Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO NEGÓCIO CONSIGO MESMO CONTRATO DE COMPRA E VENDA BEM IMÓVEL VALOR DE MERCADO INEFICÁCIA DO NEGÓCIO CONTA SOLIDÁRIA APROPRIAÇÃO DEPÓSITO REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA PROCURAÇÃO REPRESENTANTE RESPONSABILIDADE ANULABILIDADE | ||
Data do Acordão: | 04/21/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I - Na representação voluntária, que é formalizada através de procuração (art. 262º do CC), o representante atua em nome do representado, devendo agir com imparcialidade, probidade, e fiducia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, sob pena de incorrer em abuso de representação; II - A autorização para vender um imóvel, “pelo preço, cláusulas e condições que entender mais conveniente, podendo negociar consigo mesmo”, não equivale a carta branca para no negócio descurar o interesse do representado, que naturalmente pretenderia que a venda fosse feita pelo valor corrente de mercado; III - Age com abuso de representação o procurador que celebra escritura de venda do imóvel consigo próprio por um preço de cerca de 70% do valor de mercado; IV - O negócio feito com abuso de representação é ineficaz em relação ao representado, ou seus herdeiros em caso de falecimento daquele (arts. 268º e 269º do CCivil); V – Ser colocado como co-titular de uma conta bancária solidária - modalidade em que qualquer dos titulares pode, sozinho, proceder à movimentação da conta – significa apenas que se ficou autorizado a movimentar a conta, não o direito de se apropriar dos fundos nela depositados se os mesmos pertenciam exclusivamente ao outro titular. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de AA, representada pelo cabeça de casal BB, CC, DD intentou acção declarativa comum, contra EE, pedindo:
a) Ser a Ré condenada a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de AA, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade; b) Ser decretada a nulidade parcial da procuração em causa nos autos, na parte em que foi declarado pelo outorgante AA conferir à Ré poderes para Prometer “comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis” e, bem assim, na parte em que declarou “para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º1 do artigo 261 do Código Civil”, por indeterminabilidade do objecto, nos termos do artigo 280º do Cód. Civil e, por via disso, ser declarado ineficaz relativamente à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de AA o contrato de compra e venda celebrado por documento particular autenticado, no dia 29 de Julho de 2019, supra descrito e identificado em 9º, 10º e 11º desta petição e, consequentemente, anulado o respectivo registo de aquisição a favor da Ré; c) Subsidiariamente, ser declarada a ineficácia relativamente à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de AA do negócio que a Ré celebrou consigo mesma, correspondente à compra e venda mencionada na alínea anterior, por ter sido celebrado com abuso dos poderes de representação, nos termos dos arts. 268º e 269º do Código Civil; d) Subsidiariamente, ser declarado que o contrato de compra e venda dos autos foi simulado, por se ter tratado de uma transmissão gratuita e, por conseguinte, ser declarada a sua nulidade, quer por simulação, quer por falta de poderes de representação da Ré para tal transmissão gratuita; e) Ser reconhecido à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de AA o direito de propriedade sobre o prédio urbano destinado a habitação, situado na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...65, da freguesia ...; f) Ser ordenado o cancelamento de toda e qualquer inscrição de aquisição do prédio urbano identificado na alínea anterior a favor da Ré, nomeadamente, a inscrição AP. ...98 de 2019/07/31; g) Ser declarado o cancelamento de quaisquer outras inscrições registrais que incidam sobre o prédio urbano supra identificado, anteriores ao registo da presente acção; h) Subsidiariamente, ser a Ré condenada a pagar à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de AA a quantia de €:130.000,00 (cento e trinta mil euros), acrescida dos juros vencidos, à taxa legal, vencidos desde o dia 29-07-2019, no montante de €:826,30 (oitocentos e vinte e seis euros e trinta cêntimos) e vincendos, à taxa legal, até ao integral e efectivo pagamento, a liquidar a final; i) Ser a Ré condenada a pagar/reembolsar, a titulo de enriquecimento sem causa, à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de AA, a quantia de €:42.735,95 (quarenta e dois mil setecentos e trinta e cinco euros e noventa e cinco cêntimos), acrescida de juros até à data do seu integral e efectivo reembolso, correspondente às quantias depositadas nas instituições bancárias, unicamente em nome do falecido, à data de 12-06-2019 no caso do B... e à data de 13-06-2019, no caso do Banco ..., acrescida de juros, à taxa legal, até ao integral e efectivo pagamento, a liquidar em execução de sentença; e j) Ser a Ré condenada a pagar/reembolsar, a titulo de enriquecimento sem causa, à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de AA, a quantia correspondente às rendas que forem sendo pagas pela inquilina, relativas ao 1º andar do prédio urbano dos autos, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma delas até ao integral e efectivo pagamento, cujos valores devem ser liquidados em execução de sentença.
Para tanto, alegaram, em síntese, que o falecido AA emitiu procuração a favor da R., atribuindo-lhe um conjunto de poderes, entre os quais os de vender imóveis, pelo preço e condições que entendesse, no uso da qual a R. vendeu o dito imóvel a si própria por um valor inferior ao de mercado; que a ré sabia que não tinha legitimidade para vender o imóvel, por ser indeterminado e totalmente vago o conteúdo da procuração, e que a mesma jamais pagou o preço de compra referido na escritura; que o acto praticado estava fora dos poderes atribuídos à ré enquanto representante do falecido, constituindo ademais um negócio consigo mesmo, e lesante dos interesses do representado, sendo ineficaz quanto à sua herança; e que tal implicaria igualmente a obrigação de devolução à herança das quantias de renda abusivamente recebidas da inquilina do 1º andar do imóvel. Para o caso de assim não se entender, concluem que deveria a ré ser condenada a pagar-lhes a quantia correspondente ao preço da venda, de € 130.000. No respeitante às contas bancárias, consideraram ter sido abusivo o levantamento de quantias da conta do falecido, sendo certo que todo o dinheiro existente nessas contas lhe pertencia, devendo a R. repor o dinheiro de que se apropriou.
A Ré contestou, pugnando pela improcedência da acção, alegando, em resumo, ser legal o negócio efectuado no uso de procuração legal e legitimamente outorgada pelo falecido, e que movimentou as contas bancárias munida de autorização e para acudir a despesas do falecido.
Foi proferida sentença que na parcial procedência da acção, condenou a Ré a pagar aos AA. a quantia de €130.000,00 acrescida de juros à taxa legal, desde a data da compra e venda, 29 de julho de 2019, até integral pagamento, absolvendo-a do restante peticionado. Da sentença apelaram as partes. A Relação ..., por acórdão de 16.12.2021, decidiu: - Julgar improcedente o recurso da Ré; - Julgar procedente em parte a apelação dos AA, revogar parcialmente a sentença e, em consequência: a) Declarar a ineficácia relativamente à Autora, Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de AA, do negócio que a Ré, EE, celebrou consigo mesma, de compra e venda do prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número quatro mil trezentos e sessenta e cinco, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...36; b) Reconhecer à Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de AA o direito de propriedade sobre o referido prédio determinando-se o cancelamento do registo de aquisição efectuado em favor da R. (AP. ...98 de 2019/07/31); c) Condenar a R. a restituir à Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de AA a quantia de € 36.672,10 (trinta e seis mil seiscentos e setenta e dois euros e dez cêntimos); d) Manter a sentença recorrida na parte em que se decidiu “condenar a Ré a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de AA, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade”.
