Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2368/22,9T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
PRINCÍPIO DO PEDIDO
NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
SENTENÇA DE CONDENAÇÃO GENÉRICA
PRESSUPOSTOS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DA AUTORRESPONSABILIDADE DAS PARTES
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/13/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário : I – Respeitado o núcleo factual que constitui a causa de pedir e demonstrada a prática pela Ré do acto ilícito que provocou danos na esfera jurídica do lesado, a condenação no montante a apurar em liquidação, nos termos do artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, uma vez não provada a sua expressão pecuniária concreta, não constitui qualquer nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil, ou violação do princípio do pedido proibida no artigo 609º, nº 1, do mesmo diploma legal.

II – As presunções judiciais utilizadas pelo julgador, não constituindo meios de prova mas simples ilações retiradas de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos, não são, via de regra, sindicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo os casos da sua manifesta ilogicidade ou existindo violação de qualquer regra do direito probatório material.

III – Havendo os factos relativos à obrigação de indemnizar sido praticados quando já se extinguira o vínculo contratual que uniria a senhoria à arrendatária, a responsabilidade imputada à Ré, ex-locatária, só pode ter lugar no âmbito da responsabilidade extracontratual (e não contratual), sendo o cometimento do acto ilícito absolutamente alheio e autónomo relativamente à relação contratual que antes fora mantida entre as partes.

IV – É a Ré responsável, nos termos gerais do artigo 483º, nº 1, do Código de Processo Civil, por haver incumbido alguém de entrar no imóvel a que não deveria ter acesso por não dispor de título algum para tal, e daí ter retirado um determinado conjunto de bens, provocando em consequência desta sua não autorizada e clandestina actividade os danos em causa (nos tectos e paredes).

V – Não havendo a A. concretizado em que se traduzia, no plano estritamente factual, o conceito amplo, vago e genérico de “extensos danos nos tectos e nas paredes” que utilizou no artigo 9º da petição inicial, tal significa que, formulada nestes termos abstractos a dita referência, não será viável proceder conscienciosamente à sua quantificação em sede de futura liquidação.

VI - Será, portanto, necessário, por imprescindível, saber previamente em que é que consistiram os tais “extensos danos em tectos e paredes” para após isso se averiguar em que consiste a respectiva expressão pecuniária para efeitos indemnizatórios, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil, cumpre ampliar a matéria de facto de modo a apurar-se, em termos rigorosos e concretizados, quais são especificadamente os danos em tectos e paredes aceites como demonstrados tanto na decisão de 1ª instância, como no acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

Velvet Rain, Ldª, com sede em ..., instaurou acção declarativa contra EmergePrestígio, S.A., com sede em ..., AA, residente em ..., e BB, residente em ....

Essencialmente alegou:

É proprietária da fracção autónoma que identifica, a qual foi dada de arrendamento à 1ª R. até ao dia 30 de Junho de 2021, data em que, na sequência de transacção judicial, o contrato foi revogado.

No dia 2 de Julho de 2021, a autora tomou conhecimento que, no dia 30 de Junho, dois indivíduos, sob ordens expressas da 1ª, 2º e 3ª réus, haviam vandalizado e furtado os partes integrantes e/ou componentes do arrendado que eram propriedade da autora, tendo sido a ré BB quem deu ordens ao funcionário da 1ª ré, de nome CC, para entregar as chaves do arrendado aos indivíduos referidos, coisa que este fez.

Para repor o locado no estado em que estava antes dos actos praticados pelos réus é necessário proceder às obras e à compra de materiais, o que acarreta o custo da quantia de € 45 445.30.

Concluiu pedindo que os réus sejam solidariamente condenados a pagarem-lhe a quantia de € 45.445,30, mais juros desde a citação até integral pagamento.

Os réus contestaram, invocando a ilegitimidade dos 2º e 3º réus.

Mais alegaram que:

O locado foi entregue pela 1ª ré à autora em 30 de Junho de 2021, deixando de ter qualquer acesso ao mesmo a partir da referida data.

O locado foi entregue em boas condições de conservação.

A 1ª ré nunca retirou do locado qualquer bem que não fosse da sua propriedade e da qual fosse o único proprietário.

Jamais qualquer dos réus destruiu ou subtraiu qualquer bem.

Jamais se deu qualquer ordem a terceiros para vandalizarem o imóvel ou subtraírem bens à autora.

Aquando da celebração do contrato de arrendamento o imóvel encontrava-se totalmente degradado.

Foi após a celebração do contrato de arrendamento que a 1ª Ré procedeu à execução no imóvel de diversas obras custeadas por si.

Quando a 1ª Ré procedeu à entrega à autora do locado, que o aceitou, o locado foi restituído em melhor estado do que aquele em que o locado havia sido recebido da autora no início do arrendamento, em normal estado de conservação.

A existirem danos e prejuízos no locado, cuja reparação seria da responsabilidade da arrendatária, a mesma sempre teria de ser interpelada, o que a autora não fez.

O crédito de que a autora se vem arrogar é inexistente, enquadrando-se a sua pretensão no regime do abuso do direito.

A autora respondeu, defendendo inexistir ilegitimidade passiva e abuso do direito.

Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 10 de Maio de 2024, que julgou a presente acção improcedente.

A A. apresentou recurso de apelação, o qual veio a ser julgado parcialmente procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 12 de Novembro de 2024, nos seguintes termos:

“(…) condena-se a 1ª R. a pagar ao A. a quantia que se liquidar em sentença relativamente aos danos provocados nos tectos e paredes do locado, mais juros de mora à taxa legal desde a citação”.

Veio a Ré interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

I- INTRÓITO:

I. A Recorrente vem arguir a nulidade do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, 2.ª Secção, ao abrigo do disposto nos artigos 615. º, n.º1, alíneas b) e d), 666. º, 674.º, n. º1, als. a), b) e c) do Código de Processo Civil.

II. O objeto do recurso de impugnação é delimitado pelo n. º1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

III.No caso sub iudice, conforme se demonstrará, o douto acórdão recorrido é nulo, em virtude de não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão adotada e pelo facto de se ter pronunciado sobre questões de que não podia tomar conhecimento (artº 615º nº 1 als. b) e d)).

