Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
460/20.3T8AVR-K.P2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: CONTRATO DE RENTING
CONTRATO ATÍPICO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
LEI APLICÁVEL
REQUISITOS
EFEITOS
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I. Não é uma simples locação, mas um contrato atípico, o contrato pelo qual o locador, depois de adquirir o bem locado a um fornecedor, a solicitação do locatário, cede a este o seu uso, por tempo e renda determinados, sem opção de compra no seu termo, com a transferência para este dos riscos do contrato com as obrigações de manutenção e conservação do bem, e ainda da obrigatória devolução desse bem no final do contrato.

II. Este contrato tem sido considerado pela doutrina como possuindo os traços do chamado renting indirecto ou de mediação.

III. A esta modalidade de contrato aplica-se o artigo 102.º e não o artigo 108.º do CIRE.

Decisão Texto Integral: Processo n.º 460/20.3T8AVR-K.P2

6.ª SECÇÃO

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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GRENKE RENTING, S.A instaurou acção declarativa, com processo comum, contra Massa Insolvente de Órbita – Bicicletas Portuguesas, Ld.ª e Órbita – Bicicletas Portuguesas, Ld.ª pedindo condenação da primeira no pagamento da quantia de €61.914,68, correspondente aos alugueres vencidos desde 01.03.2020 a 15.12.2022 (alugueres de Março de 2020 a Dezembro de 2022), acrescida da quantia de € 7.004,29, a título de juros de mora vencidos desde a data de vencimento de cada um dos alugueres até 15.12.2022, calculados à taxa convencionada nos contratos de locação, actualmente correspondente à taxa de 8,00%, e das quantias vincendas a liquidar a final, a título de alugueres vincendos, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados e de juros de mora vincendos, calculados desde 16.12.2022 até integral pagamento, à taxa convencionada no contrato de locação, actualmente correspondente à taxa de 8,00%.

Fundamenta o seu pedido no incumprimento de um contrato de locação celebrado pela 2.ª ré, em 15.06.2016, com a autora, com termo inicial em 28.02.2019, o qual se renovou sucessivamente até 01.09.2022 e se mantém em vigor.

A insolvente ainda que com atrasos pagou os alugueres vencidos até Dezembro de 2018, ficando em dívida os alugueres vencidos desde então.

Após a declaração de insolvência e até à presente data, as 1.ª e 2.ª rés não procederam a qualquer outro pagamento de aluguer, não obstante terem sido reclamados ao AI, sendo que, no que respeita à dívida da massa insolvente, todos os alugueres vencidos após a data de declaração de insolvência deveriam ter sido pagos nas respectivas datas de vencimento, uma vez que não ocorreu qualquer circunstância que determinasse a suspensão ou cessação do contrato.

As rés, regularmente citadas, em tempo, não deduziram contestação.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo a presente ação integralmente procedente, por provada, termos em que decido condenar a Massa Insolvente da Órbita – Bicicletas Portuguesas, Ld.ª:

▪ No pagamento da quantia de €61.914,68, acrescida da quantia de juros de mora vencidos calculados desde a data de vencimento de cada um dos alugueres até 15.12.2022, à taxa convencionada nos contratos de locação; e

▪ No pagamento das quantias vincendas, a título de alugueres vincendos, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados, acrescidas de juros de mora vincendos, calculados a data de vencimento de cada um dos alugueres vincendos [a partir de 16.12.2022] até integral pagamento, à taxa convencionada no contrato de locação»

Inconformada, interpôs Massa Insolvente da Órbita – Bicicletas Portuguesas, Ld.ª competente apelação, pedindo a revogação da sentença e sua substituição por outra que julgue a ação improcedente.

A apelação foi julgada totalmente procedente.

Recorre agora de revista a autora, com as seguintes conclusões:

A. Recorrente instaurou por apenso ao processo de insolvência ação para cobrança da dívida da massa insolvente, ao abrigo do artigo 89.º do CIRE, e para efeitos do artigo 172.º do CIRE.

B. Para tal, e em sentido oposto de toda prova produzida nos autos, foi proferida Acórdão que acedeu ao pedido da Recorrida e que afastou a aplicação do regime típico da locação, previsto no artigo 1022.º, do CC, e veio a revogar a sentença proferida na 1.ª instância, a qual condenou a Recorrida no pagamento da quantia de €61.914,68, acrescida da quantia de juros de mora vencidos calculados desde a data de vencimento de cada um dos alugueres até 15.12.2022, à taxa convencionada nos contratos de locação; e no pagamento das quantias vincendas, a título de alugueres vincendos, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados, acrescidas de juros de mora vincendos, calculados a data de vencimento de cada um dos alugueres vincendos [a partir de 16.12.2022] até integral pagamento, à taxa convencionada no contrato de locação.

C. A aqui Recorrente juntou com a petição inicial o contrato de locação celebrado com a Insolvente, que se designa de “Locação Clássica Contrato de Locação para Clientes Empresariais - Corporate Clientes”, cuja veracidade não foi posta em causa pela Ré, através do qual deu de aluguer, pelo período convencionado, os equipamentos escolhidos pela Locatária, mediante o pagamento mensal do montante convencionado no contrato.

D. Trata-se de um contrato de locação, tal como a lei descreve no artigo 1022.º, do Código Civil, cujos elementos definidores desta espécie contratual são os seguintes: uma das partes obriga-se a proporcionar à outra o gozo de uma coisa; e a outra parte tem o direito de exigir esse gozo; o gozo é temporário e à cedência do gozo corresponde uma contrapartida mensal/trimestral.

E. O Acórdão recorrido fez, salvo melhor opinião em contrário, uma incorrecta qualificação jurídica do contrato.

F. O contrato sub judice é um contrato típico de locação de bens móveis ou aluguer, com o respetivo regime jurídico previsto nos artigos 1022º e seguintes Código Civil.

G. O presente recurso versa a matéria de direito que a Recorrente considera ter sido incorrectamente julgada no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, designadamente, por se entender que existe violação de lei substantiva, nos termos e para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. a) do CPC, sendo este o fundamento da presente revista.