Inconformada, a Ré interpôs recurso de revista, concluindo como segue as suas alegações: 1ª- Da matéria de facto dada como provada, o Acórdão da Relação, concluiu que “… no negócio consigo mesmo celebrado pela R., com base em poderes de representação, esta exorbitou de forma consciente os interesses do seu representado, dado o desnível verificado entre o valor de mercado do prédio e o preço pelo qual foi alienado, índice objectivo e seguro do abuso da representação, sendo tal negócio ineficaz em relação ao representado nos termos dos artigos 268º e 269º do Código Civil e, por conseguinte, ineficaz em relação aos AA., seus únicos e universais herdeiros e representantes da sua Herança ilíquida e indivisa.”, tendo reconhecido “… à Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de AA o direito de propriedade sobre o dito imóvel, ordenando-se o cancelamento do registo de aquisição em favor da R..”
2ª. O Acórdão da Relação sob recurso, fundamentou a sua decisão invocando, essencialmente, dois Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, a saber: o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/06/2011 (proc. n.º 346/08.0TBLSA.C1.S1) e, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2013(proc. n.º 532/2001.L1.S1).
3ª. No entanto, a situação sub judice nada tem a ver com as situações vertidas nos referidos Acórdãos.
4ª. Os factos em causa no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/06/2011 (proc. n.º 346/08.0TBLSA.C1.S1), nada têm a ver com a situação sub judice, como se pode verificar pela seguinte transcrição: “II. 2. Efectuando uma síntese da factualidade relevante que importa considerar, ficou provado que, em 26 de Janeiro de 2006, a autora outorgou uma procuração, a favor da ré mulher, da qual constava que lhe concedia os necessários poderes para “vender ou prometer vender, pelo preço e condições e cláusulas que achar por convenientes a quem entender o prédio urbano, inscrito na matriz (…) e que a ré, no dia 2 de Fevereiro de 2006, munida da aludida procuração, outorgou uma escritura de compra e venda, em que declarou vender, a si própria, o mencionado prédio, pelo preço de €75.000,00, mas cujo valor, então, era de €193.677,50. Na verdade, a autora, conferindo à ré poderes para vender o prédio, não lhe indicou o preço mínimo que desejava obter, as condições ou as cláusulas pelas quais a alienação deveria ser efectuada, sendo certo que esta, enquanto sua procuradora, vendeu o bem, por um preço bastante menor ao seu valor de mercado, equivalente a um valor inferior a cerca de 40% do mesmo, (…). 5ª. Do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2013 (proc. n.º 532/2001.L1.S1), o Tribunal da Relação para fundamentar a sua decisão, baseou-se na transcrição das seguintes conclusões: V) - Na execução do contrato, autorizado pela procuração, não estava o procurador dispensado de actuar segundo as regras da boa-fé – art. 762º, nº1, do Código Civil – mais a mais se, por via da procuração com poderes para vender a si mesmo, estava implicada uma forte relação de confiança, por via de laços familiares, o que desde logo, postulava um acrescido dever de zelar pelos interesses da representada. VI) - O facto da procuração autorizar, muito latamente, a procuradora a alienar a fracção “pelo preço, condições e cláusulas que achasse por convenientes podendo negociar consigo mesmo”, não poderia valer como carta branca para um negócio que descurasse o interesse do representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários, observada a exigível ética negocial, postulada pela actuação de boa fé. VII) Aquela declaração de vontade da representada deve ser entendida como o faria um declaratário normal – art. 236º, nº1, do Código Civil – colocado na posição da procuradora, ou seja, que o preço deveria ser um preço justo de harmonia com a regras da oferta e da procura no mercado imobiliário, e não uma venda por qualquer preço, nem tão pouco pelo preço que mais conviesse, apenas e tão só, aos interesses do comprador enquanto outorgante de contrato consigo mesmo. 6ª - No entanto, para além da transcrição supra, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2013(proc. n.º 532/2001.L1.S1), também se pode ler, o seguinte: “IX) - Que o negócio consigo mesmo exorbitou de forma consciente o interesse da representada, está o ter-se provado – facto X) da matéria de facto – que “o Autor e chamada sabiam que com a escritura de compra e venda prejudicavam a Ré.” 7ª - Ora da transcrição, constata-se mais uma vez, que a situação em causa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2013 (proc. n.º 532/2001.L1.S1), é muito distinta da situação sub judice. Tal argumento é, também, facilmente comprovado, pela transcrição da matéria de facto dada como provada pelas instâncias em causa, que apesar de extensa, se afigura útil para a decisão do recurso, sub judice: “A) Por escritura de renúncia, compra e venda e mútuo oneroso com hipoteca, de 08-08-1980 outorgada n° ... Cartório Notarial ..., a Ré e o interveniente principal DD compraram a fracção autónoma designada pelas letras “BC”, correspondente ao …° andar …, do prédio urbano sito na ... …, no Edifício ..., freguesia de ..., Concelho de …, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº …, inscrito na respectiva matriz sob o art. …, pelo preço de 1.650.000$00. B) Sobre a fracção identificada em A) foi registada por Ap. … hipoteca voluntária com fundamento em empréstimo: sujeito activo Banco …. & … para pagamento das fracções BC e CC (…º andar … e garagem). C) Por inscrição G … - Ap. ...1 de 25-06-1980 foi registada a aquisição da fracção a favor da DD, casado com BB, no regime de comunhão de adquiridos. D) Em 26-06-1984, a Ré e marido outorgaram procuração a favor de CC, casada à data com o Autor, no regime de comunhão de adquiridos, nos termos da qual a Ré e marido conferiram a CC poderes para, entre outros, vender, pelos preços, cláusulas e condições que entendesse por convenientes, três fracções autónomas, de entre as quais a fracção supra identificada e objecto da presente lide, receber os preços, dar as correspondentes quitações, outorgar as necessárias escrituras, podendo ainda ser a própria procuradora a compradora. E) Por escritura de compra e venda de 27-06-1990 CC, e marido, outorgou na qualidade de representante da Ré e DD, como vendedores e por si na qualidade de compradora, escritura pública de compra e venda da fracção melhor identificada em A). F) Na escritura supra CC declarou que, em nome dos seus constituintes e pelo preço, já recebido, de quatro milhões de escudos, vende a ela própria e ao referido marido, com todas as coisas acessórias e livre de quaisquer ónus ou encargos a referida fracção autónoma. G) Por inscrição G … Ap. ...8 de 29-06-1990 foi inscrita a aquisição a favor de favor de CC e marido AA – comunhão de adquiridos – o imóvel melhor descrito em A). H) Em 11-10-1991, DD outorgou instrumento de revogação da procuração referida em D). I) Encontra-se registado a favor do Autor AA – causa partilha subsequente ao divórcio -por A.p.G…Ap. 6 de 04-01-2001 – o imóvel identificado em A). J) O Autor remeteu à Ré carta registada com aviso de recepção com data de 13-02-2001, nos termos do doc. n°2 e cujo teor dou aqui por reproduzido, carta que não foi recebida pela Ré, não reclamada. K) O Autor, munido da procuração identificada em D) pagou as quatro últimas prestações referentes ao crédito identificado em B) com vista à obtenção do documento de distrate da hipoteca que incidia sobre a fracção identificada em A). L) O Autor permitiu que a Ré permanecesse no imóvel por mera tolerância. M) Em meados de Março de 2000 o Autor interpelou a Ré para que esta desocupasse o andar. N) A Ré e marido pagaram o empréstimo ao B… nos termos e condições acordadas. O) Há mais de 21 anos