Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
986/21.1T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: JUROS DE MORA
FACTO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INTERPELAÇÃO
MORA DO DEVEDOR
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E DETERMINADA A REMESSA À 1.ª INSTÂNCIA
Sumário :
Nos termos do art.º 805.º, n.º2, al. b), do CC, se a obrigação provier de facto ilícito por via do regime da responsabilidade extracontratual, o devedor deve imediatamente proceder à reparação das suas consequências (devolução das quantias ilicitamente apropriadas e líquidas, acrescidas dos juros de mora legais desde a data da apropriação), independentemente da interpelação, contando-se, por isso, a mora desde a data da prática do facto ilícito.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA intentou contra BB e CC, casados na comunhão de adquiridos, a presente ação declarativa sob a forma comum, tendo pedido:

- A condenação dos Réus a pagar ao Autor a quantia de capital de € 635.676,54 (seiscentos e trinta e cinco mil seiscentos e setenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos, no montante de € 165.923,70 (cento e sessenta e cinco mil novecentos e vinte e três euros e setenta cêntimos), e dos que se venceram, calculados à taxa legal e sobre a indicada quantia de capital.

Para tanto, alegou, em síntese, que: o Autor nasceu em ........1935 e não sabe ler nem escrever, apenas sabendo assinar o seu nome; o Autor residia em França, país onde conheceu o Réu marido e de quem se tornou amigo, relação que se fortaleceu quando sofreu um acidente e se acabou por estender à Ré; pelo ano de 2012, os Réus, fazendo crer ao Autor que os ligava uma séria relação de amizade, sugeriram-lhe que viesse viver para junto deles, facto que o interessou, tendo-lhes pedido que arranjassem uma casa, para o que haveria de mandar dinheiro; no início de 2013, os Réus disseram ao Autor que tinham encontrado uma casa para ele, na rua onde os próprios residiam; nessa altura, os Réus disseram ao Autor que abrisse uma conta bancária para transferir dinheiro que tinha, dispondo-se a ser seus representantes, para nela fazer os necessários movimentos; nesse seguimento, e tendo o Autor pedido que fossem abertas duas contas (como tinha em França), os Réus deslocaram-se com o mesmo à Caixa Geral de Depósitos (CGD) e ao Banco Espírito Santo (BES), lugares de onde saiu convencido que havia aberto duas contas; e, de facto, o Autor celebrou com a CGD, no dia 16.04.2012, um contrato de abertura de conta com o n.º .............00 (doravante conta com o n.º ....29), tendo concedido aos Réus poderes de movimentação da mesma sem nenhumas restrições; o Autor confiou aos Réus os cartões multibanco e respetivos códigos respeitantes a essa conta; já no BES, segundo o Autor veio mais tarde a saber, não foi aberta nenhuma conta; nos dias 11.05.2013 e 09.07.2013, com base em documentos fornecidos pela Ré, o Autor transferiu da sua conta aberta num banco francês (C..... .........) as quantias de € 95.000,00 e de € 50.000,00, pensando que estava a fazê-lo para uma das suas contas em Portugal; por sua vez, no dia 06.06.2013, o Autor transferiu da sua conta noutro banco francês (L. ...... .......) a quantia de € 178.000,00, pensando que o estava a fazer para a sua conta na CGD; segundo mais tarde veio a saber, essas transferências foram antes realizadas para contas dos Réus; essas transferências tinham como destino o pagamento do preço da casa que o Autor pretendia comprar em Portugal, e que lhe havia sido indicada pelos Réus; no 17.07.2013, sem nada dizer ao Autor, os Réus compraram a DD e a EE o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .80, tendo o preço sido pago com dinheiro do Autor; depois, os Réus disseram ao Autor que iriam pôr a casa em seu nome através de escritura que seria realizada no dia 30.07.2013; nessa data, foi celebrada uma escritura através da qual os Réus venderam ao Autor o direito de uso e habitação sobre o prédio antes identificado, pelo preço de € 22.500,00; o Autor confiou que, através dessa escritura, estava a pôr a casa em seu nome; por agosto de 2013, o Autor combinou com os Réus que passaria a fazer as refeições em casa destes, em troca do que lhes pagaria a quantia de € 300,00, que os próprios levantariam das contas daquele, utilizando os cartões multibanco; em 24.02.2014, o Autor vendeu a casa que tinha em França pelo preço de € 260.000,00, que foi transferida para a conta da CGD com o n.º ....29; em 06.05.2014, a Ré deu instruções à CGD para, debitando a conta antes mencionada, se subscrever em nome do Autor o valor aproximado de € 265.000,00, do Fundo de Investimento “CXG Liquidez”, o que foi cumprido, tendo esse produto sido resgatado, no dia 19.05.2014, a Ré deu instruções à CGD para que a conta do Autor fosse debitada quanto ao montante de € 60.000,00, por meio de transferência que ordenou para a conta que os Réus são titulares nessa instituição bancária; no mesmo dia, o Autor deu instruções à CGD para que fosse debitada a conta do Autor para subscrição de dois seguros de vida, um com o capital de € 170.000,00 e outro com o capital de € 30.000,00, sendo aquela a beneficiária; o Autor assinou esses documentos convencido que estava a fazer aplicações financeiras em seu nome, tendo vindo a saber apenas em 2018 que a Ré era a beneficiária dessas aplicações; por ordem dada pela Ré em 30.10.2017, esses seguros de vida foram resgatados, tendo depois dado instruções para que a quantia de € 210.940,24 fosse transferida para a conta que os Réus eram titulares na CGD; entre junho de 2014 a outubro de 2017, a conta do Autor foi debitada no total de € 57.054,94, através de movimentos ordenados pelos Réus, em seu próprio benefício; de novembro de 2017 a março de 2018, a conta do Autor na CGD foi debitada do montante total de € 3.553,10, através de movimentos que não foram ordenados por aquele, tendo sido feitos pelos Réus em seu próprio benefício; em outubro de 2018, perante avisos de vizinhos (quanto à alteração da forma de vida dos Réus), o Autor dirigiu-se ao BES e descobriu que não tinha ali qualquer conta e que na conta CGD apenas restavam € 15.000,00; no dia 20.12.2018, o Autor revogou a autorização concedida aos Réus para movimentar a sua conta e apresentou queixa criminal contra aqueles; entretanto, a Ré intentou contra o Autor uma ação no Juízo do Trabalho de Guimarães, que correu termos com o n.º 6863/19.9..., onde alegou ser credora de créditos salariais não pagos por aquele, o que mereceu a sua contestação; os Réus atuaram com astúcia, fazendo crer que os unia uma relação séria de amizade e que o mesmo comprara uma casa e ainda que fariam uma gestão prudente da conta bancária do Autor, tendo atuado com o propósito de o prejudicarem e de se enriquecerem, o que fizeram na importância total de € 635.676,54.

3. Regularmente citados, os Réus apresentaram contestação, a fls. 97 a 108 (REF.ª: ......42), na qual, em súmula, invocou:

- Invocaram a exceção de falta de capacidade judiciária, com fundamento no facto de, na petição inicial, se indicar que o Autor não sabe ler nem escrever e que não ouve bem e no facto de, para além disso, o Autor, nas atividades do seu quotidiano, ter o auxílio de terceiros, dos quais se encontra dependente para a realização das lides domésticas;

- Alegaram a exceção de prescrição quanto aos juros, por remontarem há mais de 8 (oito) anos atrás;

- Requereram a suspensão da instância pela circunstância de se encontrar pendente processo de inquérito de natureza criminal sobre os factos em discussão na presente causa;

- Impugnaram a matéria alegada na petição inicial, tendo contraposto que adquiriram um imóvel em Portugal (próximo à sua residência) a título de investimento, com dinheiro seu, tendo sido o Autor que lhes pediu aos Réus que habitasse nesse prédio, ao que acederam, razão pela qual foi constituído o direito de uso e habitação a favor daquele; que os cartões multibanco e os respetivos códigos sempre estiveram na posse do Autor, nunca se tendo apropriado de montantes em dinheiro a este pertencentes; que jamais enganaram o Autor com as aberturas de contas na CGD e no BES; que a sua vida, desde 1994, não sofreu alteração, negando qualquer ostentação; que têm o mesmo património que tinham antes de 2013 e que tudo que obtiveram até à presente data foi com o fruto dos seus próprios rendimentos e nunca à custa do empobrecimento do Autor.

