Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL AGUIAR PEREIRA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL CONCORRÊNCIA DESLEAL CONTRATO DE TRABALHO DEVER DE LEALDADE ILICITUDE NULIDADE DE ACÓRDÃO ARGUIÇÃO DE NULIDADES OMISSÃO DE PRONÚNCIA | ||
Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I - A violação do dever de lealdade através de actos de concorrência por parte de um trabalhador durante a vigência do contrato de trabalho, constitui um vício no cumprimento do contrato de trabalho que legitima, nomeadamente, a não manutenção do contrato dessa forma incumprido pelo trabalhador. II - A violação da obrigação de não concorrência só ganha relevo enquanto pressuposto de responsabilidade civil por factos ilícitos se a conduta em que ela se traduz puder ser integrada no conceito de concorrência desleal. III - O art. 311.º, n.º 1, do CPI está construído como uma cláusula geral de carácter valorativo não taxativo, apelando ao critério de interpretação normativa da contrariedade da conduta a normas e usos honestos em qualquer ramo de actividade económica. IV - A ausência de prova sobre o aliciamento de uma importante cliente da autora e de um seu trabalhador não permite afirmar que os actos comprovadamente praticados pelos réus se situem fora do âmbito de uma concorrência leal, característica do funcionamento de um mercado livre e aberto, nem que seja violadora dos padrões de conduta adotados pelos agentes económicos. V - Nessas circunstâncias não se mostram preenchido os requisitos cumulativos da responsabilidade civil extracontratual previstos no art. 483.º, n.º 1, do CC. | ||
Decisão Texto Integral: |
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: ◊ I - RELATÓRIO Parte I – Introdução 1) F...- Sociedade de Construções e Revistimentos, Lda. instaurou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA, BB e Imperium Fachadas 150, Ld.ª, pedindo a sua condenação nos seguintes termos: 1. A absterem-se de, por si ou por intermédio de outrém, contactar e prestar aos clientes da autora os serviços que a mesma exerce e, de um modo geral, a absterem-se da prática dos atos de concorrência desleal que têm vindo a praticar contra esta. 2. A pagar solidariamente à autora uma indemnização por todas as perdas e danos, no valor já liquidado de € 88.000,00 (oitenta e oito mil euros) e ainda na quantia que vier a liquidar-se em ulterior fase processual, designadamente em execução de sentença, por perdas e danos patrimoniais e não patrimoniais em virtude dos actos de concorrência desleal. A autora pede ainda a fixação de uma sanção pecuniária compulsória mensal, em valor adequado, em ordem a assegurar o respeito pela douta decisão a proferir nestes autos, no âmbito do pedido formulado em 1 até ao trânsito em julgado da decisão. Alegou a autora para tanto, em apertada síntese, que tendo os dois primeiros réus sido seus trabalhadores, e quando ainda estavam ao seu serviço, criaram, sem o seu conhecimento, a sociedade terceira ré, através da qual têm, desde então, vindo a desenvolver atividade idêntica à sua com recurso aos conhecimentos adquiridos ao serviço da autora, aos seus clientes e fornecedores, elementos a que tiveram acesso em virtude dos cargos de confiança exercidos enquanto funcionários da autora que, entretanto, deixaram de ser. Mais alegou a autora que a concorrência desleal desenvolvida pelos réus através do aliciamento e desvio de clientes e trabalhadores lhe causou danos de que pretende ser ressarcida. 2) Os réus deduziram contestação ao pedido negando, em resumo, a generalidade dos factos que lhes são imputados, porquanto, tendo sido trabalhadores da autora e constituído a terceira ré, deram conhecimento à autora desse facto e da sua vontade de cessarem a relação laboral que tinham com a autora, sem terem deixado de zelar, entretanto, pelos interesses da autora. 3) Teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença em primeira instância que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido. 4) Inconformada a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por seu acórdão de 14 de setembro de 2023, julgou improcedente o recurso interposto e, ainda que com fundamentação diversa, manteve a sentença impugnada e a absolvição dos réus do pedido. ◊ ◊ ◊ Parte II – A Revista 5) Inconformada a autora interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões nas respectivas alegações: “1. Recorre-se de Revista do douto Acórdão, datado de 14.09.2023, com a referência ...25, notificado via CITIUS, com data certificada pelo sistema em 15.09.2023, que, por fundamentação diversa, julgou improcedente a apelação e absolveu os Recorridos dos pedidos formulados. 2. Constitui objecto do presente recurso a revogação da decisão de mérito, com fundamento na violação ou errada aplicação da lei substantiva e na nulidade dos artigos 615º, nº1, al. d), 666º, nº1 (artigo 674º, nº1, alíneas a) e c) do CPC). 3. Pretende ver-se declarada a nulidade do douto Acórdão em crise, com todas as legais consequências, com fundamento na previsão da alínea d), do nº 1 do artigo 615º do CPC., que estipula ser nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 4. A douta decisão em recurso, que considera ocorrer violação do dever de boa-fé e lealdade, por parte dos recorridos, omite pronúncia sobre a questão essencial dos pós eficácia do dever de lealdade, na vertente da não concorrência, claramente suscitada pela Recorrente na acção e no recurso, como emerge das conclusões 63 a 69 das alegações desta, reproduzidas no acórdão e no contexto das presentes, que não se reconduz a um mero argumento. 