IV.Para além disso, o douto acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade, porque encerra no seu texto, ambiguidades e obscuridades que o tornam ininteligível, conforme adiante se demonstrará

II- DA NULIDADE POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO PEDIDO:

V. O pedido da Autora, ora Recorrida, perfazia um total de € 45.445,30.

VI.Sob outro prisma, em sede de apelação, veio a Recorrente, ora Recorrida, pedir a condenação dos Réus “... no pedido, ou, subsidiariamente, (...) no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na quantia de 6 057,36€”.

VII.O Acórdão recorrido, ao decidir pela condenação da ora Recorrente no pagamento de uma quantia a liquidar em sentença, alterou os limites objetivos do litígio, em manifesta afronta ao quadro jurídico-processual aplicável.

VIII. O n. º1 do artigo 3.º do Código de Processo Civil dispõe que “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.”

IX.Complementarmente, o n. º1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil determina que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”.

X. Os referidos normativos impõem ao tribunal o respeito pelos limites da pretensão deduzida em juízo pela parte interessada, salvaguardando, assim, os valores da estabilidade da instância (artigo 260.º do Código do Processo Civil) e a imparcialidade do julgador.

XI.Na petição inicial, a ora Recorrida limitou-se a formular um pedido específico de condenação das Rés no montante de €45.445,30, a título de indemnização pelos danos alegadamente sofridos pelas condutas (inexistentes) dos outrora Réus.

XII.Em sede de apelação, a aqui Recorrida alterou substancialmente os limites objetivos do pedido inicialmente formulado, ao solicitar, além da quantia inicialmente peticionada:

a) Subsidiariamente, a condenação das Rés no que vier a ser liquidado em sentença;

b) E, sem prejuízo, a condenação imediata na quantia de 6.057,36€, alegadamente devidos pelas obras realizadas no imóvel.

XIII. Nos termos do disposto no n. º2 do artigo 265.º do Código do Processo Civil, “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.”.

XIV. Nestes termos, é irrefutável que as novas pretensões deduzidas pela Recorrida em sede de apelação configuram uma ampliação inadmissível do pedido.

XV.O Tribunal a quo condenou a Recorrente no pagamento da quantia que vier a ser liquidada em sentença relativamente aos danos provocados nos tectos e paredes do locado.

XVI. o Acórdão recorrido extravasou, sem qualquer fundamento, os limites do pedido formulado em 1.ª instância, onde o quantum peticionado foi liquidado e fixado pela Autora, ora Recorrida.

XVII. Não tendo a Autora, atendendo ao seu petitório e à forma como expôs a a sua causa de pedir, dificuldades aparentes em quantificar o seu pedido, nunca tendo peticionado nos autos que o mesmo viesse a ser liquidado. É que a Autora não peticionou a simples reparação dos danos. A Autora exigiu a condenação da Ré no pagamento de uma determinada quantia por si determinada.

XVIII. Assim, ao decidir pela condenação da Ré – ora Recorrente -, no montante que viesse a ser liquidado como sendo o custo da reparação de tectos e paredes, em sede de liquidação de sentença, a Relação ao decidir nos termos que supra se relataram, infringiu o disposto nos artigos 3, n.º1 e 609.º, n. º1 do Código de Processo Civil.

XIX. E, por conseguinte, violou os ditames do princípio do pedido.

XX. Encontra-se o Acórdão recorrido ferido de nulidade, por violação do disposto nos artigos 3, n. º1, 265, n. º2 e 609, n. º1 do Código de Processo Civil.

III-DA VIOLAÇÃO DA REGRA ADJETIVO-PROCESSUAL PREVISTA NO ART. 662. º CPC:

XXI. De facto, a Relação tem, em sede de apreciação do recurso sobre a decisão da matéria de facto, acesso a todos os meios de prova que foram produzidos e aos que foram prestados oralmente.

XXII. O julgamento da matéria de facto na primeira instância continua a ser o “palco principal” da definição da factualidade provada e não provada. É o resultado desse julgamento que condiciona o resultado da acção que depois, em segunda linha, possibilitará a integração jurídica.

XXIII.É na primeira instância que se reúnem, as ideias condições para o exercício da livre apreciação da prova: é o momento em que coexiste a imediação, a oralidade e a concentração.

XXIV.E, como ensina Lebre de Freitas: “o princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (...) é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém–colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.”.

XXV.Nos seus doutosargumentos, o Tribunal ad queminfelizmente,esqueceu o valor ético que fundou a anterior decisão.

XXVI.Apesar da atual amplitude da Relação face ao julgamento da matéria de facto, quem continua a estar numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.

XXVII.“Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a atividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.

Aliás, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respetivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14. Ora se a audição de uma gravação permite fruir com fidelidade aqueles 7% de capacidade de influência exercida através da palavra e ainda, mas nem sempre, os 38% referentes ao tom de voz, sobram os 55% referentes à fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, a que o tribunal de 2.ª Instância nunca terá acesso.

É que sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e das quais, por isso, o tribunal de recurso nunca se aperceberá, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa.

Isto é, a perceção dos depoimentos é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência direta nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente. Ou como se o depoimento de uma testemunha fosse para ser considerada com o rigor de uma escritura de um notário”

XXVIII. No uso destes argumentos, cumpre dizer que o art. 662.º CPC não pode ser entendido como a concessão de um poder discricionário à Relação.

XXIX.Cremos que a modificabilidade da decisão de facto só se justifica “se a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior impuserem uma decisão diversa” (art. 662.º, n.º1 CPC).

XXX. O n.º1 do art. 662.º CPC usa a formulação “impuserem decisão diversa”.

XXXI.Ou seja, enuncia um poder-dever de intervenção da Relação que tem de obrigatoriamente intervir quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior impuserem uma decisão diversa (vertente positiva do poder-dever) e está proibida de intervir quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior não impuserem uma decisão diversa (vertente negativa do poder-dever).

XXXII.Na situação em apreço, e lido atentamente o Acórdão, em nenhum momento, o Tribunal da Relação perde tempo a analisar a necessidade da sua intervenção, de efectivamente reapreciar a decisão de primeira instância em sede de prova.

