Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
321/23.4T8LOU-C.P1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
DECISÃO SINGULAR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
NULIDADE DA DECISÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 11/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMÇÃO-ARTº 643CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
O recurso de revista será inadmissível sempre que, faltando algum requisito de admissibilidade ou existindo algum impedimento à admissibilidade, não se trate de um dos casos em que o recurso é sempre admissível (cfr. artigo 629.º. n.º 2, do CPC).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Notificados da decisão singular proferida por este Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação apresentada ao abrigo do artigo 643.º do CPC, mantendo o despacho proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, indeferindo o seu requerimento de interposição do recurso de revista, vêm ainda os reclamantes AA e BB apresentar reclamação para a Conferência ao abrigo do artigo 652.º do CPC.

Enunciam os reclamantes as 45 conclusões seguintes:

1. Os Recorrentes interpuseram, para o Tribunal da Relação do Porto, recurso de apelação do despacho proferido pelo Tribunal de primeira instância, o qual considerou que são os Executados os responsáveis pelo pagamento da nota discriminativa de despesas e honorários da Sra. Agente de Execução, pese embora lhes tenha sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

2. Tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso por alegada falta de valor da sucumbência, e não se conformando com o teor dessa decisão, os Recorrentes interpuseram recurso de revista, para o presente Supremo Tribunal de Justiça, atenta a ofensa do caso julgado e por considerarem que o acórdão de que se recorre está em contradição com outros, proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, bem como, caso assim não se entendesse, subsidiariamente e por via da revista excepcional, por considerarem que nos presentes autos está em causa questão juridicamente relevante e interesses de particular relevância social, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º, do artigo 671.º e das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. Foi ainda requerido nessa sede que, caso os Meritíssimos Conselheiros subsumissem os presentes autos na alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, sempre deveria o presente recurso ser admitido, em conjugação com as alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, cuja convolação por essa via se requereu.

3. Não tendo este sido admitido, os Recorrentes reclamaram do despacho de indeferimento do recurso, ao abrigo do artigo 643.º do CPC, reclamação sobre a qual versou despacho da Meritíssima Juíza Relatora Conselheira, o qual veio indeferir a reclamação e manter o despacho reclamado. Com efeito, e salvo o devido respeito - que é muito -, não podem os Recorrentes perfilhar tal entendimento, razão pela qual vêm, ao abrigo do n.º 3 do artigo 652.º do CPC, requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão.

4. Impõe-se aqui referir que, pese embora muito respeitem as decisões judiciais que têm vindo a ser proferidas nos autos e muito se encontrem desgastados com a delonga processual - que, na sua boa fé processual, nunca pretenderam -, os Recorrentes vêm-se compelidos a apresentar a presente reclamação para a conferência, na estrita medida em que a sua fragilidade económica, vertida no apoio judiciário que lhes foi concedido, não lhes dá outra alternativa que não seja lutar pelo direito que lhes assiste e que, salvo o devido respeito, lhes foi negado pelo Tribunal de primeira instância, sem qualquer possibilidade de sindicância.

5. Os Recorrentes, pessoas humildes e honestas, não conseguem entender a razão de ser de terem que pagar €543,60 de despesas e honorários de Agente de Execução, por uma dívida de €825,45 (a qual, com muito esforço, já liquidaram com recurso a um empréstimo da filha), sobretudo quando estamos perante duas pessoas a quem foi concedido apoio judiciário. Da mesma forma que os Recorrentes não conseguem entender o porquê de terem sido objecto de um tratamento diferenciado do ocorrido em outros processos em tudo idênticos, o que, aliado à gritante desproporcionalidade do valor que lhes é imputado, merece a tutela do direito e dos nossos Tribunais, dado o digno e colossal relevo social e jurídico da questão suscitada nos autos.

6. Efectivamente, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, bem como o despacho de que aqui se reclama, colocaram os Recorrentes numa posição muito difícil, pelo que, na hipótese de não ser admitido o recurso interposto, estaríamos na presença de uma gritante sonegação de justiça, visto estar a ser imputada aos Recorrentes - a quem foi reconhecida insuficiência económica - a responsabilidade pelo pagamento de despesas e honorários, o que assim não sucedeu em situações em tudo idênticas.

7. Vejamos então: os Recorrentes invocaram a nulidade do despacho reclamado - sobre o qual versou a decisão singular de que aqui, respeitosamente, se reclama -, por falta de fundamentação, bem como por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos das alíneas b) e d) do artigo 615.º do CPC, respectivamente, aplicável por via do n.º 1 do artigo 666.º do mesmo diploma, nomeadamente decorrente do facto de não se ter pronunciado quanto à quanto à admissibilidade do recurso ao abrigo da alíneas a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC por ofensa do caso julgado, bem como ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC por oposição de acórdãos, para além de não fundamentar, nem de facto, nem de direito, a conclusão a que chegou, nem de ter tomado conhecimento relativamente à circunstância de ter sido invocada a admissibilidade da revista excepcional ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, nem de ter considerado a possibilidade de aplicação, em sede executiva, da aplicação das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, por remissão do artigo 854.º do mesmo diploma, nem de ter tomado conhecimento da inconstitucionalidade que os Recorrentes suscitaram nas respectivas alegações de revista.

8. Com efeito, na decisão singular que aqui se reclama, a Meritíssima Juíza Conselheira Relatora indeferiu a reclamação apresentada e manteve o despacho reclamado, por considerar que o presente recurso não preenche o requisito relativo à sucumbência, afastando, desde logo, a aplicação da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.

9. No que concerne a este último ponto, a Meritíssima Juíza Conselheira Relatora bem começa por referir que “o proémio da norma parece apontar no sentido da independência da admissibilidade do recurso relativamente ao valor da alçada do tribunal a quo”, pelo que, se a lei neste proémio nada diz e não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo. Tanto mais que, a este propósito, não podemos olvidar o uso do vocábulo “sempre”, inserto pelo legislador naquele proémio.

