Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DE DEUS CORREIA | ||
Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DIREITO DE PROPRIEDADE PRÉDIO RÚSTICO REGISTO PREDIAL FUNDAMENTOS TRÂNSITO EM JULGADO | ||
Data do Acordão: | 11/14/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO | ||
Sumário : | A presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça: I - RELATÓRIO BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA interpôs acção declarativa de condenação com processo comum contra: AA, BB e outros, todos melhor identificados nos autos. Formulou os seguintes pedidos: (i) ser declarado que a Autora BCP, SA é a legítima e exclusiva proprietária do prédio rústico, com a área de 504m2, sito na freguesia de ..., no concelho de ..., no lugar da ..., descrito na conservatória do registo predial de ..., sob o n.º ..31 e inscrito na matriz predial rústica sob o art. 177.º; (ii) serem condenados os réus a reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o imóvel referido no número anterior; (iii) Serem condenados os réus a restituir ao autor, livre de pessoas e bens, o prédio rústico melhor descrito em (i) e a abster-se da prática de qualquer ato que coloque em causa a posse da autora; (iv) Ser declarado que os réus estão na posse ilegítima do imóvel referido em (i), desde 1 de dezembro de 2015; (v) ser declarado que, por força da referida posse ilegítima, a autora é titular dos seguintes direitos de crédito sobre os réus: 1. € 160.382,01 (cento e sessenta mil, trezentos e oitenta e dois euros e um cêntimo) a título de enriquecimento sem causa pelo uso do imóvel referido no antecedente (i), desde 1 de dezembro de 2015 até à presente data, sendo € 140.096,00 (cento e quarenta mil e noventa e seis euros) relativos a capital e o remanescente relativo a juros; 2. € 1.592,00 (mil, quinhentos e noventa e dois euros) por cada mês contado desde a presente data até à data da entrega, livre de pessoas e bens, do imóvel referido no antecedente (i), ao autor, a título de enriquecimento sem causa; (vi) Serem condenados os réus, a título solidário, a pagar à autora as quantias referidas no número anterior, acrescidas de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento; (vii) Serem condenados os réus, solidariamente, no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória e ao abrigo do art.º 829.º-a n.º 1 do código civil, da quantia de € 100,00 por cada dia de atraso na entrega, livre de pessoas e bens, do imóvel referido no antecedente n.º i. (viii) serem condenados os réus, solidariamente e ao abrigo do art.º 609.º n.º 2 do CPC, a pagar à autora a indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos danos existentes no imóvel referido no antecedente (i) e que tenham ocorrido ou tenham fundamento no período da sua posse ilegítima. (ix) Ser declarado que a autora, enquanto proprietária do prédio rústico referido no antecedente (i), confinante com o prédio urbano pertencente à herança indivisa de CC E DD, de que os réus são beneficiários, tem, nomeadamente, direito a murar, valar, rodear de sebes e tapar o referido prédio rústico (art. 1356.º do cc), designadamente através da construção de paredes divisórias e de muros divisórios; (x) Serem condenados os réus a reconhecer os direitos do autor referidos no número anterior; (xi) serem condenados os réus, ao abrigo do art.º 1353.º do Código Civil, a concorrer para a demarcação das estremas entre o prédio rústico referido no antecedente (i) (de que a autora é proprietária) e o prédio urbano, sito na rua ..., descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ..64.º (de que são proprietárias as heranças indivisas de DD e CC), definindo-se a linha divisória que vier a resultar dos títulos de cada um e dos meios de prova a produzir nos presentes autos e que, no mínimo, corresponderá a uma linha reta paralela ao muro situado na extremidade norte do imóvel da autora, havendo uma separação entre as duas extremidades (norte e sul do imóvel) de 9,85 metros. A título subsidiário, face ao pedido formulado em (xi) e na impossibilidade de determinar a linha divisória entre o prédio rústico referido no antecedente n.º i (pertencente à Autora) e o prédio urbano, sito na rua ..., descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ..64.º requer, ao abrigo do art.º 1354.º n.