H. O Tribunal a quo, depois de afastar a qualificação do contrato celebrado como contrato de locação, nos termos do artigo 1022.º, do CIRE [SIC], considerou que não tinha aplicação o disposto no artigo 108.º, do CIRE, aplicando o regime estabelecido no artigo 102.º, do CIRE

I. Uma vez qualificado o contrato celebrado entre as partes como contrato de locação, nos termos do artigo 1022.º, do CC, o disposto legal a aplicar é o previsto no artigo 108.º e não o do artigo 102.º, do CIRE, por via do artigo 104.º, n.º 3 do CIRE.

J. Ora, existindo uma norma específica aplicável ao caso concreto, com um regime jurídico distinto do regime do art. 102.º do CIRE, ao contrato de locação terá de ser aplicável o art. 108.º do CIRE.

K. No âmbito do presente processo, a questão fundamental que demandou apreciação e decisão foi a de saber se andou bem ao não qualificar o contrato em causa como de locação clássica, mas antes como atípico, com as consequências daí decorrentes ao nível do regime legal da insolvência.

L. Muitos são os Acórdãos que se debruçaram, ao longo dos anos, quanto à matéria da qualificação jurídica dos contratos como aquele que está em apreço, e ainda que celebrado com outros Locatários, com bens locados distintos, o contrato de locação da Recorrente já foi objecto de centenas de sentenças/acórdãos que qualificaram correctamente o contrato como «contrato de locação».

M. E se em 2008 existiam dúvidas quanto ao teor e alcance do contrato de locação da aqui Recorrente, atualmente é impensável que tal suceda, desvirtuando a seu bel-prazer, o Tribunal a quo, os ensinamentos da nossa jurisprudência, que desde 2009/2010 tem vindo a qualificar os aludidos contratos como contratos de locação, típicos e aos quais lhe é aplicável o regime da locação, plasmado no artigo 1022.º e seguintes do Código Civil!.

N. O regime jurídico do Código Civil aplicável à locação não prevê quais os critérios que devem ser considerados na determinação do valor da renda ou aluguer, limitando-se na definição de locação, do artigo 1022.º, do Código Civil, a considerar o aluguer como a retribuição pela qual uma das partes se obriga a proporcionar o gozo da coisa.

O. Os bens locados podem ser escolhidos pela Locadora ou pela Locatária; ser mais ou menos duradouros, ou perecível com a utilização, que tal não altera a qualificação do contrato como de locação!

P. A Recorrente adquire à fornecedora a propriedade dos equipamentos em negócio imediatamente anterior à celebração do contrato de locação, facto que não pode afastar a qualificação do contrato como um contrato típico de locação, pois inexiste qualquer norma no regime jurídico da locação que imponha algum limite quanto ao momento e à forma de aquisição da propriedade do objeto locado.

Q. O facto de a locatária se obrigar a pagar os alugueres previstos no contrato que amortizem integralmente o preço de aquisição, as despesas de execução do contrato e a margem de lucro estimada, podendo ser renovado por sucessivos períodos de seis meses, não constitui qualquer obstáculo à qualificação do contrato como típico contrato de locação ou aluguer de bens móveis, tanto mais que a Locatária deverá sempre proceder à restituição dos equipamentos a final, sendo-lhe vedada a aquisição da propriedade pela via contratual e legal.

Trata-se, assim, de um contrato com eficácia meramente obrigacional, pelo que, findo o contrato, está a locatária obrigada a restituir os bens locados (artigo 1038.º, al. i), do Código Civil), ou se não puder restituir, a indemnizar no respectivo valor dos bens.

S. Para que o contrato em causa fosse um contrato de locação financeira, além de não se poder renovar por sucessivos períodos de seis meses, mantendo-se o montante dos alugueres mensais inicialmente ajustados, teria que respeitar os requisitos legais previstos no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Julho, ou seja, teria que prever a possibilidade de a Locatária poder comprar os bens alugados, decorrido o período acordado, por um preço determinado ou determinável no próprio contrato.

T. Ora, o contrato não contempla tal possibilidade, antes a afasta.

U. Acresce o facto de a Recorrente não ser uma instituição de crédito ou uma sociedade de locação financeira, não estando sujeita à supervisão do Banco de Portugal.

V. O facto de o contrato prever que existe uma assunção do risco pela deterioração e perdas dos bem a correr pelo locatário resulta exatamente do regime previsto para a locação, designadamente na norma prevista no artigo 1044.º do CC, não podendo constituir um argumento para afastar a qualificação dos contratos em apreço como contratos de locação.

W. É inaceitável que se altere a qualificação jurídica do contrato em apreço, para que o mesmo não encaixe no regime especial aplicável no âmbito dos processos de insolvência. Isto é, o contrato não pode ser contrato de locação em centenas de ações a correr nos tribunais, com exceção dos processos de insolvência, porque não se pretende que seja aplicado determinado regime jurídico.

Deve este Tribunal reconhecer a existência da errada qualificação do contrato pelo Tribunal a quo, com todas as consequências na restante aplicação do direito.

Y. Impõe-se, assim, a revogação da douta decisão recorrida, a qual deverá ser alterada, devendo ser reposta a boa e correcta decisão do Tribunal da 1.ª instância.

Z. Assim, além do supra exposto, o Acórdão recorrido violou os artigos 51.º, n.º 1, al. f), 108.º e 172.º do CIRE, os artigos 1022.º, 1038.º e 1045.º do CC, devendo ser alterada por Acórdão que julgue a ação procedente e condene a Massa Insolvente nos pedidos.

Nestes termos e com o douto suprimento dos Venerandos Juízes Conselheiros, deverá ser dado provimento ao recurso, e consequentemente revogado o Acórdão na sua totalidade, e substituído por Acórdão que condene a Massa Insolvente Recorrida integralmente nos pedidos, conforme sucedeu na primeira instância, fazendo a esperada JUSTIÇA!».

Massa Insolvente de Órbita – Bicicletas Portuguesas, Ld.ª contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.


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São as seguintes as questões decidendas:

i) Saber se o ajuizado contrato deve qualificar-se como mera locação, ou, ao invés, como contrato atípico.

ii) Saber qual o efeito da insolvência sobre o contrato em curso e se os créditos em causa são sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente.