10. De seguida, a Meritíssima Conselheira Relatora, a propósito do instituto do caso julgado referido na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, refere que “a decisão do Instituto da Segurança Social de concessão de apoio judiciário não configura uma decisão das do tipo em causa, ou seja, que formam caso julgado nos termos dos artigos 619.º e s, do CPC”, entendimento este que, salvo o devido respeito, não poderá ser perfilhado pelos Recorrentes, na medida em que, como é sabido, o decurso do prazo legal de impugnação judicial da decisão que concedeu o apoio judiciário, previsto no n.º 2 e no n.º 5 do artigo 26.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, sem que tal impugnação tenha sido apresentada, torna a decisão definitiva na esfera jurídica, o que significa que transita em julgado e adquire a equiparação a decisão judicial como teria sucedido no caso de ter havido impugnação sobre a qual viesse a recair decisão judicial

11. Acresce que, no que respeita à invocada inconstitucionalidade, a Meritíssima Conselheira Relatora, indeferindo a pretensão dos Recorrentes, sustenta a sua decisão no facto de, como defende, não existir um direito subjectivo ao recurso. Contudo, salvo o devido respeito, os Recorrentes não concordam esta conclusão.

12. Isto porque o apoio judiciário, enquanto consagração na lei ordinária do dispositivo constitucional vertido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e até mesmo da própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, visa garantir o acesso ao sistema de justiça em igualdade de meios económicos, ou seja, estabelece que, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, a todos deve ser assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais, bem como que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos, assim asseverando a concretização do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, igualmente constitucionalmente consagrado.

13. O que não se coaduna com a não admissão de um recurso que tenha por objecto o apuramento da responsabilidade de as partes a quem foi concedido apoio judiciário terem que proceder ao pagamento das despesas e honorários da Agente de Execução, não podendo os Recorrentes ser prejudicados pela simples circunstância de o Tribunal de primeira instância ter desconsiderado em absoluto a concessão de apoio judiciário, competindo a uma instância superior -com a devida experiência e sapiência - repor a justiça no caso concreto.

14. Até porque os Tribunais superiores têm sido muito claros no sentido de que aos Executados, a quem foi concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não poderá ser imputado qualquer pagamento, pelo que é manifestamente injusto e até chocante que duas pessoas sem meios económicos sejam obrigadas a pagar as despesas e honorários da Agente de Execução sem que um singelo despacho do Tribunal de primeira instância possa sequer ser sindicado, sobretudo quando os Tribunais superiores têm sido muito claros nesta matéria.

15. Razão pela qual, e salvo o devido respeito, quer o acórdão proferido pelo Tribunal a quo e que motivou a apresentação do recurso de revista, quer o despacho proferido pelo Tribunal a quo que não admitiu o mesmo, quer o despacho de que aqui se reclama, incorrem na violação de princípios constitucionalmente consagrados de acesso à justiça e a um processo equitativo, mormente os previstos nos artigos 13.º, 20.º e 202.º da Constituição.

16. A este propósito, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão datado de 20.05.2015 (Acórdão n.º 280/2015) veio “julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso de decisões judiciais que diretamente afetam direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 15.º do CIRE, e artigos 304.º, primeira parte, e 629.º, n.º 1, do CPC, interpretadas no sentido de que não cabe recurso de decisões proferidas no incidente de qualificação da insolvência cujo valor, determinado pelo activo do devedor, seja inferior ao da alçada do tribunal de primeira instância”. E não se diga que os Recorrentes tiveram direito a uma via de recurso, em segunda instância, pois o recurso de apelação não foi sequer admitido.

17. Deste modo, podemos concluir que, para além do acórdão recorrido e objecto de revista ser inconstitucional, também a decisão que aqui se reclama é inconstitucional, por violar o direito ao recurso de decisões judiciais que directamente afectam direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos Tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, em especial por estarmos perante dois Recorrentes a quem foi reconhecida insuficiência económica, traduzida na concessão de apoio judiciário, sendo o objecto do recurso precisamente a imputação àqueles do pagamento das despesas e honorários da Sra. Agente de Execução, o que não sucedeu em processos com factos idênticos.

18. Tanto mais grave que, para além da ofensa do caso julgado e da oposição de acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, estamos igualmente perante questão juridicamente relevante e perante interesses de particular relevância social, ou seja, a revista versa sobre questão processual cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social, importa que seja apreciada para melhor aplicação do direito.

19. Razão pela qual, na eventualidade de não ser admitido o recurso, tal decisão será inconstitucional por violação, nomeadamente, dos artigos 13.º, 18.º, 20.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa.

20. Por outro lado, verificamos que, salvo melhor análise, a Meritíssima Juíza Conselheira Relatora, no despacho reclamado, não tomou conhecimento relativamente à circunstância de ter sido invocada a admissibilidade da revista excepcional ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

21. Razão pela qual, e salvo o devido respeito, verifica-se a nulidade do despacho reclamado - por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos das alíneas b) e d) do artigo 615.º do CPC, respectivamente, aplicável por via do n.º 1 do artigo 666.º do mesmo diploma, nulidade esta que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

22. Dito isto, vejamos alguns dos pontos que não foram considerados: no caso vertente, e como já aqui vimos, foi invocada a ofensa do caso julgado, resultante do facto de aos Recorrentes ter sido concedido apoio judiciário por parte do Instituto da Segurança Social, pelo que o recurso interposto pelos Recorrentes seria sempre admissível ao abrigo da alínea a) do n.° 2 do artigo 629.° do CPC por ofensa ao caso julgado que decorre da decisão da Segurança Social que concedeu apoio judiciário. Foi assim que decidiu, nomeadamente, o Tribunal da Relação de Lisboa na sua decisão de 24.09.2015 do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida no âmbito do Proc. n.º 2052/09.9TBPDL-C.L1-6, cuja cópia foi junta aos autos nas respectivas alegações de recurso.