º 2 do código civil, que a linha divisória entre os dois imóveis seja definida através da divisão da sua área total em partes iguais. Na primeira instância foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “1) Julga-se inepta a petição inicial, quanto ao pedido de condenação solidária dos réus “no pagamento da indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos danos existentes no imóvel do qual sustenta ser proprietário e que tenham ocorrido ou tenham tido fundamento no período da sua posse ilegítima”, absolvendo-os da respectiva instância. 2) Declara-se o autor, Banco Comercial Português, SA - Sociedade Aberta, como exclusivo proprietário do prédio rústico com a área de 504 m2, sito na ..., no Concelho de ..., no Lugar da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ... e inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo .77º. 3) Condenam–se os réus a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o imóvel referido no número anterior. 4) Condenam-se os réus a restituir à autora, livre de pessoas e bens, o prédio referido em 2) e a absterem-se da prática de qualquer acto que coloque em causa a posse da autora. 5) Condenam-se os réus (herdeiros de DD e CC) a concorrer para a demarcação das estremas entre o prédio referido em 2) e o prédio urbano, sito na Rua..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .75, freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..64º, ficando pela presente sentença, definida a linha divisória como correspondendo a uma linha recta, paralela ao muro situado na extremidade norte do imóvel referido em 2), situada a 9,85 metros a sul desse mesmo muro (havendo uma separação entre as extremidades norte e sul do imóvel do autor de 9,85 metros). 6) Declara-se que a autora tem o direito a murar, valar, rodear de sebes e tapar o prédio referido em 2), designadamente através da construção de paredes divisórias e de muros divisórios. 7) Condenam-se os réus (herdeiros de DD e CC) a reconhecerem os direitos da autora referidos em 6). 8) Declara-se que os réus estão na posse ilegítima do imóvel referido em 2) desde 2015/12/01. 9) Absolvem-se os réus do mais peticionado. Inconformados com a sentença proferida, os Réus interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão datado de 21 de março de 2024, julgou parcialmente procedente o recurso e revogou a sentença na parte em que negou à Autora o direito à restituição do valor do enriquecimento dos Réus pelos factos dos autos, reconhecendo-se esse direito da Autora, “mas em montante a liquidar, cujo limite máximo é o valor do pedido formulado na petição quanto ao capital liquidatório nos termos do artigo 609/1 e 2 do CPC e de acordo com os critérios mencionados em ii.2.1, ii.2.2 e ii.2.3.” Inconformada com o teor do referido acórdão, a Autora BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA interpôs recurso de REVISTA para o STJ, que por acórdão datado de 19-09-2024, “negou a revista, confirmando o acórdão recorrido, reconhecendo à Autora o direito à restituição do valor do enriquecimento, em montante a liquidar, nos termos do disposto no art.º 609.º n.º 1 e 2 do CPC, porém, com fundamentos diversos, devendo apurar-se apenas o valor locativo, mensal ou anual, do prédio rústico em causa nos autos.” Notificada do acórdão vem agora a Autora/Recorrente apresentar requerimento invocando o disposto no art.º 615.º n.º 1 d), aplicável por remissão dos artigos 666.º n.º 1 e 685.º todos do Código de Processo Civil (CPC), formulando a seguintes pretensões: «I - Ao abrigo do art.º 615.º n.º 1, al. d) do cpc, seja declarada a nulidade por conhecimento de uma questão vedada pelo efeito de caso julgado do acórdão da Relação do Porto, reconhecendo o direito do autor/recorrente a uma compensação pelo uso indevido da totalidade do imóvel de que é proprietário, com a área total de 504 m2 (sendo 146 m2 relativos à parte da casa e 358 m2 relativos ao logradouro) e não apenas quanto à área de 358m2; –II - Na hipótese de se entender existir uma imprecisão no facto provado sob o n.º 32, seja, ao abrigo do art.º 616.º n.º 2, al. b) do CPC - ou, em última instância, do art.º 614.º n.º 1 do mesmo código – corrigido da seguinte forma: “O arrendamento de um logradouro como aquele que é utilizado pelos réus nunca seria possível por um valor mensal inferior a € 2,00 por metro quadrado.” III - Como consequência lógica dos pedidos anteriores, seja declarado que o autor/recorrente é titular dos seguintes direitos de crédito sobre os réus/recorridos: 1.