5. Adere-se à solução de Direito preconizada na douta decisão em crise quando se refere que a conduta dos Recorridos singulares, patente na factualidade assente e descrita e sintetizada nas páginas 34 a 39 do Acórdão, que se reproduziu no contexto, perdurou ao longo de 4 meses (janeiro a abril de 2021) é desconforme com os usos honestos de qualquer setor empresarial e gravemente violadora dos deveres laborais dos Réus de não concorrência, de lealdade e boa-fé expressamente consignados no artigo 126º e 128º nº 1 al. f) do CT, consubstanciando uma conduta/concorrência desleal.- cfr. página 38 de 39. do Acórdão. 6. Bem assim quando se consideram verificados os requisitos gerais da responsabilidade civil previstos no artigo 483º do Código Civil – acto ilícito e culpa (reprovabilidade da conduta) – idem. 7. Diverge-se do decidido quando se considera não verificados os requisitos dano e nexo de causalidade e quando se refere que os danos referidos pela Autora se reportam apenas à perda do cliente S..., que permitia à Recorrente uma facturação média mensal de cerca de 20.000,00 € - cfr. facto provado 23. 8. É ostensivo que a Recorrente na p.i., conclui peticionando a condenação solidária dos Réus a pagar àquela uma indemnização por todas as perdas e danos, no valor já liquidado de € 88.000,00 e ainda na quantia que vier a liquidar-se em ulterior fase processual, designadamente em execução de sentença, por perdas e danos patrimoniais e não patrimoniais em virtude dos actos de concorrência desleal. – cfr. Item 1 do douto acórdão em recurso, página 1 de 39 do Acórdão: 9. Também, na conclusão 59 das alegações da Recorrente, se refere que toda esta actividade, culposa, querida e não consentida, além de violadora dos deveres laborais de lealdade e não concorrência dos Recorridos, foi gravemente lesiva dos interesses patrimoniais da Recorrente, causando-lhe prejuízos relevantes, passiveis de liquidação, desde logo, os que emergem do pagamento dos salários, auferidos no período de tal prática ilícita, sem a devida contrapartida de trabalho e angariação de obras, inerentes descontos para a segurança social, despesas emergentes do uso da viatura para fins alheios ao serviço e inerentes ao desvio de clientela para a terceira Recorrida, que devia ter sido angariada e encaminhada pelos Recorridos singulares para a sua entidade patronal aqui Recorrente no âmbito das suas funções e deveres laborais. – cfr. página 17 de 39. Do Acórdão. 10. Pelo que, ao contrário do sufragado, além do pedido liquidado de € 88.000,00 emergente da perda da cliente S... a Recorrente peticionou o pagamento de uma indemnização, a liquidar ulteriormente, designadamente em execução de sentença, decorrente de outros prejuízos patrimoniais relevantes, que enunciou. 11.-Já, no que tange aos danos emergentes da perda do cliente S..., além da matéria factual que consta do item 23 do elenco dos factos provados importa ter em consideração toda a factualidade assente em 3 , 4, 10, 11, 12, 13 e 15 do mesmo elenco, onde pontua o facto de a referida cliente francesa, acompanhada pelos Réus singulares, estar vinculada à recorrente por um contrato celebrado em 1 de setembro de 2020, com a duração de 18 meses, que denunciou em 16 de fevereiro de 2021, com a justificação da situação de pandemia, para logo em 1 de abril de 2021 celebrar com a terceira ré um novo contrato, na generalidade e em termos semelhantes ao supra referido (incluindo o respectivo teor e layout, pelo prazo de dezoito meses e em condições de pagamento até desfavoráveis a tal cliente. 12.O que traduz um inequívoco desvio de clientela, protagonizado, de forma concertada por todos os Réus mediante a celebração de um novo contrato pelos réus singulares, em representação da ré sociedade, ainda na vigência da relação laboral com a recorrente, que só cessou por denúncia por aqueles operada, por cartas datadas de 1 de março de 2021, com efeitos a 30 de abril de 2021 – cfr. item 20 da factualidade assente. 13.Donde se conclui pela inequivocidade de tal conduta gravemente violadora do dever de lealdade contratual, na vertente de concorrência desleal, não se mostrar meramente indiciada, antes patente na outorga do dito novo contrato com a cliente da Recorrente na vigência da relação laboral, quando os Réus ainda estavam sujeitos, por força da lei, a tal dever, a legitimar a condenação peticionada dos Recorridos em indemnização pelo valor da perda, liquidada em € 88.000,00. 14.A presente acção deu entrada em juízo em 20 de abril de 2021, portanto na vigência da relação laboral entre a Recorrente e os Recorridos singulares, que terminou em 30 de abril de 2021, que impõe a estes um dever de lealdade para como empregador, que emana do princípio da boa fé (artigos 762º, nº 2 do CC e 126º, nº 1 do Código do Trabalho (CT). 15.Tal dever tem implícita a obrigação de o trabalhador proteger ou defender os interesses do empregador, bem como direcionar todos as suas forças laborais para a atividade profissional desenvolvida ao serviço deste, abstendo-se, em último caso, de competir com ele (ut artigo 128º, nº1, al. f) do CT), o que manifestamente não ocorreu no caso vertente, com reiterada e grosseira violação de tais deveres laborais, por parte dos Recorridos singulares. 