23. Acresce que, nos termos referidos, foi igualmente invocado que o acórdão proferido pelo Tribunal a quo encontra-se em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2015 (Proc. n.º 2052/09.9TBPDL-C.L1-6, cujo acórdão foi junto em sede de alegações), proferido no domínio da mesma legislação (CPC e Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com a mesma redacção) e sobre a mesma questão fundamental de direito, concernente com a concessão de apoio judiciário e com a responsabilidade pelo pagamento das despesas e honorários de Agente de Execução.

24. Discutindo-se num e noutro recurso se os Recorrentes, a quem foi concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça, são ou não responsáveis pelo pagamento dos honorários e despesas de Agente de Execução, sendo que, num e noutro processo, falta o valor da sucumbência por a decisão impugnada ser desfavorável em valor inferior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão. Porém, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, no citado Proc. n.º 2052/09.9TBPDL-C.L1-6 foi o recurso interposto admitido ao abrigo da alínea a) do n.° 2 do artigo 629.° do CPC, por verificação da ofensa do caso julgado formado pela decisão da Segurança Social, pelo que também se mostra, assim, preenchida a alínea d) daquele preceito.

25. Foi ainda invocado que o acórdão proferido pelo Tribunal a quo também se encontra em oposição com os acórdãos proferidos pelos Tribunais da Relação do Porto de 10.02.2020 (Proc. n.º 14416/19.5T8PRT-C.P1, cujo acórdão também foi junto), de Lisboa de 18.02.2016, de 17.03.2022 e de 01.07.2021 (Proc. n.º 2052/09.9TBPDL-C.L1-6, n.º 1188/12.3TBPDL-A.L1-8 e n.º 1408/11.1T2SNT.L1-2, respectivamente) e de Guimarães de 27.05.2021 (Proc. n.º 94/13.9TBVMS-A.G1).

26. Todos estes acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, concernente com a concessão de apoio judiciário e com a responsabilidade pelo pagamento das despesas e honorários de Agente de Execução, discutindo-se num e noutro recurso se os Recorrentes, a quem foi concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça, são ou não responsáveis pelo pagamento dos honorários e despesas de Agente de Execução, sendo que, num e noutro processo, falta valor da sucumbência porque a decisão impugnada é desfavorável em valor inferior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão. No entanto, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, nos citados processos foram os recursos interpostos admitidos.

27. Não se vislumbrando qualquer fundamento que obstaculize à apreciação do presente recurso jurisdicional, face ao idêntico circunstancialismo naqueles processos judiciais e no dos presentes autos, pelo que a não admissão do recurso jurisdicional interposto viola o direito a uma tutela jurisdicional efectiva e o princípio constitucional da igualdade, constitucionalmente consagrados nos artigos 20.º e 13.º da Constituição.

28. Na verdade, não pode ser aceite, num Estado de Direito Democrático, assente no pilar da justiça, que se mantenham na ordem jurídica decisões opostas tomadas sobre a mesma matéria, sobretudo numa matéria relacionada com o apoio judiciário, pois tal desprestigiaria a justiça e descredibilizaria a sua função basilar de segurança e manutenção da ordem, sendo da mais elementar justiça que o recurso interposto seja admitido.

29. A intenção do legislador, ao permitir o acesso a um terceiro grau de jurisdição, foi a de evitar a propagação de decisões contraditórias e de garantir a possibilidade de resolução de conflitos de jurisprudência entre acórdãos das Relações, em matérias que por motivos de ordem legal que não respeitam à alçada do tribunal, não chegariam à apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, garantindo, nessa medida, o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei, igualdade esta constitucionalmente consagrada e que urge sedimentar.

30. Mas vamos mais longe e ousamos também dizer que, ao não admitir o recurso e abster-se de se pronunciar quanto ao mérito da causa, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo encontra-se ainda em contradição com a jurisprudência que vem sido preconizada pelos Tribunais superiores, designadamente pelo Tribunal da Relação do Porto em 10.02.2020 (Proc. n.º 14416/19.5T8PRT-C.P1), de Coimbra em 17.11.2020 e 28.06.2022 (Proc. n.º 500/09.7TBSRT.1.C1) e n.º 1175/18.8T8CTB-C.C1, respectivamente), de Lisboa em 18.02.2016, 27.04.2021, 07.02.2019, 17.03.2022 e 01.07.2021 (Proc. n.º 2052-09.9TBPDL-C.L1-6, n.º 17985/12.7YYLSB-C.L1-7, n.º 2702.13.2.YYLSB-B.L1-8, n.º 1188/12.3TBPDL-A.L1-8 e n.º 1408/11.1T2SNT.L1-2, respectivamente) e de Guimarães em 27.05.2021 e em 10.07.2019 (Proc. n.º 94/13.9TBVMS-A.G1 e n.º 1034/14.3TJVNF-C.G1, respectivamente). Sendo, assim, manifesto que todos estes acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, abarcando o apoio judiciário e a responsabilidade pelo pagamento das despesas e honorários de Agente de Execução.

31. Nessa conformidade, verificando-se a contradição de acórdãos entre o proferido pelo Tribunal a quo e os restantes acórdãos supra identificados, ambos proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, concluímos que o recurso interposto pelos Recorrentes é, também ele, admissível ao abrigo da alínea d) do n.° 2 do artigo 629.° do CPC.

32. Impõe-se ainda referir que os acórdãos-fundamento invocados em sede de recurso, demonstrativos de que o acórdão recorrido encontra-se em contradição com outros, proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, servem tanto de fundamento para a aplicação aos autos do vertido na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, como para a aplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do mesmo diploma, que falaremos de seguida.

