Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1082/04.1TBVFX.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: BRISA
AUTO-ESTRADA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CULPA PRESUMIDA
ILICITUDE
ÓNUS DA PROVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. A responsabilidade da BRISA por danos sofridos pelos utentes das auto-estradas de que esta é concessionária situa-se no campo da responsabilidade extracontratual.

2. Devendo considerar-se a auto-estrada uma coisa imóvel, sobre a qual – com todo o contexto envolvente, os acessórios de que a concessionária é detentora, integrando vedações, estruturas para a cobrança das portagens, placas de sinalização, separadores de sentido de trânsito, sinalização de emergência, etc. – detém um poder de facto, com o dever de a vigiar, a BRISA responde por culpa presumida, nos termos do n.º 1 do art. 493º do Cód. Civil.

3. Ponto é que se possa afirmar a existência de um nexo de causalidade entre a coisa, a auto-estrada, e o dano, sendo, pois, necessária a constatação de um defeito, de uma anomalia ou anormalidade no seu funcionamento, v.g., um defeito de construção, de manutenção, de sinalização ou de iluminação. A existência de um destes vícios objectivos faz presumir não só a culpa da concessionária como também a ilicitude (violação de um dever), já que estamos perante deveres de agir para evitar danos para terceiros e, portanto, perante delitos de omissão, sendo que a violação do dever é aqui elemento da ilicitude.

4. Ao lesado caberá provar, num plano puramente objectivo, a existência do vício e o nexo de causalidade entre este e o dano.

5. O art. 12º, n.º 1 da Lei 24/2007, de 18 de Julho – que faz recair sobre a concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança nas auto-estradas, em caso de acidente rodoviário – tendo natureza interpretativa, não veio dirimir a querela sobre a natureza contratual ou extracontratual da responsabilidade civil, não podendo ver-se em tal norma a clarificação como contratual da natureza dessa responsabilidade.

6. A formação de um lençol de água no pavimento da auto-estrada, em condições de fazer com que os veículos entrem em hidroplanagem por falta de aderência dos pneumáticos, constitui um evento que obriga a concessionária a tomar as medidas necessárias para evitar a causação de danos aos condutores, designadamente pela sinalização adequada do local.

7. O ónus da prova da formação de um lençol de água, em condições de provocar a entrada em hidroplanagem do veículo sinistrado e o consequente despiste para fora da via – matéria cuja objectiva demonstração era, no caso concreto, necessária para que pudesse presumir-se quer a violação, pela BRISA, do dever de assegurar a circulação em condições de segurança, quer a culpa na violação desse dever – impendia sobre os lesados, os autores. Não provada, por estes, a anomalia, nem, consequentemente, o nexo de causalidade entre esta e o dano, não chega a colocar-se a questão da ilicitude da conduta da ré nem a sua culpa na produção dos danos verificados.

8. Para haver obrigação de indemnizar, nos termos do art. 483º do CC, exige-se, além do mais, a prática de um acto ilícito ou antijurídico, que se revela ou através da violação de um direito de outrem ou através da violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

9. Neste segundo tipo de ilicitude, para que o lesado tenha direito à indemnização, é necessária a verificação de três requisitos:
a) que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, ou seja, a não adopção de um comportamento definido em termos preciso pela norma;
b) que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada;
c) que o dano se tenha registado no âmbito do círculo de interesses privados que a lei visa proteger.

10. As Bases XXXVI, n.º 3 e XXXVII, n.º 1 do anexo ao Dec-lei 294/97, de 24 de Outubro (diploma que estatui sobre as bases da concessão), impõem à BRISA deveres que obrigam à implementação dos mecanismos necessários para garantir a monitorização do trânsito, a detecção de acidentes e a consequente informação de alerta aos utentes, bem como a assegurar-lhes a assistência, incluindo a vigilância das condições de circulação, visando assegurar a satisfação cabal e permanente, pelas auto-estradas. do fim a que se destinam, permitindo aos que as usam (aos utentes) a circulação em boas condições de segurança e de comodidade.

11. São, pois, os utentes das auto-estradas, os titulares dos interesses que estas normas visam proteger.

12. No caso em apreço, os autores não pertencem ao círculo de pessoas titulares do interesse cuja protecção as citadas normas visam assegurar; as normas de conduta em causa, que a BRISA está obrigada a respeitar, não têm como finalidade a protecção do bem lesado. O dano não patrimonial dos autores, traduzido no sofrimento e angústia por eles suportados durante cinco dias, até ao aparecimento dos corpos dos progenitores, e decorrente de não saberem estes vivos ou mortos, admitindo a existência de rapto e sequestro ou homicídio de que tivessem sido vítimas, não se efectivou no próprio bem jurídico ou interesse privado tutelado pelas normas constantes das aludidas Bases.

13. Não pode, assim, haver-se por verificado, na conduta da BRISA, o requisito da ilicitude, inexistindo, por isso, obrigação de indemnizar o referido dano não patrimonial.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.

AA, BB e CC intentaram, em 02.03.2004, no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Vila Franca de Xira, contra BRISA – Auto Estradas de Portugal, S.A., acção com processo ordinário, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 251.000,00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação.
Como fundamento alegam, em síntese, o seguinte:
No dia 09.03.2001, entre as 18.30 e as 19.30 horas, na A1 (Auto Estrada do Norte), ao Km 25, ocorreu um acidente de viação, traduzido em despiste, para fora da via, do veículo Mercedes de matrícula ...-...-IB, que era conduzido, no sentido Sul-Norte, pelo pai dos autores, DD, e no qual seguia também a mãe dos mesmos, esposa do condutor, EE.
O local do acidente é considerado um dos “pontos negros” das nossas estradas, em consequência da acumulação da água no pavimento, que faz com que os veículos entrem em hidroplanagem por falta de aderência dos pneumáticos, sendo vulgar que, tal acontecendo, se despistem veículos das marcas BMW e Mercedes, dado que dispõem de tracção traseira.
A ré não tinha desenvolvido, à data, nos locais mais sujeitos à verificação de situações de hidroplanagem – designadamente naquele Km 25 – todos os necessários esforços para obviar a tal problema, nem procedera a sinalização temporária de “perigos vários” ou “pavimento escorregadio” quando tal situação se verificara.
No momento do acidente chovia intensamente e o veículo ter-se-á despistado em consequência de uma situação de hidroplanagem, tendo levantado voo, descontrolado, embatido no “rail” de protecção à direita da via, e derrubado, com a parte traseira, o sinal de “Área de Serviço de Aveiras – 20 Km” aí existente, do lado de fora do rail, acabando por se imobilizar numa fossa ou caixa de águas, ao fundo de um declive, e vindo, em consequência, a ocorrer o falecimento dos pais dos autores.
No dia do acidente o autor BB aguardava os pais, num restaurante perto de Pombal, para jantarem, e, estranhando a demora destes, tentou contactá-los por telemóvel, sem obter resposta, pelo que alertou para o atraso e a falta de contacto o irmão AA, tendo ambos feito diligências várias para averiguar da ocorrência de acidente ou avaria, entre elas o contacto com a ré, que respondeu negativamente, tal como as demais entidades contactadas.
Cada vez mais preocupados – e depois de o AA, já noite fechada, haver feito, a velocidade reduzida, o percurso que os pais fariam até ao restaurante, tentando aperceber-se de eventuais vestígios de acidente, e terem resultado infrutíferos os contactos feitos para hospitais, forças policiais, bombeiros e INEM – resolveram, na madrugada do dia 10, dar conta do desaparecimento dos pais e do veículo na GNR de Pombal, e fizeram o mesmo, mais tarde, na Polícia Judiciária, admitindo a hipótese de rapto ou de homicídio.
O desespero dos autores – agora já com a presença física da autora CC, que se deslocou propositadamente de Itália, onde residia – agravou-se nos dias seguintes, até que no 5º dia, já depois de à notícia do desaparecimento ter sido dado larga difusão pela comunicação social, foram informados de que uma equipa de reparação ao serviço da ré havia descoberto, no local supra indicado, o veículo, meio submerso, dentro dele se achando, sem vida, os pais dos autores.
Para além do intenso sofrimento sentido, sentem-se os autores revoltados perante a conduta da ré que, não obstante os seus insistentes pedidos para averiguar devidamente os factos para os quais foi sucessivamente alertada, se limitou a uma abordagem ténue e superficial do assunto, não fazendo as necessárias pesquisas a partir dos vestígios existentes – amolgamento do rail e derrube completo do sinal de simples indicação referido – e não respeitando as obrigações que lhe são impostas por lei, decorrentes da exploração que lhe foi concedida, assim mantendo, por sua incúria, falta de cuidado e irresponsabilidade, os autores, durante cinco dias, no completo desconhecimento do que acontecera com seus Pais.
Está assim a ré – rematam os autores – constituída na obrigação de os indemnizar pela lesão do direito à vida de seus Pais, dano que computam em € 50.000,00 por cada um deles, e ainda pelos danos não patrimoniais sofridos pelos próprios demandantes, que entendem dever ser indemnizados com o montante de € 50.000,00 para cada um, sendo ainda devida aos autores BB e AA a quantia de € 1.000,00 pelas despesas telefónicas e de deslocações que fizeram durante os cinco dias até à descoberta do veículo acidentado e dos corpos das vítimas.