4. Após o despacho de 10.05.2021, o Autor apresentou o articulado de resposta com a REF.ª: ......93, no qual se pronunciou sobre a exceção de falta de capacidade judiciária e sobre a exceção de prescrição de juros.

5. Dispensada a realização de audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, a 10.05.2022, a fls. 128 a 130, no qual afirmou-se a validade e regularidade da instância (desatendendo-se a exceção de falta de capacidade judiciária e indeferindo-se a suspensão da instância e o requerido quanto à submissão do Autor a exame médico-legal).

Fixou-se o objeto do litígio e estabeleceram-se os temas da prova, nos termos que constam de fls. 130.

6. Por requerimento com a REF.ª ......29, foi requerida, nos termos do artigo 593.º/3, do Código de Processo Civil (CPCiv), a realização de audiência prévia, a qual teve lugar no dia 01.10.2021, estando documentada a fls. 151 a 152.

7. Realizou-se a audiência de julgamento nas sessões dos dias 30.09.2022, 13.10.2022, 10.02.2023, 24.03.2023 e 28.04.2023, com observância formalismo legal, conforme decorre das atas respetivas (cfr. fls. 270 a 271). No decurso da audiência de julgamento, foi suscitado, perante o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o incidente de suspeição, o qual foi indeferido, conforme douta decisão que consta do apenso respetivo. Também já após o início da audiência, foi interposto recurso do despacho que admitiu a junção dos documentos apresentados com a REF.ª: ......77, o qual foi provido, conforme resulta da douta decisão constante do apenso “A”.

8. Veio a ser proferida a seguinte sentença:

Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:

i. Condena-se os Réus no pagamento ao Autor da quantia de € 623.490,24 (seiscentos e vinte e três mil quatrocentos e noventa euros e vinte e quatro cêntimos), sobre a qual acrescem juros de mora vencidos desde a citação até integral pagamento, à taxa legal de juros aplicável aos juros civis;

ii. Absolve-se os Réus do restante peticionado.

As custas são da responsabilidade das partes na proporção do decaimento (cfr. artigo 527.º/1/2, do CPCiv).

Valor do processo: o fixado pelo despacho de 10.06.2021 (cfr. fls. 128).

Registe, notifique e dê baixa.”

9. Não se conformando com a decisão proferida vieram os RR. interpor recurso de apelação, conhecido pelo TRG.

10. O A. também interpôs recurso da sentença, questionando a condenação nos juros.

11. O tribunal conheceu de ambos o recurso e veio a proferir acórdão que culmina com o seguinte dispositivo:

Nestes termos, têm, pois, de improceder os recursos, mantendo-se, consequentemente, o decidido.”

12. AA, A., notificado do acórdão proferido a 20/12/2023 pelo Tribunal da Relação de Guimarães, veio interpor recurso de revista excepcional (ref. Citius ....77), na qual formula as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª Na obrigação pecuniária, a indemnização por mora corresponde aos juros a contar da data da constituição e mora – conclusão tirada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Janeiro de 2010, cujo sumário está publicado no portal [www.dgsi.pt], com a Referência 380/1999.P2.S1.

2.ª Quanto a esta, se a obrigação provém de facto ilícito, e sendo o crédito líquido, a mora tem lugar desde a data dos factos geradores dos danos e começam a vencer-se juros, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 805.º, do Código Civil; se o crédito não é líquido, começam estes a vencer-se desde a liquidação ou, não tendo esta tido lugar antes da citação, com esta, nos termos do disposto na 1.ª e 2.ª parte, do n.º 3, do artigo 805.º, do Código Civil –conclusão tirada e adaptada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Janeiro de 2010, cujo sumário está publicado no portal [www.dgsi.pt], com a Referência 380/1999.P2.S1.

3.ª Estando em causa a obrigação de indemnizar o lesado pela ilícita violação de um seu direito, concretamente por diversas subtracções de dinheiro, os juros devidos pela mora na reparação desse dano liquido contam-se da data de cada subtracção de dinheiro em relação ao respectivo montante, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 805.º, do Código Civil;

4.ª Assim e estando provado que os réus subtraíram ao autor diversas quantias em diversas datas, os juros das quantias destinadas a indemnizar o autor lesado, devem contar-se em relação a cada subtracção, desde a respectiva data;

5.ª É de cinco anos o prazo de prescrição dos juros, nos termos do disposto na alínea d), do artigo 310.º, do Código Civil;

6.ª Do mesmo modo que não começa acorrer o prazo de prescrição do direito à indemnização senão do conhecimento do direito que assiste ao lesado, nos termos do n.º 1, do artigo 498.º, do Código Civil, também o prazo de prescrição dos juros não corre enquanto que o lesado não souber do direito à indemnização que lhe cabe pela mora na realização, pelo devedor, da indemnização, razão por que, estando provado que o lesado só no final de 2018 soube das subtracções perpetradas pelos réus entre Maio de 2013 e Outubro de 2017, o prazo de prescrição dos juros também só começa a correr no final de 2018, razão por que, tendo a acção sido instaurada em 17 de Fevereiro de 2021, nenhuns juros prescreveram, porque não se completaram, dali até aqui, cinco anos, sendo, por isso, devidos os juros acima calculados na TABELA 1;

7.ª Caso não proceda o referido na conclusão anterior, sempre a apresentação de participação criminal contra pessoas determinadas fez interrompera prescrição no final do quinto dia posterior à apresentação da participação, nos termos do disposto nos n.os 1 e 2, do artigo 323.º, do Código Civil, razão por que, estando documentado que o lesado, aqui autor, apresentou, contra os lesantes, aqui réus, e no dia 20 de Abril de 2019, uma participação criminal, tendo por objecto os mesmos factos subtrativos, por eles praticados entre Maio de 2013 e Outubro de 2017, a prescrição dos juros deve ter-se por interrompida a 25 de Abril de 2019, razão por que não estão prescritos os juros vencidos em data posterior a 25 de Abril de 2014, sendo, por isso, devidos os juros acima calculados na TABELA 4;

8.ª Caso não proceda o referido na conclusão anterior, tendo a acção de indemnização pela prática de acto ilícito sido apresentada no dia 17 de Fevereiro de 2021, tendo sido declarados suspensos os prazos de prescrição desde o dia 22 de Janeiro de 2021 – nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 6.º-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, com a redacção da Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, e o artigo 4.º, desta lei n.º 4-B/2021 – e tendo também sido declarados suspensos os mesmos prazos de prescrição entre o dia 9 de Março de 2020 e o dia 3 de Junho de 2020, num total de 86 (oitenta e seis) dias – nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, com a redacção da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, e o artigo 10.º, desta lei n.º 4-A/2020 – é de concluir que não estão prescritos os juros vencidos em data posterior a cinco anos e oitenta e seis dias antes de 9 de Março de 2020, ou seja, desde 13 de Dezembro de 2014, sendo, por isso, devidos os juros acima calculados na TABELA 3.

9.ª Caso não proceda o referido na conclusão anterior, sempre a citação dos réus para os pressentes autos, no dia 19 de Fevereiro de 2021, fez interromper a prescrição da contagem dos juros de mora no cumprimento da indemnização devida pela reconstituição natural, nos termos do disposto nos n.os 1 e 2, do artigo 323.º, do Código Civil, o que vale por dizer que não estão prescritos os juros vencidos em data posterior a cinco anos antes de 19 de Fevereiro de 2021, ou seja, desde 19 de Fevereiro de 2016, sendo, por isso, devidos os juros acima calculados na TABELA 2.

10.ª O acórdão em revista violou o disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 805.º, e n.º 1, do artigo 806.º, ambos do Código Civil.