33. Por outro lado, a assim não se considerar, os Recorrentes invocaram, a título de revista excepcional, a aplicação do regime consagrado nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 artigo 672.º do CPC, por considerarem que estamos perante questão juridicamente relevante e perante interesses de particular relevância social, bem como por existir oposição de acórdãos proferidos no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, tudo nos termos desenvolvidos nas respectivas alegações de recurso e que, por razões de economia processual, se dá aqui como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. A este propósito, diga-se ainda que o recurso de revista excepcional será sempre admissível, independentemente do valor e da sucumbência, até porque, no referido artigo 672.º do CPC, não se encontra prevista qualquer limitação neste sentido e, onde o legislador não restringe, não cabe ao intérprete fazê-lo.

34. Desde logo, no que respeita ao facto de estarmos perante questão juridicamente relevante, os Recorrentes invocaram, nas respectivas alegações de recurso, o idêntico circunstancialismo fáctico existente entre os presentes autos e outros processos judiciais ali identificados, defendendo que estamos perante uma questão cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, pelo que sempre deverá o recurso ser admitido ao abrigo deste regime contido na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

35. Por sua vez, relativamente ao facto de estarem em causa interesses de particular relevância social, os Recorrentes defenderam nas suas alegações que o caso que aqui nos traz, relacionado com a concessão de apoio judiciário a Executados a quem foi reconhecida insuficiência económica, configura uma questão com enorme impacto social e mesmo comunitário, não olvidando o aumento da inflação, o aumento colossal das taxas de juro dos empréstimos bancários para habitação e o aumento abismal do custo de vida.

36. Ora, vendo os Recorrentes que em todos os casos similares não é imputado aos Executados, beneficiários de apoio judiciário, o pagamento de quaisquer despesas, criou-se um sentimento de revolta e de grande inquietação, o qual ultrapassa os Recorrentes e atinge a própria comunidade, onde se gera um forte sentimento colectivo de angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça e até indignação, o que leva os Recorrentes e a própria comunidade a questionar a eficácia e a credibilidade do direito e dos próprios Tribunais pela injustiça que a decisão recorrida provoca.

37. Mostrando-se imperioso que as partes economicamente mais débeis e fragilizadas tenham um tratamento igual em situações em tudo idênticas, não podendo ser aceite que, num Estado de Direito Democrático, assente no pilar da justiça, se mantenham na ordem jurídica decisões opostas tomadas sobre a mesma matéria, sobretudo numa matéria relacionada com o apoio judiciário, pois tal desprestigiaria a justiça e descredibilizaria a sua função basilar de segurança e manutenção da ordem.

38. Tanto mais grave que, conforme já referimos anteriormente, o valor das custas que pretendem imputar aos Recorrentes é altamente desproporcional, pois corresponde a cerca de 2/3 da dívida daqueles, o que ofende os mais elementares valores sócio-culturais e choca a própria comunidade face à injustiça e desproporcionalidade que aqui se verificam!

39. Deste modo, a relevância social da questão decorre do facto de estar em causa o instituto do apoio judiciário e do acesso ao direito, com dignidade constitucional reconhecida, sendo potenciada por ultrapassar os estreitos limites dos presentes autos por assumir um interesse comunitário significativo, razão pela qual, atenta a sua extrema relevância social, deverá o recurso interposto pelos Recorrentes ser admitido ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

40. No que concerne à oposição de acórdãos a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, vale aqui tudo quanto supra se alegou a propósito da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, dado que os acórdãos que servem de fundamento a esta contradição valem para ambos os regimes.

41. Ademais, ainda que a decisão recorrida fosse subsumida como sendo decisão interlocutória a que se refere o n.º 2 do artigo 671.º do CPC - o que não fez o Tribunal a quo, nem a Meritíssima Juíza Conselheira Relatora no despacho de que aqui se reclama, nem foi esse o fundamento da não admissão da revista -, sempre se dirá que, nos autos, tal decisão pode ser objecto de revista ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, a qual remete indubitavelmente para o n.º 2 do artigo 629.º do CPC, mormente as suas alíneas a) e d), assim sendo admitida a revista que verse sobre decisões interlocutórias “Nos casos em que o recurso é sempre admissível”, como sucede com as citadas alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC e pelos fundamentos supra transcritos que aqui se dão como reproduzidos.

42. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão datado de 23.01.2020 (Proc. n.º 1303/17.0T8AGD-B.P1) que “se esta foi a vontade do legislador e se a al. a) do citado art.º 671.º, n.º 2, remete para a norma do citado art.º 629.º, n.º 2, al. d), cujo segmento faz referência expressa à contradição de julgados entre acórdãos da Relação, sem afastar esta possibilidade, a conclusão a tirar, de acordo com o estipulado no art.º 9.º, n.º 1 e 3 do Código Civil, é a de que o legislador, intencionalmente, entendeu por bem admitir o recurso dos acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias” (no mesmo sentido, veja-se o Acórdão do mesmo Tribunal, proferido em 21.02.2019, no âmbito do Proc. n.º 27417/16.6T8LSB-A.L1.S2).

43. Assim se concluindo que, ainda que os presentes autos fossem subsumidos ao regime da alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, sempre seria o recurso admitido por conjugação daquele preceito com as alíneas a) e d) qual do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.

44. Dito isto: ao não ter sido admitido o recurso, podemos concluir que, quer o despacho proferido pelo Tribunal a quo que não admitiu o recurso e do qual se reclamou ao abrigo do artigo 643.º do CPC, quer o despacho proferido pela Meritíssima Juíza Conselheira e do qual aqui se reclama ao abrigo do n.º 3 do artigo 652.º do CPC para que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, são ambos nulos, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos das alíneas b) e d) do artigo 615.º do CPC, respectivamente, aplicável por via do n.º 1 do artigo 666.º do mesmo diploma, nulidade esta expressamente invocada e que importa ser reconhecida.