que a Ré e sua família reside na fracção. P) A transmissão foi feita sem conhecimento da Ré e do interveniente DD. Q) Com referência à escritura de 1990, o Autor e CC não pagaram o preço da compra declarado em escritura. R) A Ré e seu marido, o interveniente DD, não receberam o preço declarado na escritura – 4.000.000$00. S) Apenas em 1994, no decurso do seu divórcio, a Ré teve conhecimento de escritura de compra e venda de 1990. T) O pagamento referido em K) da matéria assente foi feito ao arrepio da vontade da Ré e do interveniente DD. U) O Autor interpelou a Ré para pagamento do valor relativo às quatro últimas prestações. V) A Ré entregou ao Autor a quantia de 351.000$00 na sequência da interpelação referida em U). W) Na data em que foi celebrada a escritura referida em E) não foi solicitado o consentimento da Ré e do chamado DD para que a procuradora vendesse a fracção. X) O Autor e chamada sabiam que com a escritura de compra e venda prejudicavam a Ré. Y) Com a procuração de 1984 a Ré tinha consciência que os AA. podiam fazer das casas o que quisessem, quando muito bem entendessem. Z) Após o pagamento do empréstimo a Ré fez um único depósito de € 2403,31 na CGD numa conta de consignação de rendas de BB contra AA. 8ª - A situação sub judice, tem na sua génese factos bem distintos dos factos vertidos nos Acórdãos, nos quais o Tribunal da Relação fundamentou a sua decisão. Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/06/2011 (proc. n.º 346/08.0TBLSA.C1.S1) e, no que ao Abuso de Representação diz respeito, a decisão tem essencialmente por base, o desnível verificado entre o valor venal do imóvel e o preço pelo qual o mesmo foi alienado, respectivamente, € 193.677,50 e € 75.000,00 9ª. O valor real de um bem, não é um dado objectivo e inalterável mas susceptível, de alguma variação em função da oferta e da procura. Conforme se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/11/1988, publicado no BMJ, n.º 381, pág. 640, “foi considerado índice de abuso de representação a venda de bens por 1.300.000$00, quando o seu valor ascendia a mais de 9.000.000$00, por procurador com “os poderes necessários para vender pelos preços e condições que tiver por convenientes”, no Acórdão do mesmo Tribunal de 05/03/1996, in CJ(STJ), IV, I, 111, entendeu-se que “o desnível brutal entre o preço da venda – 3.000.000$00 – e o que o mercado daria – pelo menos, 12.800.000$00 – é índice objectivo e seguro do abuso de representação” e, ainda, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/12/2010 (proc. n.º 346/08.0TBLSA.C1), concluiu que: “I- Há abuso da representação (artº 269º do C. Civ.) se o representante, a quem foram conferidos poderes para vender ou prometer vender determinado prédio urbano, pelo preço, condições e cláusulas que achar convenientes, podendo fazer negócio consigo mesmo, outorga escritura pública de compra e venda do imóvel a seu favor, (…), por um valor manifestamente inferior ao valor real do prédio (menos de metade deste valor)”. Sublinhado nosso 10ª. O mesmo entendimento, teve o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão, de 04/07/2019 (proc. n.º 2939/15.0T8STR.E1.S2), onde de pode ler: “Bem diferente é, pois, a situação em causa nestes autos daquela que foi objecto do Acórdão do STJ de 25-06-2013 (Processo n.º 532/2001.L1.S1, em que foi Relator Fonseca Ramos),(…).”, em que se “(…)conclui-se pela ineficácia de um contrato de compra e venda celebrado pela procuradora consigo mesmo por se entender que esta não estava dispensada de actuar de acordo com as regras da boa fé, nos termos do art.º 762.º, n.º 2, do CC, mas num contexto fáctico em que ficou demonstrado que a procuradora em causa sabia que com a escritura prejudicava o representado,” - na matéria de facto provada, no facto X), consta que “o Autor e chamada sabiam que com a escritura de compra e venda prejudicavam a Ré”, tendo-se concluindo, nesse caso, ter a representante exorbitado os poderes representativos e agido com animus nocendi, sendo o negócio intencionalmente lesivo da representada e violador da protecção da confiança (cfr. acórdão a fls. 577).” Ora, tal circunstância não se provou, no caso sob recurso, i.e., não ficou demonstrado que a Ré, Recorrente, sabia que com a outorga do Contrato de Compra e Venda prejudicava o representado. 11ª. In casu, a Ré, Recorrente, munida de procuração outorgada pelo falecido (em 7 de Junho de 2019), adquiriu o imóvel em 29/07/2019, através de documento particular, denominado “Contrato de Compra e Venda”, onde declarou que em nome do seu representado AA, vende a si própria, pelo preço de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros). O valor patrimonial tributário do prédio em causa, apurado em 2018, era de € 129.757,60 (cento e vinte e nove mil, setecentos e cinquenta e sete euros e sessenta cêntimos). Por perícia efectuada nos presentes autos, o prédio foi avaliado em € 183.000,00 (cento e oitenta e três mil euros). 12ª. Refere ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/07/2019 (proc. n.º 2939/15.0T8STR.E1.S2), que “Tais pressupostos fácticos e jurídicos são distintos dos que estão em causa nos presentes autos, na medida em que, desde logo, nestes autos ficou por provar qualquer intenção do réu representante de prejudicar o autor, não podendo este Supremo Tribunal com base na matéria de facto singelamente provada, e limitado que está no que se refere à matéria de facto, extrair qualquer presunção ou formular um juízo que permita concluir por uma situação atentatória da boa-fé na execução da representação.” Tendo a situação sob recurso os mesmos pressupostos fácticos e jurídicos vertidos no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/07/2019 não poderia o Tribunal da Relação, extrair qualquer presunção ou formular um juízo que permitisse concluir por uma situação atentatória da boa-fé na execução da representação, por parte de Ré, Recorrente. 13ª. Tem sido unanimemente entendido que, também existe abuso dos poderes de representação quando o representante, embora actuando dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utilize conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado (Cfr. entre outros, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., págs. 248 e 249, Ennecerus Nipperdey, Tratado, tradução espanhola, 2ª ed., tomo I, vol. 2.º, pág. 270, Conselheiro Mário Brito, Anot. I, pág. 329, anotação ao art.º 269, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 658 e acórdãos do STJ de 13/2/2003, proferido no processo n.º 03B2201 e de 7/2/2006, no processo n.º 05A4285, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e da Relação do Porto, relatado também pelo ora Relator, de 27/1/2015, processo n.º 110/10.6TVPRT.P1, in www.dgsi.pt). 14ª. Escreve o Prof. Menezes Cordeiro: “Em termos mais gerais, o abuso de representação vem a ser o exercício dos inerentes poderes em oposição com a relação subjacente: com o que dela resulta, de modo directo ou por violação dos deveres de lealdade que ela postula” (In Tratado de Direito Civil, parte geral, V, reimpressão de 2011, pág. 112). 15ª. Ensina Helena Mota, que o está em causa no abuso de representação é um afastamento objectivo às directrizes impostas pelo representado e uma actuação que não serve notoriamente os seus interesses: em suma, um mau negócio, desde que isso resulte de um desvio claro do procurador, ainda que não intencional ou para servir interesses ocultos, às instruções que lhe foram fornecidas, ou aos fins genéricos queridos pelo representado com o negócio representativo (Cfr. Do Abuso de Representação, pág. 144). 