A ré, na sua contestação, deduziu a intervenção principal de COMPANHIA DE SEGUROS F...- M..., S.A., alegando a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção da A1, e a intervenção principal do ESTADO PORTUGUÊS, por ser o competente, através da GNR, dependente do Ministério da Administração Interna, para fazer o controle e a disciplina do tráfego rodoviário nas auto-estradas; e impugnou os factos alegados pelos autores quanto às causas do acidente, alegando ainda que fez o que tinha de fazer face às suas obrigações decorrentes do contrato de concessão, concluindo por pedir a sua absolvição do pedido.

Foi proferido despacho judicial admitindo a intervenção da seguradora e indeferindo a do Estado.
A seguradora deduziu a sua intervenção, apresentando contestação em que, além do mais, remete para a contestação da ré, pugnando pela sua absolvição.

O INSTITUTO DA SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL deduziu pedido cível contra a ré, para ser reembolsado da quantia de € 2.158,30, respeitante a auxílio para despesas de funeral que satisfez ao autor BB – pretensão a que a ré deduziu a pertinente oposição.

O processo seguiu a sua normal tramitação, vindo a efectuar-se o julgamento e a ser proferida sentença que, considerando parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos autores, condenou a Companhia de Seguros F...- M..., S.A. a pagar:
a) a cada um dos autores AA, BB e CC a quantia de € 30.000,00 (danos não patrimoniais);
b) aos mesmos autores, em conjunto, o montante de € 100.000,00 (perda do direito à vida dos progenitores);
c) juros de mora à taxa legal sobre tais quantias, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;
d) aos três autores, a quantia despendida em deslocações e chamadas telefónicas, a liquidar em execução de sentença.
Foi ainda julgado procedente o pedido de reembolso formulado pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social e, consequentemente, condenada a ré BRISA-Auto Estradas de Portugal, S.A. a pagar-lhe a quantia de € 2.158,30, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
No demais, foram as rés absolvidas dos pedidos formulados pelos autores.

Da sentença interpuseram recurso de apelação a seguradora interveniente e a ré BRISA.
E a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, julgou procedente a apelação da ré e parcialmente procedente a apelação da interveniente seguradora, tendo
A) revogado a decisão recorrida na parte em que condena a seguradora a pagar aos autores a quantia de € 100.000,00, acrescida de juros, nessa medida a absolvendo do pedido;
B) revogado a decisão recorrida na parte em que condena a ré BRISA a pagar ao ISSS a quantia de € 2.158,30, acrescida de juros, nessa medida absolvendo a ré do pedido;
C) alterado a decisão recorrida no tocante à quantia (€ 30.000,00) que a seguradora foi condenada a pagar a cada um dos autores, fixando a indemnização em € 15.000,00 para cada um deles;
D) mantido, quanto ao mais, a decisão recorrida.

Do acórdão da Relação recorrem agora, de revista, a seguradora e os autores.
A seguradora conclui as suas alegações pela forma seguinte:
1. A ré BRISA cumpriu, no caso, para com as vítimas, todas as obrigações para a mesma advenientes do contrato de concessão e do contrato com estas celebrado, relativo à prestação dos serviços inerentes à utilização da auto-estrada, contra o pagamento de um preço (portagem);
2. Nomeadamente, cumpriu a obrigação de dispor e utilizar um sistema de detecção de acidentes, bem como a de prestar auxílio às vítimas destes;
3. Ao assim não entender, o acórdão recorrido interpreta e aplica mal ao caso dos autos, o disposto nas Bases XXXVI, n.º 2 e XXXVII, n.º 1, anexas ao Dec-lei 294/97, de 24 de Outubro, violando esses preceitos;
4. Mesmo que assim se não entendesse, os autores, que no caso dos autos não são utentes da via, não dispõem de legitimidade para reclamarem quaisquer danos, e muito menos danos de natureza não patrimonial;
5. Mesmo que assim se não entendesse, a ora recorrente sempre deveria ser absolvida, porquanto a responsabilidade da BRISA seria, a tal título, de natureza estritamente contratual, e, por via do contrato de seguro, apenas foi transferida para a recorrente a responsabilidade extracontratual daquela;
6. Assim não tendo decidido, o acórdão recorrido interpreta mal o contrato de seguro, e nessa medida viola o disposto no art. 238º, n.º 1 do Cód. Civil;
7. A decisão recorrida também viola o contrato de seguro e o referido normativo, ao não descontar, do valor da indemnização arbitrada, o da franquia com que o contrato de seguro vigorava;
8. A decisão recorrida viola o disposto no art. 496º, n.º 3 do Cód. Civil, ao fixar em mais de € 5.000,00 por cada autor o montante da compensação dos danos não patrimoniais que lhes arbitra,
9. devendo ser substituída por outra que absolva a ora recorrente.