XXXIII.Ao proceder, assim, o Tribunal da Relação fez, conforme o nosso modesto entendimento, aplicação errada do art. 662.º, n. º1, na sua vertente negativa: actuando quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior não impunham uma decisão diversa.

XXXIV. O Tribunal ad quem deve evitar a introdução de alterações à matéria de facto, quando não lhe seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.

XXXV. Ademais, considerou igualmente aditar à matéria de factos provados o facto 10-A:

“Para repor o locado no estado em que estava antes dos actos praticados pela R. é necessário proceder às obras e à compra de materiais, em valor não concretamente apurado”

Sucede que,

II.Nenhum documento, nem nenhum depoimento, quando conjugados com a matéria dada como assente, permitiam esta modificabilidade da matéria de facto.

III. Fundando-se este recurso na averiguação das regras inerentes ao exercício do poder-dever previsto no art. 662.º do CPC, esta matéria pode ser sindicada pelo STJ.

IV. A aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada - não uso ou uso ilícito ou indevido dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respetivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício – consubstancia violação da lei processual, que pelo disposto no art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, é um dos fundamentos da revista.

V. Deve, por violação da regra adjetiva do art. 662.º, n.º1 CPC, ser entendido que o Tribunal da Relação não podia – como fez – apreciar a matéria de facto, sem um prévio juízo, sobre se essa reapreciação se impunha.

VI. E, em consequência deve ser excluída, porque contra legem, a parte do Acórdão que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto, ou seja, todo o ponto 10-A do Acórdão.

IV-NULIDADE POR UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE PRESUNÇÃO JUDICIAL PARA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E DA DECISÃO:

XXXVI. Nos termos do disposto no n. º1 do artigo 662.ºdo Código de Processo Civil, a Relação deverá alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

XXXVII. Do confronto entre a sentença proferida em primeira instância e o Acórdão da Relação de Coimbra, resulta que o Tribunal da Relação fez uso de presunção judicial para dar como provado o que não estava.

XXXVIII. Ora, toda a decisão do douto Tribunal da Relação de Coimbra assenta, como nos parece evidente, empresunções judiciais paraconsiderar provado que os ocupantes da carrinha branca estavam ao serviço da ora Recorrente (facto provado 11-A), que foi a Ré BB quem deu ordens ao funcionário da Recorrente, CC, para entregar as chaves aos referidos ocupantes (facto provado 11-B) e que, para repor o locado no estado em que estava antes dos actos praticados pela Recorrente é necessário proceder a obras e a compra de materiais, em valor não concretamente apurado (facto provado 10-A),

XXXIX. presunções que extraiu da prova testemunhal e documental produzida.

XL. No douto Acórdão em apreço, a Relação adita factos (11-A e 11-B) ao conjunto de factos dados como provados pela primeira instância, fazendo uso de uma presunção judicial:

“(...) acompanhando o raciocínio da A. recorrente, quase integralmente, diremos que se os bens pertença da 1.ªR. haviam sido retirados no dia 28, sefoi dado como provado (factos10. e11.) queadestruição e asutração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado e os danos nos tetos e paredes foram provocados pelos dois ocupantes da carrinha branca, se esses ocupantes da carrinha branca foram ao local no dia30, 2 dias depois dalojaestar desapossadados bens da 1.ªR., numa carrinha igual à da frota de tal R., tendo na sua posse umas chaves do locado, tendo a R. BB (funcionária da 1.ªR.) ordenado à testemunha CC que entregasse aos mesmos 3 chaves do locado e 1 comando que ele tinha na sua posse, não se entende bem como não se como provado que os individuos referidos em 11. dos factos estavam ao serviço da Ré.

O que é muito verosímil, num grau de alta probabilidade, é a resposta contrária, que tudo conjugando com os dados da intuição humana e as regras da experiência da vida, por presunção judicial, se pode extrair afirmativamente.”

XLI. No respeitante ao novo facto provado 10-A, igualmente considera provado por recurso a presunção judicial:

Respeitante ao não provado 8., verificamos que o doc. N. 5 junto com a p.i. foi impugnado pelos RR. na sua contestação (cfr. Arts. 3.º e 5.º desta).

Nenhuma outra prova, designadamente testemunhal, atestou tal materialidade.

(...) De maneira que tal facto não provado não pode ser dado como provado como aspira a recorrente, embora deva ser dado como provado que o locado carece de reparação, com obras e materiais para o repor no estado anterior em que se encontrava, desconhecendo-se o respetivo valor.”

XLII. Em momento algum, da sentença proferida em 1.ª instância resultou que os actos praticados pela 1.ª Ré, ora Recorrente, é que determinaram o estado em que o locado se encontrava,

XLIII.pelo que se incompreende a extensão do teor do facto provado 10-A na sua íntegralidade.

XLIV. Além de a Relação não ter poderes, por falta de base legal, para alterar a matéria de facto para refazer o julgamento, por apelo exclusivo a presunções judiciais e, com isso, alterar os factos provados relevantes para a decisão da causa, excedeu manifestamente o alcance dos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.

XLV. As presunções, de acordo com o art.º 349.º do Código Civil, correspondem a ilações que a lei (presunções legais) ou o julgador (presunções judiciais) tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.

XLVI. De acordo com o artigo 351.º do mesmo Código, as presunções judiciais só sãoadmitidas nos casos e termosem queé admitidaa prova testemunhal.

XLVII.Conforme tem sido referido pelo Supremo Tribunal de Justiça, as presunções judiciais não são meios de prova, mas ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto de base) para firmar um facto desconhecido (facto presumido), nos termos do artigo 349.º do Código Civil e é regra jurisprudencial assente que as presunções judicias só são legítimas e lícitas se essas ilações resultarem da matéria de facto dada por provada, mas sem alterarem os factos que foram objeto de prova e das respostas do julgador.

XLVIII.Em sede de apelação, o Tribunal da Relação, atentos os seus amplos poderes no que tange à impugnação da decisão de facto, pode reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª Instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art.º 607º, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.

XLIX. Já em sede de recurso de revista, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são mais limitados, embora se admita queo STJ possasindicar o uso de presunções judiciais pela Relação se esse uso ofender qualquer normal legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

L. Recorrendo à formulação do douto aresto do STJ de 11 de Abril de 2019:

I As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo, antes, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do Código Civil.