16.A obrigação ou dever de não concorrência verifica-se tanto nos casos em que o trabalhador desenvolve por si uma atividade concorrente com a atividade desenvolvida pelo seu empregador, como nos casos em que o trabalhador se organiza numa empresa que concorra com aquele, como ocorre no caso vertente, em que os Recorridos singulares constituíram entre si a terceira recorrida, Imperium Fachadas 150, Ld.ª, em 7 de janeiro de 2021, de que são únicos sócios e gerentes e tem idêntico objecto ao da Recorrente, tudo no âmbito de uma situação de privilégio, que no caso da S... ia ao ponto de o acesso e contactos com a mesma serem exclusivos dos Recorridos, mercê da confiança em si depositada pela gerência da Recorrente, como se provou. 17.Tais actos de concorrência desleal foram praticados, em conjunto e de forma concertada, por todos os réus, singulares e sociedade, com recurso aos meios, disponibilizados pela Recorrente, com evidência para a telemóvel, computador, fotocopiadora e viatura que a (…1) 18.Donde se conclui que tal actuação concertada dos Réus configura, uma violação aos artigos 311.º e 314.º do Código da Propriedade Industrial (CPI) e não de uma mera violação do dever de lealdade. 19.É relevantíssimo concluir ainda, com a melhor doutrina, que os deveres de lealdade, confidencialidade, não concorrência dos trabalhadores, existentes na pendência de um contrato, sobrevivem ao seu fim, independentemente da necessidade de qualquer estipulação, numa manifestação de pós eficácia dos deveres que as partes tinham na pendência do contrato. – cfr. neste sentido, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, II, 2.ªedição, revista e atualizada, Almedina2008, 950 a 955; Júlio Gomes, Direito do Trabalho, I CoimbraEditora2007, 608a623. e, por paradigmático de Jorge Artur Costa e José Miguel Pinto, intitulado “A pós-eficácia do dever de lealdade do trabalhador Responsabilidade Civil, o novo Código de Propriedade Industrial e as suas implicações jurídico-laborais (Concorrência desleal e segredos de negócio)”, citado no contexto das presentes. 20. É também mister concluir, ao contrário do sufragado na douta decisão em crise, que as obras efectuadas pela Imperium Fachadas entre janeiro e abril de 2021,conforme emerge do item 22 do elenco dos factos provados , o foram no âmbito da relação laboral com a Recorrente, quando sobre os Recorridos impendia a obrigação de proteger e defender os interesses do empregador, daquela, bem como direcionar todos as suas forças laborais para a atividade profissional desenvolvida ao serviço da mesma, abstendo-se de competir com a mesma, competindo a estes, no exercício das suas funções afectar a angariação de tais clientes e serviços àquela, que para tais efeitos lhes estava a pagar a competente retribuição e a disponibilizar os necessários meios, com evidência para telemóvel e viatura, no âmbito da actividade laboral desenvolvida. 21.Donde emerge a conclusão de que tal conduta concertada consubstancia facto ilícito danoso, gerador de responsabilidade civil e inerente obrigação de indemnizar. 22. Diverge-se do sufragado na decisão em crise quanto ao desvio de trabalhadores, quando se considera não assumir relevância para efeitos de concorrência desleal, posto que o que está em causa não é a anuência dos mesmos ao convite, mas antes o intencional acto de aliciamento, plenamente provado em 16 do elenco dos factos provados, o número de trabalhadores em causa e o facto de tal conduta ter recaído sobre trabalhadores essenciais, deslocados na obra em França, afecta à S..., que viria a contratar os serviços da terceira ré, ainda na constância da relação laboral. 23.Importa ainda concluir quanto ao pedido de indemnização por perdas e danos patrimoniais e não patrimoniais em virtude dos actos de concorrência desleal, cuja liquidação se relegou para ulterior fase, designadamente em execução de sentença, que comporta, a um tempo, a comprovada actividade, culposa violadora dos deveres laborais de lealdade e não concorrência dos Recorridos, gravemente lesiva dos interesses patrimoniais da Recorrente, a quem causou prejuízos relevantes. 24.Onde pontua o pagamento pela Recorrente dos salários, auferidos no período de tal prática ilícita (entre 1 de Janeiro e 30 de Abril de 2021), sem a devida contrapartida de trabalho e angariação de obras, inerentes descontos para a segurança social (conforme documentos 5a12 juntos com a p.i.), despesas emergentes do uso da viatura para fins alheios ao serviço e inerentes ao desvio de clientela para a terceira Recorrida que proporcionou a esta receitas no montante de € 29.075,00 (como consta da informação da AT de fls 30), que devia ter sido angariada e encaminhada para aquela no âmbito das respectivas suas funções e deveres laborais - cfr item22 do elenco dos factos provados, , bem assim, do aliciamento e desvio de funcionário, o que tudo prejuízo ressarcível por via indemnizatória constitui. 