16ª. Ou, nas palavras de Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, dentro do abuso cabem não só as actuações do representante contrárias ao fim para o qual o poder foi conferido, onde se incluem os negócios anormais ou extravagantes, mas também «atuações contrárias a “instruções ou vinculações internas” (…), onde o procurador se conduz ao arrepio de instruções para o exercício do poder ou mesmo de restrições deste não integradas no conteúdo da procuração; e atuações “desleais” (…), quando o representante utiliza ou aproveita os seus poderes para alcançar interesses próprios ou alheios ou, mais em geral, de modo contrário à boa fé. De uma outra forma, pode dizer-se que o abuso de representação consiste numa actividade que (objectiva e efectivamente) pospõe, à luz da relação interna e do princípio da boa fé, o interesse do representado. 17ª. Para averiguar da finalidade da representação, especialmente nos casos em que a procuração é outorgada também no interesse do representante (ou só no interesse dele) haverá que atender, sobretudo, ao teor do negócio que desencadeou a emissão da procuração e concedeu poderes representativos, porquanto o representado, em situações dessas, perde, praticamente, o poder de instruir o representante ou de lhe dar indicações. No caso da procuração no interesse comum, esta deverá ser concedida tendo em consideração um interesse próprio do procurador, na conclusão ou na execução do negócio que constitui a relação subjacente, tendo tais efeitos no regime da sua revogabilidade. 18ª. Tal interesse não pode ser um interesse que resulte pura e simplesmente de um estado psicológico, subjectivo do procurador. O interesse tem de resultar objectivamente da relação subjacente que deu lugar à outorga da procuração, constituindo tal condição para que, nos termos legais, a procuração possa ser considerada irrevogável. (Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Procuração Irrevogável, 2012, Almedina, pág. 83). 19ª. No confronto do negócio consigo mesmo com a figura do abuso de representação, entende a doutrina que o negócio consigo mesmo aproxima-se do abuso da representação, constituindo um caso particular da problemática do conflito de interesses. Neste releva per se, a possibilidade de um tal conflito, ou seja, a preterição dos interesses do representado aparece como de tal modo provável, o seu perigo tão iminente em face da especial configuração da situação que, o legislador prescindiu de apurar a sua concreta ocorrência, tendo-a por verificada in re ipsa. Isto ajuda a explicar a disparidade de tratamento legal em relação ao abuso da representação: de um lado, a ineficácia, do outro, a anulabilidade do negócio. (Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2014, UCP, pág. 633). 20ª. Isto é, há abuso dos poderes de representação quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes, em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado. (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 249) 21ª. No caso sub judice, a questão a decidir consiste em saber se o negócio de compra e venda, em relação ao qual é peticionada a respectiva declaração de ineficácia, nos termos e com o circunstancialismo resultante da matéria de facto, e atento o enquadramento das diversas figuras jurídicas envolvidas – procuração irrevogável, negócio consigo mesmo e abuso de representação – deve ser considerado como realizado em abuso de representação. 22ª. Com efeito, a figura do abuso de representação não prescinde da verificação de uma situação de abuso, pois, tal como no caso do abuso do direito (art.º 334º do CC) é requisito essencial que o direito exista e que só o seu exercício seja abusivo, pelo que, também no abuso de representação é indispensável que haja representação e que o representado tenha conscientemente excedido os seus poderes. (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 249 e 250).
23ª. Assim, ainda que parte da doutrina entenda que o abuso de representação parece não pressupor a consciência ou intenção do representante de prejudicar o dominus ou de se desviar da prossecução dos seus interesses (dentro de uma concepção objectiva, como também se defende para o abuso do direito), a verdade é que mesmo para tais autores, há casos-limite em que não se pode prescindir da consciência do abuso, uma vez que há actuações que só resultam em prejuízo do dominus, como consequência da intenção dolosa do representante, dando como exemplo, precisamente o caso deste ter como intento apropriar-se ulteriormente da prestação da contraparte. (Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2014, UCP, pág. 659)
24ª. No caso sub judice, não resulta da matéria de facto provada, qualquer elemento que demonstre ter a Ré actuado com intenção de prejudicar os AA ou que tenha actuado contra o interesse destes, sendo certo que a circunstância de lhe ter sido outorgada procuração, no seu interesse e irrevogável, para celebrar o negócio em causa, inclusive consigo mesmo, pelo preço e condições que entendesse, excluiria, em nosso entender, na falta de outros elementos, a possibilidade de ocorrer esse abuso.
25ª. O facto de o imóvel ter sido vendido à própria Ré, Recorrente por um valor que face ao valor actualizado do bem, se mostra discrepante em medida não desprezível, em relação ao que foi declarado na escritura, não permite, só por si, concluir ter havido abuso dos poderes de representação, os quais cingindo-nos ao teor da procuração permitiam que a venda fosse feita “pelo preço e condições” que a Ré entendesse.
26ª. A viabilidade da pretensão deduzida nos autos de ineficácia do negócio, com base no instituto do abuso de representação, careceria de plena demonstração por parte dos AA, de uma situação de contradição ou desrespeito dos poderes de representação que foram outorgados, a que – em nosso entender – acresceria a necessidade de prova da consciência ou intenção, por parte do representante, de atentar contra a vontade do representado.
27ª. No caso sub judice, nada disso se verificou. Da matéria de facto provada e não provada (confirmada pela Relação), não permite chegar a essa conclusão.
28ª. Aliás, o Tribunal de 1ª instância, não considerou o preço desajustado à realidade do valor do imóvel: “A R. vendeu o imóvel acima do respectivo valor patrimonial, valor esse apurado em 2018. (…) Indagou do valor patrimonial e afigura-se nos que tal é suficiente”, concluindo que, “Na verdade, até pode considerar-se que a sua conduta foi cautelosa, posto que um preço de venda maior, teria indiscutivelmente efeitos em matéria fiscal.
29ª. Em termos textuais e fácticos o que resulta dos autos é que a Ré, Recorrente actuou ao abrigo dos poderes de representação que lhe foram conferidos, vendendo, a si própria, o imóvel pelo preço e condições que entendeu fixar, nos termos da procuração que lhe foi outorgada e nos seus precisos limites, ficando por demonstrar que tenha ocorrido uma situação de abuso desses poderes.
30ª. Falece, pois, o Acórdão sob recurso, de por via do apelo ao caminho jurisprudencial trilhado neste aresto do Supremo, lograr obter a declaração de ineficácia do negócio celebrado, porquanto as dissonâncias fácticas subjacentes à emissão do juízo jurídico em causa, em cada um dos arestos, inviabilizam qualquer comparação.
31ª. Não estão, pois, verificados os pressupostos suficientes para considerar verificada a existência de uma situação de abuso de representação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 269º do Código Civil.
32ª. Deverá ser decidido como se decidiu, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14/10/2004 (In Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ -, ano XII, tomo III, pág. 52. E, no mesmo sentido citando-o, decidiu o acórdão deste Supremo de 17/12/2009, processo n.º 365/06.0TBALSB.C1.S1, “O negócio consigo mesmo, não sendo excedidos os poderes contidos na procuração, não coenvolve abuso de representação ou representação sem poderes, sancionados com a ineficácia em relação ao representado”.