11.ª O acórdão em revista está em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 2010 – disponível no portal [www.dgsi.pt], com a Referência 380/1999.P2.S1 – em que se sumariou nos postos I I e I I I , que “na obrigação pecuniária, a indemnização por mora corresponde aos juros a contar da data da constituição em mora”, e que, quanto a esta obrigação de indemnização, “sendo o crédito líquido, a mora tem lugar desde a data dos factos geradores dos danos e começam a vencer-se juros; se o crédito não é líquido, começam estes a vencer-se desde a liquidação ou, não tendo esta tido lugar antes da citação, com esta.”

12.ª O acórdão em revista está também em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de o Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 2022 – disponível no portal [www.dgsi.pt], com a Referência 381/16.4T9SCR.L1 – em que, em aplicação da mesma legislação que no nosso caso (em ambos esteve em causa a aplicação do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 805 e n.º 3, do mesmo artigo 805.º, do Código Civil), sobre a mesma questão de direito (e, ambos esteve em causa saber desde que data se contam os juros pela mora na reparação do dano causado por um acto ilícito, quando a fonte da obrigação é prática de um acto ilícito e o dano é líquido e, note-se, em ambos os casos estiveram em causa subtracções de somas de dinheiro), sem que se conheça uniformização de jurisprudência no sentido do decidido e deliberado nas instâncias, se chegou a resultado diferente do alcançado nestes autos, pois que ali se concluiu e sumariou que: “– Sendo a obrigação proveniente de facto ilícito a mora constitui-se no momento da verificação do mesmo, independentemente de qualquer interpelação, e mantém-se até à reposição do status quo ante. - A determinação do tempo de cumprimento é, pois, de primordial importância, para determinar o momento de constituição em mora, que marca o desencadear das consequências que lhe estão associadas. – Tais momentos estão assinalados no art. 805º, do Código Civil, que regula o “tempo do cumprimento”, consagrando, como regra a despoletar a mora, o princípio da essencialidade da interpelação - em que a constituição em mora não opera de per si mas está dependente da iniciativa do credor(mora ex persona) - (nº1) e prevendo excepções - situações em que a mora debitoris surge por si, independentemente daquela iniciativa (mora ex re) -(nº2),ressalvando, destas situações que, em princípio , desencadeariam a mora ex re, as hipóteses de iliquidez do crédito (não se gerando mora do devedor em função da falta de liquidez da obrigação, por o credor não adoptar o comportamento necessário ao cumprimento). – A mora constituiu-se com a comissão do facto e cessa com os pagamentos feitos.”

13.ª Pelo referido nas duas conclusões anteriores e nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 672.º, do Código de Processo Civil, deve ser admitida revista do acórdão proferido nos autos, ainda que ele tenha confirmado a sentença apelada”.

13. CC e BB, Réus nos autos de processo à margem referenciados, não se conformando com o Acórdão proferido a 20/12/2023 pelo Tribunal da Relação de Guimarães vieram dele interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, requerendo a reapreciação do direito aplicável, da prova de facto, da matéria e da reapreciação da prova gravada.

14. AA veio “RESPONDER À MOTIVAÇÃO DO RECURSO, invocando, para lá do mais, a sua inadmissibilidade, ora por falta de conclusões, ora por falta de invocação de qualquer contradição entre o acórdão proferido nos autos e qualquer outro, de qualquer outro Tribunal da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, sobre a mesma questão fundamental de direito, porque nos invocados a matéria de facto provada é assaz diferente da provada nos nossos autos, tudo como se sustenta nas conclusões 1.ª a 5.ª, da reposta à motivação…”.

14. No tribunal recorrido foi proferido o seguinte despacho: “Nos termos e para os fins do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. c) e n.º 3, do Cód. Proc. Civil, remetam-se os recursos interpostos ao STJ, subindo em separado e com efeito devolutivo (cfr. arts. 675.º, n.º 2 e 676.º, n.º 1, a contrario, do mesmo diploma), ficando, consequentemente, prejudicado o pedido de reforma do acórdão proferido.

15. Recebido os autos, e cumprindo ao relator verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso – art.º 652.º do CPC, foi proferido despacho onde se lê – além do disposto no relatório supra:

(transcrição)

10. Quanto ao recurso dos RR. Uma das exigências legais, em matéria de recurso é a de apresentar conclusões, conforme impõe o art. 639.º do CC Artigo 639.º - Ónus de alegar e formular conclusões

1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada. 3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada. 4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias. 5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei. A interpretação da citada norma implica que na falta de conclusões o recurso são seja recebido; se existirem conclusões e elas forem deficientes, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações impostas por lei, deve ser formulado um convite ao seu aperfeiçoamento. É esta a orientação que o STJ segue, conforme resulta do acórdão de 16/12/2020, relativo ao processo 2817/18.0T8PNF.P1.S1, onde se lê o seguinte sumário (disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bd559e244ba97cf580258 6650045a285?OpenDocument) I. O ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver. II. “A falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjetivo. Na fundamentação consta: “Nessa conformidade, as alegações recursórias têm por função e economia configurar as questões a resolver com a exposição dos fundamentos do recurso e o desenvolvimento da respetiva argumentação jurídica ou probatória. Estruturalmente, as alegações compreendem: a) - Uma grande parte, designada por corpo das alegações, que deve conter a exposição dos fundamentos do recurso e o desenvolvimento da respetiva argumentação; b) - Uma parte final, designada por conclusões, em que se deve especificar, de forma sintética, as questões a resolver e os fundamentos do recurso. Assim, no trato das conclusões, devem ser indicadas, em sede de impugnação de direito, o quadro jurídico que o recorrente entende por violado e aplicável, nos termos dos n.º 1 e 2 do citado artigo 639.º, mais precisamente as normas violadas por erro de interpretação ou de aplicação ou as normas que deviam ter sido aplicadas e que o não foram por erro na determinação ou escolha da norma.” … Em suma, o ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver.”

O presente recurso dos RR. não comporta conclusões, numa acepção objetiva da palavra, nem nele se encontra uma parte final que possa merecer a qualificação de conclusões, ainda que sem essa referência directa. Do teor da motivação não se compreende, com clareza, o que pretendem os recorrentes da revista, em termos de questões a tratar e com que fundamentos. Não pode, por isso, ser admitido, pelo que se decide: não se admite o recurso. 11. Recurso do A. O recurso do A. vem apresentado como recurso de revista excepcional invocando-se contradição de julgados. Para saber se a revista excepcional deve ser admitida, impõe-se que os autos sejam remetidos à formação a que se reporta o art.º 672.º do CPC. 12. Na situação dos autos, o acórdão confirmou a sentença com fundamentação que não é essencialmente diversa, e não foi consignado nenhum voto de vencido. O A. tem legitimidade para recorrer, apresentou o seu recurso em tempo e ficou vencido, havendo sucumbência e valor. Face ao exposto, estamos perante uma situação em que o recurso seria possível não fora o obstáculo “dupla conforme”. Este obstáculo pode ser removido por via de decisão da formação – art.º 672.º do CPC.

Decisão: 1- Quanto ao recurso do A., determina-se a sua remessa à formação, para decisão de eventual admissão do recurso.

As custas serão definidas por essa formação se o recurso não for admitido.

2- O recurso dos RR. não é admitido.

Os RR. suportam as custas desse seu recurso.

16. A formação veio a admitir o recurso do A., por acórdão, fundamentado na contradição de julgados.

Cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

17. Discutida a causa, resultou provada a seguinte factualidade:

- Oriunda da petição inicial:

1. O Autor nasceu em ........1935.

2. O Autor não saber ler nem escrever (salvo assinar o seu nome) e não ouve bem.

3. O Autor contraiu casamento, em ........1958, com FF.

4. O Autor e a mulher tiveram filhos.

5. O Autor e a família viviam em França, assim como o Réu marido, lugar em que se conheceram.

6. O casamento aludido em 2. foi dissolvido por divórcio decretado em 17.11.1981, proferida pelo Tribunal de Grande Instância de ..., França, decisão que foi revista e confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 01.03.1983, transitada em 17.03.1983.

