


Chegado ao Tribunal da Relação de Évora, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer - no qual se limitou a aderir à resposta da sua Colega da primeira instância - e o Juiz Relator admitiu o recurso, através de despacho datado 20 de dezembro de 2023 e que tem o seguinte teor:


“O recurso é o próprio, foi tempestivamente interposto, por quem tem legitimidade e mostra-se regularmente admitido, com efeito e momento de subida adequado.


Nada obsta ao seu conhecimento ou justifica a sua rejeição.


Aos vistos e à conferência, inscrevendo-se em tabela, se possível, para o dia 23/01.”


A.6. O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora


Através de acórdão datado de 23 de janeiro de 2024 este Tribunal da Relação negou provimento ao recurso e, em consequência, confirmou, na íntegra, o acórdão recorrido.


A.7. Inconformado com esta decisão interpôs então o arguido recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas motivações nos seguintes termos (transcrição integral):


“CONCLUSÕES


I – O douto Tribunal da Relação de Évora confirmou, na integra, a decisão da Primeira Instância, no qual foi ora Recorrente foi condenado – Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de vinte e nove crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão, por cada um deles.


B – Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de setenta e oito crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de 11 anos de prisão, por cada um deles.


C – Pela prática, (...).


D – Em cúmulo, na pena única de 19 anos e 4 meses de prisão.


E – Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, em conformidade com o preceituado no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, assim como na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, em conformidade com o preceituado no artigo 69.º-C, n.º 2 e 3, do Código Penal, durante o período de 12 anos por cada um dos crimes e, em cúmulo, na pena acessória única de 20 anos.


II - Porquanto, para o que releva e para efeitos do objecto do presente recurso, o Tribunal òra recorrido entendeu que: “carece de acolhimento a tese da deficiente fundamentação da matéria de facto, pois de uma leitura atenta do conjunto da fundamentação acima transcrita facilmente se alcançará o raciocínio do tribunal recorrido que está na base da condenação aplicada ao arguido.” E que, “Em suma, é inequívoco que a fundamentação factual da decisão recorrida se configura como lógica, racional, perfeitamente compreensível e inteligível, não merecendo, por isso, a censura de que padece do vício de omissão de fundamentação, quer no que toca à apresentação dos elementos probatórios em que o tribunal a quo se fundou para dar por assente a factualidade assumida como provada, quer em relação à descrita exigência legal do exame crítico dessas provas, quer por fim, quanto às razões que levaram a instância sindicada a atingir o número de crimes pelos quais veio a condenar o arguido, fazendo-se notar que tal qualificação jurídica foi alterada em sede de audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 358 nsº1 e 3 do CPP, não tendo o ora recorrente manifestado qualquer oposição à mesma.”


III – E, assim, confirmou a decisão anteriormente objecto de recurso, designadamente que, ficaram PROVADOS, os factos constantes em II), de 7 a 15 e em III), designadamente de 16 a 32 e 34 a 44, concluindo que: “A execução de gestos de masturbação com o auxílio forçado da mão de BB, tal como descrito a factos 15, 21 e 23, perfectibilizam a prática de vinte e oito crimes. Em ambos os casos se preenche o conceito de ato sexual de relevo, enquadrando-se a conduta no crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal”. (vd. Pág. 18, ponto 28 do douto Acórdão).


Bem como:


Os atos de cópula são narrados a 17, 22, 23, 26, 27, 31, 32, 36, 37 e 38 e são reiterados por setenta e seis vezes, tanto quanto o número de crimes assim praticados”. (vd. Pág. 18, ponto 29 do douto Acórdão).


IV – Sendo que, quanto à decisão proferida, aqui em crise, o Tribunal de Primeira Instância baseou a sua convicção “na conjugação e análise crítica da prova produzida devidamente descrita na acusação, carreada documentalmente para os autos e resultante das atas de julgamento, gerada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e, salvaguardadas as presunções legais e naturais, valorada em harmonia com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência”.


E, “ponderou as declarações do Arguido, quer as prestadas em audiência de julgamento, quer as anteriormente prestadas perante juiz de instrução criminal, as declarações para memória futura de BB e de CC, bem como as declarações da assistente e demandante DD, mãe dos ofendidos. Releva ainda salientar os seguintes elementos documentais: comunicação de notícia de crime, fls. 2 e 4; assento de nascimento de BB, de fls. 119; auto de notícia, de fls. 126 a 128; mensagens de fls. 129 e 130; auto de busca e apreensão, de fls. 162 e 163; auto de inspeção judiciária, de fls. 164 a 168; assento de nascimento de CC, de fls. 268; informação clínica de BB, de


fls. 315 a 317; acordos de promoção e proteção, de fls. 395 a 403 e declaração de fls. 448


E os seguintes elementos periciais: relatório da perícia de natureza sexual em direito penal,


de fls. 310 a 314; exame pericial, de fls. 409 a 412 e relatório de exame pericial, de fls. 419 a 441.”


V – Ora o arguido, recorrente, AA, renova e reitera que a decisão em causa enferma de vicio, nulidade não sanada, por deficiente fundamentação da matéria de facto em violação do disposto no art. 374º, nº 2 e 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, e artº 205º Constituição da República Portuguesa, bem assim como, em violação do efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.


VI – Desde logo, importa frisar que, não entende o recorrente, de que forma exactamente pôde concluir o Tribunal da Relação ora recorrido que: desenha-se como segura a conclusão que a fundamentação factual expressa pelo tribunal a quo é perfeitamente inteligível para se perceber como se atingiu o número de crimes pelos quais o ora recorrente veio a ser condenado, tanto mais que suporta tal entendimento (conclusão) no facto do depoimento da ofendida ter demonstrado total credibilidade e, mais, por o mesmo não ter sido colocado em causa, porquanto, salvo o devido respeito, daquela circunstância (credibilidade do depoimento), não decorre necessariamnete e, in casu, não decorre de todo, que se possa chegar (concluir) por aquele concreto número de crimes. Na verdade, lida a fundamentação do Acórdão (1ª Instância), não se vislumbra em momento algum, como, com base em que prova, nomeadamente no depoimento da ofendida, se chega a tal “contabilidade”.


VII - A este propósito, permitimo-nos, sempre com a devida vénia, louvar-nos na posição do Exmo. Sr. Juiz Desembargador que votou Vencido, que citamos: “Na verdade, olhando toda decisão proferida pela 1ª Instância, suscitando-se dúvidas quanto à completude / clareza / suficiência de todo o percurso encetado pelo tribunal a quo em termos de fundamentação factual conducente ao número de crimes pelos quais o arguido recorrente veio a ser condenado, parece por demais evidente que toda a explanação em matéria de direito, de onde se vem a retirar que foram cometidos vinte e nove crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p.p. pelos artigos


171 nº 1.