45. Ademais, os Recorrentes reiteraram e fundamentaram a ofensa do caso julgado e a oposição de acórdãos, tendo procedido, em sede de alegações, à junção de cópia de dois exemplos de decisões que fundamentam a sua pretensão, pelo que se mostram verificados os pressupostos contidos no n.º 2 do artigo 629.º do CPC, mormente as alíneas a) e d), onde expressamente se refere que é sempre admissível recurso, assim como alegaram e fundamentaram a aplicação do regime previsto, a título excepcional, nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, bem como a alegaram a admissibilidade resultante da alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, em conjugação com as alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.

46. Por conseguinte, o despacho do qual aqui se reclama fez, salvo o devido respeito, que é muito, errada interpretação e aplicação da lei, devendo ser revogado e substituído por outro que admita o recurso de revista oportunamente apresentado pelos Recorrentes e que, por essa via, dignifique a posição fragilizada dos mesmos”.


*


A questão a decidir nesta Conferência é, pois, a de saber se deve ou não ser admitida aquela reclamação apresentada ao abrigo do artigo 643.º do CPC.

Comece-se por recordar o teor da decisão singular proferida neste Supremo Tribunal de Justiça (decisão ora reclamada):

“Como se sabe, na apreciação de uma reclamação apresentada ao abrigo do artigo 643.º do CPC, cumpre ao julgador apreciar exclusivamente do acerto ou desacerto da decisão de indeferimento do requerimento de interposição do recurso.

Esta decisão tem, no caso concreto, o seguinte teor:

“Os apelantes vieram interpor revista excecional do acórdão proferido, em Conferência, nos presentes autos executivos e que confirmou a Decisão Singular da Relatora, negando a admissibilidade da apelação interposta com a seguinte Deliberação: “tendo os apelantes decaído em 543,60€ ou seja em montante inferior à metade da alçada do tribunal recorrido, que é de € 5.000,00 nos termos do n.º1, do art.º 44.º da Lei n.º 62/2013 de 26.08 e sendo cumulativos tais requisitos não é por tal razão admissível o recurso interposto artigo 629º/1”.

A apreciação dos pressupostos específicos da revista excecional, é relegada para momento posterior no âmbito da Formação prevista no nº 3, do artigo 672º, do Código de Processo Civil)

Todavia, “na Relação compete ao Relator proceder a uma primeira apreciação dos aspetos gerais referidos no artigo 641º devendo rejeitar o recurso se acaso verificar a falta dos pressupostos gerais em torno da tempestividade, da legitimidade ou da recorribilidade, em face dos artigos 629º nº 1 e 671º e 3, se faltarem as alegações ou se nestas tiveram sido omitidas as respetivas conclusões” Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição pp 458.

A revista excecional está sujeita aos pressupostos gerais do recurso de revista mormente em matéria de valor para efeitos de alçada e de sucumbência por força do n.º 1, do artigo 629.º, já que a revista excecional não deixa de ser um recurso ordinário, à luz do disposto no nº 2 do artigo 627.º do CPC. (Neste sentido, o Acórdão do STJ de 07-07-2023 (JÚLIO GOMES) 174/14.3TTVLG-A.P1-A.S1).

Isto posto,

O Recurso de revista na ação executiva está delimitado pelo artigo 854º, do Código de Processo Civil, segundo o qual: “Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.

Está afastada, por esta norma legal, a recorribilidade para o Supremo da generalidade dos acórdãos da Relação sobre a oposição deduzida contra a penhora e sobre a generalidade das decisões interlocutórias (…) Abrantes Geraldes, ibidem.

Acresce que o artigo 629º, nº 1, do Código de Processo Civil, por sua vez, sujeita a admissibilidade do recurso à verificação cumulativa de um duplo requisito: (a) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; (b) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.

A decisão recorrida é desfavorável para os Recorrentes, conforme o acórdão de que se recorre em €543,60, sendo este o valor da sucumbência, o qual é inferior à metade da alçada deste Tribunal da Relação, que é de € 30.000,00 nos termos do n.º1, do art.º 44.º da Lei n.º 62/2013 de 26.08.

Em tais termos, não se verificando no presente caso qualquer uma das situações previstas no n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil, não admito a revista, por o acórdão impugnado ser irrecorrível nos termos do artigo 854º, do Código de Processo Civil e por falta dos pressupostos gerais previstos no artigo 629º, nº 1, do mesmo diploma legal.

Custas pelos Recorrentes sem prejuízo do apoio judiciário”.

Verifica-se que o requerimento de interposição do recurso de revista interposto pelos ora reclamantes foi indeferido, em síntese, porque, não sendo um dos casos em que é sempre admissível recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, do CPC, se deparava com a limitação do artigo 854.º do CPC e, além disso, não cumpria o requisito relativo à sucumbência exigido no artigo 629.º, n.º 1, do CPC.

Contra esta decisão, os reclamantes alegam, no essencial, que:

a) O despacho é nulo, por falta - ou pelo menos insuficiência - de fundamentação, bem como por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, als. b) e d), do CPC (cfr. alegações 5 a 10);

b) O recurso devia ter sido admitido:

(i) por via normal, com fundamento em ofensa de caso julgado e de oposição de julgados, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, als. a) e d), do CPC ou, subsidiariamente,

(ii) por via excepcional com fundamento na relevância jurídica, na relevância social ou na oposição de julgados, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, als. a), b), e c), do CPC ou, ainda,

(iii) por “convolação” dos fundamentos do artigo 629.º, als. a) e d), nos fundamentos do artigo 672.º, n.º 2, al. a), do CPC

(cfr. alegação 14 e, respecctivamente, alegações 15 a 31, 32 a 39 e 40 a 42);

c) o artigo 854.º do CPC não é argumento para a inadmissibilidade do recurso porque não é uma regra absoluta (cfr. alegações 43 a 47); e, por fim,

d) o despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação e a decisão de inadmissibilidade do recurso violam normas constitucionais (cfr. alegações 48 a 58).

Para analisar estes argumentos, é preciso convocar o requerimento de interposição e as alegações do recurso de revista.