25.Do cotejo do alegado e concluído, tendo presente a abundante prova produzida e a factualidade assente pelas instâncias, reproduzida no contexto, decorre que o douto Acórdão em crise realizou deficiente e errática interpretação e aplicação da lei, com evidência para os artigos 126º, nº1 e 128, nº1 al. f) do CT, 762º do C.C., 311º e 314º do CPI, 483º do CC, a impor revogação do decidido e a condenação dos Recorridos nos pedidos formulados.” ◊ ◊ ◊ 6) Os autos não evidenciam que os réus recorridos tenham apresentado articulado de resposta às alegações de recurso de revista interposto pela autora. ◊ ◊ ◊ 7) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir. Tendo em conta o teor das decisões impugnadas e das conclusões das alegações do recurso interposto as questões a decidir na presente revista são as seguintes: - a da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (artigo 615.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil); - a do direito à peticionada indemnização com base na responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos de concorrência desleal por parte dos réus. ◊ ◊ ◊ ◊ II - FUNDAMENTAÇÃO Parte I – Os Factos 1) São os seguintes os factos provados em primeira e segunda instância, tal como se mostram descritos no acórdão recorrido: “1. A autora é uma sociedade comercial por quotas, cuja constituição remonta ao ano de 2001, que tem por objecto a construção de edifícios, revestimentos, impermeabilizações, compra e venda de prédios rústicos e urbanos, construção de prédios para venda, café snack bar, com atribuição do CAE 41200-R3. 2. A primeira ré, AA, que é irmã da sócia e gerente da autora, CC e já havia sido sócia e gerente da autora, foi trabalhadora subordinada da mesma, tendo sido admitida ao serviço em 1 de junho de 2011, com a categoria de engenheira civil. 3. Sendo pessoa em que a autora e a sua gerência sempre depositaram a maior confiança, com acesso a informação relevante da autora e aos clientes desta, acompanhando a promoção, orçamentação e planificação das obras, gestão e fiscalização e controlo das mesmas. 4. Com evidência para as decorrentes em Portugal e França, mormente junto da cliente S..., com sede em .... 5. O segundo réu, BB, que é primo da referida CC, foi igualmente trabalhador subordinado da autora, desde 11 de fevereiro de 2010, categorizado como controlador de qualidade, exercendo funções de elevado grau de confiança, com acesso a toda a informação relevante da autora e aos clientes desta, com controlo directo da orçamentação, gestão e fiscalização das obras da autora, com evidência para as supra referidas em 4. 6. No exercício das suas funções laborais os réus contribuíram e tiveram acesso a todo o know how, gestão, métodos e informação da autora, quer internamente, quer no contacto com clientes, de que detêm todos os elementos de identificação e contactos, deslocando-se em equipa, em viaturas da autora, as últimas das quais da marca Citroen, modelo Berlingo, com a matrícula ..-XE-.. e Toyota, modelo Yaris, com a matrícula ..-VX-.., com custos de deslocação e estadia pela mesma suportados. 7. Dispondo ainda, para o exercício das suas funções, de um computador Desktop, cada, nas instalações da Autora e de um telemóvel, cada um deles, disponibilizado pela empresa Autora, com custos igualmente suportados pela mesma. 8. Em 7 de Janeiro de 2021, os 1.ª e 2.º Réus constituíram entre si a terceira Ré, Imperium Fachadas 150, Lda., que sedearam no domicílio da primeira Ré. 9. Desde então a 3.ª Ré anunciou a sua actividade nas redes sociais, designadamente no Facebook. 10. A S... supra identificada em 4) mantinha com a Autora um contrato de prestação de serviços, que assegurava àquela um volume de negócios de cerca de € 20.000,00 mensais. 11. E era, de entre os clientes da Autora, um cliente cumpridor em termos de pagamentos, o que lhe permitia assegurar a sua subsistência mensal e o pagamento pontual de compromissos inerentes ao seu funcionamento. 12. Esta cliente comunicou à Autora, em 16 de fevereiro de 2021, ter que cessar o último contrato celebrado em 1 de setembro de 2020, com a duração de 18 meses, justificando-se com a situação de pandemia. 13. Do referido contrato constava que o pagamento era a 30 dias. 14. Em 1 de Abril de 2021, a supra identificada S... celebrou com a terceira Ré um novo contrato, na generalidade em termos semelhantes ao supra referido no ponto anterior (incluindo o respectivo teor e layout), pelo prazo de dezoito meses. 15. Deste contrato constava que o pagamento era 50% a pronto e 50% a 30 dias. 16. O 2.º Ré abordou os funcionários da Autora DD, EE, FF, GG, ao tempo a trabalhar numa obra em França, e HH para que os mesmos fossem trabalhar para a 3.ª Ré. 17. Dos referidos identificados trabalhadores da Autora, o GG aceitou a proposta do 2.º Réu, despedindo-se daquela. 18. Os restantes identificados trabalhadores da Autora não aceitaram a proposta do 2.º Réu e mantiveram-se a trabalhar para a Autora. 19. A 3.ª Ré contratou os seguintes trabalhadores que inscreveu na Segurança Social: II em 16/03/2021, JJ em 29/03/2021, GG em 31/03/2021, KK em 31/03/2021, LL em 6/04/2021, KK em 31/03/2021, MM em 18/05/2021, NN, em 31/05/2021, OO em 16/06/2021, PP em 29/06/2021 e QQ em 3/08/2021. 20. Os 1.ª e 2.º Réus formalizaram, por cartas datadas de 1 de Março de 2021 dirigidas à Autora, o fim dos respectivos contratos de trabalho, com efeitos a 30 de Abril de 2021, entrando no gozo de férias vencidas no período de 17 de Março a 30 de Abril de 2021. 21. A 3.ª Ré comprou as suas máquinas no mesmo abastecedor da Autora 22. A 3.ª Ré realizou trabalhos para: a R..., Lda. que facturou em 29/01/2021 e em 28/02/2021; RR que facturou em 28/02/2021; R...Unipessoal, Lda. que facturou em 28/02/2021 e 31/03/2021; SS que facturou em 30/03/2021; TT que facturou em 30/03/2021; J...Unipessoal, Lda. que facturou em 20/04/2021 e I...Unipessoal, Lda. que facturou em 23/04/2021. 