Com efeito, ainda que numa leitura repetida, ao que que se pensa, e sempre ressalvando melhor e mais avisada opinião, do troço explicativo em termos de direito, e na ausência de outras razões enunciativas, não se consegue alcançar como se acertou no quantitativo de crimes apontado, quais os cálculos que foram feitos para aí se chegar, ou seja, qual a lógica do raciocínio seguido pelo tribunal a quo neste conspecto de imputação de crimes.


E, nessa senda, ao que se pensa, exubera a nulidade afirmada, de conhecimento oficioso – ausência de motivos de direito fundamentadores da decisão propalada -, que importa sanar. (...).”- (Os sublinhados são nossos).


VIII - Por outro lado, ainda, não se percebe como o facto da qualificação jurídica ter sido alterada em sede de audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 358 nsº1 e 3 do CPP, e designadamente, por não ter, então, o ora recorrente manifestado qualquer oposição à mesma, possa justificar a improcedência do recurso, que tem por objecto a decisão final, naquele momento (Audiência de Julgamento), ainda inexistente, pois que, o recorrente só após a prolação da concreta decisão (Sentença/Acórdão), está em condições de analisar e arguir o vicio em causa e assinalado Nulidade – por deficiente e/ou falta de fundamentação, pelo que, sempre com a devida vénia, subscrevemos o douto Voto de Vencido, que aqui damos por integralmente reproduzido e, em tudo o mais, reiteramos e renovamos a fundamentação já anteriormente explanada, relativamente à invocada nulidade da decisão em causa, designadamente:


IX - Desde logo, o Tribunal recorrido na respectiva fundamentação para prova dos factos dados por provados invoca a totalidade dos documentos constantes dos autos, sem que, contudo, discrimine qual, ou quais os concretos documentos contribuiram para prova de cada um dos crimes de abuso sexual de criança, pois que, com excepção dos invocados assentos de nascimento, nenhum dos demais identificados documentos serviu como concreto fundamento, seja isoladamente, seja em conjunto com qualquer outro meio de prova constante douto Acordão, para prova de qualquer e cada um dos crimes pelos quais o arguido/recorrente foi condenado,


circunstância que determina por si só, a nulidade da decisão, por manifesta falta/insuficiência da fundamentação, nos termos do disposto no artº 379º, nº1, al. a), com referência ao artº 374º, nº2, ambos do CPP.


X – Por outro lado, importa referir que o Tribunal deu por provada a prática de vinte e oito crimes de ato sexual de relevo, enquadrando-se a conduta Penal no crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código e também, de setenta e seis crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, quando, com base exactamente na mesma prova já existente nos autos, o Ministério Público acusou o arguido/recorrente por apenas dois crimes, sendo certo que, mais nenhuma relevante prova foi produzida em sede de audiência de julgamento, onde aliás, apenas foi produzida prova testemunhal arrolada pela defesa do arguido.


XI - Efectivamente, da leitura do douto Acórdão em causa, resulta claramente que a fundamentação da matéria de facto se baseia exclusivamente em provas obtidas ainda antes da prolação do despacho de acusação, isto é, das declarações para memória futura e de toda a documentação vertida precisamente na acusação, mas em momento algum se descortina como exatamente o tribunal “a quo”, chega à conclusão do número de crimes (28 +76), que dá como efetivamente praticados e provados.


XII - Mais, o Tribunal, pese embora admitindo não ter logrado a necessária precisão quanto ao número de vezes que a ação foi reiterada, discorre com recurso à jurisprudência, ter “optado uma margem de segurança, com assumida redução da quantidade de ações desenvolvidas pelo arguido, por apelo ao princípio in dubio pro reo”, porém, na respectiva fundamentação, apenas faz referência à pratica reiterada dos factos, não concretizando, ainda que minimamente, as circunstâncias de cada um daquelas crimes, nem a forma “calculo” que lhe permitiu chegar aquela quantidade de crimes, nem qual a dita “margem de segurança” concretamente aplicada.


XIII- Na verdade, da leitura da fundamentação em causa, não se consegue perceber forma objectiva, o porquê exactamente de serem dados por provados, aqueles referidos 28 + 76 crimes e não uma outra quantidade “qualquer”, seja para menos, ou mesmo para mais, motivo pelo qual, e perante tal circunstância, o arguido/recorrente fica impossibilitado de exercer cabalmente o seu


direito de defesa, mormente através de recurso da matéria de facto, porquanto, na verdade, não consegue, isto é, não pode, assim, defender-se/insurgir-se, perante cada um dos crimes (não suficientemente concretizados pelo tribunal recorrido), pelos quais foi condenado e nem sequer, contra pelo menos alguns deles, pois que todos e cada um destes 28 + 76 crimes estão insuficientemente concretizados, pelo que, perante esta insuficiente fundamentação do Acórdão recorrido em termos que priva o arguido/recorrente do cabal e pleno exercício de defesa, foi violado o disposto no artº 32º da C.R.P..


XIV – Porquanto, a fundamentação da decisão, mormente da Sentença/Acórdão, deve revelar as razões da respectiva bondade, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador, sendo através da fundamentação da decisão que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.


XV – Ora, in casu, o Tribunal motivou a decisão de facto de forma insuficiente e incompleta nos pontos supra assinalados, ou seja, relativos aos factos constantes em II), de 7 a 15 e em III), designadamente de 16 a 32 e 34 a 44,, não explicitando a convicção de modo perceptível e objectivado no que respeita à prova dos factos que considerou como tal, pelo que se conclui que a douta decisão enferma de nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto, devendo ser substituído por outro que proceda ao exame de todas as provas produzidas e/ou examinadas em audiência.


XVI - Em conclusão, o douto Acórdão recorrido enferma, pois, do vicio de nulidade por deficiente fundamentação da matéria de facto, tendo sido violados os arts. 374º, nº 2 e 379º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal, e 32º, nº 1, 210ºº nº 1 e 205º, da Lei Fundamental, vicio este que, porque se mantêm face á decisão do Tribunal da Relação de Évora se impõe-se ser agora sanado.”