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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:

1. A autora – Grenke Renting, S.A. – é uma sociedade comercial que, iniciou a sua atividade em Portugal, no segundo trimestre de 2008, tendo por objeto social “aluguer de equipamento de escritório, de máquinas e de equipamento informático, incluindo software e hardware, atividades relacionadas e revenda de equipamentos usados. Aquisição de equipamentos informáticos, software e outros bens para aluguer e aluguer dos mesmos, prestação de consultoria de serviços relativos a manutenção e reparação de equipamentos informáticos, software e outros bens, tanto novos como usados. Aquisição e venda de imóveis.”.

2. A 2.ª ré/devedora, na qualidade de locatária, celebrou com a Grenke Renting, S.A., na qualidade de locadora, na data de 15.06.2016, ao abrigo de um contrato 111-011965, do qual fazem parte as Condições Gerais de Locação e os Termos e Condições Gerais Relativas ao Seguro de Propriedade da Grenke.

3. No âmbito do contrato ...65 a locatária, ora insolvente, escolheu diversos objetos para alugar ao abrigo do mencionado contrato: Implementação ERP (software de gestão e contabilidade), melhor identificada na fatura n.º FT ...70, de 16.02.2016, emitida à locadora pela Fornecedora W..., Lda..

4. A insolvente podia ter adquirido os referidos equipamentos por compra ao referido fornecedor, pelo pagamento do respetivo preço de €57.810,00.

5. No entanto, após ter conhecimento que poderia utilizar os equipamentos através de locação, a insolvente optou por celebrar com a credora, Grenke Renting, S.A., o contrato de locação, ao qual foi atribuído o n.º ...65.

6. O mencionado contrato de locação identificado com o número ...65 prevê: a identificação da locatária, aqui insolvente e a identificação da locadora, aqui autora.

7. A identificação dos fornecedores dos equipamentos: W..., Lda.

8. A identificação dos equipamentos locados: Implementação ERP.

9. O contrato de locação foi celebrado por 36 meses, renovável por sucessivos períodos de 6 meses, a contar do dia da receção dos bens, que ocorreu em 15.02.2016, mas com início da contagem do prazo no primeiro dia do mês seguinte, ou seja, em 01.03.2016 e termo inicial em 28.02.2019, sucede que o contrato de locação se renovou em 01.03.2019, 01.09.2019, 01.03.2020, 01.09.2020, 01.03.2021, 01.09.2021, 01.03.2022, 01.09.2022, e manter-se-á em vigor até ser denunciado por uma das partes (ou a locadora, aqui autora, ou o Administrador da Insolvência, em representação da massa insolvente - considerando que nenhuma das partes o denunciou com um aviso prévio de 3 meses.

10. O valor do aluguer mensal ajustado foi de €1.480,50 (acrescido de IVA), a pagar mensalmente por débito direto.

11. Após a entrega dos bens locados à locatária e da respetiva assinatura do documento de “Confirmação de Aceitação”, a Grenke Renting, S.A. procedeu ao pagamento do preço dos bens descritos na fatura da fornecedora.

12. Os bens locados, entregues à locatária, ora insolvente, foram adquiridos e pago o preço pela ora autora, com a finalidade exclusiva de serem alugados à ora insolvente.

13. Assim, entregues os bens locados à ora insolvente e recebidos pela locadora os documentos de “Confirmação de Aceitação”, foram emitidas e enviadas à locatária diversas faturas, relativas a taxa de serviço e outros.

14. A insolvente ainda que com atrasos pagou os alugueres vencidos até dezembro de 2018, ficando em dívida os alugueres vencidos de janeiro a dezembro de 2019, os alugueres vencidos de janeiro a março de 2020, os custos de aviso e juros de mora, tendo as entradas de débito direto sido devolvidas com a informação.

15. Em 15.07.2019 a credora, Grenke Renting, S.A., reclamou créditos no âmbito do Processo Especial de Revitalização n.º 2148/19.9..., tendo sido posteriormente reconhecido pelo Administrador Judicial Provisório a totalidade do crédito reclamado.

16. Após a locadora ter tomado conhecimento do PER da insolvente suspendeu a faturação, por forma a evitar a obrigação de pagamento do IVA, face à incerteza quanto ao seu recebimento.

17. Assim, a locatária, aqui insolvente, obrigou-se a amortizar integralmente o custo de aquisição dos bens que escolheu, bem como a suportar as despesas de execução do contrato, através do pagamento mínimo dos alugueres fixados no contrato e a restituir os bens findo o contrato.

18. Em 06.03.2020 a credora, Grenke Renting, S.A., reclamou créditos nos autos principais (de insolvência) tendo sido posteriormente reconhecido pelo Administrador da Insolvência a totalidade do crédito reclamado, nos termos reclamados.

19. A aqui autora aproveitou, através da mencionada reclamação de créditos, para dar conhecimento do contrato celebrado e em vigor, além de ter solicitado o pagamento da dívida da massa vencida, bem como de que se aguardava tomada de posição quanto ao contrato, sendo que a aqui autora estava impedida de o resolver por falta de pagamento dos alugueres, nos termos das mencionadas normas legais.

20. Já após a data da declaração de insolvência, ocorrida em 11.02.2020, venceram-se o,s alugueres referentes aos meses de março de 2020 a dezembro de 2022.

21. Após a declaração de insolvência (em 11.02.2020) e até à presente data, as 1.ª e 2.ª rés não procederam a qualquer outro pagamento de aluguer à locadora, ora autora, não obstante terem sido reclamados ao Sr. Administrador de Insolvência.

22. Sendo que, no que respeita à dívida da massa insolvente, todos os alugueres vencidos após a data de declaração de insolvência deveriam ter sido pagos nas respetivas datas de vencimento, uma vez que não ocorreu qualquer circunstância que determinasse a suspensão ou cessação do contrato.