23. A S... permitia à Autora uma facturação média mensal de cerca de 20.000,00 €. 24. A 1.ª Ré foi gerente e sócia da Autora até 28/10/2015, altura em que vendeu a sua quota à actual sócia-gerente da Autora. 25. A 1.ª Ré assinava as empreitadas na sua qualidade de engenheira civil, orçamentando, planificando e gerindo a execução das obras. 26. O 2.º Réu controlava a gestão e fiscalização das obras. 27. No exercício da sua actividade, como funcionários da Autora, os Réus sempre tiveram à sua disposição os instrumentos de trabalho, como computadores e fotocopiadoras, que a Autora disponibilizava. 28. Ao 2.º Réu estava atribuída 24 horas por dia uma viatura disponibilizada pela Autora. 29. A 1.ª Ré, desde que cedeu a sua quota, deixou de ter viatura da empresa. 30. Sempre que se deslocava em trabalho para a Autora, a 1.ª Ré era transportada pelo 2.º Réu na viatura da Autora que este utilizava. 31. No ano de 2020, as situações de conflito existentes entre, por um lado, a 1.ª e o 2.º Réus e, por outro, UU, companheiro da supra identificada CC, também funcionário da Autora, criaram naqueles um estado de desconforto e desânimo por se sentirem desautorizados e subalternizados. 32. Considerando, por isso, não existir condições para exercerem as suas funções, a 1.ª e o 3.º réus decidiram sair da empresa e iniciar uma actividade por conta própria, o que fizeram com conhecimento da Autora, na pessoa da sua sócia-gerente CC, a quem comunicaram tal decisão nos primeiros dias de Janeiro de 2021. 33. Por acordo entre a Autora e a 1.ª e o 2.º Réus, a saída destes foi adiada para 1/03/2021 nos termos sobreditos em 20) por forma a permitir uma fase de transição das funções desempenhadas pelos mesmos para outros colaboradores da Autora. 34. Em 24 e 25 de Março de 2021, os Réus interromperam as suas férias para levar e acompanhar o supra identificado UU a França e aí lhe apresentar os clientes franceses Su... e SEF por forma a preparar as passagem de funções em face da saída iminente dos Réus.” ◊ ◊ ◊ 2) Foi, por outro lado, dado por não provado que: “- a 1.ª ré seja trabalhadora da autora; - a 1.ª ré tivesse acesso a toda a informação relevante da autora; - a 1.ª ré acompanhasse a angariação de obras; - o 2.º réu seja trabalhador da autora; - os réus tenham planeado concorrer de forma desleal com a autora; - tenham saído e iniciado actividade através da 3.ª ré sem conhecimento da autora; - tenham usado de forma ilícita e reprovável os meios e informações de que dispunham; - tenham agido na mira de subtrair clientes à autora; - os réus tenham encetado contactos com a S...; - a S... fosse, dos clientes da autora, o mais cumpridor em termos de pagamentos; - esta cliente tivesse sido aliciada pelos réus; - esta cliente tivesse feito cessar o contrato com a autora em conluio com os réus; - os réus tenham aliciado funcionários da autora; - os réus tenham usado ilícita e indevidamente os meios disponibilizados pela autora em violação dos seus deveres laborais. - tenham passado a ocupar o seu tempo de serviço a aliciar clientes da autora e a promover e contratar serviços para a terceira ré; - tenham levado a cabo o seu propósito com recurso à correspondência electrónica, aos telefonemas e ao serviço de mensagens instalados nos computadores da autora, equipamentos e meios disponibilizados por esta para o exercício das respectivas actividades laborais; - os 1.ª e 2.º réus se tenham socorrido de informação exclusiva da autora e do layout da autora em documentos como propostas de orçamento, autos de medição, facturas. - se tenham limitado a substituir o logotipo de denominação da autora pelo da terceira ré; - tenham orçamentado, contratado e realizado serviços de reabilitação de fachadas com o recurso a capoto, em diversas obras em Portugal, designadamente em ... e ...; - a gerência da autora só tenha tomado conhecimento da actividade iniciada pela 3.ª ré em Março de 2021; - os réus tenham desviado da autora a cliente S...; - os réus tenham determinado uma perda de receita bruta de 220.000,00 €; - os 1.ª e 2.º réus tenham deixado o serviço à autora em 31 de Maio de 2021; - não tivessem telemóvel; - a sócia gerente da autora exercesse pressão diária de subalternização dos 1.ª e 2.º réus, lhes desse ordens contraditórias e os desconsiderasse pessoal e profissionalmente; - a 3.ª ré tenha começado a trabalhar a partir de Maio de 2021. “ ◊ ◊ ◊ Parte II – O Direito 1) A autora formulou nesta acção declarativa o pedido de condenação dos réus a absterem-se da prática de actos de concorrência (desleal) e ao pagamento de uma indemnização por “perdas e danos”, que desde logo liquidou em 88.000,00 euros, sem embargo do valor dos danos que viesse a liquidar posteriormente. A autora não se conforma, porém, com as decisões – unânimes ainda que com fundamento diverso – da primeira e segunda instância que não lhe reconheceram o direito que esgrime contra os réus. Vejamos se lhe assiste razão. ◊ ◊ ◊ I. Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia 2) Começa a autora, ora recorrente, por invocar a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre uma assim designada questão que apelida de “pós-eficácia do dever de lealdade” vigente após a extinção da relação laboral entre a autora e os dois primeiros réus, a qual constituiria impedimento à prática de actos de concorrência por parte dos dois primeiros réus, atenta a sua condição de ex-trabalhadores da autora. 