Por seu turno os autores, no remate da sua peça alegatória, formulam um vasto leque de conclusões, que assim se podem sintetizar:
1ª - A ausência de sinalização de “perigos vários” ou “pavimento escorregadio” constitui de per si facto ilícito, culposo e passível de produzir o dano verificado, não procedendo o argumento de que a chuva intensa é um facto notório que não carece de ser sinalizado, uma vez que a mesma afecta muito negativamente as condições de segurança rodoviária, pelo que a recorrida BRISA estava obrigada a sinalizar tal facto, de acordo com as Bases anexas ao contrato de concessão celebrado com o Estado Português;
2ª - É jurisprudência unânime a de que as Bases anexas ao Dec-lei 294/97, de 24 de Outubro, têm carácter normativo, ou seja, eficácia externa relativamente às partes do contrato, enquadrável na figura dos contratos com eficácia de protecção de terceiros;
3ª - A conduta da recorrida violou, por omissão, as Bases XXII, n.º 5, al. b), XXXIII, XXXVI e XXXVII do contrato de concessão que celebrou com o Estado Português, ao não colocar no local do despiste a sinalização temporária de “perigos vários” ou “pavimento escorregadio”, a que se achava obrigada atendendo ao constante de tais Bases e ao facto de ter chovido intensamente durante o dia inteiro, afectando tal facto muito negativamente as condições de segurança rodoviária;
4ª - Nos termos do disposto no art. 486º do Cód. Civil impendia sobre a recorrida a obrigação de praticar o acto omitido;
5ª - Ao não sinalizar a via nos termos expostos, agiu a recorrida com culpa, pois que, em face das circunstâncias do caso concreto, impunha-se-lhe que agisse de outro modo, quer face aos termos da lei quer de acordo com o critério do bonus paterfamilias;
6ª - A resposta dada aos artigos 61º e 62º da base instrutória não é suficiente para aferir da diligência da recorrida, uma vez que se trata de artigos abstractos que não permitem assegurar que, no caso concreto, no momento e local do acidente os sistemas de drenagem de águas da via se encontravam em pleno funcionamento;
7ª - A recorrida sabia ou tinha a obrigação de saber que a ausência de tal sinalização determinava a possibilidade de ocorrência do despiste, como efectivamente veio a acontecer;
8ª - Não usou, pois, a recorrida de todas as diligências exigíveis para prevenir o dano, ficando a dever-se o despiste do veículo à conduta omissiva daquela, assim se verificando o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a que alude o art. 563º do Cód. Civil;
9ª - E, se assim é quanto à ocorrência do sinistro, tanto mais o será relativamente ao facto de a recorrida, durante cinco dias, não ter logrado encontrar o veículo sinistrado, que se encontrava a apenas 10 metros da via e havia derrubado um sinal de informação com cerca de 13,3 m2 de área, de cuja falta ninguém, durante aquele período temporal, se apercebeu, não obstante as inúmeras patrulhas diárias feitas pela recorrida na zona do acidente;
10ª - Quer quanto ao sinistro quer quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelos recorrentes, decorrentes de não saberem, durante cinco dias, o que acontecera aos pais, estão preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil aquiliana da recorrida, aludidos no art. 483º do Cód. Civil;
11ª - A indemnização dos danos não patrimoniais visa, simultaneamente, compensar o lesado e sancionar o lesante, e a culpa da ré BRISA, relativamente a tais danos, resulta evidente, mais do que provada;
12ª - Embora não haja elementos para sustentar que a recorrida BRISA tenha previsto que o patrulhamento dos seus funcionários não seria eficaz para detectar o acidente, não deixa ela de ser responsável pelos actos ou omissões por eles praticados no exercício das suas funções, nos termos do art. 500º do Cód. Civil;
13ª - Mal andou, pois, a Relação ao reduzir o montante a ser pago aos recorrentes como indemnização pelo sofrimento e angústia de que padeceram nos cinco dias em que desconheceram o que havia sucedido a seus pais;
14ª - O acórdão recorrido deve, assim, ser parcialmente revogado e substituído por outro que reponha a decisão proferida em 1ª instância, no que tange às indemnizações e respectivos montantes a serem pagos aos recorrentes.

Os autores contra-alegaram ainda o recurso da seguradora, defendendo a sua total improcedência.
E também a recorrida BRISA apresentou contra-alegações, pugnando pela inteira improcedência do recurso dos autores e pela improcedência do recurso da seguradora no que respeita à invocada exclusão da responsabilidade do seguro, por se estar no âmbito da responsabilidade extracontratual e não no plano da responsabilidade contratual, como aquela sustenta.

Corridos os vistos legais, cumpre agora conhecer do mérito de ambos os recursos.

2.

São os seguintes os factos que, das instâncias, vêm dados como provados:

1. DD faleceu no dia 14 de Março de 2001, no estado de casado com EE.

2. EE faleceu no dia 14 de Março de 2001, no estado de casada com DD.

3. CC encontra-se registada como filha de DD e de EE.

4. AA encontra-se registado como filho de DD e de EE.

5. BB encontra-se registado como filho de DD e de EE.

6. No veiculo Mercedes Benz E 200.D de matricula ...-...-IB faziam-se transportar os pais dos autores, DD, que o conduzia, seguindo a seu lado a sua mulher, EE.

7. A ré BRISA é concessionária do Estado para a construção, conservação e exploração das auto-estradas referidas na Base I anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, entre as quais a auto-estrada Al.

8. Por contrato de seguro, titulado pela apólice 87/38.299, regido pelas condições descritas no documento junto a fls. 191/208, a ré BRISA transferiu para a ré F...- M... a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção de vários lanços e sub-lanços das auto-estradas, onde se integra a Al, até ao montante de 150.000.000$00, vigorando a seu cargo uma franquia no montante de 150.000$00.

9. O Instituto da Segurança Social, IP, através do Centro Nacional de Pensões, pagou a BB despesas de funeral no montante de € 2.158,30, sendo € 1.278,67 relativos a DD, beneficiário n.º ..., e € 879,63 relativos a EE, beneficiária n.º ....

10. No dia 9 de Março de 2001, entre as 18:30 e as 19:30 horas, ocorreu um acidente de viação na Auto-Estrada do Norte (Al), ao km 25, área da comarca de Vila Franca de Xira.

11. Consistiu esse acidente no despiste, para fora da via, do veiculo auto ligeiro Mercedes Benz E.200.D, de matricula ...-...-IB, que seguia no sentido Sul-Norte.

12. No momento do acidente chovia intensamente, situação esta que já se verificava do antecedente.

13. Em situação de hidroplanagem é vulgar o despiste de veículos, em especial dos que dispõem de tracção traseira.

14. A ré BRISA não colocou no local do despiste sinalização temporária de “perigos vários” ou “pavimento escorregadio”.

15. O veiculo onde os pais dos autores se transportavam despistou-se.

16. O referido veiculo derrubou o sinal indicativo de “área de serviço de Aveiras – 20 KM”, implantado do lado de fora do rail e imobilizou-se numa fossa ou caixa de águas ao fundo de um declive.

17. Em virtude do despiste do veiculo ...-...-IB, veio a ocorrer o falecimento dos pais dos autores.

18. No dia dos factos dos autos, a ré BRISA não sinalizou a existência de um lençol de água no pavimento.

19. Os pais dos autores, no dia dos factos, contactaram o autor BB pelas 18:15 horas, dizendo-lhe que sairiam de casa dentro de 15 minutos e combinaram encontrar-se com este no restaurante “M...do M...”, perto de Pombal, a fim de aí jantarem.

20. Para, depois, se deslocarem os três para Castanheira de Pêra, onde a família dispunha de uma casa para passar férias e fins-de-semana.

21. O autor BB, que nesse dia viajava pela A1 em sentido contrário, em veiculo de um terceiro, chegou ao “M...do M...” pelas 19:30 horas, onde aguardou a chegada dos pais.

22. Pelas 20:30 horas, estranhando a demora, o autor BB tentou o contacto com os pais, através do telemóvel de cada um deles, mas não obteve qualquer resposta.

23. Pelas 20:55 horas, o autor BB deu conta ao seu irmão, o autor AA, da sua preocupação com a demora e a falta de contacto dos pais, pelo que este se deslocou a casa deles para verificar se tinham mesmo saído, o que foi confirmado.

24. Não conseguindo, também ele, autor AA, qualquer resultado das tentativas telefónicas que fez para os telemóveis dos pais.

25. Pelas 21:15 horas, e atenta a preocupação e a estranheza de ambos os autores com aquelas faltas de resposta, o autor AA iniciou uma série de diligências telefónicas, no sentido de averiguar da existência de eventual acidente ou avaria com o veículo em causa ao longo do percurso que os seus pais faziam para chegar a Pombal, saídos da sua residência em Loures.

26. E que era entrada na Quinta Nova de São Roque em Loures pelo nó da CREL, com a A8, seguindo por aquela até Alverca.

27. No fim da CREL, tomariam a Al até Pombal, apanhando então o IC8 e deixando este pela saída mais próxima do restaurante, a cerca de 200 metros do mesmo.

28. Para o efeito, o autor AA ligou para os departamentos da ré BRISA que supervisionam a CREL, a Al de Lisboa a Santarém e a Al de Santarém até Leiria.

29. A resposta de todos foi negativa, quer no que tange a acidente, quer a avaria.

30. Agravando-se a preocupação dos autores BB e AA.

31. Resolveu o autor AA, ainda que já noite fechada, fazer ele, a velocidade reduzida, o percurso igual ao dos pais, tentando aperceber-se de prováveis eventuais vestígios do também eventual acidente.

32. O autor AA acabou por chegar ao “M...do M...” cerca da meia-noite, sem se ter apercebido de qualquer facto com relevância para o pretendido.

33. A preocupação dos referidos autores ia, assim, atingindo as raias do pânico.

34. Acresce que entretanto, familiares e amigos dos autores vinham efectuando contactos telefónicos para hospitais, forças policiais, bombeiros e INEM, das zonas por onde a viatura pudesse ter passado, não tendo obtido qualquer resposta positiva, quer no que tange às pessoas dos pais dos autores, quer do veiculo.