7. O Autor afastou-se dos filhos ou estes dele.

8. O Réu e o Autor tornaram-se amigos, amizade que se fortaleceu quando o Autor sofreu um acidente e foi internado num hospital francês, tempo em que o Réu marido o ajudou, amizade que se estendeu à Ré mulher.

9. Os Réus são casados.

10. Pelo ano de 2012, o Autor vivia só em ....

11. Os Réus fizeram crer ao Autor que os ligava uma séria relação de amizade.

12. Crendo naquela amizade, o Autor pediu aos Réus que lhe encontrassem uma casa em Portugal, próxima daqueles, para pagamento da qual haveria de mandar dinheiro.

13. Por outro lado e pela mesma ocasião, o Autor poria à venda a casa que tinha em França.

14. Em data indeterminada no ano 2013 (mas antes do mês de maio), os Réus disseram ao Autor ter encontrado uma casa para ele, na rua onde aqueles residiam e residem.

15. O Autor veio a Portugal ver a casa, que lhe agradou.

16. Acompanhados dos Réus, no dia 16.04.2013, o Autor celebrou, com a CGD, um “contrato de abertura de conta e prestação de serviços”, no qual o Autor e a CGD declararam acordar “na abertura de conta de depósitos à ordem como conta de referência, bem como na prestação de serviços associados a essa conta de referência”, conta que ficou tendo o n.º .............00 (doravante: conta n.º ....29).

17. Os Réus dispuseram-se a ser seus representantes para fazer os necessários movimentos na conta bancária.

18. No mesmo dia, o Autor declarou, perante a CGD, “conceder” ao Réu BB, “na qualidade de […] representante [do Autor], todos os poderes de que disponho como titular [da CONTA ....29]”, sem “nenhumas” “restrições”.

19. No mesmo dia, o Autor declarou, perante a CGD, “conceder” à Ré “na qualidade de […] representante [do autor], todos os poderes de que disponho como titular [da CONTA ....29]”, sem “nenhumas” “restrições”.

20. Os Réus abriram, no mesmo dia 16.04.2013, na CGD outra conta, com o n.º .............00 (doravante: conta n.º ....28).

21. O Autor, na ocasião com 77 (setenta e sete) anos, sabendo assinar, mas não sabendo ler nem sabendo escrever, confiou aos Réus os papéis das aberturas das contas, bem como os cartões multibanco e os respetivos códigos.

22. O Autor abriu a conta daquele modo, designando os Réus seus representantes, e a estes entregou os cartões e códigos, porque convencido de que o ajudariam, para o que os Réus fizeram crer ao Autor que fariam uma gestão prudente, gastando dinheiro daquela conta para pagar despesas de bens e serviços no interesse do Autor.

23. O Autor estava convencido de que tinha aberto uma conta no BES.

24. No dia 11.05.2013, o Autor transferiu, da sua conta no banco francês C..... ........., a quantia de € 95.000.00 (noventa e cinco mil euros).

25. No dia 06.06.2013, o Autor transferiu, da sua conta no banco francês L. ...... ......., a quantia de € 178.000,00 (cento e setenta e oito mil euros).

26. No dia 09.07.2013, o Autor transferiu, da sua conta no banco francês C..... ........., a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).

27. O Autor fez estas três transferências para o pagamento do preço da casa, tendo sido realizadas para contas tituladas pelos Réus.

28. Em julho de 2013, o Autor voltou para Portugal.

29. Sem nada dizer ao Autor, no dia 17.07.2013, no Cartório Notarial de GG, em ..., perante a Notária, compareceram, de um lado e como primeiros outorgantes, HH e DD, e, de outro lado e como segundos outorgantes, os Réus BB e CC, e ali, perante a referida Notária: − Declararam os primeiros: “que pela presente escritura e pelo preço de cento e cinquenta mil euros que já receberam, vendem aos segundos outorgantes o seguinte imóvel: Prédio urbano, composto de casa de cave, rés-do-chão e logradouro, sito no Lugar de ..., freguesia de ...(...), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número quatrocentos e oitenta, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 709, […]”; − Declararam os segundos “que aceitam a presente venda nos termos exarados.”

30. Estas declarações foram reduzidas a escrito e lavradas, a fls. 64, do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 81-E.

31. O preço da casa, a que se reporta a escritura mencionada em 29., foi pago pelos Réus com o dinheiro do Autor.

32. E, sem nada revelar ao Autor, os Réus disseram-lhe que a escritura para “pôr a casa no nome” do Autor seria feita no dia 30.07.2013.

33. No dia 30.07.2013, no Cartório Notarial de GG, perante a Notária, compareceram, como primeiros outorgantes, os Réus BB e CC, e, como segundo outorgante, o Autor AA, e ali: − Declararam os primeiros “que pela presente escritura e pelo preço de vinte mil trezentos e oitenta e dois euros que já receberam, vendem ao segundo outorgante, o direito de uso e habitação vitalício sobre o seguinte imóvel: Prédio urbano, composto de casa de cave, rés-do-chão e logradouro, sito no Lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número [480], registado a favor dos primeiros outorgantes pela inscrição da apresentação mil e dez, de dezanove de Julho de dois mil e treze, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 709, […].” − Declarou o segundo “que aceita a presente venda nos termos exarados, e que o imóvel se destina à sua habitação própria e permanente”.

34. Estas declarações foram reduzidas a escrito e lavradas, a fls. 103, do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 81-E.

35. O Autor confiou que estava, através da escritura mencionada em 33., a “pôr a casa” em seu nome.

36. O Autor não pagou aos Réus o valor declarado na escritura nem nenhum outro.

37. O Autor fez aquelas declarações convencido, pelos Réus, que estava a comprar uma casa, para onde foi morar sem pedir o que quer que fosse a quem quer que seja.

38. Só no final de 2018, o Autor descobriu que a casa fora “comprada” pelos Réus e que ele dela ficou apenas com “o direito de uso e habitação”, para o que os Réus usaram da mesma astúcia, fazendo crer ao Autor que comprara uma casa, o que tudo fizeram com intenção de dar um ar combinado ao procedimento, mantendo no seu património o enriquecimento obtido.

39. Por agosto de 2013, o Autor combinou com os Réus que passaria a fazer as refeições em casa dos Réus, em troca do que lhes pagaria a quantia de € 300,00 (trezentos euros) por mês, que os próprios Réus levantariam das contas do Autor.

40. Em fevereiro de 2014, o Autor recebeu a notícia de que surgira comprador para a casa de ..., tendo transferido o produto da venda – € 260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros) – para a conta n.º ....29 no dia 22.04.2014.

41. No dia 06.05.2014, a Ré deu instruções à CGD para que, debitando a conta n.º ....29, se subscrevesse, em nome do Autor, o valor aproximado de € 265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros) em títulos do Fundo de Investimento “CXG LIQUIDEZ”, o que foi cumprido pela CGD no dia 07.05.2014, debitando a referida conta pelo indicado montante.

42. No dia 16.05.2014, a Ré deu instruções à CGD para que, creditando a conta n.º ....29, se resgatasse a totalidade daquelas unidades de participação naquele Fundo de Investimento “CXG LIQUIDEZ”, o que foi cumprido pela CGD no dia 19.05.2014, creditando aquela conta pelo montante de € 265.065,09 (duzentos e sessenta e cinco mil e sessenta e cinco euros e nove cêntimos).

43. O Autor não deu quaisquer instruções para as operações de subscrição e resgate daquele Fundo de Investimento “CXG LIQUIDEZ”.

44. Nesta ocasião, os Réus abordaram o Autor dizendo-lhe que “era mau ter o dinheiro parado”, que os juros dos depósitos estavam muito baixos, pelo que seria melhor investir o dinheiro, convencendo-o a ir à CGD fazer umas aplicações.