3) É sabido que a nulidade invocada está relacionada com o disposto no artigo 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil que faz impender sobre o juiz o dever de resolver todas as “questões”, de direito ou de facto, que as partes tenham submetido à sua apreciação, entendido este vocábulo como referido aos fundamentos da acção ou da reconvenção que tenham sido alegados. Como também é pacifico na doutrina e na jurisprudência, o dever expresso no citado preceito não se reflecte na obrigatoriedade de pronúncia sobre todos os argumentos e considerações em que se possa desenvolver a colocação das questões suscitadas, não estando o juiz obrigado a analisá-los de forma individual e discriminada. O que é essencial é que, em relação às questões colocadas, elas não deixem de ser apreciadas e que sobre elas não seja omitida pronúncia e, bem assim, que a apreciação das questões a decidir seja feita de molde a não suscitar às partes dúvidas sobre a posição do tribunal em relação ao sentido e alcance da decisão. 4) No caso dos autos a acção foi instaurada pela autora com base na prática de alegados actos de concorrência (desleal) por parte dos réus de que terão resultado para ela danos de natureza patrimonial e não patrimonial. A causa de pedir enquadra-se pois no regime da responsabilidade civil extracontratual. O acórdão recorrido analisou de forma rigorosa os factos apurados tendo concluído que os réus iniciaram actividade concorrencial com a desenvolvida pela autora ainda na vigência do contrato de trabalho que ligava os dois primeiros à autora – na sua fase final – tendo concluído pela ocorrência de violação por parte destes do dever de lealdade na execução do contrato de trabalho na vertente da violação da obrigação de não concorrência. 5) Expressou o acórdão recorrido o entendimento de que o que se discute na presente acção não são as consequências no âmbito da relação laboral da violação do dever de lealdade e de não concorrência que incide sobre os trabalhadores em relação à entidade empregadora. O que se entendeu ser objecto do litígio em juízo foi a prática pelos réus de factos susceptíveis de integrar o conceito de concorrência desleal. Mais considerou o acórdão recorrido que a apurada conduta dos dois primeiros réus, ainda que violadora do dever de lealdade para com a autora (artigos 126.º e 128.º n.º 1 f) do Código do Trabalho), não permitia afirmar a prática pelos réus de actos ilícitos de concorrência desleal. 6) O acórdão recorrido justifica essa conclusão, emitindo pronúncia sobre os elementos da questão central suscitada pela autora, qual seja a da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, entre os quais o da ilicitude dos actos de concorrência desleal praticados pelos réus que pudessem fundamentar, nomeadamente, a atribuição da indemnização peticionada. No contexto da decisão facilmente se percebe ser indiferente o momento da prática dos alegados factos ilícitos bem como a desnecessidade da análise específica do prolongamento do dever de lealdade por parte dos dois primeiros réus em relação à autora. Na realidade não se tendo apurado uma conduta concorrencial dos réus adequada a integrar o conceito de concorrência desleal, nem antes nem depois da cessação do contrato de trabalho que ligava os dois primeiros réus à autora, não assume qualquer relevo por omissão a não referência à circunstância de o dever de lealdade, em tese, se poder prolongar para além do termo de tal contrato de trabalho. Sem apreciar se, de facto, o dever de lealdade inerente à relação laboral se prolonga para além da cessação da sua fonte contratual original quando, como no caso, não seja expressamente convencionada a obrigação de não concorrência posterior à cessação da relação laboral, evidente se torna que a apreciação da sua persistência só faz sentido na presença dos pressupostos de facto que sustentem a verificação de concorrência desleal. No caso, não ocorre a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia invocada pela autora, já que a questão da concorrência desleal suscitada pela autora foi conhecida no acórdão recorrido em toda a sua extensão relevante. Improcedem, pois, as conclusões do recurso de revista relativas a esta matéria. ◊ ◊ ◊ II. Do mérito do pedido de indemnização por concorrência desleal 7) A presente acção – em razão do pedido formulado, com relevo para o pedido de condenação em indemnização e da causa de pedir que lhe serve de suporte – funda-se na prática pelos réus de actos ilícitos consubstanciadores de concorrência desleal da actividade desenvolvida pelos dois primeiros réus e pela sociedade de que eles são sócios e gerentes, de que resultaram alegados prejuízos para a autora. Trata-se de uma típica acção de condenação em indemnização de danos causados, interposta com base em responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos, consistindo estes no desenvolvimento de uma actividade ilícita de concorrência entre a autora e a terceira ré, criada e gerida pelos restantes dois réus. Ainda que com fundamento diverso ambas as instâncias julgaram improcedente a acção, tendo o acórdão recorrido feito clara distinção – no que tange ao preenchimento do requisito da ilicitude da conduta dos réus – entre o sancionamento dos actos violadores do dever de lealdade e da obrigação de não concorrência inerente à relação laboral que os dois primeiros réus mantiveram com a autora até finais de abril de 2021 e o dos actos, igualmente ilícitos mas num plano diferente, susceptíveis de ser integrados no conceito de concorrência desleal. Segundo o acórdão recorrido só estes últimos teriam a virtualidade de fazer incorrer os réus em responsabilidade civil perante a autora no contexto da presente acção, independentemente das repercussões que os actos praticados pudessem ter sobre a relação laboral existente entre a autora e os dois primeiros réus. 8) De acordo com o estipulado no artigo 128.