35. Até que, pela 1 hora da manhã do dia seguinte, 10 de Março, sábado, com o acordo da autora CC, os autores BB e AA, cada vez mais preocupados, resolveram dar conta do desaparecimento dos pais, e do veiculo, na GNR de Pombal.

36. Deste posto foram imediatamente feitos, pelos agentes de autoridade, contactos telefónicos para os departamentos da ré BRISA de Leiria e Carregado, pedindo especial atenção às patrulhas desta para eventuais sinais de acidente, ainda que por despiste de viatura.

37. Pelas 05:00 horas da manhã, os autores BB e AA deslocaram-se pessoalmente ao posto da GNR/BT sito no Carregado, para melhor concretizarem as suas preocupações e desconfianças quanto à existência de acidente.

38. Onde lhes foi respondido ser praticamente impossível haver um acidente na Al sem dele haver conhecimento, quer pela GNR/BT, quer pela ré BRISA.

39. Pelas 10:30 horas desse mesmo dia, P...S... e H...S..., o primeiro familiar dos autores e o segundo amigo do autor AA, deslocaram-se também ao posto da GNR/BT no Carregado por acharem estranho, eles próprios, que até à altura nenhuma informação tivesse sido prestada a propósito dos factos.

40. Daqui foram feitos novos contactos telefónicos com a ré BRISA e com todos os postos da BT até Pombal, todos sem efeito útil.

41. Pelas 15:30 horas desse mesmo dia, sábado, o autor AA, com o acordo dos dois irmãos, vem participar à Polícia Judiciária o desaparecimento dos pais.

42. Na medida em que, face às não informações da ré BRISA e à invocada garantia de inexistência de acidente que lhes era transmitida, admitiram os autores que seus pais tivessem sido vítimas de rapto e sequestro ou de eventual homicídio, não de acidente.

43. O que os mantinha num elevado grau de desespero.

44. Situação esta que se foi agravando no decorrer dos dias 11, 12 e 13 seguintes, domingo, segunda e terça-feira – sempre sem qualquer notícia – agora já com a presença física da autora CC que veio propositadamente de Itália, onde residia.

45. No último dia referido, face à ausência de quaisquer notícias da ré BRISA, da GNR e da Polícia Judiciária, indo até contra a opinião desta, os autores resolveram tornar público o desaparecimento de seus pais.

46. Notícia essa transmitida, logo nessa noite, pela TVI e pela SIC.

47. E veiculada na generalidade dos órgãos de comunicação social – jornais, rádio e televisão – logo pela manhã de quarta-feira, dia 14.

48. A noticia foi objecto de todo o tipo de especulações, sendo parecer comum que, face à “garantida” ausência de ocorrência de acidente, o desaparecimento dos pais dos autores só poderia dever-se a um crime violento.

49. Esta situação, cinco dias depois do acidente, que foi vivida também com a angústia de a todo o momento poder chegar um telefonema com a exigência de um resgate, foi deixando os autores cada vez mais prostrados.

50. O impacto da noticia nos meios de comunicação social foi grande, além de tudo o mais, porque o pai dos autores, DD, era uma pessoa muito conhecida e estimada.

51. Tinha sido um reputado Árbitro Internacional de Futebol, possuindo as insígnias da F.I.F.A. (Federação Internacional de Futebol) e com a carreira a nível nacional e internacional de muito mérito, entre 1966 e 1984 e, posteriormente, servindo como delegado internacional daquela mesma F.I.F.A..

52. Era reconhecido por todos aqueles que durante tantos anos assistiram aos jogos de futebol que arbitrou, pelos que o praticaram e pelos habituais leitores dos jornais desportivos, que são e já eram os que, aos muitos milhares, mais vendem em Portugal.

53. Era uma referência do desporto, do dirigismo e do associativismo desportivos, e não só, ao nível de Portugal e de muitos países estrangeiros, onde arbitrou ou foi delegado da F.I.F.A. em jogos da mais alta importância.

54. DD, natural de Castanheira de Pêra, era aqui muito querido e admirado, tendo sido Presidente da respectiva Câmara Municipal entre 1989 e 1993, sendo à data dos factos comerciante de artigos de decoração com muitas e antigas ligações ao estrangeiro.

55. No dia 14 de Março de 2001, foram os autores avisados, pelas 12:30 horas, de que uma equipa de reparação ao serviço da ré BRISA havia descoberto, ao km 25 da Al, um veiculo que se teria despistado para fora da estrada e se achava capotado e meio submerso numa fossa ou caixa para recolha de águas pluviais vindas da Al.

56. Pelas 14:30 horas, a Policia Judiciária confirmou aos autores que o casal desaparecido, os seus pais, fora encontrado sem vida dentro do seu veiculo, na situação acima descrita.

57. A ré BRISA foi alertada para a eventualidade da ocorrência do acidente pelas 20:30 horas do dia 9 de Março, sexta-feira.

58. O veiculo arrastou-se pela vegetação e terreno enlameado até à sua imobilização, capotado, cerca de 10 metros depois.

59. Uma parte da traseira do veiculo esteve sempre fora de água.

60. O forro da mala, nessa zona, e os objectos – pastas com documentos e sacos de roupa – que nela se transportavam, além das luzes de sinalização traseira e respectivos “stops”, estavam completamente secos e sem vestígios de humidade de qualquer natureza.

61. Cada lanço de auto-estrada é patrulhado, pelo menos, 9 vezes por dia.

62. O sinal referido em 16. é uma placa com 3,80 metros de altura por 3,50 metros de largura (com a área de 13,3 m2), sustentado por duas barras de ferro e implantado a partir de 1 metro de altura e dois cubos de cimento inseridos no solo.

63. Os autores viveram cinco dias de angústia, de preocupação, de conjecturas e desconhecimento total quanto à localização de seus pais.

64. Os autores admitiram a existência de rapto, sequestro ou homicídio de seus pais em virtude das garantias da ré BRISA quanto à inexistência de acidente.

65. Os autores tinham com os seus pais uma ligação afectiva muito forte, de convívio diário os filhos varões e de contacto telefónico diário a filha CC, deslocada para Itália desde 1990, mas com frequentes estadias em Portugal.

66. Os autores despenderam quantia não determinada com telefonemas e deslocações que fizeram nos cinco dias.

67. No local do acidente havia escoamento das águas através de caleiras e sarjetas.

68. Esses sistemas de drenagem de águas pluviais são periodicamente limpos e desobstruídos pelo pessoal da obra civil da ré BRISA e até por empresas contratadas externamente.

69. O pessoal da Assistência a Utentes da ré BRISA patrulha as auto-estradas concessionadas 24 horas por dia.

70. Foram realizadas as operações de vigilância com periodicidade habitual, não tendo sido verificada qualquer anormalidade nas condições de circulação e segurança da via.

71. Também as brigadas da GNR que patrulham constantemente as auto-estradas nada de anormal detectaram antes do acidente.

72. Por escritura pública outorgada a 28 de Março de 2001, no Cartório Notarial de Loures, M...A...de O...P..., M...M...P...de C...D... e M...F...da S...A..., na qualidade de testemunhas, declararam que, por óbito de DD e de EE, lhes sucederam como únicos e universais herdeiros, os filhos AA, BB e CC.

3.

Sendo irrefutável que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, de tal modo que, para além das questões de conhecimento oficioso, só das suscitadas em tais conclusões pode conhecer o tribunal ad quem, vejamos as questões que, no caso em apreço, se perfilam para conhecimento por este Supremo Tribunal.

No acórdão recorrido afastou-se a obrigação de a seguradora indemnizar os autores pelo dano-morte sofrido pelos pais destes, por se ter entendido não ser possível concluir pela responsabilidade da ré BRISA (a segurada) na eclosão do acidente.
Como esta questão constitui o núcleo essencial, o punctum saliens, do recurso dos autores, impõe-se apreciar em primeiro lugar esse recurso.