A.8. Parecer do Digníssimo Procurador-Geral Adjunto


A propósito desse recurso apresentou o Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal de Justiça, douto parecer, no qual conclui o seguinte:


“Termos em que é parecer do Ministério Público que:

Se verifica no decurso dos autos uma nulidade absoluta, de conhecimento oficioso, consistente na violação, pelo Tribunal da Relação de Évora, da competência material deste Supremo Tribunal de Justiça (nulidade prevista no artº 119º, alínea e), do CPP);

Sendo que, por isso, deverá ser declarado nulo o processado após resposta apresentada na 1ª instância pelo Ministério Público ao recurso (artº 122º, do CPP);

Que, face a isto, aproveitando os atos praticados antes da verificação dessa nulidade, deverá este STJ apreciar diretamente o recurso apresentado pelo arguido da decisão condenatória de 1ª instância (artº 432º, nº 1, al. c), do CPP); e

Que deverá, em tal apreciação, entender-se pela inexistência da nulidade do acórdão recorrido, mantendo-se este integralmente;

Pois que a fundamentação da decisão de 1ª instância, se bem que pudesse ter sido mais aprofundada, não é de forma alguma inexistente e, como tal, não integra o vício que o arguido invoca;

Dado que contém em si os elementos donde se retira, sem dúvidas, a justificação para a matéria de facto dada como provada e respetiva incriminação, quer no que se refere aos documentos utilizados para àquela matéria de facto chegar, quer quanto ao número de vezes em que o arguido praticou os crimes;

Matéria de facto que, note-se, não é negada pelo arguido/recorrente;

Sendo que surpresa alguma teve com os moldes em que ocorreu a sua condenação, pois que o coletivo cumpriu integralmente as exigências legais quanto à verificação de alteração não substancial de factos.

Donde que não se verifique a pretendida nulidade por falta de fundamentação do acórdão condenatório, devendo este ser mantido, na totalidade, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.”


A.9. Contraditório


Deste parecer foi notificado o recorrente que não apresentou qualquer resposta.


* * *


Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


B - Fundamentação


B.1. âmbito do recurso


O âmbito do recurso delimita-se, como já atrás se referiu, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).


Assim, a primeira questão a decidir consiste em apurar se, como defende o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, se regista a existência da nulidade insanável a que se reporta o artigo artº 119º, alínea e), do Código de Processo Penal e, na afirmativa, em determinar quais as consequências a retirar desse facto.


Caso assim se entenda, haverá que apurar se o acórdão do Juízo Central Criminal ... está ferido da invocada nulidade por deficiente fundamentação da matéria de facto, devido a violação “dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal, e 32º, nº 1, 210º nº 1 e 205º, da Lei Fundamental “


Se, pelo contrário, se concluir pela inexistência da nulidade a que se reporta o artigo 119º, alínea e), do Código de Processo Penal, teremos de verificar se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora enferma, como alega o recorrente, “do vício de nulidade por deficiente fundamentação da matéria de facto, tendo sido violados os arts. 374º, nº 2 e 379º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal, e 32º, nº 1, 210ºº nº 1 e 205º, da Lei Fundamental”


B.2. Matéria de facto dada como provada


Para proceder a essa apreciação importa, antes de mais, consignar a matéria de facto dada como provada e não provada no acórdão proferido na primeira instância, no qual não foi introduzida qualquer alteração pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora.


Assim, foi dada como provada e não provada a seguinte matéria de facto (transcrição integral):


“Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:


I)


1. BB nasceu no dia ... de ... de 2008, sendo filha de DD e de pai biológico desconhecido.


2. (…) tendo esta um outro filho, de nome CC, nascido no dia ... de ... de 2010.


3. Desde data não concretamente apurada do ano de 2016, DD passou a coabitar com o arguido AA, na localidade de ....


4. (…) tendo este perfilhado BB, no ano de 2017.


5. (…) e, pelo menos desde essa atura, BB passou a utilizar o apelido EE e a tratar AA como seu pai.


6. AA é padrinho de batismo e padrasto de CC, o qual passou a tratar este último como se seu filho fosse.


II)


7. Em data não concretamente apurada, mas certamente no ano 2017 e após a ter perfilhado, altura em que BB tinha 9 anos de idade, AA pediu-lhe que fizesse um desenho como havia feito para a mãe,


8. (…) nessa mesma altura, DD deslocou-se para o quarto com o CC, enquanto a BB permaneceu na sala.


9. (…) após, AA chamou-a ao seu quarto, abeirou-se da mesma, e sem que esta estivesse à espera, deu-lhe um beijo na boca.


10. (…) DD chamou pela sua filha, que de imediato se deslocou para junto dela, tendo o arguido dito àquela: “a nossa filha já me dá beijos fofinhos”.


11. (…) em data não concretamente apurada do ano de 2017, mas ainda quando BB tinha 9 anos, AA passou a dar-lhe beijos na boca e acariciar os seus seios, quer por cima da roupa, quer por baixo da mesma.


12. (…) ainda na habitação sita em ..., desde data não concretamente apurada do ano de 2018, mas quando BB tinha já 10 anos de idade, aproveitando que a mãe trabalhava por turnos, aproximou-se da mesma, indo ao seu encontro sempre que esta saía do banho.


13. (…) ademais, quando BB ia dormir, AA dizia-lhe que ficasse na cama junto dele e de DD, ficando DD numa ponta, ele no meio e a menor na outra ponta junto deste.


14. (…) nas aludidas circunstâncias descritas, passou os seus dedos e introduziu-os na vagina de BB.


15. (…) como agarrou a sua mão, sem que a pudesse libertar, colocando-a no pénis, executando gestos masturbatórios com o auxílio da mão de BB, o que fazia até ejacular.


III)


16. Em momento não concretamente apurado, mas entre o ano de 2018 e o ano de 2019, quando BB tinha 10 anos de idade e ainda sem ter tido a menarca, AA chamou-a para o quarto onde acariciou os seus seios.


17. (…) ato continuo, despiu a ofendida e introduziu o seu pénis ereto na vagina daquela, sem que tenha feito uso de preservativo, apenas retirando o mesmo aquando da ejaculação.


18. Em data não concretamente apurada do mês de julho de 2019, DD e AA puseram termo à relação amorosa, tendo esta passado a residir apenas com os seus filhos, na ....


19. (…) não obstante, BB continuou a visitar AA em casa do avô paterno, onde pernoitava de 15 em 15 dias, durante os fins de semana, pelo menos até outubro de 2021, tendo de partilhar quarto com o seu pai por não existir nenhum outro disponível.


20. (…) e CC era forçado a dormir no sofá, uma vez que aquele assim o decidia.


21. (…) nessas circunstâncias de modo, tempo e lugar, AA aproveitando-se da presença e proximidade de BB, agarrava as suas mãos e colocava-as no pénis, masturbando-se.


22. (…) também nessas ocasiões, introduzia o pénis ereto na vagina da BB, sem preservativo, apenas retirando o mesmo para ejacular.


23. (…) fazendo ambos os atos de masturbação e penetração, quando menos, uma vez por mês.


24. Em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos entre agosto de 2019 e agosto de 2021, BB passou férias com AA nos parques de campismo de ... e ....


25. (…) tendo passado, pelo menos, 9 dias de férias sozinha, em parque de campismo sito em ....