23. Assim o crédito vencido sobre a Massa Insolvente, liquidado até 15.12.2022, no montante de €68.918,97, relativo aos alugueres vencidos de março de 2020 a dezembro de 2022, acrescido dos juros de mora à taxa convencionada no contrato (taxa legal) desde a data de vencimento de cada um dos alugueres à taxas de 8,00% até 15.12.2022, conforme resulta do quadro infra:

Locação n.º ...65

Data de Vencimento Montante % Desde Até N.º de Dias Juros

Aluguer do mês de março de 2020 01/03/2020 1 821,02 € 8,00% 01/03/2020 15/12/2022 1 019 406,71 €

Aluguer do mês de abril de 2020 01/04/2020 1 821,02 € 8,00% 01/04/2020 15/12/2022 988 394,34 €

Aluguer do mês de maio de 2020 01/05/2020 1 821,02 € 8,00% 01/05/2020 15/12/2022 958 382,36 €

Aluguer do mês de junho de 2020 01/06/2020 1 821,02 € 8,00% 01/06/2020 15/12/2022 927 369,99 €

Aluguer do mês de julho de 2020 01/07/2020 1 821,02 € 8,00% 01/07/2020 15/12/2022 897 358,02 €

Aluguer do mês de agosto de 2020 01/08/2020 1 821,02 € 8,00% 01/08/2020 15/12/2022 866 345,64 €

Aluguer do mês de setembro de 2020 01/09/2020 1 821,02 € 8,00% 01/09/2020 15/12/2022 835 333,27 €

Aluguer do mês de outubro de 2020 01/10/2020 1 821,02 € 8,00% 01/10/2020 15/12/2022 805 321,30 €

Aluguer do mês de novembro de 2020 01/11/2020 1 821,02 € 8,00% 01/11/2020 15/12/2022 774 308,92 €

Aluguer do mês de dezembro de 2020 01/12/2020 1 821,02 € 8,00% 01/12/2020 15/12/2022 744 296,95 €

Aluguer do mês de janeiro de 2021 01/01/2021 1 821,02 € 8,00% 01/01/2021 15/12/2022 713 284,58 €

Aluguer do mês de fevereiro de 2021 01/02/2021 1 821,02€ 8,00% 01/02/2021 15/12/2022 682 272,21 €

Aluguer do mês de março de 2021 01/03/2021 1 821,02 € 8,00% 01/03/2021 15/12/2022 654 261,03 €

Aluguer do mês de abril de 2021 01/04/2021 1 821,02 € 8,00% 01/04/2021 15/12/2022 623 248,66€

Aluguer do mês de maio de 2021 01/05/2021 1 821,02 € 8,00% 01/05/2021 15/12/2022 593 236,68 €

Aluguer do mês de junho de 2021 01/06/2021 1 821,02 € 8,00% 01/06/2021 15/12/2022 562 224,31 €

Aluguer do mês de julho de 2021 01/07/2021 1 821,02 € 8,00% 01/07/2021 15/12/2022 532 212,34 €

Aluguer do mês de agosto de 2021 01/08/2021 1 821,02 € 8,00% 01/08/2021 15/12/2022 501 199,96 €

Aluguer do mês de setembro de 2021 01/09/2021 1 821,02 € 8,00% 01/09/2021 15/12/2022 470 187,59 €

Aluguer do mês de outubro de 2021 01/10/2021 1 821,02 € 8,00% 01/10/2021 15/12/2022 440 175,62 €

Aluguer do mês de novembro de 2021 01/11/2021 1 821,02 € 8,00% 01/11/2021 15/12/2022 409 163,24 €

Aluguer do mês de dezembro de 2021 01/12/2021 1 821,02 € 8,00% 01/12/2021 15/12/2022 379 151,27 €

Aluguer do mês de janeiro de 2022 01/01/2022 1 821,02 € 8,00% 01/01/2022 15/12/2022 348 138,90 €

Aluguer do mês de fevereiro de 2022 01/02/2022 1 821,02 € 8,00% 01/02/2022 15/12/2022 317 126,52 €

Aluguer do mês de março de 2022 01/03/2022 1 821,02 € 8,00% 01/03/2022 15/12/2022 289 115,35 €

Aluguer do mês de abril de 2022 01/04/2022 1 821,02 € 8,00% 01/04/2022 15/12/2022 258 102,97 €

Aluguer do mês de maio de 2022 01/05/2022 1 821,02 € 8,00% 01/05/2022 15/12/2022 228 91,00 €

Aluguer do mês de junho de 2022 01/06/2022 1 821,02 € 8,00% 01/06/2022 15/12/2022 197 78,63 €

Aluguer do mês de julho de 2022 01/07/2022 1 821,02 € 8,00% 01/07/2022 15/12/2022 167 66,65 €

Aluguer do mês de agosto de 2022 01/08/2022 1 821,02 € 8,00% 01/08/2022 15/12/2022 136 54,28 €

Aluguer do mês de setembro de 2022 01/09/2022 1 821,02 € 8,00% 01/09/2022 15/12/2022 105 41,91 €

Aluguer do mês de outubro de 2022 01/10/2022 1 821,02 € 8,00% 01/10/2022 15/12/2022 75 29,93 €

Aluguer do mês de novembro de 2022 01/11/2022 1 821,02 € 8,00% 01/11/2022 15/12/2022 44 17,56 €

Aluguer do mês de dezembro de 2023 01/12/2022 1 821,02 € 8,00% 01/12/2022 15/12/2022 14 5,59 €

24. Como consta expressamente do Contrato de Locação, a locadora adquiriu os bens locados exclusivamente para os alugar à locatária, em benefício da mesma, os quais não teriam sido adquiridos e pagos se não tivesse sido celebrado o contrato entre as ora autora e 2.ª ré.


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1. Da qualificação do contrato

Trata-se, neste capítulo, de saber se o ajuizado contrato deve ser qualificado como um contrato típico de locação, como pretende a recorrente, ou, ao invés, como contrato atípico, como sustenta o segundo grau.

Qualificação é a operação lógica através da qual o intérprete atribui uma veste jurídica a um contrato concreto, um nomen juris à factispécie.

O Tribunal da Relação concluiu que «está em causa um contrato atípico e misto (que não se subsume, nem à locação, nem à locação financeira (leasing)), que tem como finalidade económico-social a “cedência operacional” do uso de um bem móvel, como finalidade acessória o “financiamento da disponibilidade” do bem locado»,

Mais concretamente explicou:

i) não se trata de uma locação financeira, porque os bens não pertencem à insolvente, nem do contrato nasce para aquela o direito de os adquirir;

ii) não se trata de uma locação operacional porque o contrato tem uma estrutura triangular (entre o vendedor/fornecedor dos bens locados, o locatário e o locador, adquirente dos bens);

iii) não se trata de uma locação [clássica] porque:

a) esta relação triangular afasta essa figura;

b) a retribuição da renda convencionada não corresponde a uma contrapartida do gozo ou fruição que devem ser proporcionados á locatária;

c) está subjacente ao contrato uma função creditícia ou de financiamento que se opera através da disponibilidade ao locatário de um bem~-previamente adquirido a terceiro pelo locador e escolhido pelo locatário- em que o propósito do locador é o reembolso do valor mutuado.