II - O Supremo Tribunal de Justiça pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo Tribunal da Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.”

LI.No caso concreto, as presunções judiciais em que o Tribunal da Relação de Coimbra se baseou para alterar a decisão de 1.ª instância não assentaram nos factos nos factos provados na 1.ª instância, mas nos factos provados que entendeu acrescentar à decisão da matéria de facto, ainda que sem os poderes para o efeito e também eles resultado de presunções.

Vejamos como:

LII. O Tribunal de primeira instância, em nenhummomento, considerou como provado o facto de que, foi por força das condutas da Recorrente, que o locado foi destruído e lhe foram subtraídas partes integrantes e/ou partes componentes.

LIII. Ressalvado o devido respeito, a aqui Recorrente incompreende como é que, a partir do facto provado n.º10, em sede de sentença de primeira instância, segundo o qual “A destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado provocaram nos tectos e paredes do locado”,

LIV.ARelaçãodeCoimbraaditaumfactoprovado10-A, segundo o qual “Para repor o locado no estado em que estava antes dos atos praticados pela 1.ª R. é necessário proceder às obras e compras de materiais, em valor não concretamente apurado”.

LV. Por força da douta Relação advogar dever ser dado como provado que “o locado carece de reparação, com obras em materiais para o repor no estado anterior em que se encontrava, desconhecendo-se o respetivo valor”.

LVI. Não se percebe como é que o estado do locado passa, de forma e, ressalvado o devido respeito, aleatória, a ser atribuível aos atos (inexistentes) da Recorrente.

LVII. Ora, a aqui Recorrente desconhece qual o processo lógico-racional realizado pelo Tribunal aquo quepermitiu,apartirda conclusãoqueolocado carece de reparações, considerar provado que os atos foram praticados pela aqui Recorrente.

LVIII. Pelo que, em consequência, não se poderia o Tribunal a quo ter servido de factos não provados para construir as presunções judiciais aqui em análise, conforme a jurisprudência do STJ tem reconhecido.

LIX. Por partir de factos não provados, impõe-se a este douto Supremo Tribunal de Justiça que censure a utilização das presunções judiciais feita pela 1.ª Instância, porquanto violadoras dos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.

LX. Para além disso, as presunções judiciais empregues pelo Tribunal recorrido padecem ainda de ilogicidade, conforme supra ficou evidenciado.

LXI. Até porque, ignora indevidamente o Tribunal a quo, que o locado em causa JÁ NÃO É PROPRIEDADE DA RECORRIDA, tendo esta vendido o mesmo, conforme comunicado aos presentes autos.

LXII. Pelo que quais serão os danos efectivamente existentes napresente data e que querem imputar à ora Recorrente?!

LXIII.A mesma lógica do recurso inadmissível a presunções adota o Tribunal recorrido para aditar os factos provados 11-A e 11-B.

LXIV. É com base no seu percurso (i)lógico que a Relação dá por provado que:

a) Os indivíduos referidos em 11 dos factos provados estavam ao serviço da Recorrente;

b) Foi a Ré BB,funcionária da Recorrente, quedeu ordensaofuncionário da Recorrente, CC, para entregar as chaves do arrendado aos referidos indivíduos.

LXV. A Relação, para aditar estes factos, recorre a uma presunção judicial assente, não em factos provados, mas com base na prova documental junta, no caso, o auto de notícia da PSP.

LXVI. O referido auto de notícia apenas atesta a destruição do locado.

LXVII.No demais relativo ao referido auto, reitera-se e, expressamente se remete, por razões de economia processual, para os pontos 56 a 84 das contra-alegações de Recurso de Apelação dos 3 Réus.

LXVIII.O Acórdão recorrido utilizou indevidamente o auto de notícia lavrado pelo agente da PSP para, por via de presunção dar como provados os factos 11-A e 11-B, em violação do disposto no n. º1 do artigo 342.º do Código Civil e do disposto no n. º1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.

LXIX. O Tribunal, com base no uso impróprio que fez de presunções judiciais, alterou a decisão proferida em 1.ª instância, de forma que a aqui Recorrente considera injusta e ilegal.

LXX. As presunções judiciais elaboradas pelo Tribunal da Relação que permitiram estabelecer os factos provados 10-A, 11-A e 11-B violam o disposto nos artigos 342.º, 344.º, 349.º, 350. º e 351.º do Código Civil e o disposto no n.º1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.

LXXI. O douto Tribunal da Relação de Coimbra usou de presunções para acrescentar aos factos provados os factos que a 1.ª instância havia dado por não provados e, depois, usou de presunções judiciais sobre os factos assim provados presuntivamente para julgar procedente o recurso de apelação interposto pela ora Recorrida.

LXXII. A Relação aditou os factos provados 10-A, 11-A e 11-B sem base nos factos provados na 1.ª instância, utilizando ilações inadequadas que não respeitam as regras da lógica.

LXXIII.O facto provado 10-A, relativo à necessidade de obras no locado, por força da actuação da Recorrente, foi considerado provado sem que existisse factualidade objetiva que permitisse a imputação dos danos aos atos (nenhuns) da Recorrente, violando os artigos 342.º e 349.º do Código Civil e n. º1 do artigo 662.º do Código do Processo Civil.

LXXIV.Os factos provados 11-A e 11-B, que consideram como provado que ocupantes da carrinha branca estavam ao serviço da Recorrente e que receberam ordens por parte da Ré BB, funcionária da Recorrente, foram dados como provados em presunções que se fundamentam erraticamente no auto de notícia da PSP e não em factos provados.

LXXV.O auto de notícia apenas refere a destruição do locado, não servindo como baseparapresumir aautoria dos danos nema vinculação dos referidos ocupantes da carrinha à Recorrente.

LXXVI.A utilização de presunções judiciais para suprir a ausência de prova viola odisposto noartigo 662.º doCódigo deProcessoCivil, bemcomo os artigos 342.º, 344.º, 349.º e 351.º do Código Civil.

LXXVII.O Tribunal da Relação andou mal ao aditar os referidos factos provados, pois não dispunha de poderes legais para tal, além de que as presunções elaboradas padecem de evidente ilogicidade.