26. (…) deslocando-se recorrentemente ao parque de campismo de ..., durante as férias de verão, pelo menos de 15 em 15 dias e por quatro vezes.


27. (…) nesses locais e nesses períodos de tempo, pernoitavam numa auto tenda, e à noite, quando BB se deslocava para a cama para dormir, AA introduzia o pénis ereto na vagina desta, apenas retirando o mesmo para ejacular.


28. (…) do mesmo modo, AA chamava BB aos balneários, pedindo que ali se dirigisse em cuecas.


29. (…) tomando duche nas cabines com a ofendida, e introduzindo o pénis na vagina, apenas o retirando para ejacular.


30. (…) também numa dessas ocasiões, em data não concretamente apurada das referidas férias, com eles pernoitou CC, e, pensando que este estaria a dormir, pediu a BB que tirasse as cuecas e que fosse ao seu encontro junto dos balneários.


31. (…) fê-lo pelo menos numa noite de cada fim de semana que passaram em ....


32. (…) assim como em pelo menos quatro dos dias que passaram em ....


33. Desde data não concretamente apurada do ano de 2020, seguramente por duas vezes, AA introduziu o pénis ereto na boca de BB, masturbando-se.


34. Em momento não concretamente apurado do mês de outubro de 2021, DD passou a residir com o seu novo companheiro FF na ....


35. (…) neste sentido, AA voluntariou-se para ficar com BB e o irmão a seu cargo, a que DD acedeu, tendo aquele passado a residir na ..., com os menores.


36. (…) após, em dezembro de 2021, passaram a residir na ..., sendo que na referida residência apenas existia uma televisão, no quarto de AA, onde a BB se dirigia para usufruir da mesma.


37. (…) desde essa data e nesse local e até meados de abril do ano de 2022, AA, atendendo à proximidade física que mantinha com BB e sempre fazendo uso do facto de ter em sua posse a única televisão da casa, chamava-a para junto de si, pedindo-lhe que ficasse com ele a ver televisão.


38. (…) nessas ocasiões passou a introduzir o seu pénis ereto na vagina da BB, sem que fizesse uso de preservativo, apenas retirando o mesmo para ejacular, pelo menos três vezes por semana.


39. (…) no dia 21 de abril de 2022, quando BB entrou no quarto para ver televisão, pois era ali que continuava a estar a única televisão da casa, aquele disse-lhe: “o pai apetece-lhe vir …o pai vai desligar a televisão. Tira os óculos para não os partires e tira os calções”.


40. (…) de imediato, começou a acariciar o peito da ofendida, a apertar-lhe os seios enquanto dizia “as tuas mamas são minhas”.


41. (…) ato contínuo, aquele começou a lamber-lhe e chupar-lhe os seios, ao mesmo tempo que a beijava na boca.


42. (…) permanecendo esta imóvel, sem se mexer.


43. (…) de seguida agarrou na mão de BB, colocando-a no pénis, para que executasse gestos masturbatórios, tendo de seguida introduzido o pénis ereto dentro da vagina.


44. Por diversas vezes, AA dirigia-se à ofendida dizendo: “tens de me fazer vir”, “o pai é bom para ti, faz-te as vontades


todas (…) então, tens de me fazer vir amanhã”, ou “se alguma vez contares a alguém muita coisa vai mudar e vais-te arrepender”.


45. (…) bem como gritava com o seu irmão CC, apelidando-o de “jumento”, “burro” e “porco”, esta última expressão, designadamente quando o menor não queria tomar banho.


IV)


46. AA conhecia a idade da sua filha, quando agiu como descrito, aproveitando-se da ingenuidade e imaturidade da mesma, conhecendo que esta não tinha o discernimento para se autodeterminar sexualmente.


47. (…) mais sabia que não lhe era permitido constrangê-la a qualquer ato de cariz sexual.


48. (…) sabia, ainda, que pelo facto de ser sua filha e por consigo coabitar, sobre si recaía um especial dever de a respeitar.


49. (…) para tanto, pelo facto de ser seu pai e por com ela coabitar, valeu-se do seu ascendente sobre a menor.


50. (…) não se coibindo de praticar os atos descritos, ofendendo assim o sentimento de criança, inocência e vergonha de BB, bem como a integridade física e psicológica daquela.


51. (…) sabia e tinha consciência da incapacidade de BB para lhe resistir e avaliar, atenta a sua idade e inexperiência, os atos sexuais que sobre a mesma praticava, o que lhe foi indiferente, aproveitando-se de todas essas circunstâncias apenas para satisfazer os seus instintos libidinosos.


52. (…) sabia outrossim que ao atuar do modo descrito não só afetava o livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual de BB


Luís, como limitava a sua liberdade e autodeterminação sexual, o que, igualmente, lhe foi indiferente por ter sido querida toda a sua conduta.


53. (…) agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas em questão eram proibidas e punidas nos termos da lei.


54. AA, ao proferir as palavras dirigidas a CC, quis conscientemente ofender a sua dignidade, condicionando a formação da sua personalidade e rebaixando a sua autoestima, agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a conduta em questão era proibida e punida nos termos da lei.


V)


55. Desde os seus 11 anos de idade que BB se apercebeu que tais práticas eram erradas.


56. (…) tendo no dia 30 de abril 2022 enviado mensagens escritas à sua mãe com o conteúdo constante de folhas 129 e 130, o qual aqui se considera reproduzido, desabafando que não suportava mais o que se passava desde os seus 9 anos de idade e que tinha vergonha e medo que a sua mãe deixasse de gostar dela, tal como AA lhe dizia que ia acontecer.


57. Em consequência dos factos, BB deixou de conseguir dormir, passando muitas noites em claro.


58. (…) manifestando sentimentos de vergonha e repulsa, tomando consciência que tais atos eram errados.


59. (…) assim como temeu que a sua mãe a abandonasse e deixasse de gostar dela.


60. (…) passou a apresentar corrimento esbranquiçado junto do orifício himenal, dispersado a nível vulvar e que importou a toma de medicação (antifúngicos).


61. CC sentiu-se injuriado e humilhado


VI)


62. AA apresenta um percurso de vida regular integrando um agregado de origem de situação socioeconómica estável, mas marcado pelo falecimento precoce da mãe.


63. (…) o pai estabeleceu nova ligação afetiva, da qual tem mais duas filhas.


64. (…) caracterizando-se o ambiente familiar como afetivo, havendo bom relacionamento entre todos os elementos.


65. (…) trabalhava numa oficina de serralharia civil, propriedade do seu progenitor, situação que manteve até à data da sua prisão e à qual pensa regressar logo que a sua situação jurídico-penal se encontre resolvida.


66. (…) concluiu o 6º ano de escolaridade.