3.1. Aquela decisão da Relação assentou, em essência, na consideração de que, situando-se a questão no domínio da responsabilidade civil extracontratual (arts. 483º e 486º do CC), tal como o entendeu também a sentença da 1ª instância, e imputando-se (isto é, imputando os autores) à ré BRISA a omissão de sinalização de lençol de água no pavimento, de “perigos vários” e de “pavimento escorregadio”, não se ter, todavia, demonstrado que tal acumulação ou lençol de água tenha ocorrido ou ocorresse habitualmente nesse local, sabendo-se apenas que na ocasião do acidente chovia intensamente, o que já se verificava do antecedente. E acrescentou-se que, destinando-se os sinais de trânsito, fundamentalmente, a assinalar situações ou locais que, por algum motivo ou particularidade, escapam às regras gerais de circulação rodoviária ou aconselham cautelas acrescidas, não impõe a chuva intensa qualquer sinalização, desde logo porque o condutor deve regular a velocidade de acordo com as condições meteorológicas ou ambientais, tendo em conta a segurança da circulação, não se achando qualquer “valor acrescentado” na colocação de um sinal de perigo para assinalar uma situação de pluviosidade de que o condutor necessariamente se apercebe, e cujas consequências ao nível da visibilidade e das condições do piso conhece, sabendo, de acordo com o art. 24º/1 do CEst.(1) , como deve reagir.
Assim, a ver da Relação, (neste ponto divergente da decisão da 1ª instância), a referida conduta, imputada à demandada BRISA – omissão de sinalização de lençol de água no pavimento, de “perigos vários” e de “pavimento escorregadio” – não se mostra, no caso concreto em análise, ilícita, o que, só por si, significando a inverificação de um dos requisitos da responsabilidade civil delitual, determinaria a inexistência da obrigação de indemnizar o dano.
Ademais – salienta ainda o acórdão recorrido – os autores nem sequer lograram provar, como lhes competia, que a causa do despiste do veículo onde seguiam as vítimas, seus progenitores, tenha sido a alegada situação de “hidroplanagem”, ou seja, “a circunstância de os rodados do carro terem deixado de aderir ao pavimento em consequência da acumulação de água no piso”.
Assim, não podendo concluir-se pela responsabilidade da ré na verificação do sinistro, não impende sobre esta nem sobre a sua seguradora obrigação de indemnizar os autores pelos danos decorrentes do falecimento dos pais destes, por isso se tendo revogado a decisão de condenação da seguradora a pagar àqueles o montante de € 100.000,00 e juros (2) .
Será assim?
O acórdão recorrido, situando a questão no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, insere-se numa corrente jurisprudencial com significativo relevo, que arranca da ideia-base de que o diploma que estatui sobre as bases da concessão, (mais concretamente, a Base XLIX do anexo ao Dec-lei 294/97, de 24.10), quando alude às “indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros”, está a remeter a regulamentação da responsabilidade civil para as regras e princípios gerais, não criando um regime especial ou excepcional.
Mas este não é um entendimento pacífico, pois que – independentemente do que ao deante se dirá quanto à determinação, de entre as disposições delituais, da norma aplicável –outra corrente existe, posto que com menor aceitação jurisprudencial, que, relevando o facto de a utilização das auto-estradas estar, em regra, condicionada pelo pagamento de uma quantia em dinheiro (portagem), defende a existência de uma especial vinculação de direito privado entre a entidade concessionária e o utente, seja uma “relação contratual de facto”, seja mesmo uma verdadeira relação contratual, embora com limitação das prestações devidas: pagamento do preço, por parte do utente, e colocação à disposição deste, por parte da concessionária, da estrada e respectiva organização. Para esta corrente, a reparação dos danos sofridos pelo utente reger-se-ia pelo estatuto contratual, ou seja, situar-se-ia no âmbito da responsabilidade contratual.
A questão pode ainda perspectivar-se de um outro enfoque, cujo ponto de partida é o próprio contrato de concessão, que tem por partes o Estado e a entidade concessionária. Afirma-se que, desse contrato, resultam para a concessionária certos deveres de protecção em relação a terceiros (os utentes), de tal modo que estes, não adquirindo embora o direito a uma prestação (ao contrário do que sucede no contrato a favor de terceiro, cujo regime consta dos arts. 443º e ss. do CC), se podem volver em credores de uma pretensão indemnizatória se o concessionário inobservar aqueles deveres de protecção e daí resultarem prejuízos para aqueles terceiros. Já no próprio preâmbulo do já citado Dec-lei 294/97 se pode ler que algumas das bases do contrato de concessão têm «eficácia externa relativamente às partes no contrato». E, entre elas, está claramente a Base XXXVI, em cujo n.º 2 se impõe à concessionária a obrigação, «salvo caso de força maior devidamente verificado», de «assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, (...) sujeitas ou não ao regime de portagem».
A subsistência das assinaladas obrigações da concessionária mesmo quando não tenha aplicação o regime de portagem, conduz a equacionar a hipótese de o dever de indemnização a favor do utente ter, não fonte delitual ou contratual, mas uma figura intermédia, o “contrato com eficácia de protecção para terceiros” (3) . Na verdade, estas obrigações têm em vista a protecção de terceiros – os utentes – aqueles que vão suportar os efeitos do defeituoso cumprimento de tais obrigações assumidas pela concessionária, sem que todavia lhes caiba um direito à prestação, como seria no caso de contrato a favor de terceiro. “Parece assim razoável a inclusão desses terceiros no âmbito de protecção do contrato celebrado com o Estado, o que justifica a chamada à colação da figura dos «contratos com eficácia de protecção para terceiros» (4) . E, como assinala o autor que vimos seguindo, o Prof. SINDE MONTEIRO, a razão de ser do instituto – designadamente quando estão em causa bens jurídicos (vida, integridade física, propriedade) que, por integrarem verdadeiros direitos subjectivos, gozam de protecção delitual geral – consiste em permitir aos beneficiários usufruírem de certas vantagens do regime jurídico contratual, a mais importante das quais respeita ao ónus da prova da culpa.
Assim, “embora o contrato de concessão tenha como partes únicas o Estado e a concessionária, os automobilistas, cujos interesses aquele quer defender (sem todavia lhes atribuir um direito à prestação), porque incluídos no âmbito de protecção daqueloutra relação obrigacional primária, hão-de beneficiar do regime probatório mais favorável do art. 799º, n.º 1 (em comparação com o art. 487º, n.º 1), do Código Civil, com a concretização contida na já citada Base XXXVI, n.º 2.”
Como decorre do que vem de ser exposto, o principal efeito prático da opção por uma (a primeira) ou outras (a segunda ou a terceira) das concepções referidas, parece situar-se ao nível do ónus da prova da culpa, atenta a regra da inversão deste ónus, que vale em matéria de responsabilidade contratual (art. 799º/1 do CC) mas não em sede de responsabilidade delitual, de acordo com os princípios gerais válidos nesta matéria, com expressão nos arts. 483º e 487º do CC.
Todavia, mesmo em relação à primeira concepção – a que situa a questão no âmbito da responsabilidade delitual – não é seguro que não possa falar-se, quando em causa está um acidente ocorrido em auto-estrada, em inversão do ónus da prova da culpa. Tudo está em saber qual a norma do regime delitual do Cód. Civil que deve ser convocada para dar resposta a esta questão – se a disposição fundamental do art. 483º, n.º 1, como entendeu o acórdão recorrido, ou se alguma das disposições que integram o estatuto da culpa presumida.
Ora, se considerarmos a auto-estrada como uma coisa imóvel, sobre a qual – com todo o contexto envolvente, os acessórios de que a concessionária é a detentora, integrando vedações, estruturas para a cobrança das portagens, placas de sinalização, separadores de sentidos de trânsito, sinalização de emergência, etc. – a BRISA detém um poder de facto, com o dever de a vigiar, justifica-se que esta responda por culpa presumida, nos termos do n.º 1 do art. 493º, seja o dano causado pela auto-estrada em si mesma, seja ele provocado pelo incorrecto funcionamento de qualquer destas coisas acessórias que a integram, e que visam contribuir para assegurar os desejáveis níveis de segurança.