LXXVIII.O Acórdão recorrido carece de fundamentação para sustentar os factos aditados, sendo necessária a sua correção por parte deste Supremo Tribunal de Justiça.

V- DO PRINCÍPIO DA AUTORRESPONSABILIDADE DAS PARTES E DO PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO:

LXXVI.Por força do demonstrado a propósito da conivência do douto Tribunal recorrido com a falta da prova dos factos constitutivos do direito alegado pela ora Recorrida para considerar como provada factualidade que, à luz do nosso direito probatório, não poderia ser dada como provada, nomeadamente, pela falta de prova do facto, dano e extensão do mesmo e o nexo de causalidade, resultaram gravemente violadas as regras da distribuição do ónus da prova, estabelecidas no artigo 342.º do Código Civil.

LXXVII. E, em face disso, a Relação de Coimbra violou dois princípios estruturantes do nosso direito processual civil: o princípio da autorresponsabilidade das partes e o princípio do dispositivo.

LXXVIII. Os princípios manifestam-se, para o que releva in casu, na incumbência que recai sobre as partes de alegarem os factos que sustentam as respetivas pretensões ou meios de defesa, nos termos do disposto no n. º1 do artigo 5.º do Código do Processo Civil.

LXXIX.Por inerência, estão as partes igualmente oneradas de carrear para o processo os meios probatórios necessários à demonstração da veracidade dos factos que alegam, nos termos prescritos nos artigos 342.º e seguintes do Código Civil.

LXXX.Nestes termos, encontrava-se o Tribunal a quo impedido de se substituir à Recorrida na produção de prova que esta não logrou produzir.

LXXXI.O desfecho da lide está necessária e intrinsecamente ligado com a diligência com que as partes cumpremosseusónus processuais, não olvidando, claro está, a sua harmonização com o princípio do inquisitório.

LXXXII. Nesse sentido, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 27 de Janeiro de 2022, no âmbito do processo n.º 1513/20.3..., segundo o qual:

“I - Apesar da incontroversa evolução para a prevalência do princípio do inquisitório, este continua a coexistir com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, continuando a exigir-se destas não apenas o cumprimento do dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e daqueles em que se baseiem as excepções invocadas, mas também a indicação dos meios de prova adequados à satisfação do respectivo ónus probatório, a cumprir no momento processualmente fixado para o efeito.

II O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus sobre elas recai, não podendo aceitar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes.”

LXXXIII.Face à inércia da Recorrida evidenciada ao longo dos presentes autos em fazer prova necessária e adequada à factualidade que alegou, a aplicação do direito nos termos da decisão advinda do Acórdão recorrida significa “colocar em cheque” toda a génese do nosso direito adjetivo, em claro prejuízo de quem exerce o direito constitucionalmente consagrado de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, nos termos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

LXXXIV. No douto Acórdão que ora se recorre,”condena-se a 1.ªR a pagar à A. a quantia que se liquidar em sentença relativamente aos danos provocados nos tectos e paredes do locado...”

LXXXV. Dispõe o n. º2 do artigo 609.º do Código de Processo Civil que:

“Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que seja líquida.”

LXXXVI. o que, numa lógica a contrario, implica que o pedido genérico só é admissível em situações de impossibilidade objetiva de determinação da quantia devida no momento da formulação do pedido.

LXXXVII. A verdade é que, no caso concreto, a Recorrida teria à sua disposição todos os elementos necessários para demonstrar e quantificar os danos que ela própria diz ter sofrido!!

LXXXVIII. Não o tendo feito, não cabia ao douto Tribunal a quo determinar a condenação na quantia que se vier a liquidar em sentença.

LXXXIX. É irrefutável que cabia à Recorrida o ónus de o ónus de demonstrar, com rigor e exatidão, os danos efetivamente sofridos, bem como a sua extensão.

XC.E tal prova poderia ter sido feita de forma objetiva e clara, desse modo permitindo ao Tribunal recorrido aferir do montante da reparação alegadamente devida.

XCI.O Tribunal a quo considerou como provados os danos verificados nos tectos e nas paredes do locado.

XCII.A Recorrida alegou a necessidade da realização de obras para a reposição do locado no seu estado primitivo.

XCIII.Ainda assim, a Recorrida não quantificou os custos efetivos necessários à reparação dos danos ocasionados, limitando-se a uma alegação genérica sobre a necessidade de reparações no locado.

XCIV.A Recorrida afirmou ter realizado as reparações necessárias.

XCV. A Recorrida mais declarou e comprovou que vendeu o imóvel outrora locado à aqui Recorrente.

XCVI.Estava perfeitamente munida dos elementos necessários para a determinação do montante necessário à reparação efectiva dos danos causados nos tectos e paredes do locado.

XCVII.É inegável que tal determinação, uma vez possível, era obrigação da Recorrida.

XCVIII.Ao ter procedido nos termos supra referidos, veio, novamente, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra desconsiderar a importância do cumprimento dos ónus processuais que recaem sobre as partes em juízo.

XCIX.Incorrendo, assim, também, numa violação do disposto no n. º2 do artigo 609.º do Código do Processo Civil, na medida em que deferiu um pedido genérico indevidamente formulado.

C. E, mais uma vez, substituindo-se à Recorrida, como foi apanágio dos presentes autos em 2.ª instância, ao remeter a quantificação dos danos para liquidação, em nova violação dos princípios do dispositivo e autorresponsabilidade das partes.

VI-DA RESPONSABILIDADE CIVIL:

CI.A recorrente não alcança se a responsabilidade civil que lhe é imputada pelo douto acórdão recorrido, alegadamente geradora do dever de indemnizar, tem natureza contratual ou extracontratual,

CII.Impondo-se desde logo para a decisão do thema decidendum: A que título, o Tribunal recorrido imputa os danos alegadamente causados pela recorrente no imóvel? Na pendência do contrato de arrendamento comercial, ou após a sua cessação?

CIII.Residindo a pertinência desta questão no facto de os pressupostos de ambos os institutos são diferentes, ao nível da presunção da existência deculpa, e respectiva prova; pelo que incumbia ao tribunal recorrido indicar a que título era imputadaa responsabilidade à recorrente,e quaisos fundamentos portal opção.