º n.º 1 alínea f) do Código do Trabalho o trabalhador tem o dever de “guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios”. Uma vez que ainda na vigência do contrato de trabalho que os ligava à autora, os dois primeiros réus, através de uma sociedade por ambos constituída deram início ao desenvolvimento de actividade concorrencial com a da autora, incorreram em violação do dever de lealdade e da obrigação de não concorrência a que estavam vinculados em relação à sua entidade patronal. 9) A dúvida que em primeiro lugar se coloca primeira questão é a da equivalência entre a violação da obrigação de não concorrência do trabalhador em relação à sua entidade empregadora, enquanto vicissitude na execução do contrato de trabalho susceptível de provocar a sua cessação e eventual reparação de prejuízos causados e a prática de actos praticados por ex-trabalhadores que possam integrar o conceito de concorrência desleal. A violação do dever de lealdade através de actos de concorrência comercial por parte do trabalhador, independentemente de ter ou não sido causa de prejuízo material para a entidade patronal, constitui sempre um vício no cumprimento do contrato de trabalho que legitima a não manutenção do contrato dessa forma incumprido pelo trabalhador. Mas a violação da obrigação de não concorrência por parte de um trabalhador, operante nos limites da responsabilidade contratual, só ganha relevo enquanto pressuposto de responsabilidade civil extracontratual se a conduta em que ela se traduz permitir a sua integração no conceito de concorrência desleal. 10) A noção de concorrência desleal, enquanto facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual surge na legislação em vigor no artigo 311.º do Código da Propriedade Intelectual (Decreto-Lei 110/2018 de 10 de dezembro), como reportada a qualquer acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica. Estabelece o preceito em causa: “1 - Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente: a) Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue; b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma atividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes; c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios; d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas atividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela; e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adotado; f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.” 11) O artigo 311.º n.º 1 do Código da Propriedade Industrial está construído como uma cláusula geral de carácter valorativo não taxativo, mencionando exemplificativamente alguns dos actos que a podem integrar – e nenhum deles releva directamente para o caso presente – apelando decisivamente a um critério de interpretação normativa assente na contrariedade às normas e aos usos honestos em qualquer ramo de actividade económica. A conclusão sobre a sua verificação demandará sempre uma análise da correcção do contexto da actividade desenvolvida e da sua aceitação social. 12) A concorrência é em si mesma um factor positivo no desenvolvimento económico que tem implícita a existência de uma pluralidade de agentes económicos e de um público consumidor com liberdade de escolha sendo de manifesto interesse público a sua defesa e a vitalidade de um mercado aberto em que os agentes oferecem ao público idênticos bens ou serviços no mesmo espaço geográfico. A concorrência e a luta pela obtenção de posições de privilégio no mercado não é, enquanto tal, um facto ilícito. 13) A ilicitude dos actos de concorrência está directamente relacionada à violação autónoma de normas sociais de conduta ou de regras derivadas de códigos de boa conduta ou dos usos – padrões de conduta social de natureza extrajurídica – adotados em determinados sectores de actividade comercial ou industrial. A concorrência desleal traduz, por isso, e abreviadamente, os actos repudiados pela consciência da generalidade dos agentes económicos, por serem contrários aos usos honestos dos comerciantes e susceptíveis de causar importante prejuízo à empresa de um concorrente no mesmo sector de actividade através, nomeadamente, de aliciamento e usurpação de clientela ou de trabalhadores da empresa concorrente, com vista à criação e expansão de uma clientela própria. 2 14) Perante uma tal formulação normativa do conceito de concorrência desleal, a generalidade da doutrina e da jurisprudência salientam que só a aproximação aos actos concretamente praticados e nas circunstâncias que forem apuradas permite uma conclusão sobre a respectiva ilicitude. Vejamos então o caso dos autos. 