Ponto é que se possa afirmar a existência de um nexo de causalidade entre a coisa, a auto-estrada, e o dano. Estando em causa uma coisa inerte ou imóvel, para que se lhe possa, em termos jurídicos, atribuir a verificação do dano, ou seja, para que se possa falar daquele nexo de causalidade, é necessária a constatação de um defeito, de uma anomalia ou anormalidade no seu funcionamento, v.g., um defeito de construção, de manutenção, de sinalização ou de iluminação.
A ocorrência de um destes vícios objectivos faz presumir não só a culpa como também a ilicitude (violação de um dever), já que estamos perante deveres de agir para evitar danos para terceiros («deveres de prevenção do perigo» ou «deveres de segurança no tráfego») e, portanto, perante delitos de omissão, sendo que a violação do dever é aqui elemento da ilicitude.
“Ao lesado caberá provar, num plano puramente objectivo, a existência do vício e o nexo de causalidade entre este e o dano. Constatada objectivamente a presença de um defeito, presume-se a violação culposa de um dever de segurança no tráfego, isto é, a omissão do cuidado necessário para evitar que a coisa de que se tem o controlo cause danos a terceiros”.
O dever de assegurar a circulação em condições de segurança impõe a remoção de obstáculos ou outras fontes de perigos, ainda que devidos a um acontecimento natural ou a facto de terceiro.
Estaria, pois, sempre justificada, no caso em apreço, a inversão do ónus da prova da culpa; mas, se a pretensão indemnizatória poderia assentar em qualquer um dos fundamentos expostos, não se enjeitando mesmo, à semelhança do que é, se bem entendemos, o pensamento do Prof. SINDE MONTEIRO, o concurso entre o delito e o contrato, ou entre o delito e o quase-contrato, cremos, apesar de tudo, que não há razão para abandonar a tese maioritária, que situa a responsabilidade da empresa concessionária da exploração da auto-estrada no campo da responsabilidade civil extracontratual (delitual), embora nos moldes acabados de expressar, ou seja, situando-a no domínio de aplicação do art. 493º do CC.
Esta tese, tal como a entendemos, ganhou um fortíssimo aliado com a Lei 24/2007, de 18 de Julho, que define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, e que estabelece, no n.º 1 do seu art. 12º, como segue:
Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
A jurisprudência tem vindo a entender ter esta norma natureza interpretativa (5), aplicando-se, pois, retroactivamente, salvaguardados os efeitos já produzidos (art. 13º/1 do CC), e sendo, consequentemente, aplicável ao caso vertente.
Aceitando a natureza interpretativa da norma, não se nos afigura, no entanto, que com ela tenha o legislador querido dirimir qualquer querela doutrinal ou jurisprudencial sobre a natureza contratual ou extracontratual da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas pelos danos causados em acidentes de viação nestas ocorridos. O que o legislador quis esclarecer foi, tão só, a nosso ver, que se verifica, nestes casos, inversão do ónus da prova da culpa da concessionária, nos moldes que acima ficaram referidos: nos acidentes em auto-estradas concessionadas, cuja causa seja alguma das previstas na norma em questão, é sobre a concessionária que recai o ónus da prova de ter cumprido as obrigações de segurança a que se acha vinculada, e não ao lesado que incumbe provar que aquela as não cumpriu. As decisões jurisprudenciais que sustentam que este preceito clarifica como contratual a natureza daquela responsabilidade defrontam-se, a nosso ver, com uma dificuldade insuperável: nos termos do n.º 2 do art. 2º da mencionada Lei, o regime nela previsto aplica-se, com as devidas adaptações, às auto-estradas concessionadas com portagem, sem custos directos para o utilizador, o que não se compagina com a existência, nestes casos, de um contrato entre a concessionária e o utente, uma vez que não existe a contraprestação deste (contraprestação que também não existe em relação aos utentes pessoalmente isentos de taxa de portagem).
Dito isto, é tempo de voltarmos ao caso que é objecto da nossa apreciação.
Admitindo que a formação de um lençol de água no pavimento da auto-estrada, em condições de fazer com que os veículos entrem em hidroplanagem por falta de aderência dos pneumáticos (aquaplanning), constitui um evento que obriga a concessionária a tomar as medidas necessárias para evitar a causação de danos aos condutores, designadamente pela sinalização adequada do local, o certo é que, analisando o complexo fáctico apurado, não resulta provado que essa situação de facto – existência de um lençol de água no pavimento – alegada pelos demandantes, tenha ocorrido no caso em apreço.
Na verdade, mereceu resposta de não provado o quesito 4º – O local do acidente é considerado de há muito um dos chamados “pontos negros” das nossas estradas, neste caso em consequência da acumulação de água no pavimento, o que é atreito a que os veículos entrem em hidroplanagem (aquaplanning) por falta de aderência dos pneumáticos?; e do quesito 7º – O veículo onde os pais dos AA. se transportavam despistou-se em virtude de uma situação de hidroplanagem? – apenas resultou provado que o veículo se despistou, mas não que se tenha despistado em virtude de uma situação de hidroplanagem.
E tratava-se de matéria cuja objectiva demonstração era necessária para que pudesse presumir-se quer a violação, pela BRISA, do dever de assegurar a circulação em condições de segurança, quer a culpa na violação desse dever.
E o respectivo ónus probatório impendia sobre os autores. Como acima se deixou referido, ao lesado cabe provar, num plano puramente objectivo, a existência do vício e o nexo de causalidade entre este e o dano. E os autores não lograram provar a existência do vício, a anomalia nas condições do pavimento, sem a qual não se configurava o dever da ré BRISA – o dever de agir para evitar danos a terceiros, aos pais dos autores; nem, obviamente, o nexo de causalidade entre o (indemonstrado) vício ou anomalia e o dano.
Daí que de nada releve a restritiva resposta à matéria do quesito 6º – A ré BRISA não tinha desenvolvido, à data, nos locais mais sujeitos à verificação de situações de hidroplanagem, muito concretamente no “ponto negro” que constitui o Km 25 da A1, todos os necessários esforços para obviar a tal problema, nem sequer procedera a sinalização temporária de “perigos vários” ou “pavimento escorregadio” quando tal situação [a situação referida no quesito 3º, que é a que integra o n.º 12. dos factos provados] se verificara? – de que apenas se provou que A ré BRISA não colocou no local do despiste sinalização temporária de “perigos vários” ou “pavimento escorregadio” [n.º 14. dos factos provados].
Na verdade – repete-se – não provada, pelos autores, a existência da anomalia (a acumulação de água no pavimento, no local do acidente, susceptível de gerar situações de hidroplanagem), nem, consequentemente, o nexo de causalidade entre essa anomalia e o dano (despiste do veículo e suas nefastas consequências causado pela (indemonstrada) situação de aquaplanning), não chega a colocar-se a questão da ilicitude da conduta da ré (o incumprimento do seu dever de agir) nem a sua culpa na produção dos danos, não sendo, por isso, chamadas a intervir, no respeitante a estes requisitos da responsabilidade, as regras do ónus da prova e irrelevando, por isso, a regra da inversão desse ónus, que recairia sobre a BRISA. Não se demonstra, pois, ao contrário do que defendem os recorrentes, a violação, por omissão, por parte desta, das Bases apontadas na conclusão 3ª da alegação de recurso daqueles: a chuva, ainda que intensa e persistente, não implica, só por si, sinalização específica, como bem refere a Relação.
Vale, ademais, acrescentar que a ré fez ainda prova de que no local do acidente havia escoamento das águas através de caleiras e sargetas, e que esses sistemas de drenagem de águas pluviais são periodicamente limpos e desobstruídos, tendo sido realizadas as operações de vigilância com periodicidade habitual, não tendo sido verificada qualquer anormalidade nas condições de circulação e segurança da via [n.os 67, 68 e 70 dos factos provados].
Não pode, assim, ter-se por demonstrada, no quadro fáctico apurado, a responsabilidade civil da ré BRISA – qualquer que seja o enquadramento dessa responsabilidade por que se opte – pelos danos directamente decorrentes do acidente em análise.
As conclusões 1ª a 8ª do recurso dos autores mostram-se globalmente improcedentes, pelo que, nesta parte, é a mesma a sorte do recurso.