€ 160.382,01 (cento e sessenta mil, trezentos e oitenta e dois euros e um cêntimo) a título de enriquecimento sem causa pelo uso do prédio rústico, com a área de 504m2, sito na freguesia de ..., no concelho de ..., (…) desde 1 de dezembro de 2015 até à data da instauração desta ação (22 de março de 2023), sendo € 140.096,00 (cento e quarenta mil e noventa e seis euros) relativos a capital e o remanescente relativo a juros já vencidos; 2.€ 1.592,00 (mil, quinhentos e noventa e dois euros) por cada mês contado desde a data da instauração da presente ação judicial (22 de março de 2023) até à data da entrega, livre de pessoas e bens, do imóvel referido no número anterior ao autor, a título de enriquecimento sem causa; IV - Sejam condenados os réus/recorridos, a título solidário, a pagar ao autor/recorrente as quantias referidas no número III. acrescidas de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde: 1. A data da instauração da presente ação (22 de março de 2023), sobre o capital em dívida de € 140.096,00 (cento e quarenta mil e noventa e seis euros; 2. O final de cada mês decorrido entre a data da instauração da presente ação (22 de março de 2023) e a data da entrega efetiva do imóvel ao recorrente, sobre o capital de € 1.592,00 (mil, quinhentos e noventa e dois euros); até efetivo e integral pagamento.» Cumpre apreciar e decidir: II - O DIREITO 1 - Vem a Autora/Requerente defender que este Tribunal conheceu de questão que não podia conhecer, por se tratar de questão já transitada em julgado, o que vicia o acórdão proferido de nulidade, ao abrigo do disposto no art.º 615.º n.º 1 d) do CPC. A Autora/Requerente argumenta para tanto que “formou-se caso julgado quanto à titularidade, por parte do autor recorrente, do direito a receber uma indemnização pela ocupação indevida do imóvel de que é proprietário, com a dimensão global de 504 m2, desde o dia 1 de dezembro de 2015.” Ora, o acórdão proferido pelo STJ “limita a compensação já reconhecida ao autor/recorrente a 358 m2, correspondentes ao logradouro do imóvel, ocupado, indevidamente, pelos réus/recorridos”. Por conseguinte, a Autora Recorrente entende que o Tribunal conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento porque estava abrangida pelo caso julgado. Será assim? Não é assim, como passamos a demonstrar: “O caso julgado assegura a confiança nas decisões dos tribunais, pois que evita o proferimento de decisões contraditórias por vários tribunais. Para obter este desiderato o caso julgado produz, como bem se sabe, dois efeitos: um efeito impeditivo, traduzido na excepção de caso julgado, e um efeito vinculativo, com expressão na autoridade do caso julgado. Aquela excepção visa obstar à repetição de decisões sobre as mesmas questões (ne bis in idem), impede que os tribunais possam ser chamados não só a contrariarem uma decisão anterior, como a repetirem essa decisão. Em contrapartida, a autoridade de caso julgado garante a vinculação dos tribunais e dos particulares a uma decisão anterior, pelo que impõe que aqueles tribunais e estes particulares acatem (e, neste sentido, respeitam) o que foi decidido anteriormente (…).”1 E acrescenta aquele Autor o seguinte: “ a excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes, de maneira idêntica (...). Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva e à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente»2. Ora, das breves considerações sobre a definição, âmbito e finalidade desta figura importantíssima do nosso direito processual, logo se deduz que é pressuposto do “caso julgado” que exista uma decisão que possa ser contrariada, por uma decisão posterior. Vejamos então a matéria sobre a qual a Requerente invoca o caso julgado e que consta dos pontos 2.º e 26.º da matéria de facto assente: “2. Mostra-se descrito 3na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..31, com a propriedade aí definitivamente inscrita a favor do autor, pela Ap. ..23 de 2015/12/11, o prédio rústico, denominado “...”, constituído por terreno a bravio com 504m2, sito na freguesia de ..., no concelho de ..., no Lugar da ..., inscrito na matriz predial rústica sob o art.º .17 . 