67. (…) no plano afetivo, constituiu matrimónio aos 23 anos, união que manteve durante cerca de sete anos, da qual não existem filhos, terminando o mesmo por alegada instabilidade no relacionamento, que terminou por envolvimento de uma terceira pessoa no matrimónio.


68. (…) encontra-se detido no Estabelecimento Prisional ... há cerca de nove meses, onde tem mantido um comportamento adequado, mas sem exercer qualquer atividade, por se encontrar na situação de preventivo.


69. (…) a presente situação jurídica não veio alterar a perspetiva de vida.


70. (…) nem é motivo de ansiedade, não verbalizando ou evidenciando qualquer empatia pela BB ou pelo CC, a quem atribui conjuntamente com DD alegadas atitudes de manipulação.


71. (…) demonstra fragilidades a nível pessoal e emocional, nomeadamente em termos de consciência crítica e de empatia.


72. (…) a avaliar no âmbito de um eventual acompanhamento médico/terapêutico na área da sexualidade.


73. (…) e não tem antecedentes criminais.


§3.2


5 E não se provaram os seguintes factos:


1. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre fevereiro de 2020 e maio de 2020, AA foi trabalhar para ..., tendo levado DD, BB e CC para aquele país.


2. (…) e também ali, sempre que tinha possibilidade, agarrava as mãos de BB, colocando-as no pénis e masturbando-se.


3. (…) do mesmo modo, beijava a ofendida na boca, apalpava e acariciava os seus seios, ao mesmo tempo que introduzia o pénis ereto na vagina daquela, que apenas retirava para ejacular.


4. Mediante as recusas de BB, dizia-lhe: “então vou fazer-te uma massagem, tira o soutien” e “cala-te, que eu estou a mandar-te”.”


B.3. Motivação da matéria de facto dada como provada


Por outro lado, a decisão sobre a matéria de facto acima transcrita foi motivada pelo acórdão da primeira instância nos seguintes termos (transcrição integral):


“6 Visando a motivação da factualidade relevante, o Tribunal baseou a sua convicção na conjugação e análise crítica da prova produzida devidamente descrita na acusação, carreada documentalmente para os autos e resultante das atas de julgamento, gerada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e, salvaguardadas as presunções legais e naturais, valorada em harmonia com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência.


7 O Tribunal ponderou as declarações do Arguido, quer as prestadas em audiência de julgamento, quer as anteriormente prestadas perante juiz de instrução criminal, as declarações para memória futura de BB e de CC, bem como as declarações da assistente e demandante DD, mãe dos ofendidos. Releva ainda salientar os seguintes elementos documentais: comunicação de notícia de crime, fls. 2 e 4; assento de nascimento de BB, de fls. 119; auto de notícia, de fls. 126 a 128; mensagens de fls. 129 e 130; auto de busca e apreensão, de fls. 162 e 163; auto de inspeção judiciária, de fls. 164 a 168; assento de nascimento de CC, de fls. 268; informação clínica de BB, de fls. 315 a 317; acordos de promoção e proteção, de fls. 395 a 403 e declaração de fls. 448. E os seguintes elementos periciais: relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 310 a 314; exame pericial, de fls. 409 a 412 e relatório de exame pericial, de fls. 419 a 441.


8 Importa previamente referir que, genericamente, nos crimes de natureza sexual, em resultado de ocorrerem em contextos muito particulares e essencialmente traumatizantes, a prova dos factos assenta, quase sempre, nas declarações do arguido, normalmente não confessórias, por confronto com o testemunho da vítima, que por si mesmo apresenta uma visão centrada na sua própria circunstância, que necessariamente impede o desejável distanciamento. E tudo resulta exponenciado quando, para além disto, o crime é perpetrado tendo por alvo uma criança.


9 Com efeito, se todo o testemunho é já instrumento de retrospeção de uma realidade vivenciada, na qual se misturam elementos cristalizados na memória de forma fidedigna com outros que por ela são construídos, trabalhados, alterados e até deturpados, é-o ainda mais com testemunhos de vítimas, e mais ainda quando tais vítimas são crianças, sujeitas às debilidades de um processo de crescimento em curso, e muito mais permeável, por essa e outras razões, a influências externas que podem contaminar o seu discurso e prejudicar a confiabilidade do testemunho.


10 Dito isto, os factos enunciados a I resultam das declarações do Arguido, das declarações de DD, assim como dos assentos de nascimento dos dois menores em causa.


11 Os factos enunciados em II e III resultam, essencialmente, do compulso das declarações do Arguido e das declarações da menor BB, avultando ainda com particular relevo a prova pericial acima referenciada. Vejamos.


12 O Tribunal firmou a sua convicção nas declarações prestadas pela BB. Apesar da idade muito jovem, as declarações exibiram um registo sério, lógico, sequencial e coerente. A expressão facial revela a dificuldade em falar sobre os factos, o nervosismo está latente no constante remexer do fio com as mãos, o qual, não por acaso, é retirado do pescoço quando as perguntas buscam maior concretização e detalhe, assim como os goles de água ingeridos como se ali fosse encontrar a coragem para enfrentar o peso dos factos que verbaliza. E, assim, tudo foi descrevendo, de forma espontânea, sem efabulações e com a alusão direta aos factos vivenciados e respetivas circunstâncias. Claro está, dentro das perturbações emocionais e psíquicas que tais eventos inexoravelmente provocam. Recorda o primeiro contacto e contextualiza-o após o ato de perfilhação, percebe as estratégias sub-reptícias para ser observada quando sai do banho, revela as expressões usadas pelo arguido, a escalada gradativa quanto aos sucessivos contactos físicos até ser alcançada a primeira penetração, a qual está gravada na memória. Detalha os locais, as circunstâncias, o modo, a idade que tinha, pormenoriza o episódio no balneário do parque de campismo, aduzindo que bateu três vezes com a cabeça na zona do chuveiro, recorda o momento da ejaculação e a sua facies denuncia a repugnância, expressa com notória repulsa e nojo a introdução do pénis na sua boca, e até consegue transmitir o comportamento do arguido relativamente ao seu irmão.


13 E, portanto, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas quanto à veracidade dos eventos e respetivos contextos temporais e espaciais. No entanto, sempre que a declarante, como é absolutamente natural, não tenha logrado a necessária precisão quanto ao número de vezes que a ação foi reiterada, o Tribunal optou pela margem de segurança, com assumida redução da quantidade de ações desenvolvidas pelo arguido, por apelo ao princípio in dubio pro reo (como é explicitado pelo Supremo Tribunal de Justiça: “Casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura” – conferir acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 04.05.2017, com o processo n.º 110/14.7JASTB.E1.S1, Relator: HELENA MONIZ, disponível eletronicamente em dgsi.pt), ainda assim muito acima das concluídas no douto despacho de acusação. Quanto aos eventos ocorridos em ..., tal não resulta certo das declarações da menor, bem como não é abordado o facto atinente à alegada massagem pelo arguido.