3.2. Vejamos agora o recurso da seguradora – que pretende ser absolvida do pagamento aos autores da quantia fixada pela Relação a título de indemnização por danos não patrimoniais por estes sofridos, ou, quando menos, a ver estipulada essa indemnização em não mais de € 5.000,00 para cada um daqueles – e o recurso dos autores, na parte em que, dissentindo da redução operada pela Relação, intentam ver essa indemnização reconduzida ao montante estabelecido na sentença da 1ª instância.
Recordar-se-á que, além da indemnização pela lesão do direito à vida de seus pais, os autores reclamaram, na presente acção, indemnização por danos não patrimoniais, traduzidos estes no sofrimento e angústia em que viveram durante cinco dias, “por não saberem os Pais vivos ou mortos, admitindo a existência de rapto e sequestro ou homicídio daqueles em virtude das erradas garantias da ré BRISA quanto à inexistência de acidente e à sua grave negligência no desvendar do mesmo”.
A procedência deste pedido foi reconhecida na sentença da 1ª instância – que, como vimos, fixou em € 30.000,00 para cada um dos demandantes o montante ajustado à reparação desses danos, causados, segundo a sentença, pela ineficácia das equipas de vigilância da ré – e reiterada pela Relação, que, não obstante, houve por exagerado o quantum indemnizatório fixado, reduzindo-o, sob recurso da seguradora, ao montante de € 15.000,00 para cada um dos autores.
Será devida a indemnização?
Cabe, antes de mais, chamar a atenção para aquilo que se nos afigura constituir um vício de raciocínio da Relação.
Como já se deixou referido, o acórdão recorrido, na apreciação da responsabilidade da ré BRISA pelo dano-morte dos pais dos autores, considera que não se mostra verificado o requisito da ilicitude da conduta daquela, razão por que, entendendo desnecessário debruçar-se sobre a verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil, excluiu o direito dos autores a indemnização por esse dano.
Mas, na análise que fez, logo a seguir a assim ter concluído, da questão agora em apreço, não obstante ter começado por salientar que têm aqui aplicação as ideias gerais antes referidas a propósito da responsabilidade civil extracontratual, limita-se a avançar a conclusão de que “no caso em apreço, se verificam todos os necessários pressupostos”, guardando-se, porém, de demonstrar a verificação do requisito “ilicitude”, espraiando-se, ao invés, em alargadas considerações quanto à culpa da ré, para concluir que “a preocupação, a angústia, o desespero e a prostração dos autores por desconhecerem o que sucedera a seus pais são consequência – e consequência adequada – da falta de diligência da ré e das informações por esta prestadas sobre a inexistência de acidente ou avaria”.
Esta lacuna no discurso da Relação não significa, porém, só por si, a rejeição da conclusão do acórdão recorrido.
A análise subsequente irá confirmar ou infirmar a bondade da decisão expressa nesse aresto.
Importa, antes de mais, chamar a atenção para que estamos perante uma situação que é exterior ao acidente a se. Quer-se dizer que o que está em causa é uma conduta da concessionária BRISA posterior ao acidente; o que se aprecia não é, ao contrário do que sucedia com a questão anterior, um dano causado pela coisa, pela auto-estrada.
E tendo em conta que em equação estão danos directos dos autores, onde poderá filiar-se a responsabilidade da BRISA para com os mesmos autores?
Na resposta a esta questão, cremos poder excluir liminarmente qualquer forma de responsabilidade que não seja a extracontratual ou aquiliana.
Mas verificar-se-ão, in casu, os requisitos desta?
A responsabilidade extracontratual é a que decorre da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem.
Importa aqui considerar a primeira modalidade, que enfoca a responsabilidade extracontratual enquanto violação de deveres gerais de abstenção, omissão ou não ingerência, correspondentes aos direitos absolutos – e apenas na sua forma de responsabilidade por factos ilícitos (6) . Buscaremos, para tanto, arrimo, na lição do Prof. A. VARELA (7) , que seguiremos de perto.
A norma basilar a este respeito é, já o vimos, a do art. 483º do CC, de cujo teor decorre ser a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, condicionada pela verificação de certos pressupostos.
É necessário, desde logo, um facto voluntário do lesante (no sentido de facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade) – uma acção, um facto positivo, que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto, ou uma omissão ou abstenção, um facto negativo, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, com toda a certeza ou a máxima probabilidade, teria impedido a verificação do dano.
O 2º pressuposto da responsabilidade é a ilicitude.
Não basta que alguém pratique um facto prejudicial aos interesses de outrem, para que seja obrigado a indemnizar o lesado.
Como decorre do teor literal do n.º 1 do art. 483º, é necessário que tal facto seja ilícito ou antijurídico.
Este carácter ilícito do facto revela-se – é ainda o que se alcança da leitura da norma citada – ou através da violação de um direito de outrem, ou através da violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
O primeiro aspecto abrange principalmente a violação dos direitos subjectivos, dos direitos absolutos – direitos reais, direitos de personalidade, propriedade intelectual, direitos familiares.
No segundo aspecto – que é o que importa aqui considerar – engloba-se a infracção das leis que, protegendo embora interesses particulares, não conferem aos respectivos titulares um direito subjectivo a essa tutela, e também a ofensa de leis que, visando principalmente a protecção de interesses colectivos, não deixam de acautelar os interesses particulares subjacentes, de indivíduos ou de classes ou grupos de pessoas (8) .
Assinala ainda a doutrina – de que são exemplo A. VARELA (9) , ALMEIDA COSTA (10) e MENEZES LEITÃO (11) 64. que, para ter o lesado, em casos deste segundo tipo de ilicitude, direito a indemnização, é necessária a verificação de três requisitos:
a) que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, ou seja, numa outra formulação, a não adopção de um comportamento definido em termos precisos pela norma;
b) que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada;
c) que o dano se tenha registado no âmbito do círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
Revertendo ao caso em análise, cabe assinalar que se acha profusamente demonstrada a profunda angústia e o elevado grau de desespero em que, desde a noite do dia 9 de Março de 2001 e até ao dia 14 seguinte, viveram os autores, pelo desconhecimento absoluto do que sucedera aos seus pais, com quem mantinham uma ligação afectiva muito forte. Admitiram a existência de rapto, sequestro ou homicídio, tanto mais que lhes fora dito, no posto da GNR/BT do Carregado, pelas 05.00 horas do dia 10, “ser praticamente impossível haver um acidente na A1 sem dele haver conhecimento, quer pela GNR/BT, quer pela ré BRISA”.
Horas antes, cerca da 01.00 hora do mesmo dia, quando os autores, cada vez mais preocupados, deram conta do desaparecimento dos pais e do veículo na GNR de Pombal, haviam sido feitos, deste posto, telefonemas para os departamentos da BRISA de Leiria e do Carregado, pedindo especial atenção às patrulhas desta para eventuais sinais de acidente.
Outros contactos telefónicos foram feitos com a BRISA e com todos os postos da BT até Pombal, e participado o desaparecimento à PJ, sem qualquer efeito útil, o que foi agravando o desespero dos autores que, no dia 13, tornaram público o desaparecimento, pelos órgãos de comunicação social.
Este particular aspecto do drama dos autores – devido “às garantias da ré BRISA quanto à inexistência de acidente” – perdurou até às 12.30 horas do dia 14, quando foram avisados de que uma equipa de reparação ao serviço da ré BRISA havia descoberto, ao Km 25 da A1, um veículo que se teria despistado para fora da estrada e se achava capotado numa fossa para recolha de águas pluviais vindas da A1, ou mesmo até às 14.30 horas, quando a PJ lhes confirmou que os seus pais haviam sido encontrados sem vida, dentro do veículo aludido.
Face ao que acaba de ser exposto, não pode duvidar-se de que a causa desta profunda angústia que atormentou os autores ao longo destes penosos cinco dias se deve à falta de notícias sobre o destino dos seus progenitores e à dúvida atroz sobre o que motivara o seu desaparecimento. E também é de aceitar, como conjuntura necessária para que esse estado psíquico se tenha produzido nos autores, que para tal contribuiu decisivamente o facto de a ré BRISA ter descartado a hipótese de acidente, de despiste, como causa do desaparecimento do desditoso casal.
Mas daqui não resulta, necessariamente, a responsabilização extracontratual da BRISA.
Como resulta do que acima deixámos expresso, a ilicitude, traduzindo a não adopção de um comportamento definido em termos precisos por uma norma jurídica, tem implicada a violação de um dever. Como refere F. PESSOA JORGE (12), “o acto ilícito constitui a violação de um dever, o que implica: em primeiro lugar, a existência desse dever e, portanto, a destinação dum comando a seres inteligentes e livres que podem conhecê-lo e obedecer-lhe; em segundo lugar, a prática voluntária de conduta diferente da devida”.
Assim, para se poder falar de responsabilidade extracontratual da ré, é preciso, antes de mais, constatar a existência de um dever, de natureza genérica ou específica, a que ela se ache vinculada; e depois, concluir que houve, da parte dela, omissão do comportamento devido – omissão que, em si mesma, pode consistir numa abstenção (se tinha o dever de praticar um acto que não praticou) ou numa acção positiva (se realizou um acto quando tinha o dever de nenhum praticar).
No dizer da alegação dos autores, a ré tinha o dever de desvendar, de imediato, a causa do acidente – dever que, com respaldo nas bases XXXVI, n.º 3 e XXXVII, n.º 1 do anexo ao já várias vezes citado Dec-lei 294/97, a sua concreta actuação mostra ter violado.
De acordo com o n.º 3 da Base XXXVI,
A concessionária deverá estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente, no âmbito da rede concessionada (...).
E, nos termos do n.º 1 da Base XXXVII,
A concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes das auto-estradas que constituem o objecto da concessão, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização.
Sendo estes, claramente, deveres a que a ré se acha vinculada, por força do diploma que estatui sobre a disciplina da concessão – ou seja, estando provada a existência dos deveres genéricos invocados pelos autores – está claramente indemonstrada, a nosso ver, a violação dos decorrentes da primeira das normas transcritas; e também temos dúvidas de que se mostre violado, no caso concreto, o dever emergente da segunda, i.e., o dever de assegurar a assistência aos utentes das auto-estradas concessionadas.
Mas, a entender-se que, objectivamente, se mostra violado este dever, importará de seguida, mantendo-nos ainda no campo da ilicitude, volver a nossa atenção para os dois outros requisitos acima mencionados.
Do segundo deles infere-se que é necessário que a tutela dos interesses privados não seja um mero reflexo da protecção dos interesses colectivos que, como tais, a lei visa salvaguardar: não basta que a norma também aproveite ao particular, é preciso que ela tenha também em vista a protecção dele. Como explica PESSOA JORGE, “só quando o fim da lei é proteger directamente os interesses de certa categoria de cidadãos é que se integra a previsão do art. 483º, n.º 1: na verdade, não pode dizer-se que se destine a proteger os interesses de um círculo de pessoas a lei que foi criada para outras finalidades, embora indirecta ou reflexamente as vá beneficiar.
Deste modo, só a lesão de interesses legítimos, e não de interesses reflexos, pode dar origem a responsabilidade civil.”(13)
E do terceiro requisito supra referenciado decorre, na linha do que acaba de referir-se, que “tem o lesado de se encontrar no círculo dos titulares do interesse cuja protecção a lei visou; fora desse círculo a protecção de eventuais interessados é também reflexa e como tal irrelevante.” (14).
Importa, então, perscrutar, através da interpretação adequada das bases acima transcritas, qual o fim ou finalidade das mesmas, ou seja, quais os interesses que através delas se pretendeu acautelar.
Com tais normas – que impõem a implementação dos mecanismos necessários para garantir a monitorização do trânsito, a detecção de acidentes e a consequente informação de alerta aos utentes, bem como assegurar-lhes a assistência, incluindo a vigilância das condições de circulação – visa-se assegurar que as auto-estradas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, permitindo aos que as usam (aos utentes) a circulação em boas condições de segurança e de comodidade, minimizando os riscos de acidente e proporcionando aos utentes que nelas sejam vítimas de acidente, uma assistência pronta e adequada, de modo não só a salvaguardar a saúde e os bens dos acidentados mas também a evitar perturbações para a circulação dos demais utilizadores.
São, pois, os utentes das auto-estradas os titulares dos interesses que estas normas visam proteger – interesses directamente ligados à circulação nas auto-estradas, e que, por isso, se conexionam com os danos causados nas ou pelas auto-estradas.
No caso em apreço, o dano em causa – já o dissemos – não foi causado pela auto-estrada. Tão pouco se trata de um dano não patrimonial pela dor sofrida com a morte das vítimas, mas antes de um dano não patrimonial traduzido no sofrimento e angústia suportados pelos autores durante cinco dias, “por não saberem os Pais vivos ou mortos, admitindo a existência de rapto e sequestro ou homicídio daqueles”.
Não vemos como possa defender-se pertencerem os autores ao círculo de pessoas titulares do interesse cuja protecção as normas citadas visam assegurar: eles posicionam-se fora desse círculo, não se tendo a lesão efectivado no próprio bem jurídico ou interesse privado por tais normas tutelado. Ou, noutra perspectiva: as normas de conduta em causa, que a BRISA está obrigada a respeitar, não têm com finalidade a protecção do bem lesado.
Não pode assim, também quanto a esta questão, haver-se por verificado, na conduta da ré, o requisito da ilicitude, pelo que fica arredada a obrigação da BRISA (e, consequentemente, da sua seguradora) de indemnizar o dano em apreço.
A apreciação da matéria da culpa e do nexo de causalidade, constante das conclusões dos recorrentes, resta, por isso, prejudicada.
Procede, pois, quanto a esta questão, o recurso da seguradora, e improcede o dos autores.