CIV.O princípio geral da responsabilidade obrigacional, quer o enunciado no art. 798º, do CC, quer o da responsabilidade extracontratual (art. 483º), supõe um ilícito traduzido no incumprimento de uma obrigação.

CV.Nos termos do consignado no artº 799º do C.C. no domínio da responsabilidade civil contratual, existe uma presunção de culpa que tem de ser ilidida pelo lesante.

CVI.No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, essa culpa tem de ser provada pelo credor da indemnização, neste caso, pela recorrida. (artº 487º CC ex vi artº 342º nº 1).

CVII.Aqui chegados, era imperativo que o douto acórdão recorrido tendo em conta os factos provados e não provados, se pronunciasse acerca de qual das duas modalidades de responsabilidade civil imputava à recorrente, de modo a definir sobre quem recaía o ónus de efetuar a devida prova da lesão do direito de que se arroga a recorrida.

CVIII.Tanto mais que ilibando a recorrente dos demais danos causados no interior do imóvel, esta ficou sem saber a que título os mesmos eram imputados, tendo em conta o alegado no artigo 10 dos factos provados onde se refere:

“A destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho do ar condicionado provocaram danos nos tectos e paredes do locado”. (sublinhado nosso).

CIX.A ser assim, igualmente não se compreende como foi a recorrente condenada a indemnizar a recorrida pelos danos causados nas paredes e nos tetos, e absolvida da responsabilidade resultante da invocada destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado, que alegadamente deu causa aos danos invocados!

CX.Uma vez que o texto do Acórdão recorrido, refere no ponto 7 dos factos provados, que:

“O referido imóvel esteve arrendado à Ré, EmergePrestígio até ao dia 30 de junho de 2021, data em que, na sequência da transação efetuada na ação de despejo que correu termos neste juízo local cível, o contrato foi revogado pela Autora e pela identificada Ré;”

-o locado foi entregue pela 1.ª Ré à autora em 30-06-2021, deixando aquela de ter qualquer acesso ao mesmo, a partir dessa data”. Facto provado nº 13

CXI.Pelos factos dados como provados pelo Acórdão recorrido, e que acima se transcreveram, não subsistem dúvidas de que os danos geradores de responsabilidade cuja autoria é imputada à recorrente, ocorreram após a cessação do contrato de arrendamento, ou seja, ocorreram no lapso temporal que decorre entre a celebração da transação judicial e a entrega das chaves naquele dia 30 de junho de 2021, com a transmissão da posse, e a constatação dos mesmos pelo legal representante da Autora, aquando a sua deslocação ao imóvel no dia 02 de julho de 2021.

CXII.A imputar-se alguma responsabilidade à recorrente, o que não se concede, esta situar-se-ia no domínio da responsabilidade civil extracontratual, uma vez que o contrato de arrendamento já havia cessado no dia 30 de junho de 2021, mediante a restituição da posse do estabelecimento comercial, através da entrega das chaves, e da cessação do arrendamento concretizada pela transação judicial celebrada no âmbito da ação de despejo.

CXIII.No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, era sobre a recorrida que impendia o dever de fazer prova da lesão do seu direito, e provar que essa lesão havia sido causada pela recorrente, desiderato que não logrou alcançar.

CXIV.Residindo o inconformismo da recorrente na inversão do ónus da prova que o Acórdão recorrido faz, ao transferir para a recorrente o ónus de provar que a mesma não causou os danos que lhe são imputados, tendo em conta que estamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual.

CXV.O recorrido Tribunal da Relação de Coimbra mal andou ao condenar a recorrente, no pagamento da quantia que se viera apurar em sede de liquidação de sentença, relativamente aos danos provocados nos tetos e paredes do locado, acrescida dos juros legais desde a data da citação… quando a recorrida não fez qualquer prova de que tais danos foram causados pela recorrente, tal como lhe era devido.

CXVI.Mais insólito ainda, e inalcançável, é o facto de o Acordão recorrido, imputar a autoria dos danos nas paredes e nos tetos da fração à retirada e destruição da estrutura do piso superior da escadaria e do aparelho de ar condicionado, e absolver a recorrente dessa mesma subtração e destruição da estrutura do piso superior da escadaria e do aparelho de ar condicionado, mas condená-la ao pagamento dos danos nas paredes e tetos que essas manobras causaram!

CXVII.Sendo os pressupostos da Responsabilidade Civil, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, improcederá, in casu, o nexo de causalidade entre facto e dano, atento o supra invocado.

CXVIII.De acordo com o Acórdão recorrido, são os seguintes, os factos geradores da responsabilidade civil e do dever de indemnizar que impendem sobre a recorrente:

“*Subsiste como dano apenas aqueles que foram provocados nos tectos e paredes do locado

*Danos imputáveis à 1.ª R.

*E para repor o locado no estado em que estava antes dos atos praticados pela 1.ª R. é necessário proceder às obras e à compra de materiais, em valor não concretamente apurado

CXIX. Porém, o douto Acórdão recorrido não estabelece o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

CXX.De acordo com o facto provado 10 da decisão recorrida, o dano nas paredes e teto, da responsabilidade da recorrente, foi causado pela subtração e retirada da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado que deacordocom adouta decisãorecorrida,não foramdaautoria da recorrente!

CXXI.O douto acórdão recorrido padece não só de insuficiência de fundamentação, mas também de ininteligibilidade.

CXXII. Aconsiderar-se estar emcausa a responsabilidadecivilcontratualdaora Recorrente, o que não se concede por força do teor do douto Acordão recorrido, relembre-se que os seus pressupostos são um facto ilícito, a culpa, um dano e um nexo de causalidade entre a culpa e o dano.

CXXIII.Para a aplicação do instituto da Responsabilidade Civil é necessário que ocorra a efetivação de um prejuízo/dano na esfera jurídica de outrem, na sua pessoa ou nos seus bens.

CXXIV.Verdadeiramente, não há responsabilidade civil se não houver dano.

CXXV.A Recorrida alega ter sofrido um avultado dano patrimonial, por força das alegadas condutas da Recorrente.