14 Por seu turno, as declarações do Arguido pautaram-se pela total inverosimilhança, adotando um discurso desconexo e falho de coerência. Ao contrário do que anteriormente dissera em sede de primeiro interrogatório, onde admitiu os factos e exprimia arrependimento, pese embora endossando a responsabilidade do sucedido à menor BB que o teria seduzido com atos provocatórios, veio na audiência de julgamento declarar que as declarações prestadas perante órgão de polícia criminal (Polícia Judiciária), assim como as prestadas perante juiz de instrução criminal só o foram porque foi ameaçado por inspetor ou inspetora da PJ. Instado sobre a razão da prova pericial (conferir folhas 409/11) concluir pela existência de vestígios biológicos na sua cama compatíveis com o seu perfil genético e o perfil genético de BB, explica que a filha tinha acentuado corrimento vaginal e que o declarante tinha por hábito masturbar-se na cama. Ora, a tentativa de explicação a propósito deste aspeto, como de resto ensaiou a respeito de muitos outros factos da acusação (inclusivamente a propósito das declarações de CC acerca de ouvir o arguido a dizer à sua irmã para tirar as cuecas no parque de campismo – aqui, alegadamente, porque a menina queria ir urinar e levantava-se durante a noite) é em si mesma a lídima expressão da assunção dos factos, face à total e absoluta dissonância com as regras de experiência comum. Mais, o apelo do arguido a uma suposta maquinação por parte de DD é desmentido, na mais ténue e obscura possibilidade de isso ter acontecido, pelo próprio depoimento que esta produziu em audiência, quando referiu que não sabia de nada, nunca desconfiou de nada e, ainda hoje, vê o arguido como um “anjo”, dixit.


15 Os factos atinentes às palavras dirigidas ao CC escoram-se quer nas declarações para memória futura por este prestadas, quer nas próprias declarações da sua irmã, quer ainda, uma vez mais, por não convencer a explicação dada pelo arguido. Este referiu que costumava apelidar o CC de jumentinho ou burro, mas de forma carinhosa, e que quando dizia que ele era porco, era porque o menor se recusava a tomar banho. É certo que o contexto até bem podia ser o acenado pelo arguido, mas torna-se evidente que a intenção era inabalavelmente a de ofender, como de resto decorre com clareza das declarações de BB, a qual por ser mais velha permitir retirar tal corolário com um juízo de maior certeza.


16 O Tribunal admite que a menor, carecida de figura paternal e com evidente défice de carinho, afeto e amor, o que a tornava emocionalmente vulnerável, tenha consentido na prossecução das ações empreendidas pelo arguido e tenha até colaborado – de resto, tal realidade surge em consonância com o estado de espírito revelado nas mensagens escritas enviadas à sua mãe, onde se denota o medo de perder a mãe por se sentir culpada do sucedido – mas não só tal retrato psicológico é absolutamente normal nas vítimas de abuso sexual, sobretudo no início da puberdade, como em nada contribuem para a atenuação da atitude do arguido, bem pelo contrário.


17 E por aqui se prossegue em direção aos factos que moldam o elemento subjetivo, expressos no ponto IV. É consabido serem estes factos insuscetíveis de prova direta, havendo que recorrer a regras de experiência comum, daí se inferindo que a ação do arguido é inequivocamente dirigida à satisfação da sua libido, sabendo a idade da ofendida e o ascendente exercido sobre a mesma. Mais se surpreendendo a atitude de aproximação emocional por via da perfilhação, volitivamente orientada para o objetivo que intentara prosseguir, exibindo notória perfídia e premeditação.


18 Os factos enunciados a V decorrem das declarações prestadas pelos menores e pela mãe de ambos.


19 Por fim, os factos enunciados a VI decorrem inteiramente da análise crítica do relatório social. Os antecedentes criminais resultam da respetiva certidão junta aos autos. Neste ponto, importa salientar a relevância que os depoimentos trazidos pelas testemunhas de Defesa assumiram escassíssima relevância, ainda assim corroborando o retrato pessoal e profissional do Arguido.


20 E mais não foi levado à matéria de facto por não oferecer relevo, por ser de teor conclusivo ou por configurar juízos de Direito.”


B.4. O Direito


B.4.1. Questão prévia


Como atrás se mencionou, o recurso foi apresentado e decidido no Tribunal da Relação de Évora, tendo o Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça alegado que tal acórdão enferma da nulidade insanável prevista no artigo 119º, nº 1 al. e) do Código de Processo Penal já que, face ao disposto no artigo 432º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, aquele Venerando Tribunal não tinha competência para apreciar este recurso a qual cabe, em exclusivo, ao Supremo Tribunal de Justiça.


Desde já se consigna a nossa concordância com este entendimento.


Com efeito e como atrás se deixou consignado, o recurso interposto do acórdão proferido a 5 de junho de 2023 pelo tribunal coletivo, do Juízo Central Criminal ..., fundou-se no entendimento de que essa decisão enfermava de “vício de nulidade por deficiente fundamentação da matéria de facto, tendo sido violados os arts. 374º, nº 2 e 379º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal, e 32º, nº 1, 210º nº 1 e 205º, da Lei Fundamental


Ora, desde a alteração introduzida no Código de Processo Penal pelo artigo 11º da Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro, que o artigo 432º, nº 1, al. c), do mesmo diploma legal, estabelece que:


“c) Dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.


A que acresce a circunstância de, no nº 2 desse mesmo artigo 432º, se determinar que, nestes casos, não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no nº 8 do artigo 414º do código de processo Penal.


Assim e porque não verificada essa exceção1, o presente recurso apenas pode ser julgado por este Supremo Tribunal de Justiça.


Com efeito, a decisão da primeira instância foi proferida por um tribunal coletivo, a pena aplicada foi de 19 anos e 4 meses de prisão e o recurso apenas se funda na existência da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. a), com referência ao nº 2 do artigo 374º, ambos do Código de Processo Penal e na violação do seu “efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa”.


Face ao exposto, consta-se que, nos termos do disposto no artigo 119º, nº 1 al. e), ocorre nulidade, insanável e que deve ser conhecida oficiosamente em qualquer fase do processo, em virtude de terem sido violadas “regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no artigo 32º, nº 22”.


Em sequência, nos termos do disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal e como refere Paulo Pinto de Albuquerque3:


“A declaração de nulidade sanável ou insanável gera a invalidade de todos os efeitos substantivos, processuais e materiais do ato nulo. A dita declaração tem também por efeito a invalidade derivada dos atos subsequentes ao ato nulo que tenham um nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa do ato nulo (…) de tal modo que, na falta do ato prévio, os atos subsequentes não podem subsistir isoladamente.”