No requerimento de interposição de recurso de revista invoca-se “o estatuído na alínea b) do n.º 5 do artigo 652.º, no artigo 671.º, nas alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º, nas alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º, no n.º 2 do artigo 675.º, no n.º 1 do artigo 676.º, no n.º 1 do artigo 638.º do Código de Processo Civil (CPC)”.

As conclusões das alegações são e, logo na primeira, os ora reclamantes vêm reiterar que o recurso é interposto “ao abrigo da alínea b) do n.º 5 do artigo 652.º do CPC, em conjugação com as alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º e com as alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 629.º, todos do CPC”.

Não se pode deixar de notar que as algumas das normas invocadas pelos recorrentes / ora reclamantes não funcionam em simultâneo mas tão-só alternativamente para fundamentar a admissibilidade do recurso. Embora se compreenda a expectativa que todos os recorrentes têm de que o julgador encontre nalguma delas o adequado enquadramento para o seu recurso, não é de enaltecer a opção. Ainda assim, apreciar-se-á adiante cada um dos grupos de fundamentos.

Veja-se, antes, de mais as limitações com que se depara o presente recurso.

A decisão recorrida é o Acórdão proferido em Conferência que confirmou a decisão singular de não admissibilidade do recurso de apelação.

Esta decisão é, em princípio, recorrível ao abrigo do artigo 652.º, n.º 5, al. b), do CPC, como alegam os ora reclamantes.

Dispõe-se nesta norma:

“Do acórdão da conferência pode a parte que se considere prejudicada:

(…)

b) Recorrer nos termos gerais”.

Pode afastar-se, desde já, a possibilidade de enquadramento do presente recurso no artigo 672.º, als. a), b) e c), do CPC.

É que esta via excepcional só é admissível quando o recurso se depara com o obstáculo da dupla conforme, o que não é o caso, uma vez que o acórdão recorrido não confirma qualquer decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Salta à vista, no entanto, que, como se afirmou na decisão reclamada, o Acórdão recorrido é proferido no âmbito de um processo executivo, deparando-se, portanto, com a limitação do artigo 854.º do CPC.

Dispõe-se nesta norma:

“Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.

É verdade que, como advertem os ora reclamantes, o impedimento do artigo 854.º do CPC não é absoluto: salvaguardam-se os casos em que o recurso é sempre admissível, enumerados no artigo 629.º, n.º 2, do CPC. Há, pois, que apreciar – adiante –, sendo que se torna desnecessária a “convolação”, invocada pelos ora reclamantes, dos fundamentos da revista excepcional nesta via de fundamentos específicos.

Verifica-se, além disto, que o presente recurso não preenche o requisito relativo à sucumbência.

Mais uma vez, deve observar-se que a falta deste requisito é superável se o caso puder ser reconduzido aos casos em que o recurso é sempre admissível, previstos no artigo 629.º, n.º 2, do CPC.

Fica afastada, porém, a possibilidade de fundamentar a admissibilidade do recurso na al. d) do n.º 2 da norma, tal como invocado pelos ora reclamantes.

A admissibilidade de um recurso com este fundamento está, como é compreensível, dependente de certos requisitos e um dos requisitos é, justamente, o de que “Do acórdão da Relação (…) não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal”.

Ora, se o proémio da norma parece apontar no sentido da independência da admissibilidade do recurso relativamente ao valor da alçada do tribunal a quo, a verdade é que o texto da disposição logo o desmente, tornando claro que apenas se contemplam os casos em que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, conforme se exige no n.º 1 do artigo 629.º do CPC.

Assim tem interpretado consistentemente a norma do artigo 629.º, n.º 1, al. d) do CPC este Supremo Tribunal de Justiça. Vejam-se, a título exemplificativo, os Acórdãos de 24.11.2016 (Proc. 1655/13.1TJPRT.P1.S1), de 20.12.2017 (Proc. 2841/16.8T8LSB.L1.S1), de 8.02.2018 (Proc. 810/13.9TBLSD.P1.S1), de 8.10.2020 (Proc. 824/17.0T8PTL-A.G1-A.S1), de 13.10.2020 (Proc. 32/18.2T8AGD-A.P1-A.S1), de 25.02.2021 (Proc. 12884/19.4T8PRT-B.P1-A.S1) de 25.03.2021 (Proc. 3050/05.7TJLSB.L1.S1), de 23.11.2021 (Proc. 6300/19.9T8FNC-A.L1-A.S1), de 15.03.2022 (Proc. 17315/16.9T8PRT.P3.S1), de 24.05.2022 (Proc, 756/19.7T8ANS-A.C1-A.S1) e de 11.07.2023 (Proc. 3099/20.0T8STS.P1-A.S1 (este último referido pela recorrida).

O mesmo entendimento é adoptado pela mais reputada doutrina. Como se explica em anotação ao artigo 629.º, n.º 2, do Código de Processo, “a partir da consideração da parte final da alínea d), formou-se um largo consenso no sentido de que a admissibilidade de recurso à luz deste preceito excepcional não dispensa em caso algum [diferentemente das alíneas a) a c)] às exigências previstas no n.º 1 quanto ao valor da causa e quanto à medida da sucumbência”1.

Ora, tendo em conta que o valor da alçada do Tribunal da Relação é de € 30.0002 e que o valor da sucumbência é de €543,60 (portanto não superior a metade daquele valor), não há forma de o presente recurso preencher aquele requisito do não cabimento de recurso ordinário do acórdão recorrido por motivo estranho à alçada do tribunal3.

Visto isto, resta apenas apreciar da via do artigo 629.º, n.º 2, al. a), pois só ela permitiria superar os dois obstáculos referidos.