Focando analiticamente as estipulações do contrato, a Relação esclareceu a razão de se tratar de um contrato atípico:

i) os equipamentos foram adquiridos pela autora ao fornecedor dos mesmos;

ii) foi a insolvente quem escolheu esses bens, que foram adquiridos no seu interesse;

iii) estabeleceu-se um prazo para a duração do contrato;

iv) a insolvente obrigou-se ao pagamento de uma renda mensal que amortizaria integralmente o custo da aquisição dos equipamentos que escolheu, as despesas de execução e o lucro estimado:

v) a insolvente obrigou-se a restituir à autora os bens no fim do contrato.

A recorrente entende que o contrato deve ser qualificado como uma típica locação.

Vejamos o seu raciocínio.

Trata-se de um contrato de locação, tal como a lei o descreve no artigo 1022.º do Código Civil, cujos elementos definidores desta espécie contratual são os seguintes: uma das partes obriga-se a proporcionar à outra o gozo de uma coisa; e a outra parte tem o direito de exigir esse gozo; o gozo é temporário e à cedência do gozo corresponde uma contrapartida mensal/trimestral.

Os bens locados podem ser escolhidos pela Locadora ou pela Locatária; ser mais ou menos duradouros, ou perecível com a utilização, que tal não altera a qualificação do contrato como de locação.

A Recorrente adquire à fornecedora a propriedade dos equipamentos em negócio imediatamente anterior à celebração do contrato de locação, facto que não pode afastar a qualificação do contrato como um contrato típico de locação, pois inexiste qualquer norma no regime jurídico da locação que imponha algum limite quanto ao momento e à forma de aquisição da propriedade do objeto locado.

O facto de a locatária se obrigar a pagar os alugueres previstos no contrato que amortizem integralmente o preço de aquisição, as despesas de execução do contrato e a margem de lucro estimada, podendo ser renovado por sucessivos períodos de seis meses, não constitui qualquer obstáculo à qualificação do contrato como típico contrato de locação ou aluguer de bens móveis, tanto mais que a Locatária deverá sempre proceder à restituição dos equipamentos a final, sendo-lhe vedada a aquisição da propriedade pela via contratual e legal.

O facto de o contrato prever que existe uma assunção do risco pela deterioração e perdas dos bem a correr pelo locatário resulta exactamente do regime previsto para a locação, designadamente na norma prevista no artigo 1044.º do CC, não podendo constituir um argumento para afastar a qualificação do contrato em apreço como contrato de locação.

Que posição adoptar?

A qualificação feita pelas partes não sendo irrelevante, não é, todavia, decisiva. A minuta da proposta de contrato designa o contrato por Locação Clássica e consigna que «para efeitos contabilísticos, as partes acordam em classificar o presente contrato como sendo um contrato de locação operacional».

Em termos contabilísticos, distinguem-se as locações entre financeiras e operacionais. As locações operacionais, de entre as quais o chamado renting, não são capitalizadas, não existe a transferência substancial de todos os riscos e benefícios inerentes à propriedade do activo, nem consta do contrato que, no final, haverá a transferência da propriedade do bem para o locatário. Nas locações financeiras (v.g. leasing e ALD), acontece precisamente o contrário (Ana Rita Mendes, Locações operacionais e financeiras: a utilização da locação de acordo com o sector de actividade- entidades cotadas no Euronext Lisbon, ISCAL, Lisboa, 2017: 19, on line).

A classificação de uma locação como operacional ou financeira tem grande importância, dado que a contabilização de cada uma delas é muto diferente e se reflecte, para todos os efeitos, no Balanço, na Demonstração de Resultados e nas obrigações tributárias.

O adjectivo operacional, ainda que usado para efeitos contabilísticos, suscita a dúvida sobre se realmente estamos diante da mera locação que adjectiva.

No que se refere à locação, o artigo 1022.º CC define-a como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.

Pereira Coelho indica que são três os elementos do contrato de locação, a saber:

«a) Em primeiro lugar, resulta da locação para uma das partes (o locador) a obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa à outra parte (o locatário»; «b) o segundo elemento essencial da locação é o prazo, pois o gozo da coisa que o locador se compromete a proporcionar ao locatário deve ser «temporário», valendo o contrato, em princípio, pelo prazo que for estipulado entre as partes»; «c) finalmente, o gozo da coisa deve ser concedido mediante retribuição» (F.M.Pereira Coelho, Arrendamento, Direito substantivo e processual, Coimbra, 1988: 8 ss; também Almeida Costa, Anotação, Revista Legislação e Jurisprudência, 1985: 3736:217).

No caso sujeito, o contrato de locação foi celebrado por 36 meses, renovável por sucessivos períodos de 6 meses, o bem locado –uma implementação ERP, que é um software para gestão empresarial- foi pago pela autora e entregue à insolvente, a qual se obrigou a pagar aquela rendas mensais, que pagou até Dezembro de 2018.

A presença destes elementos na hipótese em causa, poderia levar a considerar o ajuizado contrato como um aluguer típico (artigo 1023.º CC).

O chamado critério dos essentialia, ou seja, da suficiência da identificação de cada uma espécie de contrato a partir dos «seus elementos essenciais», não é de acolher.

No caso, há um conjunto de elementos que se afastam do tipo e que determinam que o contrato seja atípico.

Entre a recorrente e a insolvente foi celebrado um contrato sujeito às Condições Gerais de Locação, á Confirmação de Aceitação e aos Termos e Condições Gerais Relativas ao Seguro de Propriedade.

Na proposta de aceitação, consta: «Eu/Nós aceitamos as condições supra e as condições gerais de locação anexas, bem como os termos constantes do contrato de compra e venda do bem locado celebrado entre o locador e o fornecedor relativamente às regras relativas aos defeitos do bem locado (confrontar Secção 7, n.ºs 1 e 2) e as condições de garantia do bem locado (confrontar Secção 7, n.º 3)».