45. No dia 19.05.2014, o Autor deu instruções à CGD para que, debitando a CONTA ....29, se transferisse para a conta n.º ....28, de que a própria Ré é titular, a quantia de € 60.000.00 (sessenta mil euros), o que foi cumprido pela CGD no próprio dia 19.05.2014.

46. No mesmo dia 19.05.2014, o Autor deu instruções à CGD para que, debitando a CONTA ....29, se subscrevesse, um seguro de vida, na “FIDELIDADE COMPANHIA DE SEGUROS”, a oito anos e com o capital de € 170.000.00 (cento e setenta mil euros), tendo-o a ele como beneficiário em caso de resgate em vida e a Ré, em caso de morte.

47. Ainda no mesmo dia 19.05.2014, o Autor deu instruções à CGD para que, debitando a conta n.º ....29, se subscrevesse, um outro seguro de vida, na “FIDELIDADE COMPANHIA DE SEGUROS”, a oito anos e com o capital de € 30.000.00 (trinta mil euros), tendo-o a ele como beneficiário em caso de resgate em vida e a Ré, em caso de morte.

48. O Autor assinou todos estes documentos, convencido de que estava a fazer aplicações financeiras em seu nome da forma descrita, e, sempre na mesma medida, mantendo o prejuízo do autor.

49. O Autor, na ocasião com 78 (setenta e oito) anos, sabendo apenas assinar, sem saber ler e sem saber escrever, confiou aos Réus também estes papéis.

50. Segundo o Autor veio a saber já em data indeterminada de 2018 (mas anterior a dezembro desse ano), a Ré seria a última beneficiária de todas as “aplicações”, para o que os Réus usaram da referida astúcia, fazendo crer ao Autor que estava a fazer aplicações financeiras rentáveis e em seu nome, o que os Réus fizeram com intenção de obter para eles as quantias transferidas, enriquecendo o seu património na exata medida da transferência e da expectativa de receber o capital dos seguros, e, sempre na mesma medida, prejudicando o Autor, empobrecendo-o.

51. De junho de 2014 a outubro de 2017, foi debitada a conta n.º ....29, nas datas, com os seguintes valores e descrições, tudo no total de € 48.750,00: 2014.07.01 LEVS DOC € -500,00 2014.09.04 LEVS DOC € - 1.000,00 2014.10.10 LEVS DOC € -600.00 2014.11.03 LEVS DOC € - 1.200.00 2014.11.05 LEVS DOC € -7.000.00 2014.12.12 LEVS DOC € -2.000.00 2014.12.19 LEVS DOC € -500.00 2015.03.03 LEVS DOC € -500.00 2015.04.07 LEVS DOC € -700,00 2015.05.04 LEVS DOC € -300.00 2015.06.05 LEVS DOC € -600.00 2015.07.03 LEVS DOC € -1.000.00 2015.08.31 TRANSFERENCIAS 0045562636 € -1.200.00 2015.10.02 LEVS DOC € -500.00 2015.11.06 LEVS DOC € -500.00 2015.12.11 LEVS DOC € -600.00 2016.01.15 LEVS DOC € -600.00 2016.02.11 LEVS DOC € -500.00 2016.03.11 LEVS DOC € -400.00 2016.04.15 LEVS DOC € - 500.00 2016.05.13 LEVANTAMENTO € -500.00 2016.06.09 LEVS DOC € -500.00 2016.07.12 LEVS DOC € -800.00 2016.08.11 LEVS DOC € -500.00 2016.09.16 LEVS DOC € -500.00 2016.10.13 LEVS DOC € -400.00 2016.11.11 LEVS DOC € -500.00 2016.12.12 LEVS DOC € -450.00 2017.02.10 LEVS DOC € -500.00 2017.03.09 LEVS DOC € -400.00 2017.04.13 LEVS DOC € - 500,00 2017.05.10 LEVS DOC € -500.00 2017.06.12 LEVS DOC € -500.00 2017.07.03 TRANSFERENCIA ........82 € -20.000.00 2017.07.03 LEVS DOC € -1.000.00 2017.10.10 LEVS DOC EUR -500.00

52. O Autor não ordenou nenhum destes movimentos, que foram feitos pelos Réus em seu próprio benefício, salvo quanto ao montante de € 19.200,00, destinado ao pagamento das refeições do Autor em casa dos Réus.

53. Sem nada dizer ao Autor, no dia 30.10.2017, a Ré deu instruções à CGD e à “FIDELIDADE COMPANHIA DE SEGUROS”, para que se resgatassem os seguros de vida, creditando-se a conta n.º ....29, e, no mesmo sem nada dizer ao Autor, deu instruções à CGD para que, debitando a conta n.º ....29, se transferisse para a conta ....28, de que a própria Ré é titular, a quantia de € 210.940.24 (duzentos e dez mil novecentos e quarenta euros e vinte e quatro cêntimos), o que foi cumprido pela CGD no próprio dia 30.10.2017.

54. O Autor não ordenou este movimento, que foi feito pelos Réus em seu próprio benefício.

55. Os Réus, ao efetuar os levantamentos e as transferências aludidas nos n.ºs anteriores, atuaram com intenção de ficar com o dinheiro do Autor e de com ele fazerem despesas no interesse deles, e com intenção de prejudicar o Autor, empobrecendo-o.

56. Em data indeterminada de 2018 (mas anterior a dezembro desse ano), o Autor foi ao BES (entretanto NOVO BANCO) e à CGD, quando descobriu que no BES não tinha qualquer conta e quando descobriu que na CGD tinha apenas cerca de € 15.000,00.

57. No dia 20.12.2018, o Autor declarou, perante a CGD, “revogar a autorização” concedida aos Réus, para movimentar a conta n.º ....29.

58. No dia 04.12.2019, a Ré apresentou contra o Autor e no Juízo do Trabalho de ..., uma ação, que ali passou a correr termos, no Juiz 1 e sob o n.º 6863/19.9..., alegando ter celebrado, com o Autor e em agosto de 2013, um contrato de trabalho, obrigando-se a entregar a sua força de trabalho para o exercício das funções de alojamento, confeção de refeições, lavagem e preparação de roupas, vigilância, assistência e companhia, bem como a higiene pessoal, em troca de € 800.00 (oitocentos euros), por mês, que fora despedida, sem justa causa, no dia 12.12.2018 e que o Autor só lhe havia pago, desde que ela começou a exercer aquelas funções, a quantia de € 300.00 (trezentos euros), por mês, conforme consta da cópia da petição de fls. 65/verso a 70.

59. No dia 11.02.2020, o Réu contestou essa ação, nos termos que constam da peça cuja cópia está a fls. 71 a 76.”

18. Factos não provados:

a. O número de filhos que o Autor teve com FF foi 2 (dois).

b. Pelo ano de 2012, os Réus sugeriram ao Autor que viesse viver para junto deles.

c. Foi no início de 2013 que ocorreu o mencionado em 14..

d. Em abril de 2013, os Réus disseram ao Autor que abrisse uma conta bancária para transferir o dinheiro que tinha em ....

e. O Autor pediu aos Réus para abrir uma conta no BES, ao qual se deslocou no mesmo dia 16.04.2023 e de onde saiu convencido de nela ter aberto uma conta.

f. O Autor, no BES, pensava ter designado os Réus como seus representantes na conta que tencionava abrir, para poderem movimentá-la.

g. Quando o Autor regressou a ..., em julho de 2013, pediu à Ré os números das contas para fazer transferências, tendo a Ré entregue dois números de contas, que o Autor confiou serem as suas.

h. As transferências aludidas em 24. e 26. foram efetuadas pelo Autor no convencimento de que estavam a ser realizadas para a sua conta na CGD.

i. A transferência mencionada em 25. foi realizada pelo Autor no convencimento de que estava a ser realizada para uma conta titulada por si aberta no BES.

j. Os Réus fizeram crer ao Autor que levara para ... os números das contas aberta na CGD e naquela que julgava ter aberto no BES.

k. A transferência a que se alude em 45. foi subscrita pela Ré.

l. Os movimentos efetuados sobre a conta n.º ....29, titulada pelo Autor, aludidos nos artigos 77.º, 97.º e 117.º, da petição inicial, com ressalva dos constantes da al. 51., dos factos provados, não foram ordenados por aquele e foram realizados em benefício dos Réus.”