33ª. Da matéria de facto dada como provada, o Acórdão da Relação sob recurso, concluiu que: “ …embora seja verdade que o falecido AA diligenciou no sentido de que as contas de que era titular passassem também a ser tituladas pela R, sua cunhada, tal ocorreu, para que esta as pudesse movimentar isoladamente, como resulta do ponto 17 dos factos provados, e não para que fizesse suas as quantias nelas depositadas, que se provou serem unicamente pertencentes ao falecido (cf. pontos 14 e 15 dos factos provadas), o que afasta qualquer presunção de contitularidade”. Acrescentando, ainda que: “está a R. obrigada a restituir à herança do falecido a quantia pedida de € 36.672,10, (…), não com base nas regras do enriquecimento sem causa, previstas no artigo 473º do Código Civil, como invocam os AA., que tem natureza subsidiária (cf. artigo 474º do Código Civil), mas com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, pois estão verificados os pressupostos exigidos no artigo 483º do Código Civil.” 34ª. No entanto, caso sub judice, não estamos, nem perante as regras do enriquecimento sem causa, nem perante a figura da responsabilidade civil extracontratual. 35ª. Não ocorre enriquecimento sem causa da Ré, Recorrente “…posto que a deslocação patrimonial a seu favor teve uma causa (…), a autorização para movimentação das mesmas”, conforme decidiu e bem, o Tribunal de 1ª instância. Como também, não existe qualquer fundamento para a responsabilidade civil extracontratual, conforme decidiu o Tribunal da Relação, dado que, a responsabilidade civil extracontratual, emerge da violação de normas que impõem deveres de ordem geral e, correlativamente de direitos absolutos do lesado (violação de normas gerais que tutelam interesses alheios, de deveres genéricos de respeito), violação essa que não se verificou no caso concreto. 36ª. É sabido que, em razão do número de titulares, as contas bancárias podem configurar-se como singulares ou coletivas, distinguindo-se na segunda espécie, as contas conjuntas e as contas solidárias. Enquanto nas contas conjuntas, a mobilização e disponibilidade dos fundos depositados exige a simultânea intervenção da totalidade dos titulares, nas contas solidárias basta a intervenção de qualquer dos titulares, indistinta e isoladamente, para proceder a qualquer acto que sobre elas incidam, mobilizando fundos, subscrevendo cheques ou acordos de pagamento, independentemente da autorização ou ratificação dos restantes contitulares. 37ª. Quer isto dizer que, independentemente da propriedade dos títulos depositados nas contas em causa, qualquer dos seus titulares estava legitimado a mobilizá-los, resgatando-os, isoladamente e sem qualquer intervenção do outro contitular. 38ª. A solidariedade numa conta bancária confere a qualquer dos contitulares uma ampla liberdade de atuação, permitindo-lhe fazer o que entender com os valores/títulos depositados, pelo que, ao abrirem uma conta nessas condições, aceitam tacitamente uma ilimitada liberdade recíproca na disposição de tais valores. Por isso, se diz que essa solidariedade pressupõe um mandato recíproco entre os credores, «um vínculo de mútua representação», que tem como fundamento o facto de cada credor agir em representação dos demais concredores, o que supõe uma relação de recíproca confiança (Paulo Cunha, Direito das Obrigações, Tomo 1, pág. 124). 39ª. As condições de movimentação, inicialmente contratadas, podem ser modificadas por solicitação dos seus titulares. 40ª. Foi o que fez, o falecido AA. Requereu a alteração de movimentação das suas contas, em ambas entidades bancárias. Assim, qualquer dos titulares, tinha o direito de dispor, como entender, de todas as somas ou valores em crédito das contas, sozinho, bastando a assinatura de um dos titulares para a sua movimentação, levantamento de todos os fundos e mesmo para o seu encerramento, independentemente de quem seja, de facto e de direito, o proprietário desses valores (José Maria Pires, Direito Bancário, vol. 2º, Editora Rei dos Livros, 1995, pág. 149). 41º. Assim, o falecido AA, titular (único) de duas contas bancárias, por si constituídas há mais de vinte anos (no Banco ... e das mesmas”. 42ª. Tendo ficado ainda provado que, “A Ré, quando efectuou os movimentos bancários nas contas do falecido, fê-lo por ser titular das contas bancárias, podendo, desta forma movimentá-las, (…)”, conforme matéria de facto provada no ponto 25. 43ª. Caso o falecido AA, não quisesse que a sua cunhada, Ré Recorrente, movimentasse isoladamente as suas contas bancárias, teria, eventualmente, modificado as condições de movimentação das mesmas, permitindo apenas que, para a movimentação das contas, fosse necessário a simultânea intervenção dos dois titulares. No entanto, não foi essa alteração que o falecido AA, requereu, quando se deslocou ao Banco ... e ao Banco .... 44ª. Pelo que, não podia o Tribunal da Relação, com base na matéria de facto singelamente provada, e limitado que está no que se refere à matéria de facto, extrair qualquer presunção ou formular um juízo que permita concluir pela responsabilidade civil extracontratual. 45ª. Deveria ter sido mantida, a sentença do Tribunal de 1ª Instância recorrida, na parte em que decidiu, que “não ocorre enriquecimento sem causa da R., posto que a deslocação patrimonial a seu favor teve uma causa, concretamente, (…), no caso das contas, a autorização para a movimentação das mesmas”. 46ª. E, deverá agora ser decidido, que não estamos perante a figura da responsabilidade civil extracontratual, por não ter havido violação de normas que impõem deveres de ordem geral e, correlativamente, de direitos absolutos do lesado, não havendo, lugar à restituição à herança do falecido, da quantia de € 36.672,10, por via da regra do enriquecimento sem causa. 47ª. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 258º, 261º, 265º, n.º 3, 269º ,342º, 483º e 487º do CC. 48ª. Assim, deve dar-se provimento ao presente recurso de revista, revogando-se o Acórdão da Relação. Contra alegaram os AA pugnando pela improcedência da revista e a confirmação do acórdão. /// Considerando que são as conclusões do recorrente que, em regra, delimitam o objecto do recurso, afora as de conhecimento oficioso, importa saber se a Ré: - Agiu com abuso de representação; - Deve ser condenada a restituir à herança do falecido a quantia de €36.672,10. Fundamentação. É a seguinte a matéria de facto dada como provada: 1. No dia 30 de Julho de 2019, na freguesia e concelho ..., faleceu AA, no estado de solteiro, maior, natural da freguesia ... concelho ..., onde tinha a última residência habitual na Rua ..., .... 2. O Falecido deixou testamento, outorgado em 22 de Abril de 2019, no Cartório Notarial da Dra. FF, sito na Avenida ..., ...”, Bloco ..., ..., ..., em ..., iniciado a folhas vinte e oito, do livro de testamentos públicos e escrituras de revogação número ..., pelo qual declarou: - “Que institui seus únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais: - CC, divorciada, NIF ..., residente nos ..., Lote ...4..., ...00 ..., portadora do Cartão de Cidadão número ..., emitido pela República Portuguesa, válido até ../../2019; - DD, casado, NIF ..., residente na Rua ..., ..., ..., ..., concelho ..., portador do Cartão de Cidadão número ..., emitido pela República Portuguesa, válido até ../../2020; e - BB, casado, NIF ..., residente na Rua ... ..., portador do Cartão de Cidadão número ..., emitido pela República Portuguesa, válido até .../.../2020… 3. A Ré era sua cunhada por via do casamento com um irmão do falecido. 4. O Falecido era dono do prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...65, da freguesia ..., por o haver adquirido, por compra, em 1976, a GG, HH, II, JJ e KK, aquisição essa que se encontrava registada a seu favor através da Inscrição AP.6 de 1976/06/03. 5. Prédio esse onde sempre manteve o seu domicílio e residência, designadamente, no piso correspondente ao R/C, apesar de, nos últimos tempos, devido à sua idade avançada e debilidade física e estado de saúde, ter passado a residir na Santa Casa da Misericórdia .... 