4.

Face a tudo quanto se deixou exposto, nega-se a revista pedida pelos autores e concede-se a revista pedida pela interveniente seguradora, e consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou a mesma seguradora a pagar a cada um dos autores a indemnização de € 15.000,00, absolvendo-a do correspondente pedido, e mantendo-se quanto ao mais, o nele decidido.
Custas, aqui e nas instâncias, pelos autores.

Lisboa, 1 de Outubro de 2009


Santos Bernardino (Relator)


Bettencourt de Faria


Pereira da Silva
_________________________
(1) O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo (...), às condições meteorológicas ou ambientais (...) e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever (...).

(2) Pela mesma razão se revogou igualmente a sentença na parte em que condenou a ré BRISA a pagar ao ISSS a quantia de € 2.158,30 e juros.

(3) Cfr., a este respeito, e à demais matéria envolvendo os acidentes de viação em auto-estradas, a anotação de SINDE MONTEIRO ao acórdão do STJ, de 12.11.1996, na Rev. Leg. Jur., ano 131º, págs. 41 e ss., 106 e ss. e 378 e ss., e ano 132º, págs. 28 e ss., 60 e ss. e 90 e ss.

(4) SINDE MONTEIRO, Rev. cit., ano 132º, pág. 64.

(5) Cfr. os Acs. deste Supremo Tribunal, de 13.11.2007, Proc. 07A3564, de 16.09.2008, Proc. 08A2094, em www.dgsi.pt/jstj, e de 02.11.2008, na Col. Jur. (Acs. do STJ), ano XVI, tomo III, pág. 108.

(6) A responsabilidade pelo risco está aqui, claramente, fora de hipótese.

(7) Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág. 515 e ss.

(8) Cfr. A. VARELA, ob. cit., pág. 526/527.

(9) Ob. cit., págs. 529 e seguintes.

(10) Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 372.

(11) Direito das Obrigações, vol. I, págs. 263/264

(12) Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1972, pág. 68.

(13) Ob. cit., pág. 305/306.

(14) Autor e obra citados na nota anterior, pág. 306.