De Direito

19. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

No presente recurso esse objecto consiste em saber desde quando são devidos os juros de mora e se é de aplicar o art. 805.º, n.º 3, 2.ª parte do Cód. Civil ou o seu n.º2.

20. Na decisão recorrida consta:

“Como tal, perante os factos, o tribunal a quo considerou que, no caso dos autos, apesar do Autor ter estruturado o seu pedido de condenação na figura do enriquecimento sem causa, a factualidade apurada traduz uma intromissão em bens alheios (em virtude da violação do direito de propriedade) susceptível de os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, como se considerou ser o caso pelo preenchimentos de todos os seus requisitos, a isso não obstando a qualificação jurídica dos factos efectuada pelo Autor, por força do preceituado no artigo 5.º/3, do CPCiv, de acordo com o qual o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Ora, esse enquadramento não foi posto em causa, pelo que deve ser à luz do direito aplicado, que a questão da contagem dos juros deve ser analisada. Como tal, e em conformidade com o decidido pelo tribunal a quo, outra conclusão não se pode alcançar senão o de se julgar aplicável o disposto no art. 805.º, n.º 3, 2.ª parte do Cód. Civil. Consequentemente, por se tratar de um caso de responsabilidade por facto ilícito, o devedor só se constitui em mora desde a citação, o que leva a que a questão da prescrição de juros anterior a essa data fique prejudicada. Nestes termos, têm, pois, de improceder os recursos, mantendo-se, consequentemente, o decidido.”

21. Na sentença havia sido dito:

“Na situação sub judice, em resultado da discussão da causa, provou-se que os Réus utilizaram dinheiro pertencente ao Autor em proveito próprio para pagamento do preço da aquisição de um prédio urbano e subtraíram dinheiro do Autor através de transferências que realizaram para contas a si pertencentes e de levantamentos em seu benefício. O acesso às verbas de dinheiro apropriadas decorreu da relação de confiança, baseada na proximidade que havia entre o Autor e os Réus por força de um vínculo de amizade. Todavia, essa utilização do dinheiro não foi consentida pelo Autor: a instrução que este tinha dado era a de que as verbas que transferiu para os Réus (nos montantes parcelares de € 178.000,00, € 50.000,00 e € 95.000,00) destinavam-se ao pagamento do preço da aquisição de uma casa em que interviesse como comprador; e a autorização de que os Réus gozavam para movimentar a conta bancária do Autor ou para dela efetuar levantamentos era restrita à realização de operações em benefício do Autor e em seu proveito. A concessão dos poderes de autorização de movimentação da conta bancária e a entrega de verbas para compra da casa efetuadas pelo Autor teve lugar num contexto, artificialmente criado pelos Réus, de existência de sentimentos de afeição, que criaram junto do Autor a confiança necessária para lhe anular mecanismos pessoais de defesa. Com efeito, na prossecução da finalidade de apropriação, aos Réus atuaram de forma concertada na criação de um ambiente de confiança e de amizade, com o objetivo último de se apossarem de valores pertencentes ao Autor, por meio de uma encenação por eles construída e mantida, fazendo crer àquele que atuavam a seu favor (diligenciando pela compra da casa, frutificando o seu património com a subscrição de produtos bancários e efetuando levantamentos com vista a gastos relacionados com a sua subsistência), explorando a debilidade de que o mesmo padecia, caracterizada pela sua idade e pela sua iliteracia. Ora, os Réus estavam obrigados a respeitar o direito de propriedade do Autor sobre o dinheiro que ao mesmo pertencia, o qual, enquanto direito absoluto, confere aos seus titulares o poder de dispor livremente dos bens sobre que incide e sujeita os terceiros à obrigação passiva de o não ofender. Donde, a ilicitude da conduta daqueles (cfr. artigo 1035.º, do CCiv)1.

Acresce que os Réus agiram com a representação do resultado danoso, sendo o ato praticado com a intenção de o produzir, correspondendo essa conduta à ideia clássica de dolo direto, que se verifica quando o autor do facto age com o intuito de atingir o resultado ilícito da sua conduta, que de antemão representou e quis (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 11.ª ed., págs. 582 e 583). Assim sendo, entende-se que aqueles agiram de forma culposa, na modalidade de dolo direto, visando a apropriação de valores em dinheiro, que lhes eram alheios. Violaram, desse modo, o direito de propriedade do Autor sobre as quantias na parte em que se provou a apropriação, já que com o seu comportamento provocaram a ablação dos poderes de disposição inerentes à titularidade desse direito subjetivo (cfr. artigo 1305.º, do CCiv). Desta forma, tendo sido praticada pelos Réus, uma conduta culposa e ilícita e considerando que ela foi apta, segundo a teoria de causalidade adequada (cfr. artigo 563º, do CCiv), à verificação do dano, resta a questão da medida da obrigação de indemnização. De acordo com o artigo 562.º, do CCiv, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Por sua vez, prescreve o n.º 1 do artigo 566.º, do CCiv, que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. Daqui se retira que no nosso ordenamento encontra-se consagrado o princípio da reposição natural, ou seja, deve ser reconstituída a situação anterior à lesão, repondo as coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano, tendo a indemnização em dinheiro carácter subsidiário. Neste caso, uma vez que o dano consistiu na subtração do património do Autor a quantia total de € 623.490,24, a medida da obrigação de indemnização deve corresponder àquele montante, que se reconduz ao quantum da apropriação ilegítima havida.

Como se explica na motivação da decisão da matéria de facto, esse montante corresponde ao dinheiro proveniente do património Autor, de que os Réus se apropriaram, que representa a soma das seguintes parcelas: € 95.000,00, € 178.000,00, € 50.000,00 (que correspondem às três transferências efetuadas pelo Autor para a compra do prédio), € 60.000,00, € 210.940,24 (que correspondem às transferências a favor de conta que os Réus eram titulares na CGD) e € 29.550,00 (que corresponde ao total dos levantamentos a débito e transferências realizados da conta do Autor em benefício dos Réus e sem autorização do Autor).

Sobre essa quantia indemnizatória vencem juros à taxa legal desde a citação, que consubstancia o ato de interpelação de cumprimento, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 804.º, 805.º/3, 2.ª parte, 806.º, do CCiv (cfr. ainda Portaria n.º 291/2003, de 8/4).

Vencendo juros desde a citação, tal inutiliza a apreciação da prescrição de juros invocada pelos Réus.

Procede, assim, parcialmente a ação intentada.”

22. Ao admitir o recurso de revista excepcional, este STJ justificou sinteticamente a contradição, nos seguintes moldes:

“E, enquanto o acórdão recorrido, para efeitos de contagem dos juros de mora devidos, aplica, sem, porém, o justificar minimamente, o n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, partindo, assim, do pressuposto que o crédito em questão assume natureza ilíquida, o acórdão fundamento, afastando expressamente aquele normativo, determinou a aplicação direta do disposto no artigo 805.º, n.º 2, al. b), do Código Civil, donde resultou que a contagem de juros deve ser feita a partir da data de cada dos factos ilícitos dados como provados na ação (i.e. de cada ato de subtração).”

23. Analisando.

Dispõe o art.º 805.º do CC:

(Momento da constituição em mora)

1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b)
Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3. Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.

Estando em causa nos autos a questão de saber se a ilícita apropriação do dinheiro do A. vence juros de mora e desde quando, mesmo que a situação seja analisada pelo regime da responsabilidade civil extracontratual – como as instâncias entenderam – ou pelo regime do enriquecimento sem causa – não há duvidas de que as quantias apropriadas são líquidas e foram indevidamente apropriadas e retidas pelos RR.