26. Desde 1 de Dezembro de 2015 (data em que foi emitido título de adjudicação desse imóvel ao autor, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ..............11 e respetivos processos apensos) até à presente data, os réus têm utilizado, de forma ininterrupta, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..31.” Da leitura dos factos supra transcritos, com base nos quais a recorrente invoca a violação do caso julgado, por parte do acórdão ora em reclamação, verifica-se que apenas se menciona estar descrito na Conservatória do Registo Predial de ... um prédio cuja propriedade está inscrita a favor do Autor, com uma área de 504m2. Isso não significa que esteja provado que o prédio tem realmente 504 m2. Não se diz no referido ponto que “o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º…tem 540 m2”. E não diz porque o objecto do processo não incluía a indagação sobre a real área do prédio. Por consequência, o Tribunal não proferiu qualquer decisão sobre a área do prédio. Logo, o decidido pelo acórdão, ora em reclamação, nunca poderia colidir com uma decisão inexistente. Por outro lado, “o STJ vem decidindo, unanimemente, que a presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio.4 A presunção do art.º 7.º do Código do Registo Predial, na parte em que se refere ao objecto, só faz presumir que o facto inscrito incide sobre a coisa identificada na descrição, mas já não as respetivas características. Ou seja, a presunção do registo não se estende à verdade material quer das confrontações do prédio, quer da área do mesmo. E bem se compreende que assim seja, pois, como é evidente, os prédios quer rústicos quer urbanos, não são realidades estáticas, sofrem alterações ao longo do tempo, v.g. destaques, desanexações, ampliações, que muitas vezes não são documentadas no registo predial, ocorrendo discrepâncias entre a verdade revelada no registo predial e a verdade material. Ocorrem, igualmente, com frequência, erros na descrição das características físicas dos prédios que impõe a respectiva rectificação. E, habitualmente, a necessidade de rectificar tais erros, manifesta-se, precisamente, no momento em que é necessário organizar a documentação com vista a realizar negócios jurídicos que implicam a transmissão dos prédios. Ora, foi neste contexto que se escreveu no acórdão: “Decorre, por conseguinte, dos factos mencionados que os Réus AA e BB procederam à ampliação de uma moradia onde residem, utilizando parte do prédio rústico que foi adquirido pelo Réu, em 1 de dezembro de 2015, em processo de execução fiscal, movido contra aqueles Réus. Portanto, antes de 1 de dezembro de 2015, o referido prédio rústico pertencia aos Réus, sendo certo que a ampliação da moradia foi realizada anteriormente àquela data, em terreno que lhes pertencia. A parte da casa habitada pelos réus que se encontra implantada no prédio rústico identificado em 2., tem no mínimo 146 m2.5 Assim, após as obras de ampliação da sua moradia que absorveram 146m2 do seu prédio rústico supra identificado, o mesmo passou a ter 358m2 e não 504 m2. Logo, a área do prédio rústico deveria ter sido actualizada/rectificada, na sequência das obras de ampliação da moradia e construção da piscina, partindo-se do princípio que essas obras foram devidamente licenciadas e legalizadas. Na verdade, em consequência das referidas obras, o prédio rústico passou a ter uma área de 358m2, havendo uma desconformidade entre a realidade física e a realidade documental que nunca foi rectificada. Porém, essa realidade não pode deixar de ser considerada na análise da questão em apreço.” Da análise de toda a factualidade provada decorria, como necessária e evidente, essa desconformidade entre a realidade que constava do registo e a realidade material, no que diz respeito à área do prédio. Ora, nada impedia este Tribunal de concluir pela existência dessa discrepância, quer porque ela decorria necessariamente da análise da globalidade da matéria de facto, quer pela razão supra referida de a presunção do registo não se estender à verdade material quer das confrontações do prédio, quer da área do mesmo. Mas ainda que essa presunção se estendesse, designadamente, à área do prédio, ainda assim, os demais factos provados seriam aptos a ilidir essa eventual presunção. Impõe-se concluir, por conseguinte, não existir qualquer violação do caso julgado. Porém, a Reclamante reconduz a invocada violação do caso julgado ao cometimento de uma nulidade por excesso de pronúncia. Cabe referir que não se vê que se pudesse invocar esse excesso de pronúncia por eventualmente se ter conhecido de questão já coberta pelo caso julgado. Se tal violação de caso julgado ocorresse, sempre estaríamos perante um erro de julgamento e não perante um excesso de pronúncia, geradora de nulidade. Nesta conformidade, entendemos evidente a não verificação do invocado fundamento de nulidade do acórdão. 