Segundo os ora reclamantes, a alegada ofensa do caso julgado seria “resultante do facto de aos Recorrentes ter sido concedido apoio judiciário por parte do Instituto da Segurança Social, ao abrigo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que concluiu que aqueles não têm condições para suportar o pagamento de todo e qualquer tipo de valor relacionado com o pagamento de custas deste processo” (cfr. alegação 16). “Esta decisão – acrescentam ainda – podia ser judicialmente impugnada junto do Tribunal competente, nos termos conjugados dos artigos 26.°, 27.° e 28.° da referida Lei. Não o tendo sido, por ter decorrido o prazo legal para tanto sem que fosse judicialmente impugnada, adquiriu equiparação a decisão judicial como teria sucedido no caso de ter havido impugnação sobre a qual viesse a recair decisão judicial, pelo que somos forçados a concluir que a decisão da Segurança Social transitou em julgado e tem força obrigatória dentro do processo, aí fazendo caso julgado formal, nos termos definidos no artigo 620.° do CPC” (cfr. alegação 17).

Para que um recurso seja admissível com base no fundamento da ofensa de caso julgado não basta invocar a ofensa de caso julgado.

Explica José Alberto dos Reis que, em tema de ofensa do caso julgado, há que distinguir dois aspectos: o aspecto da admissibilidade e o aspecto da procedência do recurso:

“Dentro do aspecto da admissibilidade do recurso, cabem duas averiguações:

1.ª Se há uma decisão, com trânsito em julgado, que possa ter sido ofendida;

2.ª Se essa decisão, em confronto com a decisão recorrida, tem valor de caso julgado a respeitar, o que equivale a dizer: se entre as duas decisões existem as três identidades mencionadas [no art. 581.º]”4.

Ora, imediatamente se vê que o presente recurso não supera este “teste” da admissibilidade, pois, desde logo, no caso em apreço, não existe decisão com trânsito em julgado que possa ter sido ofendida. Definitivamente, a decisão do Instituto da Segurança Social de concessão de apoio judiciário não configura uma decisão das do tipo em causa, ou seja, que formam caso julgado nos termos dos artigos 619.º e s, do CPC.

A terminar, deixe-se uma palavra sobre as alegações remanescentes dos ora reclamantes, designadamente, de que o despacho reclamado padece de nulidade por falta de fundamentação e de omissão de pronúncia e de que o despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação e a decisão de indeferimento do requerimento de interposição do recurso violam normas constitucionais.

Recorda-se, antes de mais, o que se disse no início, ou seja, que, na reclamação apresentada ao abrigo do artigo 643.º do CPC apenas cabe apreciar do acerto ou desacerto da decisão de indeferimento do requerimento de interposição do recurso.

Seja como for, sempre se diz que não se vislumbra nulidade com qualquer das causas invocadas. A única questão a apreciar naquela decisão era a da deferimento do requerimento de interposição do recurso e foi isso o que foi decidido. A decisão foi apoiada em diversos fundamentos, que, impondo de forma inapelável o indeferimento, sempre tornaria desnecessário apreciar quaisquer outros.

Relativamente à inconstitucionalidade arguida, e circunscrevendo, desde já, as observações que aqui nos é permitido fazer à decisão reclamada (já que é essa a única cuja impugnação pode ser aqui conhecida), diga-se que aquilo que os ora reclamantes invocam é, na verdade, a desconformidade à lei fundamental (aos artigos 13.º, 18.º, 20.º e 202.º da CRP, sobre o direito ao recurso em igualdade de meios económicos) do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, que, ao rejeitar o recurso de apelação, impede os ora reclamantes de ver reapreciada a decisão da sua condenação ao pagamento das despesas e dos honorários do agente de execução. Ora, sobre tal questão este Supremo Tribunal sempre estaria impossibilitado de se pronunciar. Esclareça-se que não existe um direito subjectivo ao recurso

Como tem sido reiteradamente salientado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, não existe um direito subjetivo ao recurso, conforme decorre, entre muitos outros, do Acórdão n.º 21/2018, de 10.01, onde se afirmou o seguinte:

“(...) Tem entendido a jurisprudência do Tribunal Constitucional que não existe um direito subjetivo ao recurso, salvo em decisões penais condenatórias (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 359/86, 65/88, 202/90 e 330/91), sendo aqui fundamental a distinção entre processo penal e processo civil. E, mesmo sendo possível fundar constitucionalmente um direito genérico de recorrer das decisões judiciais, este direito teria apenas o significado de que o legislador está impedido de abolir o sistema de recursos in toto ou de o afetar substancialmente através de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos (cf Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2.ª Edição, Coimbra, 2010, pp. 451-452). O legislador ordinário goza, assim, de uma margem de conformação para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos, nomeadamente em função do valor da causa, da natureza do processo, do tipo e objetivo das ações, da relevância das causas, da importância das questões (Acórdãos n.°s 163/90, 116/95, 501/96, 125/98, 149/99 e 77/01), apenas limitada pelo princípio da proporcionalidade, não sendo constitucionalmente admissível a consagração de exigências desprovidas de fundamento racional, sem conteúdo útil ou excessivas”.

Em coerência, deve compreender-se que o Supremo Tribunal de Justiça não funciona simplesmente como uma jurisdição de terceiro grau nem o recurso de revista constitui um recurso de segundo grau automático ou incondicional.

Existem – e compreensivelmente – regras legais a observar, impondo impedimentos e restrições à sua admissibilidade do recurso que não é possível – nem nunca seria justificado – ignorar, entre os quais se destacam os assinalados no caso em apreço.

Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação e mantém-se o despacho reclamado.

Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar”.


*


Começa por se dizer que se entende que a decisão reclamada é exemplar na identificação e na cabal resposta a todas as questões suscitadas pelos reclamantes.

E como, na presente reclamação, pouco ou nada os reclamantes de substancial acrescentam, será pouco ou nada o que é possível acrescentar neste Acórdão.

De qualquer modo, volte-se a tentar explicar as razões pelas quais o recurso não é admissível, usando-se outras palavras.

Como é do conhecimento geral, a admissão dos recursos depende da verificação de certos requisitos. São eles, além de certos requisitos formais, requisitos relacionados com a legitimidade (do recorrente) (cfr. artigo 631.º do CPC), a tempestividade (do recurso) (cfr. artigo 638.º do CPC) e a recorribilidade da decisão.