6. No dia 7 de Junho de 2019, o falecido AA declarou, por escrito e sob o título de Procuração: “(…) que constitui sua bastante procuradora, EE (…) a quem confere os necessários poderes para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os seus bens, assinando tudo o que for necessário aos aludidos fins e desse modo: a. Dar ou tomar de arrendamento, ceder ou tomar a exploração de quaisquer prédios de qualquer natureza, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas, prestações, montantes e condições que entender convenientes, pagar ou receber rendas ou prestações, passar e assinar recibos, renovar, revogar, prorrogar, denunciar ou rescindir os respectivos contratos; b. Receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ao outorgante, por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações; depositar e levantar capitais em bancos, instituições bancárias, casas bancárias e outros estabelecimentos de crédito, assinando recibos ou cheques; c. Usar, desistir ou renunciar do direito de preferência que assista ao outorgante em qualquer acto ou contrato; d. Representá-lo junto de quaisquer Entidades Públicas, Privadas ou Administrativas, designadamente, nas Conservatórias do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel, IMT, Cartórios Notariais, Câmaras Municipais, Serviços de Segurança Social e da Caixa de Previdência, Serviços on-line do Balcão do Empreendedor, Serviços Municipalizados, Governo Civil, Telecomunicações, Empresas de Distribuição e Comercialização de Energia ou outra, Estações de Correios, Companhias de Seguros, Bancos e nos Serviços de Finanças liquidar impostos ou contribuições, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo título de anulação e as suas correspondentes importâncias, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los; e. Apresentar relações de bens ou mapas de inquilinos, podendo ainda prestar quaisquer declarações complementares; f. Prometer comprar e prometer vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis; g. Para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261 do Código Civil; h. Fazer ou aceitar confissões de dívida, pelos montantes, ao juro, condições, obrigações e garantias que entender mais convenientes; i. Fazer ou aceitar cessões de crédito e dá-lo por notificado naquelas em que ele representado seja interessado, aceitar e endossar letras representativas de operações bancárias ou de empréstimos de capitais entre particulares; distratar contratos de mútuo, recebendo os capitais mutuados e deles prestar as correspondentes quitações, podendo autorizar o cancelamento, total ou parcial de quaisquer inscrições hipotecárias que hajam sido feitas a favor dele outorgante; j. Com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extrajudiciais, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações; k. Para prestar declarações de cabeça de casal, apresentar relação de bens com a indicação dos respectivos valores, efectuar pedidos de adjudicação de bens, responder a qualquer reclamação deduzida contra a relação de bens, representá-lo na conferência preparatória e na conferência de interessados e, de um modo geral, para o representar em todas as fases subsequentes do processo de inventário; l. Receber citações e quaisquer necessárias notificações, aceitar doações puras, condicionais ou onerosas, com ou sem encargos; m. Proceder a quaisquer actos de registo predial ou de propriedade automóvel, provisórios ou definitivos, cancelamentos, ou averbamentos, fazendo declarações complementares se necessário; n. Representá-lo em juízo, usando para o efeito, de todos os poderes forenses em direito permitidos, incluindo os poderes especiais para desistir, transigir ou confessar.”, constituindo tal documento o junto à p.i. sob o nº 4, aqui se dando por reproduzido o seu teor. 7. Sobre o documento intitulado de “Procuração” supra referido incidiu termo de autenticação, lavrado na referida data de 7 de Junho de 2019 no Cartório Notarial a cargo da Notária LL, situado na Rua ..., ..., em ..., perante a colaboradora do referido Cartório Cristiana de Jesus Nunes da Conceição, autorizada para o efeito pela referida Notária. 8. Através de documento particular, denominado “Contrato de Compra e Venda”, outorgado em 29 de Julho de 2019, a Ré declarou que “(…) em nome do seu representado AA, vende a si própria, pelo preço de CENTO E TRINTA MIL EUROS, já recebidos, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número quatro mil trezentos e sessenta e cinco, da freguesia ..., inscrito a favor do vendedor, pela inscrição de aquisição AP. ... de três de Junho de mil novecentos e setenta e seis, à data da inscrição encontrava-se omisso na matriz, actualmente inscrito sob o artigo ...36, com o valor patrimonial tributário de €:129 757,60.” 9. Nesse documento particular, declarou ainda a Ré: “(…) nas qualidades em que outorga, que o preço foi integralmente pago, em várias prestações, antes da entrada em vigor da Lei n.º 89/2017, de 21 de Agosto, em datas que não sabe precisar (…)”. 10. Sobre o documento mencionado supra, intitulado “Contrato de Compra e Venda”, incidiu termo de autenticação, lavrado na referida data de 29 de Julho de 2019, perante MM, licenciada em solicitadoria, com a cédula profissional n.º ...76, com Balcão Único de Solicitador, situado na Rua ..., ..., Lote ..., loja ..., ... .... 11. Com base no título de aquisição supra mencionado, foi requerido o registo do prédio urbano em causa no nome da Ré, por compra ao falecido AA, através da AP. ...98 de 2019/07/31, registo esse que foi elaborado como provisório por dúvidas, nos termos do art.º 70º do Código do Registo Predial, por despacho proferido pelo Conservador de Registos e, nomeadamente, pelo facto de não se mostrar cumprida a obrigação de especificar a forma de pagamento do preço imposta pelo art.º 47º, n.º 5 e 6 da Lei n.º 89/2017, de 21 de Agosto. 12. O falecido, à data da outorga da procuração à Ré, tinha 82 anos de idade, era solteiro e sem descendentes. 13. O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número quatro mil trezentos e sessenta e cinco, da freguesia ... trata-se de uma moradia geminada, composta por R/C com 3 divisões, copa-cozinha, casa de banho, hall e despensa e 1º andar, com 3 divisões, copa-cozinha, hall e marquise, com a área total de 168 m2, perto do centro da vila de ... e com vista para a ria de ..., encontrando-se inscrito na matriz predial sob o artigo ...36 com o valor patrimonial tributário de € 129.757,60, apurado em 2018, tendo sido, entretanto, avaliado, por perícia efectuada nos presentes autos, em € 183.000 e ainda pela empresa imobiliária E..., a pedido dos AA., em € 285.000 (resposta aos artºs 16º a 20º da p.i. e 10º da contestação). 14. Até ao pretérito mês de Junho de 2019, o falecido era titular (único) de duas contas bancárias por si constituídas, há mais de vinte anos, nomeadamente, a conta de depósitos à ordem no Banco ... n.º ...06 e a conta de depósitos à ordem no Banco ... n.º...01. 15. Os valores existentes naquelas contas pertenciam exclusivamente ao falecido, sendo resultantes das suas poupanças e pensão de reforma. 16. Desde meados do mês de Junho de 2019, nomeadamente, a partir do dia 13, em relação à conta do B..., e a partir do dia 14, relativamente à conta do Banco ..., a Ré passou a ser titular das mencionadas contas bancárias que, assim, passaram a ter movimentação solidária. 17. O falecido AA, deslocou-se junto das entidades bancárias referidas, requerendo que a sua cunhada, ora Ré, passasse a ser titular das suas contas bancárias, por forma a que a Ré as pudesse movimentar isoladamente. 18. Na conta do B..., à data de 12 de Junho de 2019, o falecido era titular do valor global de € 34.124,03 (trinta e quatro mil cento e vinte e quatro euros e três cêntimos), correspondente a: - Um depósito à ordem, com o saldo disponível no valor de € 15.185,03 (quinze mil cento e oitenta e cinco euros e três cêntimos); e - Um depósito a prazo, no valor de € 18.939,00 (dezoito mil novecentos e trinta e nove euros). 