Já aqui se surpreende um elemento que não é característico da locação típica, a saber a intervenção de uma terceira entidade -o fornecedor do bem- na economia do negócio.

As locações são bilaterais, não havendo na economia das mesmas a intervenção de terceira pessoa.

No caso sujeito, na operação de locação está co-envolvida uma terceira pessoa –o fornecedorW..., Lda.- com quem o locador contratou a solicitação da locatária.

A estrutura económico-jurídica das relações entre as partes envolvidas, caracteriza-se pela realização concertada de dois contratos diversos: um contrato de compra e venda e um contrato de aluguer do bem comprado pelo locador.

Esta característica de envolvimento de uma terceira pessoa independente, no negócio celebrado entre locador e locatário, é própria, não da locação típica, mas, v.g. da locação financeira, figura que as instâncias afastaram, e bem, por não se ter clausulado a opção de compra.

Um segundo elemento que, a nosso ver, determina que o contrato não seja típico, tem a ver com a retribuição devida.

No contrato de aluguer são devidos alugueres, cujo valor acompanha, por norma, o valor de mercado.

Tal não acontece no contrato em causa. As partes chamam á retribuição rendas o que só se compreende enquanto deslocação do seu sentido jurídico para o financeiro.

A insolvente obrigou-se ao pagamento de 36 rendas mensais, no valor unitário de € 1.821,02, para amortização total dos custos do locado incorridos em conexão com a aquisição do bem locado e com a execução do contrato, bem como do lucro estimado (Secção 1.2), sendo que, na relação entre o locador e locatário, o locatário deverá cobrir os custos e riscos de entrega, montagem e instalação do bem locado (Secção 3.1).

Através destas obrigações, a locadora obtém o reembolso do financiamento feito, o que não é próprio de uma mera locação (cfr. redacção do artigo 10.º, 1 DL 171/79, de 6 de Junho, hoje revogado).

Terceiro elemento distintivo: a transferência para o locatário dos riscos e responsabilidades conexos ao gozo e disponibilidade material da coisa que passa a ter após a entrega.

Nos termos da Secção 8, n.º 1, o locatário obriga-se a assegurar a boa manutenção do bem locado, devendo mantê-lo em estado e condições de funcionamento a expensas suas, deverá protegê-lo de esforços excessivos por qualquer forma e garante que recorrerá a profissionais para a sua manutenção. Os custos operacionais e de manutenção, incluindo custos de reparações necessárias a peças sobressalentes são suportados pelo locatário.

Acresce que, nos termos da secção 11. 1, primeira parte, o locatário assume o risco de perda acidental ou dano acidental causado ao bem locado, risco coberto por um seguro de propriedade da sua responsabilidade.

Não é propriamente este o regime da locação. O artigo 1044.º CC contempla uma presunção de culpa do locatário relativamente às deteriorações consideráveis que a coisa locada tenha sofrido.

O locador está, porém, obrigado a assegurar ao locatário o gozo da coisa para o fim a que se destina (artigo 1031.º, b)), o que implica, não raras vezes, a realização de reparações e obras necessárias à conservação do locado.

Sendo assim as coisas, parece-nos que o segundo grau julgou bem ao considerar o contrato como atípico.

Vejamos melhor.

Diz Anselmo Maria Martinez Cañellas que «a celeridade das inovações tecnológicas, as restrições normativas e a necessidade de poupar custos para criar produtos a preços competitivos no mercado de livre concorrência, fez com que as empresas tenham observado a sem razão de aceder à custosa propriedade dos meios de produção, cuja vida útil é cada vez mais breve» (El contrato de renting o leasing operativo, Dykinson, S.L, Madrid, 2024:19).

Assim nasceram algumas figuras contratuais, alternativas á aquisição dos bens, derivadas do contrato de locação, de entre elas o chamado renting ou locação operacional (lembre-se que foi este o termo adoptado no contrato para o designar em termos contabilísticos).

Dado a atipicidade deste contrato, a opinio juris tem avançado com várias definições cujo denominador comum está na ideia que o renting, ao contrário do leasing, não incorpora uma opção de compra.

A doutrina mais antiga identificava o contrato de renting com o contrato de aluguer de curto prazo. Tempo que já passou.

Hugo Freitas Ribeiro diz agora que a locação operacional (outro nome por que é conhecido o renting). é «um contrato atípico e misto, em que a finalidade económico-social essencial do contrato é a «cedência operacional» do uso de um bem móvel, em regra um automóvel ou um bem de equipamento» (O Contrato de Renting na Ordem Jurídica Portuguesa-Da natureza jurídica e da dependência funcional entre o elemento locativo e a prestação de serviços, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra na Área de Especialização em Ciências Jurídico Forenses, 2018:68).

Anselmo Cañellas, por sua vez, numa definição intencionalmente holística de modo a abranger a multiplicidade de modalidades de contratos de renting, define este contrato como «aquele pelo qual se cede o uso do bem juntamente com prestações complementares, que se pactuam no mesmo contrato, ou em outros contratos conexos, como o de compra e venda do objecto sobre o qual o renting há-de recair, o de prestação de serviços de manutenção do bem arrendado ou o seguro associado ao uso do mesmo» (ibidem:20). .

A nossa jurisprudência tem reconhecido esta nova figura em várias ocasiões, como v.g. nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 07/06/2016, Proc. 1449/14.7JLSB.L1-7, de 14/09/2021, Proc, 5769/21.6T8LSB.L1-A-7 e de 10.5.2022, Proc. 679/22.2T8TVD.L1.7.

Atendendo à forma de operar no mercado e tendo em conta o importante factor da pessoa que toma a iniciativa de oferecer ou solicitar este produto, a doutrina distingue o renting entre directo ou indirecto, entre renting operativo ou de mediação.

A primeira distinção é de Hugo Ribeiro. O renting é directo quando o locador é o fabricante do bem ou proprietário desse bem eventualmente em stock. É indirecto quando «o locador, entidade financeira ou não, adquire do fabricante o bem pretendido pelo locatário, resultando por isso, numa intervenção de três sujeitos naquilo que se pode classificar como «operação económica de renting», em que o fabricante, locador e locatário compõem um esquema em três vértices, no qual figuram dois negócios jurídicos bilaterais (a compra e venda prévia e o contrato de renting propriamente dito), em que o locatário se revela como «denominador comum» em ambos os contratos» (ibidem:23).