A aplicação do regime do art.º 805.º, n.º2, al.b) à situação da responsabilidade extracontratual fundada em facto ilícito é igualmente apontada pelos anotadores/doutrina, no que à referida disposição se reportam:

- Pires de Lima/ Antunes Varela – Anotação ao art.º 805.º do CC – Código Civil Anotado - Vol. II, 4ª ed. Revista e aumentada, p. 64.

- Maria da Graça Trigo/Mariana Nunes Martins – Anotação ao art.º 805.º do CC – Comentário ao CC – Direito das Obrigações – Das obrigações em Geral, UCEditora, 2018, p. 1130 e ss;

- Ana Prata (coordenação) - CC Anotado, Almedina, p. 1010, anotação ao art.º 805.º por Ana Prata.

Sobre a questão, Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, 2002, Vol. II, p. 229 alude mesmo a uma situação que apresenta paralelismo com a submetida a apreciação do tribunal, que se transcreve.

A mesma situação ocorre, nos termos do art.º 805.º, n.º2, al. b), se a obrigação provier de facto ilícito, uma vez que se o devedor tiver praticado um ilícito a regra é de que deve imediatamente proceder à reparação das suas consequências, independentemente da interpelação, contando-se, por isso, a mora desde a data da prática do facto ilícito. Como se dizia no Direito Romano, se alguém furtou determinado objecto, está desde logo em mora quanto à obrigação da sua restituição (fur sempre in mora).”


“Em qualquer das situações anteriores, o art.º 805.º, n.º3, exige, no entanto, para que ocorra uma situação de mora que a obrigação seja líquida, ou seja, o seu quantitativo já se encontre determinado, uma vez que enquanto tal não suceder, a mora não se verifica …”

Sobre a sua natureza de valores líquidos, cf. a jurisprudência deste tribunal, nomeadamente a que se indica:

27-04-2005

Revista n.º 689/05 - 6.ª Secção


I - Para haver mora, não basta a interpelação do devedor.

II - Para que haja mora, além da culpa do devedor e, consequentemente da ilicitude do retardamento da prestação, é ainda necessário que esta seja certa, líquida e exigível.

III - Não há culpa do devedor quando ele não cumpre apenas por não saber, nem ter o dever de saber qual o montante exacto da dívida.

IV - Diz-se ilíquida a obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante não está ainda fixado.

V - No domínio da responsabilidade contratual, o simples facto do credor pedir quantia certa, avaliando os danos por sua conta e risco, não significa que a dívida se torne líquida com a petição inicial, pois só se tornará líquida com a decisão.

VI - Líquido ou específico será apenas o pedido formulado, mas não a obrigação, pelo que os juros de mora apenas são devidos a partir da decisão judicial que fixe o montante da indemnização.


19-12-2018

Revista n.º 301/12.5TCGMR.G2.S1 - 6.ª Secção


I - Ocorre dupla conforme sempre que a decisão da Relação, sem voto de vencido e com fundamentação de direito essencialmente convergente com a da sentença da 1.ª instância, é mais favorável (quantitativamente ou qualitativamente) à parte que recorreu, embora não satisfaça totalmente a pretensão por si deduzida.

II - O desencontro na valoração jurídica da factualidade provada por parte do acórdão da Relação relativamente à sentença não integra o conceito de fundamentação essencialmente diversa passível de descaracterizar a situação de dupla conformidade de decisões.

III - O enquadramento jurídico diverso do pugnado pela parte não integra excesso de pronúncia, antes assume assentimento no princípio ínsito no n.º 3 do art. 5.º do CPC (oficiosidade do julgador quanto à matéria de direito), que apenas se mostra cerceado pela imposição do contraditório na perspectiva de proibição das decisões surpresa (n.º 3 do art. 3.º do CPC).

IV - Decisão-surpresa é apenas aquela que assenta em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes, ou seja, quando o tribunal adopta uma solução jurídica em total desvinculação ao alegado pelas partes.

V - A determinação do sentido das declarações negociais que compõem um negócio jurídico bilateral integra matéria de facto não compreendida nas atribuições deste STJ (n.º 3 do art. 674.º do CPC), competindo-lhe, porém, averiguar se o resultado interpretativo alcançado pelas instâncias se mostra (ou não) coincidente com os ditames que emergem das regras legais contidas nos arts. 236.º a 238.º do CC.

VI - A interpretação do negócio jurídico traduz-se numa valoração essencialmente objectiva e tem necessariamente de ser temperada com o princípio da tutela de confiança.

VII - Só a iliquidez objectiva (quando o devedor não estiver em condições de saber quanto deve) assume relevância para afastar a mora; não a simples controvérsia entre as partes quanto ao montante do crédito.


E na situação dos autos, a liquidez da obrigação resulta clara do valor indicado como tendo sido apropriado pelos RR. nos diferentes momentos temporais:

- € 95.000,00, € 178.000,00, € 50.000,00 (que correspondem às três transferências efetuadas pelo Autor para a compra do prédio),

- € 60.000,00, € 210.940,24 (que correspondem às transferências a favor de conta que os Réus eram titulares na CGD), e

- € 29.550,00 (que corresponde ao total dos levantamentos a débito e transferências realizados da conta do Autor em benefício dos Réus e sem autorização do Autor).

Tudo num valor total de € 623 490,24.

Os valores de que os RR. se apropriaram indevidamente eram valores que, logo no momento da apropriação, eles podiam quantificar e (quantificar) como não sendo seus e cuja obrigação de devolução ao A. era devida, o que determina serem valores líquidos, no sentido de sobre eles não haver perigo de se imporem juros relativamente a montantes desconhecidos, caso quisessem devolver o que não lhes era devido.

No que respeita à situação da responsabilidade extracontratual – fundada na prática de acto ilícito, tal como aplicada na decisão recorrida, também a jurisprudência deste STJ já decidiu:

21-01-2016

Revista n.º 621/06.8TAPRG.P1.S1

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ac4a729dbcdd673580257fb7003bd925?OpenDocument

I - De acordo com o art. 39.º do DL 28/84, de 20-01 o tribunal deverá decretar a devolução da quantia ilicitamente recebida quando estiver em causa a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo art. 36.º do citado diploma legal, tratando-se de uma consequência jurídica do crime e simultaneamente de uma sanção civil, consistente na perda de um benefício que gera a obrigação de restituição deste.

II - Não estando inscrita no mencionado art. 39.º do referido diploma legal a obrigação de pagamento de juros, a origem dessa obrigação apenas se poderá filiar numa constituição em mora relevante nos termos do art. 805.º do CC pois que os juros moratórios exercem a função de indemnização pelo retardamento de uma prestação pecuniária (art. 806.º, n.º 1, do CC), sendo assim, devidos a título de indemnização.

III - Para efeitos do disposto no art. 803 do CC, estaremos perante uma obrigação ilíquida quando a indefinição do valor da obrigação resulta da circunstância de não terem ainda ocorrido ou serem desconhecidos de alguma das partes algum ou alguns dos factos que são necessários para o apuramento e conhecimento desse valor.

IV - Filiando-se a responsabilidade do arguido numa obrigação pecuniária inerente a um subsídio que recebeu e que se demonstrou que não deveria ter recebido inexiste qualquer situação de indeterminabilidade e, pelo contrário, e, tal como se evidencia dos autos, o arguido desde a eclosão dos factos sabia que tinha recebido uma quantia certa e determinada e que não era devida, pelo que, os juros devem ser computados desde o momento em que as quantias foram colocadas na disponibilidade do arguido e não desde a data em que o arguido foi notificado para contestar o pedido de indemnização civil respeitante àqueles danos.

20-01-2010

Revista n.º 380/1999.P2.S1 - 2.ª Secção

I - A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos (art. 566.º, n.º 2, do CC).

II - Na obrigação pecuniária, a indemnização por mora corresponde aos juros a contar da data da constituição em mora.

III - Quanto a esta, se a obrigação provém de facto ilícito, e sendo o crédito líquido, a mora tem lugar desde a data dos factos geradores dos danos e começam a vencer-se juros; se o crédito não é líquido, começam estes a vencer-se desde a liquidação ou, não tendo esta tido lugar antes da citação, com esta.