19. Na conta do Banco ..., à data de 13 de Junho de 2019, o falecido era titular do valor global de € 8.611,92 (oito mil seiscentos e onze euros e noventa e dois cêntimos), assim discriminados: - Um depósito à ordem, com o saldo disponível de € 4.216,13 (quatro mil duzentos e dezasseis euros e treze cêntimos); - Um depósito denominado “...”, no valor de € 3.159,36 (três mil cento e cinquenta e nove euros e trinta e seis cêntimos); e - Um depósito denominado “...”, no valor de € 1.236,43 (mil duzentos e trinta e seis euros e quarenta e três cêntimos). 20. Em relação à conta titulada no B..., Nos dias 13, 19 e 28 de Junho e nos dia 4, 23 e 29 de Julho de 2019, procedeu a ré a vários levantamentos em ATM que totalizaram a quantia de € 1.110,00; no dia 1 de Julho fez uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do montante de € 1.003,24; no dia 4 de Julho de 2019, deu instruções no Banco para a mobilização do depósito a prazo, no montante de € 18.839,00 e, nesse mesmo dia, ordenou uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do valor de € 27.686,03, ficando o saldo da conta bancária do falecido reduzido à quantia de € 5.000,24. 21. No que diz respeito à conta existente no Banco ..., no dia 4 de Julho de 2019, a Ré deu instruções ao banco para a mobilização total do depósito “...”, no valor de € 3.159,36 e do depósito “...”, no valor de € 1.236,43, e, nesse mesmo dia, ordenou uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do valor de €:8.000,00, ficando, nessa data, o saldo da conta bancária do falecido reduzido à quantia de € 937,41. 22. A 30 de Julho de 2019, data do óbito de AA, as contas bancárias apresentavam os seguintes saldos: - No Banco ..., a quantia de € 4.696,36 (quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e seis cêntimos); - E, no Banco ..., a quantia de € 1.367,49 (mil trezentos e sessenta e sete euros e quarenta e nove cêntimos). 23. O imóvel em causa nos autos, sito na Rua ..., ..., em ..., encontra-se parcialmente arrendado, no primeiro andar, para fins habitacionais, a NN, pagando esta a renda mensal de €:184,79. 24. A Ré, com o Contrato de Compra e Venda junto do mencionado prédio, liquidou os impostos devidos. 25. A Ré, quando efectuou os movimentos bancários nas contas do falecido, fê-lo por ser titular das contas bancárias, podendo, desta forma movimentá-las, e não invocou os poderes que lhe foram conferidos na procuração outorgada a 07/06/2019. Fundamentação de direito. No uso dos poderes de representação que pelo falecido AA lhe haviam sido conferidos através de procuração, a Ré, por documento particular intitulado “Contrato de Compra e Venda”, autenticado (nº10 supra), declarou, em nome do seu representado AA, vender a si própria, pelo preço de €130.000,00, o prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua ..., ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...65, da freguesia ... e aí inscrito a favor do vendedor. A herança indivisa aberta por óbito de AA, representada pelos AA, instaurou a presente acção pedindo, a título principal, a declaração de ineficácia em relação à herança da venda do imóvel, imputando à Ré abuso de representação (art. 269º do CCivil); subsidiariamente, a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de €130.000,00, preço de venda declarado. Na 1ª instância, foi julgado improcedente o pedido principal e procedente o subsidiário, com a condenação da Ré pagar à Autora a quantia de €130.000,00, com juros de mora. Da sentença apelaram ambas as partes. A Relação ... julgou improcedente o recurso da Ré, e procedente o da Autora, tendo declarado a ineficácia em relação à herança da venda do imóvel objecto do contrato de compra e venda supra identificado, declarou a Autora a legítima proprietária do imóvel e ordenou o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré. Continuando inconformada, a Ré interpôs recurso de revista, no qual defende, no essencial, a validade do negócio, por da matéria de facto não ser possível concluir que tenha agido com abuso de representação. É esta a questão que nos cabe apreciar em primeiro lugar. Ao declarar vender a si própria o imóvel em causa nos autos, a Ré celebrou um negócio consigo mesmo. Como diz o Professor Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, pag. 334, “chama-se negócio consigo mesmo o caso em que o representante pratica um acto ou celebra um negócio no qual intervém numa dupla qualidade de representante de ambas as partes, ou simultaneamente em nome pessoal e em representação de outra parte.” Esta prática não é proibida, mas suscita desconfiança pelo perigo de mistura ou conflito de interesses que envolve. Assinalam a este propósito os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, I, pag. 243, “que os perigos de tal contrato são evidentes: o representante sentir-se-á tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus.” Nesta conformidade, o art. 261º, nº 1 do CCivil preceitua que “é anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses.” Por conseguinte, a anulabilidade do negócio é excluída sempre que o representado tenha especificamente consentido na celebração. No caso vertente, esse consentimento foi prestado como resulta do teor da procuração, em que o falecido conferiu poderes à Ré para, “em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261 do Código Civil” (alínea g) da procuração, ponto 6), estando, assim, afastada a anulabilidade do negócio. Afastada a anulabilidade do negócio, importa ver se a Ré agiu com abuso de representação. A representação consiste na realização de um negócio jurídico por uma pessoa em nome de outra: actuando aquela em nome desta, nos limites dos poderes que detenha, o negócio repercute-se diretamente, produz de imediato os seus efeitos jurídicos na esfera do representado. É isto que resulta do art. 258º do CCivil, sob a epígrafe Efeitos da representação. O acto de atribuição voluntário da poderes designa-se por procuração: “Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes de representação” – art. 262º do CCivil. Na procuração legitima-se o representante a actuar perante terceiros e se surpreende a relação externa da representação, aquela que se projecta para o exterior (Acórdão do STJ de 05.03.1996 (Torres Paulo), CJ AcSTJ, ano IV, tomo 1, pag.114. A figura do abuso de representação está prevista no art. 269º do CCivil, segundo o qual “o disposto no artigo anterior é aplicável no caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.” Ou seja, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pag. 249, “há abuso de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado.” Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, pag. 339, “o abuso da representação pressupõe que quem actua tenha efectivamente poderes de representação – o que claramente distingue da falta de poderes. O que distingue o uso do abuso dos poderes de representação é o modo como são exercidos. O abuso é um uso incorrecto, contrário ao que devia ser.” Pronunciando-se sobre um caso em que se suscitava o abuso de representação, o Acórdão do STJ de 25.06.2013, Sumários, 2013, pag. 459, teceu as seguintes considerações que pelo seu interesse transcrevemos aqui: “I - Se a outorga de poderes representativos implica uma relação de fiducia do representado no representante, confiando aquele que os seus interesses são eficazmente defendidos, mais exigente deve ser a actuação do representante a quem, além da representação, são conferidos poderes para negociar consigo mesmo, sendo aqui claro que, a um tempo, representa o emitente da procuração e ele mesmo – evidente situação de auto-contrato; II – É condição de validade do negócio consigo mesmo, que não haja conflito de interesses no acto de constituição ou conclusão do negócio. O representante deve agir com imparcialidade, probidade, moralidade e fiducia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado; III – O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação. Não pode o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta, acautelando apenas os seus próprios interesses; compete-lhe, simultaneamente, a defesa dos interesses do contraente que representa; IV – Na execução do contrato, autorizado pela procuração não estava o procurador dispensado de actuar segundo as regras da boa-fé – art. 