A segunda distinção é feita por Anselmo Cañellas. O renting é operativo ou a pedido do empresário «quando a iniciativa pertence ao empresário que comercializa, directamente ou através de uma sua filial ou de uma entidade financeira, a cessão para uso de bens de equipamento, o que pode fazer ou por os ter em propriedade (por ser ele mesmo o fabricante ou distribuidor), ou por o fabricante, distribuidor ou a empresa de renting pertencerem ao mesmo grupo, ou por ter chegado a um acordo com o fabricante ou o distribuidor, para que este se comprometa a vender à empresa de renting os bens que esta solicite, encarregando-se a empresa de renting de comercializar e conseguir arrendatários» (ibidem:49). O renting é de mediação quando «o usuário, depois de prévio contacto com o fabricante ou distribuidor do bem de que necessita, acorda com o empresário de renting (normalmente vinculado a uma entidade financeira, ainda que não necessariamente), que este o adquira e o arrende a si durante um prazo que oscila entre 12 a 60 meses» (Ibidem:50). A diferença com a anterior modalidade reside no facto de neste tipo de renting «o empresário carecer de stock prévio, pois adquire o bem em atenção às indicações do usuário» (idem).

No caso sujeito, sobressai a estrutura trilateral da operação, como dissemos. A indicação da insolvente, a recorrente adquiriu o bem ao fornecedor W..., Lda. que, por seu lado, o entregou á locatária, como representante do comprador, obrigando-se a insolvente ao pagamento de uma renda mensal.

No caso sujeito, estamos diante desta segunda classe de renting, de um renting indirecto ou de mediação.

Como se demonstra, a locatária, ora insolvente, escolheu diversos objetos para alugar ao abrigo do mencionado contrato: Implementação ERP (software de gestão e contabilidade).

A locadora, ora recorrente, adquiriu o bem locado exclusivamente para o alugar à locatária, em benefício da mesma, o qual não teria sido adquirido e pago se não tivesse sido celebrado o contrato entre as ora autora e 2.ª ré.

Recebida a factura da empresa fornecedora e pago o bem pela locadora, a entrega deste bem foi feita por aquela, que actuou como representante da entidade de renting.

A entrega, nos termos contratuais (cfr. Secção 6 e 22), foi documentada mediante a assinatura pela locatária de uma confirmação de aceitação na qual esta declara ter recebido o bem em perfeito estado e em funcionamento devido, na sua totalidade e com todos os seus componentes, correspondendo exactamente às descrições constantes do pedido/contrato, e com a qualidade garantida pelo fornecedor e/ou terceiros.

A partir do momento em que recebeu os bens, transferiram-se para a locatária os riscos de perda acidental, destruição , deterioração e variação do preço, devendo ainda esta suportar o prémio de seguro de propriedade (cfr. proposta contrato).

Acresce que «após conclusão do contrato de locação o Locador transfere para o locatário os direitos relativos a defeitos do bem locado que tenha obtido em virtude do contrato de aquisição do bem locado, bem como outros direitos derivados de garantias (relativamente à responsabilidade do Locador pelos defeitos, confrontar a Secção 7, n.º 7; relativamente à transferência de direitos, confrontar a secção 7, n.º 8) (Idem).

De acordo com a Secção 3.1, o Locador será apenas responsável por entregas feitas fora de prazo ou defeituosas pelo fornecedor, caso seja considerado responsável. O Locador cederá ao Locatário os direitos que tenha perante o fornecedor ou terceiros nos casos acima referidos, incluindo o direito à devolução dos bens locados; isto não incluirá o direito de reembolso de aquisição já pago».

Parafraseando Anselmo Cañellas, dir-se-á que «o facto de, no renting de mediação, o locador pretender iludir ao máximo a sua relação com o objecto locado, conservando a propriedade como garantia de que o locatário cumprirá com o pagamento das rendas, exonerando-se da responsabilidade da entrega do bem e da responsabilidade derivada dos respectivos vícios ou defeitos, assim como da sua obrigação de manutenção, e cedendo ao locatário as acções que tenha contra o fornecedor do bem aproxima o renting de mediação do leasing financeiro. Contudo, são contratos distintos, residindo a chave da sua diferenciação na opção de compra, inexistente no contrato de renting de mediação» (Ibidem:52).

Estamos de acordo. O contrato em análise aproxima-se em variados aspectos do leasing financeiro, mas não se confunde com ele, tendo identidade própria, ainda que como figura juridicamente atípica.

Não será o facto de inexistir a cargo do locador a obrigação de prestar serviços de manutenção, reparação e substituição do equipamento cedido, como muitas vezes acontece no renting, que fará «empurrar» a figura para o âmbito da simples locação.

Podemos, em suma, concluir que estamos diante de um contrato atípico, cujo regime jurídico não está legalmente compilado e que se rege, em primeiro lugar, pelas cláusulas acordadas entre os contraentes e, supletivamente, pelas normas do Código Civil, incluindo as do contrato de locação.


***

ii) Dos efeito da insolvência sobre o contrato em curso; créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente?

Defende a ré/massa insolvente que, tratando-se de um contrato de locação atípico, deverá aplicar-se o preceituado no art.º 102.º do CIRE ao contrato celebrado entre a insolvente e a autora, e, consequentemente, o mesmo ficou suspenso por via da declaração de insolvência desta e até que o AI declarasse optar pela execução ou recusar o seu cumprimento.

O segundo grau deu-lhe razão: considerou que os valores pedidos na acção constituem créditos sobre a insolvência, os quais, não tendo sido reclamados dentro do prazo geral de reclamação, teriam de o ser através da acção especial de verificação ulterior de créditos regulada no art. 146º do CIRE.

A recorrente discorda: «Uma vez qualificado o contrato celebrado entre as partes como contrato de locação, nos termos do artigo 1022.º, do CC, o disposto legal a aplicar será sempre o previsto no artigo 108.º e não o do artigo 102.º, do CIRE, por via do artigo 104.º, n.º 3 do CIRE, o que significa que, na ausência de denúncia (expressa) por parte do Administrador da Insolvência, o contrato se mantem vigor, pelo que, a massa insolvente deve continuar a proceder ao pagamentos dos alugueres acordados.