IV - A liquidação corresponde a um conceito diferente do da actualização, embora a possa encerrar: se a actualização tiver lugar em liquidação (relativamente a liquidação já anteriormente levada a cabo ou fora de qualquer liquidação), há que atentar no Assento n.º 4/2002 (publicado no DR, I.ª Série, de 27-06-2002 e agora com valor de acórdão uniformizador).

V - A doutrina deste acórdão tem particular relevância nos casos em que se considerou a actualização até à data da sentença e se coloca a questão de, em aplicação do art. 805.º, n.º 3, do CC, contar os juros desde a citação; se se contassem, o titular do direito à indemnização beneficiaria de uma duplicação relativamente ao tempo que mediou entre a citação e a sentença: acumularia juros e actualização monetária.


Nessa medida, por via do art.º 805.º, n.º2, al. b) do CC, há mora do obrigado a restituir desde a data da apropriação – data do facto ilícito – porque houve interferência no direito de propriedade do autor sobre os valores objecto da apropriação; idêntico resultado poderia ser obtido pela via da aplicação do regime do art.º 479.º e 480.º do CC (aqui por via da alínea b) – enriquecimento sem causa.

Tendo o A. pedido a restituição do dinheiro apropriado e dos juros legais vencidos até à data da propositura da acção, acrescido dos vincendos, está o tribunal em condições de, respeitando o pedido, condenar na devolução das quantias apropriadas e juros legais, a contar da data de cada apropriação, e bem dos vincendos até pagamento.

Isto resulta claro dos factos provados e do direito aplicável:

Factos provados:

24. No dia 11.05.2013, o Autor transferiu, da sua conta no banco francês C..... ........., a quantia de € 95.000.00 (noventa e cinco mil euros).

25. No dia 06.06.2013, o Autor transferiu, da sua conta no banco francês L. ...... ......., a quantia de € 178.000,00 (cento e setenta e oito mil euros).

26. No dia 09.07.2013, o Autor transferiu, da sua conta no banco francês C..... ........., a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).

27. O Autor fez estas três transferências para o pagamento do preço da casa, tendo sido realizadas para contas tituladas pelos Réus.

45. No dia 19.05.2014, o Autor deu instruções à CGD para que, debitando a CONTA ....29, se transferisse para a conta n.º ....28, de que a própria Ré é titular, a quantia de € 60.000.00 (sessenta mil euros), o que foi cumprido pela CGD no próprio dia 19.05.2014.

51. De junho de 2014 a outubro de 2017, foi debitada a conta n.º ....29, nas datas, com os seguintes valores e descrições, tudo no total de € 48.750,00: 2014.07.01 LEVS DOC € -500,00 2014.09.04 LEVS DOC € - 1.000,00 2014.10.10 LEVS DOC € -600.00 2014.11.03 LEVS DOC € - 1.200.00 2014.11.05 LEVS DOC € -7.000.00 2014.12.12 LEVS DOC € -2.000.00 2014.12.19 LEVS DOC € -500.00 2015.03.03 LEVS DOC € -500.00 2015.04.07 LEVS DOC € -700,00 2015.05.04 LEVS DOC € -300.00 2015.06.05 LEVS DOC € -600.00 2015.07.03 LEVS DOC € -1.000.00 2015.08.31 TRANSFERENCIAS 0045562636 € -1.200.00 2015.10.02 LEVS DOC € -500.00 2015.11.06 LEVS DOC € -500.00 2015.12.11 LEVS DOC € -600.00 2016.01.15 LEVS DOC € -600.00 2016.02.11 LEVS DOC € -500.00 2016.03.11 LEVS DOC € -400.00 2016.04.15 LEVS DOC € - 500.00 2016.05.13 LEVANTAMENTO € -500.00 2016.06.09 LEVS DOC € -500.00 2016.07.12 LEVS DOC € -800.00 2016.08.11 LEVS DOC € -500.00 2016.09.16 LEVS DOC € -500.00 2016.10.13 LEVS DOC € -400.00 2016.11.11 LEVS DOC € -500.00 2016.12.12 LEVS DOC € -450.00 2017.02.10 LEVS DOC € -500.00 2017.03.09 LEVS DOC € -400.00 2017.04.13 LEVS DOC € - 500,00 2017.05.10 LEVS DOC € -500.00 2017.06.12 LEVS DOC € -500.00 2017.07.03 TRANSFERENCIA ........82 € -20.000.00 2017.07.03 LEVS DOC € -1.000.00 2017.10.10 LEVS DOC EUR -500.00

52. O Autor não ordenou nenhum destes movimentos, que foram feitos pelos Réus em seu próprio benefício, salvo quanto ao montante de € 19.200,00, destinado ao pagamento das refeições do Autor em casa dos Réus.

53. Sem nada dizer ao Autor, no dia 30.10.2017, a Ré deu instruções à CGD e à “FIDELIDADE COMPANHIA DE SEGUROS”, para que se resgatassem os seguros de vida, creditando-se a conta n.º ....29, e, no mesmo sem nada dizer ao Autor, deu instruções à CGD para que, debitando a conta n.º ....29, se transferisse para a conta ....28, de que a própria Ré é titular, a quantia de € 210.940.24 (duzentos e dez mil novecentos e quarenta euros e vinte e quatro cêntimos), o que foi cumprido pela CGD no próprio dia 30.10.2017.

Assim:

- € 95.000,00, € 178.000,00, € 50.000,00 (que correspondem às três transferências efetuadas pelo Autor para a compra do prédio, nos factos provados 24, 25, 26 e 27),

- € 60.000,00, € 210.940,24 (que correspondem às transferências a favor de conta que os Réus eram titulares na CGD e constam dos factos provados 45 e 53), e

- € 29.550,00 (que corresponde ao total dos levantamentos a débito e transferências realizados da conta do Autor em benefício dos Réus e sem autorização do Autor, que correspondem aos factos provados 51 e 52).

Pelas razões apontadas o recurso deve proceder.

24. E porque no acórdão recorrido não se conheceu da questão da invocada prescrição dos juros, porque se sufragou a sentença, em que a questão foi tida por prejudicada, impõe-se que os autos regressem à 1ª instância para análise dessa problemática.

Aí foi invocada a prescrição dos juros, pelos RR, por entenderem que remontavam há mais de 8 (oito) anos atrás, mas o tribunal disse:

Vencendo juros desde a citação, tal inutiliza a apreciação da prescrição de juros invocada pelos Réus.”

E no Tribunal da Relação a solução foi equivalente – “Consequentemente, por se tratar de um caso de responsabilidade por facto ilícito, o devedor só se constitui em mora desde a citação, o que leva a que a questão da prescrição de juros anterior a essa data fique prejudicada.”

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados:

1. Concede-se a revista, determinando-se que há lugar ao pagamento de juros de mora à taxa legal civil de juros de mora desde a data da apropriação ilícita, pelos RR, dos valores:

- € 95.000,00, € 178.000,00, € 50.000,00 (que correspondem às três transferências efetuadas pelo Autor para a compra do prédio),

- € 60.000,00, € 210.940,24 (que correspondem às transferências a favor de conta que os Réus eram titulares na CGD), e

- € 29.550,00 (que corresponde ao total dos levantamentos a débito e transferências realizados da conta do Autor em benefício dos Réus e sem autorização do Autor).

2. Este direito aos juros de mora aqui determinado não teve em consideração a questão da eventual prescrição dos juros, por não poder este tribunal substituir-se à adopção de decisão sobre esta questão – invocada e ainda sem decisão – questão que ficou prejudicada - e que deve ser conhecida pela 1ª instância.

3. Custas da revista na proporção do vencimento que se apurar a final.

Lisboa, 4 de Julho de 2024

Relatora: Fátima Gomes

1º Adjunto: Nuno Pinto Oliveira

2º Adjunto: Ferreira Lopes

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1. Parece que se reporta ao art.º 1305.º do CC.