762º, nº 1 do CCivil; V – O facto de a procuração autorizar, muito latamente, a procuradora a alienar a fracção “pelo preço, condições e cláusulas que achasse por convenientes podendo negociar consigo mesmo”, não poderia valer como carta branca para um negócio que descurasse o interesse do representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários, observada a exigível ética negocial, postulada pela actuação de boa fé.” Com propriedade, escreveu-se no já citado Acórdão do STJ de 05.03.1996: “O representante não pode ser o único juiz dos interesses em conflito; a sua actuação não pode prejudicar o representado – ver Vaz Serra, RLJ, ano 91 (…). Por isso, só a venda pelo preço real do mercado garante a lealdade do comportamento que o representante tem de ter, para poder, de boa fé, gerir a conflitualidade dos interesses em presença – representado e terceiro - de modo a estabelecer o necessário equilíbrio.” Isto dito, revertamos ao caso dos autos. - Em 07.06.2019, o falecido AA, de 82 anos, solteiro, sem descendentes nem ascendentes, constituiu a Ré sua procuradora, conferindo-lhe, entre outros, os poderes de - “Prometer comprar e prometer vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis; - Para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261 do Código Civil; - Á data, o AA era dono do prédio urbano destinado à habitação, identificado supra em 4), que constituiu a sua habitação até passar a residir na Santa Casa da Misericórdia ..., devido à sua idade avançada e debilidade física e estado de saúde; - No uso da procuração, a Ré, por documento particular de 29.07.2019, posteriormente autenticado, declarou vender a si própria o identificado imóvel pelo preço de €130.000,00; - No mesmo documento, declarou ainda a Ré: “(…) nas qualidades em que outorga, que o preço foi integralmente pago, em várias prestações, antes da entrada em vigor da Lei n.º 89/2017, de 21 de Agosto, em datas que não sabe precisar (…)”; - O imóvel em causa nos autos foi objecto de perícia nos autos, tendo sido avaliado em €183.000,00; - AA faleceu no dia … .07.2019. Destes factos resulta que a Ré, em representação do falecido AA, vendeu a si própria o imóvel que àquele pertencia, sem, aliás, ter feito prova de ter pago o preço declarado, por um valor de cerca de 70% do seu valor de mercado. Não se ignora que o valor de um bem não é um dado objectivo e inalterável, antes sendo susceptível de alguma variação em função da oferta e da procura. É, além disso, um facto notório, a constante subida do imobiliário nos últimos anos. Sem embargo, a venda por um preço que ronda os 70% do valor que cerca de um ano depois foi atribuído ao imóvel não pode deixar de ser considerado um mau negócio para o representado e, concomitantemente, um bom negócio para a Ré. Daí a conclusão de que aquela agiu com abuso de representação, por manifestamente ter descurado o interesse do representado, acautelando sobretudo os seus próprios. A decisão da Relação neste particular não merece, pois, censura, sendo de confirmar. Insurge-se ainda a Recorrente contra o acórdão na parte em que a condenou a restituir à herança a quantia de € 36.672,10, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual nos termos do artigo 483º do Código Civil. Aquele dinheiro era propriedade do falecido, estava depositado em duas contas bancárias, uma domiciliada no B... e outra no Banco ..., tituladas por aquele. Em Junho de 2019, o falecido deslocou-se às agências bancárias onde tinha as suas contas para nomear a Ré, sua cunhada, titular das aludidas contas, por forma a que as pudesse movimentar. As contas passaram, assim, ser solidárias. O depósito solidário é aquele em que qualquer dos credores (depositantes ou titulares da conta), tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, ou seja, o reembolso de toda a quantia depositada e em que a prestação assim efectuada libera o devedor (o banco depositário) para com todos eles (art. 512º do Cód. Civil). (Do contrato de depósito bancário, pag. 131, Paula Ponces Camanho). Sucede que entre 13 de Junho e 4 de Julho de 2019, a Ré movimentou a débito as contas em causa, transferindo para uma outra conta por si titulada um total de €36.672,10. Na contestação, a Ré começou por alegar que os levantamentos e transferências que fez destinaram-se a acudir a despesas/ necessidades do falecido. No recurso, conclusões 34ª a 46ª, a Ré sustenta a legalidade do seu comportamento dizendo que estava autorizada pelo falecido a movimentar as contas, pelo que podia livremente dispor dos valores nelas creditados. É manifesto que não lhe assiste razão. Na estrutura e funcionalidade da conta solidária, cada um dos titulares fica a ter, em relação ao banco, o direito de dispor, como entender, de todas as somas e valores em crédito da conta, podendo desta forma, separadamente e sozinho, retirar a totalidade ou parte das somas ou valores. E isto, independentemente de quem seja de facto e juridicamente o proprietário desses valores. Esta distinção – a de que a natureza solidária da conta releva apenas nas relações externas entre os seus titulares e o banco, quanto à legitimidade da sua movimentação a débito e pode nada ter a ver com o direito de propriedade das quantias depositadas – é pacificamente aceite. O Supremo Tribunal de Justiça tem constantemente decidido que a titularidade da conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo a um terceiro. (cf. Acórdãos de 11.10.2005, P. P04B1464, de 22.02.2011, P. 1561/07, de 04.06.2013, P. 226/11, e de 15.11.2017, P. 879/14, consultáveis em www.dgsi.pt). No Acórdão de 04.06.2013 (Alves Velho), decidiu-se expressamente: “Apesar de qualquer dos titulares de uma conta de depósito à ordem ter, perante o banco, o direito de dispor da totalidade do dinheiro que constitui o objecto do depósito, na referida esfera patrimonial só se radica um direito próprio sobre o numerário se, efectivamente, lhe couber, como proprietário, qualquer parte no saldo de depósito, e só dentro dos limites dessa parte.” No caso vertente, provou-se que os valores existentes nas contas, primeiramente tituladas pelo falecido e depois também pela Ré, “pertenciam exclusivamente ao falecido, sendo resultantes das suas poupanças e pensão de reforma”. (nº 15). Ter a Ré sido autorizada a movimentar as contas, significou apenas isso, não o direito de se apropriar dos valores nelas depositados, relativamente aos quais não tinha nenhum direito. Donde a conclusão de que a Ré se apropriou, em benefício próprio, de dinheiro que lhe não pertencia, de forma ilícita, assim incorrendo em responsabilidade civil, como bem decidiu a Relação. Com o que improcede também este fundamento do recurso. Do exposto, poderá extrair-se que: I - Na representação voluntária, que é formalizada através de procuração (art. 262º do CC), o representante atua em nome do representado, devendo agir com imparcialidade, probidade, e fiducia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, sob pena de incorrer em abuso de representação; II - A autorização para vender um imóvel, “pelo preço, cláusulas e condições que entender mais conveniente, podendo negociar consigo mesmo”, não equivale a carta branca para no negócio descurar o interesse do representado, que naturalmente pretenderia que a venda fosse feita pelo valor corrente de mercado; III - Age com abuso de representação o procurador que celebra escritura de venda do imóvel consigo próprio por um preço de cerca de 70% do valor de mercado; IV - O negócio feito com abuso de representação é ineficaz em relação ao representado, ou seus herdeiros em caso de falecimento daquele (arts. 268º e 269º do CCivil); V – Ser colocado como co-titular de uma conta bancária solidária - modalidade em que qualquer dos titulares pode, sozinho, proceder à movimentação da conta – significa apenas que se ficou autorizado a movimentar a conta, não o direito de se apropriar dos fundos nela depositados se os mesmos pertenciam exclusivamente ao outro titular. Decisão. Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido. Custas pela Recorrente. Lisboa, 21.04.2022 Ferreira Lopes (relator) Manuel Pires Capelo Tibério Silva |