Contudo, como também dispõe nº 3 desse artigo e escreve o mesmo autor:” O CPP estabelece uma regra de aproveitamento dos atos subsequentes que não tenham um nexo de dependência lógica e valorativa com o ato nulo. Por maioria de razão, deve declarar-se o aproveitamento de uma parte do ato nulo se a causa da nulidade não afetar por inteiro o ato, mas apenas uma parte dele (nulidade parcial do ato). Trata-se, afinal, de operar a redução do ato processual nulo, salvando a parte do ato que se não mostre viciada.”


Voltando ao caso dos autos o ato nulo é o despacho do Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora de 20 de dezembro de 2023 que admitiu o recurso.


E são inválidos todos os atos praticados subsequentemente, designadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23 de janeiro de 2024


Contudo, ao abrigo do disposto no artigo 122º, nº 3 do Código de Processo Penal e tendo ainda em conta os princípios da celeridade e economia processual, considera-se válido o parecer apresentado neste Supremo Tribunal de Justiça pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto.


O que nos permite evitar a baixa dos autos e viabilizará o seu conhecimento, nos termos atrás referidos, por este Alto Tribunal.


B.4.2. A alegada falta de fundamentação do acórdão recorrido


B.4.2.1. Nota introdutória


O nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa dispõe que:


“As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”


Em comentário a esta norma referem Jorge Miranda e Rui de Medeiros:4


“A exigência de fundamentação não constitui uma simples exigência formal desprovida de sentido. A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objectivo – pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjectivo – direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.


(…) a fundamentação das decisões judiciais é uma garantia fundamental inerente ao princípio do Estado de Direito. Por isso, e para a sua plena efetividade, não basta ao legislador na tarefa de densificação da norma do artigo 205º, nº 1, prever a obrigatoriedade da fundamentação, cumprindo-lhe, igualmente, dotar a garantia de fundamentação de instrumentos jurídicos capazes de lhe conferir tutela adequada.”


É com este enquadramento que os artigos 97º, nº 5 (“Actos decisórios”) e 374º, nº 2, (“requisitos da sentença”) do Código de Processo Penal, dispõem, respetivamente, que:


“5 – Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito”


“2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”


Sobre esta matéria escreveu-se no acórdão de 16 de março de 2005, deste Supremo Tribunal de Justiça5, o seguinte:


“1. O artigo 374°, n° 2, do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre os "requisitos da sentença" (relatório - n° l; fundamentação - n° 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu), indica no n° 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».


2. A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.


3. A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.
4. O tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.


5. O ‘’exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular fundamentação em matéria de facto - mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
6. A noção de "exame crítico" apresenta-se como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
7. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.


8. A integração das noções de ‘’exame crítico" e de "fundamentação envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.”


Usando as palavras de Oliveira Mendes6 a fundamentação reforçada da sentença e do acórdão “visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao Tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso (…)”


Aqui chegados, parece-nos evidente que a necessidade de fundamentação assume uma diferente importância, relativamente aos diversos meios de prova e de obtenção de prova, parecendo-nos igualmente pacífico que, dada a sua natureza e especificidade (sobretudo face à importância que a imediação tem na adequada valoração da sua credibilidade), essa necessidade assume uma importância capital no que concerne à prova testemunhal.


Com efeito, no que concerne à prova testemunhal é fundamental, não apenas indicar o que foi dito, mas, sobretudo, explicar por que motivo se deu credibilidade a esse depoimento, enquanto que na apreciação da prova documental, em regra, facilmente se apreende a informação que o documento contém e qual foi o seu contributo para a formação da convicção do julgador


Finalmente repare-se que o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal reporta-se à obrigação “dos motivos, de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal determinando o artigo 379º, nº 1 al, a) do mesmo diploma legal que é nula a decisão “que não contiver as menções do referidas no nº 2 (…) do artigo 374º “do mesmo diploma legal. (sublinhado nosso)


B.4.2.2. O caso concreto


B.4.2.2.1. A falta de discriminação dos documentos na fundamentação da decisão


Nas conclusões do recurso interposto da decisão da primeira instância o recorrente entende que este acórdão está ferido de nulidade, “nos termos do disposto no artº 379º, nº1, al. a), com referência ao artº 374º, nº2, ambos do CPP” por, por nessa fundamentação, se ter invocado “a totalidade dos documentos constantes dos autos, sem que, contudo, discrimine qual, ou quais os concretos documentos contribuíram para prova de cada um dos crimes de abuso sexual de criança, pois que, com excepção dos invocados assentos de nascimento, nenhum dos demais identificados documentos serviu como concreto fundamento, seja isoladamente, seja em conjunto com qualquer outro meio de prova constante douto Acórdão, para prova de qualquer e cada um dos crimes pelos quais o arguido/recorrente foi condenado.”


Ora, no parágrafo “&3.3.” do acórdão recorrido (motivação da factualidade relevante), o tribunal, depois de uma introdução (na qual, designadamente, refere ter ponderado toda a prova junta aos autos e produzida em audiência de julgamento) esclarece, a partir do ponto 10, em que meios de prova fundamentou a sua convicção relativamente a todos os pontos da matéria de facto dada como provada e não provada.


E, nessa explicação, indica todos os documentos que contribuíram para a sua convicção, reportando-se, especificamente, aos assentos de nascimento dos dois menores (ponto 10), à prova pericial (pontos 11 e 14), às declarações prestadas pelo arguido perante a polícia judiciária e o juiz de instrução criminal (ponto 14), ao relatório social (ponto 19) e ao certificado de registo criminal do arguido (ponto 19).


Portanto, foram estes – e não outros – os documentos que foram tidos em consideração pelo julgador para formar a sua convicção em sede de matéria de facto provada e não provada sendo que, como explicitamente se refere no acórdão, o meio de prova que mais contribuiu para esse objetivo foi a prova testemunhal. E, quanto a esta, a informação dada pelo tribunal recorrido é muito extensa, notavelmente detalhada (em alguns casos até invoca e descreve a linguagem corporal que o auxiliou a formar essa convicção) e extraordinariamente fundamentada.


Ou seja, qualquer leitor da motivação referenciada compreende, com grande facilidade, as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.


Portanto, não se percebe como se pode afirmar que a decisão sobre a matéria de facto não está devidamente fundamentada, parecendo-nos evidente não existir a nulidade a que alude a al. a) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo penal, com referência ao nº 2 do artigo 374º do mesmo diploma legal.