Sendo que, no caso de haver comunicação de denúncia pelo Administrador da Insolvência, os alugueres vencidos entre a data da declaração da insolvência até à data da produção dos efeitos da denúncia devem ser pagos pela massa insolvente.

Ora, existindo uma norma específica aplicável ao caso concreto, com um regime jurídico distinto do regime do art. 102.º do CIRE, ao contrato de locação terá de ser aplicável o art. 108.º do CIRE e não outro».

Não tem razão a recorrente.

A declaração de insolvência desencadeia efeitos de vária ordem em relação aos negócios em curso do insolvente. O princípio geral quanto a esses negócios é o do artigo 102.º CIRE: o administrador da insolvência tem direito de opção entre a execução do contrato e a recusa do cumprimento.

Estando em causa contratos de venda com reserva de propriedade, locação financeira e locação-venda rege o disposto no artigo 104.º CIRE, ficando o artigo 108.º reservado para a locação em que o locatário é o insolvente.

Não está aqui em causa o regime do artigo 104.º, sendo certo que, como já se viu, no caso sujeito não se prevê a aquisição do bem pela locatária.

Por outro lado, tentámos explicar, no número anterior, a razão pela qual o contrato em apreço não podia subsumir-se na categoria pretendida pela recorrente.

Resta saber se se aplica e em que termos o artigo 102.º.

A resposta é claramente positiva, tal como foi dada pelo segundo grau: «resta socorrermo-nos do regime geral previsto no art.º 102.º do CIRE, ou seja, como se preceitua no n.º1 de tal artigo, com a declaração de insolvência da Órbita – Bicicletas Portuguesas, Ld.ª ocorrida em 11.02.2020, “o cumprimento” do contrato em apreço ficou “suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”. E assim, se o AI optar pela execução do contrato, o crédito da ora autora/apelada será um crédito sobre a massa insolvente, cfr. art.ºs 102.º n.º4 e 51.º n.º1, al. f). ambos do CIRE, mas se optar por recusar o cumprimento, não há lugar à restituição do que foi prestando, ficando a autora/apelada com direito a pedir como créditos sobre a insolvência, o valor das prestações da ora insolvente, na parte incumprida e a indemnização dos prejuízos causados pelo incumprimento.

In casu, parece-nos quase evidente que o AI não pretende o cumprimento do contrato, todavia, não se pode olvidar o preceituado no n.º2 do art.º 102.º do CIRE e, se assim for, manifesto é de concluir que os créditos invocados nos autos pela autora/apelada não são créditos sobre a massa insolvente, podendo ser créditos sobre a insolvência e como tal deveriam ser reclamados no apenso de reclamação de créditos, cfr. art.ºs 128.º e segs do CIRE, ou então serem peticionados contra a massa insolvente, os credores e a devedora por via da ação para verificação ulterior de créditos, prevista no art.º 146.º do CIRE. Procedem as conclusões da ré/apelante, havendo de se revogar a decisão recorrida».

Este raciocínio é juridicamente correto e merece ser confirmado.


***

Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 527º, 1 e 2, do Código de Processo Civil).

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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

Condena-se a recorrente no pagamento das custas.


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17 de Setembro de 2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Ricardo Costa

Maria Olinda Garcia, com voto de vencida que segue

Voto vencida. Consideraria procedente o recurso e daria razão à recorrente.

A aplicação de um regime legal (em detrimento de outro) não pode deixar de atender aos elementos típicos ou estruturais da figura jurídica em causa. Assim ainda que se admitisse a qualificação que é feita do contrato em apreço como contrato de “renting” (a qual é dogmaticamente discutível), podendo relevar, eventualmente, para determinados efeitos (como efeitos contabilísticos ou fiscais), tal qualificação não conduziria, necessariamente, à conclusão de que não lhe são aplicáveis as disposições próprias do contrato de locação para efeitos insolvenciais.

Estruturalmente, o contrato em apreço nos presentes autos consistiu na cedência do gozo de certos bens móveis, por determinado prazo, mediante uma remuneração periódica, o que corresponde à noção de locação (art. 1022.º do CC). E estas notas típicas não são descaraterizadas pelo facto de entre as partes poderem existir convenções específicas, quer pré-contratuais (quanto à escolha dos bens a adquirir pelo locador), quer quanto ao regime do risco ao longo da execução do contrato.

Mesmo que se entenda que não está em causa apenas um contrato de locação, mas sim um contrato misto, não deixará de ter aplicação (na matéria correspondente) a disciplina prevista no regime da insolvência para os contratos de locação. E essa disciplina é a que se encontra especificamente prevista no artigo 108.º, n.º 1 do CIRE.

Ao presente contrato não tem aplicação (nem direta nem analógica) o artigo 104º do CIRE, pois o seu teor literal é claro ao limitar o respetivo âmbito de aplicação à compra e venda com reserva de propriedade e a outros contratos nos quais tipicamente existirá efeito translativo da propriedade, seja por previsão legal, como na locação financeira, seja por convenção expressa das partes (como na locação-venda). Como afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, o artigo 104º só se aplica a estes contratos, aplicando-se aos demais contratos o artigo 108.º.

Também não tem aplicação ao caso concreto o disposto no artigo 102º, n.º 1 (nos termos do qual o contrato ficaria suspenso até decisão do administrador da insolvência). Efetivamente, como afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, quanto ao âmbito de aplicação do artigo 102º «(…) para além de só se aplicar a contratos bilaterais, ser necessário que não haja cumprimento total dos mesmos, nem pelo insolvente nem pela outra parte». Efetivamente (além de o artigo 102º não estar tipicamente pensado para contratos duradouros), no caso concreto, não se pode falar de um negócio ainda não cumprido, pois o locador cumpriu o contrato quando disponibilizou o gozo dos bens móveis ao locatário e este, por sua vez, foi cumprindo o contrato (pelo menos a sua obrigação principal) enquanto foi pagando as rendas. Quando deixou de pagar rendas, naturalmente que entrou em incumprimento, mas este não é o tipo de incumprimento a que se refere o artigo 102.º.

Em suma, a meu ver, o regime aplicável ao caso concreto seria o previsto no artigo 108º do CIRE.

Lisboa, 17.09.2024

Maria Olinda Garcia