Este último compreende exigências respeitantes aos valores da causa da sucumbência (cfr. artigo 629.º, n.º 1, e artigo 44.º, n.º 1, da LOSJ) e ao conteúdo da decisão (cfr. artigo 671.º, n.º 1, e n.º 3, do CPC), que são, compreensivelmente, mais elevadas quando se trata do Supremo Tribunal. Este não funciona – ou não deve funcionar – como uma instância de recurso automática, devendo aquelas exigências assegurar a concentração deste nos recursos das decisões que são quantitativa ou qualitativamente significativas ou, pelo menos, que não sejam insignificantes nalgum destes planos.

É verdade que, em certos casos (excepcionais), existe um direito incondicional ao recurso – são os casos em que é sempre admissível recurso, que têm necessariamente as características descritas nas quatro alíneas do artigo 629.º, n.º 2, do CPC.

Ora, no que toca ao recurso em causa, verifica-se que foram invocadas pelos recorrentes, em rigor, duas vias de admissão: a via do recurso de revista normal, com os fundamentos excepcionais da ofensa de caso julgado [artigo 629.º, n.º 2, als. a), do CPC] e da contradição de julgados [artigo 629.º, n.º 2, als. d), do CPC], e a via do recurso de revista excepcional, com os pressupostos específicos da relevância jurídica da questão [cfr. artigo 672.º, n.º 1, al. a), do CPC], da relevância social da questão [cfr. artigo 672.º, n.º 1, al. b), do CPC] e da contradição de julgados [cfr. artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Como se explicou na decisão reclamada, não se dá valor ao enquadramento do recurso na norma do artigo 671.º. n.º 2, al. a), do CPC porque ele é absolutamente inútil: dependendo sempre a aplicabilidade da norma da ocorrência de algum dos casos descritos no artigo 629.º, n.º 2, do CPC, a verificação dos respectivos requisitos seria redundante e desprovida de efeito autónomo.

Como também se explicou na decisão reclamada, tão-pouco a via do recurso de revista excepcional é de alguma valia, seja qual for o pressuposto especifico invocado., pois esta serve exclusivamente para superar o obstáculo da dupla conforme. Ora, como se disse na decisão reclamada, não ocorre dupla conforme e, ainda que assim não fosse, sempre existiriam impedimentos adicionais à admissibilidade do recurso – o presente recurso não só não respeita a exigência relacionada com os valores da causa e da sucumbência como ainda se depara com a limitação prevista no artigo 854.º do CPC.

Esta limitação é superável quando ocorra qualquer dos casos previstos no n.º 2 do artigo 629.º do CPC mas aquela exigência só é dispensável quando ocorra algum dos casos previstos nas als. a), b) ou c) da norma, ou seja, já não o previsto na sua al. d).

Como se explicou na decisão reclamada, a lei não é, neste ponto, tão clara quanto seria desejável, mas cabe ao intérprete – a quem mais? – retirar da norma, sempre com apoio nos vários elementos de interpretação, o sentido que mais bem lhe corresponda e este é o sentido que tem suscitado a convergência da jurisprudência, designadamente deste Supremo Tribunal de Justiça. Veja-se a jurisprudência e a doutrina mencionadas na decisão reclamada.

De todos os fundamentos invocados para a admissibilidade do recurso resta, assim, o previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, qual seja, a ofensa de caso julgado. Sucede que a decisão a que os recorrentes referem como tendo transitado em julgado não é uma sentença nem nenhuma das decisões mencionadas nos artigos 619.º e 620.º do CPC, pelo que é completamente inútil sequer prosseguir para a verificação dos demais requisitos de admissibilidade do recurso à luz daquela norma.

É inevitável concluir que o recurso não é admissível por nenhuma das vias invocadas.

Cabe voltar a explicar que esta conclusão não ofende ou desrespeita o direito ao recurso, que, na sua dignidade constitucional, é susceptível de ser limitado, tendo o legislador o poder de o subordinar a determinadas condições, seja em geral, seja em especial, como aquelas com que o presente recurso se depara. Veja-se, em confirmação disto, mais uma vez, o paradigmático Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 21/2018, de 10.01. Não há, pois, como se explicou antes, nenhuma inconstitucionalidade.

Tudo o que fica dito agora foi dito na decisão reclamada, razão pela qual, subscrevendo-se os fundamentos expostos então, decide-se agora que ela deve manter-se.

Por fim, não seria exigível mas sempre se deixa uma sugestão a propósito da alegada nulidade da decisão reclamada por falta de fundamentação e omissão de pronúncia (cfr. conclusões 21 e 45) porque “não [se] tomou conhecimento relativamente à circunstância de ter sido invocada a admissibilidade da revista excepcional ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC” (cfr. conclusão 20): veja-se os dois últimos parágrafos da página 4 da decisão reclamadas. Ler-se-á aí:

Pode afastar-se, desde já, a possibilidade de enquadramento do presente recurso no artigo 672.º, als. a), b) e c), do CPC.

É que esta via excepcional só é admissível quando o recurso se depara com o obstáculo da dupla conforme, o que não é o caso, uma vez que o acórdão recorrido não confirma qualquer decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância”.


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Pelo exposto, confirma-se o despacho reclamado e mantém-se a decisão de inadmissibilidade da revista.

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Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar.

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Lisboa, 14 de Novembro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Paula Leal Carvalho

Emídio Santos

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1. Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Coimbra, Almedina, 2018, pp. 751-754 (754). Cfr. também Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina2018 (5.ª ed.), pp. 41-75 (69-71).

2. Cfr. artigo 44.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08.

3. Bem ao contrário, é por esse motivo que não tem cabimento o recurso ordinário e que o recurso só poderia ser admitido com um fundamento especifico (mas outro que não o da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC).

4. Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, Artigos 658.º a 720.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1984 (reimpressão), p. 237 (sublinhados do autor).