Aliás e numa nota complementar, parece-nos que a pretensão do recorrente apenas poderia fazer sentido se, apoiando-se em determinados documentos não referidos na motivação da matéria de facto, viesse colocar em causa essa mesma matéria de facto, para o que teria, ainda, de especificar os concretos pontos de facto que considerasse incorretamente julgados e o sentido em que, no seu entendimento, o deveriam ter sido.


Contudo, não foi isso que o recorrente fez, pois, em momento algum, colocou em causa a matéria de facto apurada e dada como não provada, não aludindo também, em ponto algum do seu recurso, à norma em que poderia assentar essa impugnação: o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal.


Face ao exposto, o recurso não pode obter provimento quanto a esta matéria.


B.4.2.2.2. A justificação da contabilização dos crimes por que foi condenado


O recorrente também alega que o acórdão recorrido enferma da mesma nulidade (prevista no artº 379º, nº1, al. a), com referência ao artº 374º, nº2, ambos do Código de Processo Penal) em virtude de, da leitura da fundamentação do acórdão, não se conseguir perceber “o porquê exactamente de serem dados por provados, aqueles referidos 28 + 76 crimes e não uma outra quantidade “qualquer”, seja para menos, ou mesmo para mais”


Contudo, no acórdão recorrido claramente se consigna, nos pontos 28 e 29 da fundamentação, o seguinte:

26. “Ora, a introdução de dedos na vagina encontra-se descrita no facto 14 e perfectibiliza a prática de um crime. A execução de gestos de masturbação com o auxílio forçado da mão de BB, tal como descrito a factos 15, 21 e 23, perfectibilizam a prática de vinte e oito crimes. Em ambos os casos se preenche o conceito de ato sexual de relevo, enquadrando-se a conduta no crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal.

27. Os atos de cópula são narrados a 17, 22, 23, 26, 27, 31, 32, 36, 37 e 38 e são reiterados por setenta e seis vezes, tanto quanto o número de crimes assim praticados. Por fim, os atos de coito oral estão presentes a facto 33 e perfectibilizam a prática de dois crimes. Em ambos os casos estão preenchidos os conceitos de cópula e coito, razão pela qual se subsume ao crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal.” (negrito nosso)


Portanto, os crimes de abuso sexual de criança previsto e punível no nº 1 do artigo 171º do Código Penal7 foram contabilizados em 29 (28+1) com fundamento nos factos descritos nos pontos nºs 14, 15, 21 e 23 da matéria dada como provada.


E os crimes de abuso sexual de criança previsto e punível no nº 2 do artigo 171º do Código Penal8 foram contabilizados em 78 (76+2) com fundamento nos factos descritos nos pontos nºs 17, 22, 23, 26, 27, 31, 32, 33, 36, 37 e 38 da matéria dada como provada.


Portanto, não obstante o que de seguida se irá explicitar quanto à determinação do número de crimes, o acórdão recorrido fundamentou o número de crimes que imputa ao recorrente.


Assim e também quanto a esta matéria, não se verifica a nulidade decorrente de falta de fundamentação apontada pelo recorrente.


B.4.2.2.3. Nota final


Sem embargo do atrás consignado, também nós não acompanhamos, embora por razoes diversas, a decisão recorrida, quanto ao número de crimes imputados ao recorrente.


Assim, desde logo no acórdão recorrido consigna-se ser subsumível ao crime de abuso sexual de menor, previsto e punível no nº 1 do artigo 171º do Código Penal9, “a introdução de dedos na vagina” quando a leitura do disposto no nº 2 dessa norma claramente demonstra que esse facto devia ter sido subsumível a esse número (que estabelece uma pena de 3 a 10 anos de prisão) e não (como fez o acórdão recorrido) ao número anterior (que estabelece uma pena de 1 a 8 anos de prisão).


Da mesma forma e ainda no que concerne ao crime de abuso sexual de menor previsto e punível pelo nº 2 do artigo 171º do Código Penal o acórdão recorrido, relativamente aos pontos da matéria de facto que invoca, fez uma errada contabilização dos crimes cometidos10 e, por outro lado, ignorou o que se encontra descrito no ponto 43 da aludida matéria de facto.


Também relativamente ao crime de abuso sexual de criança previsto e punível pelo nº 1 do artigo 171º do Código Penal, não foram tomados em consideração pelo acórdão recorrido os factos constantes dos pontos nºs 9 e 11 da matéria de facto (beijos na boca e apalpar de mamas) os quais constituem, como é jurisprudência pacífica, atos sexuais de relevo.


Contudo, em todos estes casos este Supremo Tribunal de Justiça não pode alterar o decidido, devido à falta de recurso do Ministério Público e face à proibição de reformatio in pejus (estabelecida no artigo 409º do Código de Processo Penal), limitando-se a, de forma pedagógica, deixar este reparo.

D – Decisão

Por todo o exposto:

Declara-se nulo o despacho do Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora de 20 de dezembro de 2023 e inválidos todos os atos processuais subsequentemente praticados (incluindo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de janeiro de 2024), aproveitando-se, apenas o parecer junto aos autos pelo Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça (artigos 119º, nº 1 al. e), 122º e 432º, nºs 1, al. c) e 2, todos do Código de Processo Penal);

Declara-se a competência deste Supremo Tribunal de Justiça para conhecer o presente recurso, nos termos do disposto no artigo 432º, nº 1 al. c) do mesmo diploma legal;

Nega-se provimento ao recurso interposto por AA;

Condena-se o recorrente no pagamento das custas do processo fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) U.C. (artigo 513º do Código de Processo Penal e 1º, 2º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais - aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro e Tabela III a ele anexa).


Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada


(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Celso Manata (Relator)


Agostinho Torres (1º Adjunto)


Vasques Osório (2º Adjunto)


_____________________________________________

1. O nº 8 do artigo 414º reporta-se a situações em que foram interpostos, simultaneamente e relativamente à mesma decisão, recursos relativos à matéria de facto e sobre a matéria de direito, estabelecendo que, nesses casos, a competência cabe aos tribunais da relação.↩︎

2. O artigo 32º nº 2 apenas se reporta ao conhecimento e dedução da incompetência territorial do tribunal.↩︎

3. Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5ª edição, Vol. 1, pág. 478.↩︎

4. “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. III, pág.59 e sgs.↩︎

5. Proc. 05P662 (Relator Juiz conselheiro António Henriques Gaspar).↩︎

6. Código de Processo Penal comentado”, António Henriques Gaspar e outros, pág. 1168.↩︎

7. Agravados pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal.↩︎

8. Igualmente agravados pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal.↩︎

9. Também agravados pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal.↩︎

10. Que, de acordo com a nossa leitura da matéria de facto dada como provada, ascenderiam a mais de 100 (cem) crimes.↩︎