15) De relevante o que se apura é que os dois primeiros réus, mantendo uma relação de natureza laboral com a autora para quem exerciam actividade com acesso a informação relevante constituíram entre si uma sociedade que passou a exercer actividade concorrencial da desenvolvida pela autora. Mais se apurou que uma cliente da autora que lhe assegurava “a sua subsistência mensal e o pagamento pontual de compromissos inerentes a seu funcionamento” denunciou o contrato que mantinha com a autora para, cerca de um mês e meio depois, celebrar idêntico contrato com a sociedade criada pelos dois primeiros réus. Apurou-se ainda que o segundo réu abordou cinco funcionários colaboradores da autora no sentido de eles passarem a trabalhar para a terceira ré, tendo um deles acedido a tal convite. 16) Não se provou, no entanto, que a aludida cliente da autora tenha sido aliciada por melhores condições oferecidas pelos réus para denunciar o contrato que ela mantinha com a autora, nem qualquer intervenção dos réus que a tenha levado a tal procedimento. Dos factos apurados resulta aliás que o contrato celebrado com a terceira ré não era mais favorável à aludida cliente do que aquele que mantinha anteriormente com a autora. Tanto quanto se alcança da fundamentação expressa no acórdão recorrido a denúncia do contrato que tal cliente mantinha com a autora e a celebração de idêntico contrato coma terceira ré foi uma decisão tomada com base em diferendos surgidos com responsáveis da autora. 17) Por outro lado, como se salienta no acórdão recorrido, desconhece-se se os trabalhos realizados pela terceira ré que estão indicados no ponto 22 do elenco dos factos provados, foram prestados a anteriores clientes da autora e não a clientes por aquela angariados, nada indiciando que a autora teria sido escolhida para realizar os serviços contratados e deles auferir o respectivo lucro. 18) Relativamente ao único dos cinco trabalhadores da autora convidados a prestar serviço à terceira ré que passou a desenvolver a sua actividade laboral ao seu serviço desconhece-se se se tratava de um elemento da estrutura empresarial da autora essencial ao desenvolvimento da sua actividade e bem assim quais foram as consequências da cessação do contrato de trabalho no âmbito da actividade globalmente desenvolvida pela autora. Ora como pacificamente tem entendido a doutrina, o convite feito a trabalhadores de outra empresa concorrente só constitui acto de concorrência desleal quando, face ao número de trabalhadores envolvidos ou ao seu elevado e relevante grau de conhecimentos pessoais sobre a actividade da empresa concorrente, ele coloque em risco a estrutura empresarial e o seu funcionamento e o normal desenvolvimento da sua actividade. 19) Esta ausência de prova não permite afirmar que os actos comprovadamente praticados pelos réus se situam fora do âmbito de uma concorrência leal, característica do funcionamento de um mercado livre e aberto, nem que ela seja violadora dos já mencionados padrões de conduta adotados pelos agentes económicos em geral no espaço geográfico em que os factos tiveram lugar. Face ao exposto não pode senão concluir-se que não se mostra preenchido o requisito da ilicitude do facto a que alude o artigo 483.º do Código Civil. 20) Sendo cumulativos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos enunciados no artigo 483.º do Código Civil, não pode deixar de improceder a pretensão da autora formulada na presente acção – o ressarcimento pelos réus dos danos que a sua conduta ilícita provocou. Sempre se dirá ainda, no entanto, que, como também salienta o acórdão recorrido, os factos provados não evidenciam outros dois pressupostos da responsabilidade civil: o dano e o nexo de causalidade entre a comprovada conduta dos réus e o dano alegado, liquidado ou a liquidar. Quanto ao dano, não ficou provada a perda de receita bruta de 220.000,00 euros que serviu de base ao cálculo dos danos liquidados e do valor da indemnização liquidada, nem que da conduta concorrencial dos réus tenha resultado para a autora qualquer outro prejuízo. Quanto ao nexo de causalidade, como se disse já, não é possível estabelecer entre a comprovada conduta dos réus e os alegados danos qualquer ligação causal. ◊ ◊ ◊ 21) Em conclusão, nenhuma censura merece ser dirigida ao acórdão recorrido, uma vez que, face ao quadro dos factos apurados nenhuma responsabilidade pelos danos alegadamente sofridos pela autora pode ser imputada aos réus. A revista improcede sendo confirmado o acórdão recorrido, com a consequente absolvição dos réus do pedido. As custas da revista ficam a cargo da autora por nelas ter ficado vencida (artigo 527.º do Código de Processo Civil). ◊ ◊ ◊ ◊ III - DECISÃO Termos em que, julgam improcedente a revista interposta pela autora e confirmam integralmente o acórdão recorrido. A recorrente suportará as custas do presente recurso. Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 4 de junho de 2024 Manuel José Aguiar Pereira (Relator) Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro Jorge Manuel Leitão Leal _____________________________________________ 1. Frase assim incompleta no original↩︎ 2. Por sua vez o artigo 314.º do Código da Propriedade Industrial, também invocado pela recorrente, esclarece o que constituem actos ilícitos no âmbito da protecção de segredos comerciais, do qual apenas merece referência o previsto genericamente na alínea b) do seu n.º 1 – “outra conduta que, nas circunstâncias específicas em que ocorre, seja considerada contrárias às práticas comerciais honestas”.↩︎ |