2 - Da aplicabilidade do art.º 616 n.º 2 a) do CPC A Autora /Reclamante vem ainda pedir a reforma do acórdão ao abrigo do disposto na alínea a) do art.º 616 n.º 2 do CPC que determina que é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença/acórdão quando “por manifesto lapso do juiz a) tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos”. Com base nesse preceito, a Reclamante pretende que seja rectificado o facto provado sob o n.º 32, nos seguintes termos: “O arrendamento de um logradouro como aquele que é utilizado pelos Réus nunca seria possível por um valor mensal inferior a €2,00 por metro quadrado.” Refere o Reclamante que é manifesto que o valor de € 2,00 por metro quadrado tinha como referência o período de um mês, face ao que vem alegado no art.º 62.º da petição inicial. Ora, alega ainda, a admissão por acordo, deste facto, vincula o Tribunal a considerá-lo como provado (art.º 607 n.º 5 do CPC), não se aplicando o princípio da livre apreciação da prova. Vejamos: O facto provado n.º 32 resulta da sua não impugnação pelo que foi dado como confessado, ao abrigo do disposto no art.º 574.º n.º 2 do CPC. Porém, o facto provado n.º 32 provém do facto alegado no art.º 61.º da petição inicial e não do art.º 62. E no art.º 61.º da petição, a Autora alega precisamente que “o arrendamento de um logradouro como aquele que é utilizado pelos réus nunca seria possível por um valor inferior a €2,00 por metro quadrado.” Ou seja, o facto 32.º corresponde exactamente ao teor do facto que foi alegado e, por não ter sido impugnado, foi considerado confessado. O art.º 62.º da petição inicial por não constituir um facto, mas integrar conclusões retiradas a partir dos factos anteriormente alegados, não foi transposto, e bem, para o elenco dos factos provados por confissão. Assim sendo, não se verifica qualquer erro na transposição dos factos, tal como foram alegados pela Autora para o elenco dos factos assentes. De qualquer modo, ainda que tivesse ocorrido algum erro, o mesmo seria anterior à elaboração do acórdão. Não sendo um erro do acórdão não é esta reclamação o meio idóneo e processualmente adequado para corrigir “manifestos lapsos” que não sejam provenientes do acórdão reclamado. Este STJ não procedeu a qualquer alteração na redação dos factos provados, nem poderia fazê-lo. Limitou-se a aplicar o Direito aos factos tal como estes foram apurados nas instâncias. Logo, não há qualquer fundamento legal para este Tribunal “corrigir” a redacção do facto n.º 32.º acrescentando-lhe a palavra “mensal”, tal como pretende a Autora/Recorrente. Acresce que nos termos do disposto no art.º674.º n.º 3 do CPC, “o erro (…) na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.” Portanto, fora das hipóteses previstas no mencionado preceito, o recurso de revista não pode ter por objecto a fixação dos factos. No caso em apreço, o objecto da revista não visou a matéria de facto. Por maioria de razão, nunca poderia proceder à alteração de um facto provado, conforme é sua pretensão. Vai igualmente indeferida nesta parte a reclamação. 3 - Por fim, como consequência da procedência das questões invocadas nos pontos antecedentes, vem a Recorrente pedir a alteração da decisão final nos termos supra transcritos e que coincidem com a total procedência dos pedidos formulados na petição inicial. Face à improcedência das questões suscitadas nos pontos 1 e 2, fica necessariamente prejudicada a apreciação desta pretendida alteração da decisão final. III - DECISÃO Por tudo o que fica exposto, acordamos em indeferir totalmente a reclamação apresentada. Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3UCs, nos termos do art.º7.º n.º 4 e tabela II do Regulamento das Custas Processuais. Lisboa, 14 de novembro de 2024 Maria de Deus Correia (relatora) Maria dos Prazeres Beleza Nuno Ataíde das Neves _______
1. TEIXEIRA DE SOUSA, Cadernos de Direito Privado, n.º 41, p. 24-25. 2. TEIXEIRA DE SOUSA, “O objecto da sentença e o caso julgado material", BMJ nº 325, p. 171 e segs. 3. Destacado nosso. 4. Vide a título exemplificativo os Acórdãos do STJ de 12-01-2021. Processo 2999/08.0TBLLE.E2.S1, de 05-05-2016, Processo 5562/09.4 e de 14-11-2013, Processo 74/07.3, disponíveis em www.dgsi.pt 5. Vide facto n.º 30. |