CXXVI.O dano patrimonial será aquele passível de avaliação pecuniária e que poderá ser alvo de indemnização, seja por via da restituição natural ou por meio de uma indemnização por equivalente, nos termos dos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.

CXXVII. Em sentido patrimonial, ensina MENZES LEITÃO que o dano corresponde à avaliação concreta dos efeitos da lesão no âmbito do património do lesado, consistindo a indemnização na compensação da diminuição verificada neste património, em virtude da lesão.

CXXVIII.Nos termos do artigo 798.º do Código Civil, o incumprimento culposo de uma obrigação contratual impõe à parte faltosa o dever de indemnizar o lesado pelos danos daí advindos.

CXXIX.Provados que estejam, naturalmente, os seus pressupostos.

CXXX.No caso em tela, os danos sofridos são, alegadamente, de índole patrimonial, contudo, a Recorrida não foi capaz de provar a extensão dos mesmos, o queinviabiliza a conclusão pelo reconhecimentodaresponsabilidade civil contratual da ora Recorrente

CXXXI. Incumbe a quem invoca a responsabilidade civil contratual a prova dos danos e a respetiva extensão, conforme resulta do disposto no n. º1 do artigo 342.º do Código Civil.

CXXXII. No presente caso, a Recorrida não demonstrou, por via de meios de prova concretos e suficientes para o efeito, a ocorrência de qualquer dano.

CXXXIII.Em primeiro lugar, relembre-se que o orçamento apresentado pela Recorrida, em circunstância alguma, poderá constituir prova da ocorrência de danos.

CXXXIV.De igual modo, em nenhum momento, percorridos os presentes autos, se consegue aferir o sentido e alcance da alegada (e inexistente) diminuição patrimonial sofrida pela Recorrida por força das alegadas condutas da ora Recorrente.

CXXXV. Para que o facto ilícito seja efetivamente gerador de responsabilidade civil, é indispensável que se conclua pela observância de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano alegadamente ocasionado.

CXXXVI.Cumprido o supra referido desígnio, fica o agente obrigado a indemnizar o lesado por todos os danos que, com um razoável grau de probabilidade, não teriam sido ocasionados na sua esfera jurídica, não fosse a conduta do agente.

CXXXVII. No que ao presente caso respeita, analisando o preenchimento do requisito do nexo causal e tendo por referência o regime da causalidade, consagrado no artigo 563.º do Código Civil, é por demais evidente que inexiste a obrigação de ressarcir qualquer dano, in casu.

CXXXVIII.Na factualidade que considerou como provada, a Relação olvida as mais elementares regras da responsabilidade civil, designadamente, o nexo causal.

CXXXIX.O artigo 563.º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa, segundo a qual a adequaçãodeverá assentar no juízo negativo de acordo com o qual não serão ressarcíveisosdanos que não sejam consequência normal do facto.

CXL.In casu, tendo o Tribunal a quo recorrido a uma presunção judicial inadmissível para concluir pela prática de um facto por parte da Recorrente (cfr. Facto provado 10-A), jamais se poderia concluir pela existência de um facto,

CXLI.E, muito menos, pela existência de um nexo de causalidade entre esse (inexistente) facto e o (não provado) dano na esfera jurídica da Recorrida.

CXLII. Desta forma, à semelhança do que já se explanou a propósito da responsabilidade civil extracontratual, é inquestionável que a Recorrida não pode ser ressarcida às custas da Recorrente, por via da responsabilidade civil contratual.

CXLIII.O artigo 562.º do Código Civil estabelece que a reparação de um dano deve consistir na restituição ao estado em que se encontraria a situação caso o evento que originou a obrigação de indemnizar não tivesse ocorrido.

CXLIV.Tendo sido ilegalmente provado um evento cuja prova respetiva não foi feita, não havendo sido feita prova do estado em que o locado se encontrava antes dos (inexistentes e incorretamente provados) comportamentos da Recorrente e da extensão dos alegados danos ocasionados por força das condutas imputadas à Ré, aqui Recorrente,

CXLV. Dúvidas inexistem quanto à ausência da obrigação de indemnizar a cargo da Recorrente.

CXLVI.Por todo o exposto, o Acórdão da Relação viola, no seu conteúdo, os seguintes preceitos legais: artigos 5.º, 260.º, 265 483.º, 487.º, 342.º, 798.º e 799.º do Código Civil (CC); artigos 609.º, 615.º, 662.º, 666.º do Código de Processo Civil (CPC).

Não houve resposta.

II – FACTOS PROVADOS.

Encontra-se provados nos autos que:

1. A autora foi proprietária da fracção autónoma designada pelas letras “BC”, destinada a comércio, sita na Rua ..., nº ..., ..., Edifício ..., ..., inscrita na matriz predial urbana da União de Freguesias de ... (..., ... e ...) sob o actual artigo ..08;

2. Em 1 de Julho de 2016, a autora deu de arrendamento à ré Emergeprestígio a referida fracção, cedendo-lhe o seu uso e fruição, mediante o pagamento de uma renda mensal;

3. Na cláusula 5ª, nº 1, do referido contrato consta que a ré Emergeprestígio obriga-se a “Conservar e manter em boas condições de funcionamento todas as instalações de água, luz, saneamento, os vidros, os tectos, as portas e as paredes do arrendado e tudo o mais quanto ao mesmo diga respeito, ressalvando o desgaste proveniente da sua normal e prudente utilização”;

4. Na cláusula 6ª, nº 1, do mesmo contrato consta que a referida ré “assume todos os riscos inerentes à utilização do imóvel, objecto do presente contrato, incluindo danos e sinistros que nele tenham comprovadamente origem e suportará os custos de todas as reparações decorrentes de culpa ou negligência sua, de todos os componentes e/ou equipamentos do arrendado”;

5. Na cláusula nona do referido contrato consta que a referida ré reconheceu expressamente que o locado se encontrava em perfeito estado de conservação;

6. Na cláusula 10º, nº 3, consta que a ré Emergeprestígio renunciou expressamente ao direito a qualquer indemnização pelas obras ou benfeitorias realizadas no locado, reconhecendo que as mesmas ficavam a fazer parte do locado;

7. O referido imóvel esteve arrendado à ré Emergeprestígio até ao dia 30 de Junho de 2021, data em que, na sequência da transacção efetuada na ação de despejo que correu termos neste Juízo Local Cível, o contrato foi revogado pela autora e pela identificada ré;

8. O réu AA é representante legal da Emergeprestígio e a ré BB é trabalhadora daquela sociedade;

9. No dia 2 de Julho de 2021, o representante legal da autora deslocou-se ao arrendado;

10. A destruição e subtracção da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado provocaram danos nos tectos e paredes do locado;

10-A. Para repor o locado no estado em que estava antes dos actos praticados pela 1ª R. é necessário proceder às obras e à compra de materiais, em valor não concretamente apurado.

11. O legal representante da autora logrou apurar que havia estado no local uma carrinha branca e que haviam sido os seus dois ocupantes, cuja identidade desconhece, quem havia retirado os referidos bens;

11-A. Os indivíduos referidos em 11 dos factos provados estavam ao serviço da ré Emergeprestígio;

11-B. Foi a ré BB quem deu ordens ao funcionário da 1ª ré, de nome CC, para entregar as chaves do arrendado aos referidos indivíduos.

12. A PSP deslocou-se ao local;

13. O locado foi entregue pela 1ª ré à autora em 30 de Junho de 2021, deixando aquela de ter qualquer acesso ao mesmo a partir dessa data;

14. A 3ª ré BB é trabalhadora por conta de outrem da 1ª ré;

15. O piso superior suspenso existente no locado, as portas, as divisórias, a escadaria de acesso, os armários e o ar condicionado não existiam aquando da cedência do gozo e fruição através de arrendamento pela autora à 1ª ré;

16. Foi após a celebração do contrato de arrendamento que a ré arrendatária procedeu à execução no imóvel de diversas obras custeadas por si;

17. As chaves do locado foram entregues pelo mandatário da ré ao mandatário da autora;

18. Em Dezembro de 2021, a autora efetuou uma obra no locado pela qual procedeu ao pagamento da quantia de € 6.057,36;

19. Em 14.06.2023, a autora vendeu o imóvel à empresa G..., Lda..

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

1 – Invocação de nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

2 - Invocação de nulidade do acórdão recorrido por ininteligibilidade da decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

3 – Invocação de nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Condenação em liquidação.

4 – Incorrecto exercício dos poderes de facto por parte do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil.

5 – Indevida por ilegal utilização de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação. Invocada ilogicidade das presunções utilizados no acórdão recorrido.

6 – Violação do princípio do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes.

7 – Natureza da responsabilidade assacada no acórdão recorrido aos RR. Ausência de verificação dos requisitos da responsabilidade extracontratual. Ausência de nexo de causalidade entre os factos e o dano. Necessidade de ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Passemos à sua análise:

1 – Invocação de nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

Invocou a este propósito a recorrente:

O acórdão recorrido é nulo, em virtude de não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão adoptada.

Apreciando:

É manifesto que não se verifica in casu a nulidade apontada pela recorrente enquanto vício de natureza formal ou de procedimento (e não de julgamento ou substância) relativamente à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Independentemente do respectivo mérito, é indiscutível que o acórdão recorrido contém os seus fundamentos de facto e de direito que explicam perfeitamente a decisão tomada, naturalmente discutível em sede da sua impugnação no plano da apreciação do fundo da causa.

Basta ler tal peça processual.

Ou seja, verifica-se neste particular tão somente uma discordância do ponto de vista substantivo relativamente aos fundamentos perfilhados no acórdão recorrido, sem que isso corresponda à ausência de fundamentação a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Tal previsão pressupõe a inexistência de fundamentação para o decidido, não bastando sequer que a mesma seja extremamente sintética ou mesmo deficiente ou medíocre.

Conforme se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 2024 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 995/20.8T8PNF.P1.S2:

“(…) ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial”, assim, “não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”.

Tal não sucede na situação sub judice.

Como enfatiza Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil” Almedina, 2024, 8ª edição, a página 251:

“É frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou (e que a racionalidade não consegue explicar), desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial.

Com não menos frequência, a arguição de nulidades da sentença ou do acórdão da Relação acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com alguns dos vícios que determinam tais nulidades previstas no artigo 615º, nº 1”.

Pelo que improcede, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, a nulidade invocada.

2 - Invocação de nulidade do acórdão recorrido por ininteligibilidade da decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Alega a recorrente:

O douto acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade, porque encerra no seu texto, ambiguidades e obscuridades que o tornam ininteligível.

Apreciando:

É manifesta a inteligibilidade do acórdão recorrido, a qual não se encontra verdadeiramente afectada pelas ditas (e pretensas) ambiguidades e obscuridades.

A sua leitura não encerra qualquer tipo de particular dificuldade de compreensão do texto, o seu percurso intelectual, os pressupostos e o sentido decisório.

Questão diversa é a natural discordância da parte vencida, ora recorrente, quanto ao decidido.

Só que a nulidade em apreço tem unicamente a ver com aspectos estritamente formais da peça processual em apreço e não com a matéria pertinente ao âmbito da apreciação do mérito da causa.

Pelo que improcede, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, a nulidade invocada.

3 – Invocação de nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Condenação em liquidação.

Entende a recorrente que o acórdão recorrido incorreu na nulidade de excesso de pronúncia por ter conhecido matéria que lhe estava vedado conhecer, violando ainda o princípio do pedido.

Concretamente referiu:

O pedido da Autora, ora Recorrida, perfazia um total de € 45.445,30.

Sob outro prisma, em sede de apelação, veio a Recorrente, ora Recorrida, pedir a condenação dos Réus “... no pedido, ou, subsidiariamente, (...) no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na quantia de 6 057,36€”.

O Acórdão recorrido, ao decidir pela condenação da ora Recorrente no pagamento de uma quantia a liquidar em sentença, alterou os limites objetivos do litígio, em manifesta afronta ao quadro jurídico-processual aplicável.

O n. º1 do artigo 3.º do Código de Processo Civil dispõe que “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.”

Complementarmente, o n. º1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil determina que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”.

Os referidos normativos impõem ao tribunal o respeito pelos limites da pretensão deduzida em juízo pela parte interessada, salvaguardando, assim, os valores da estabilidade da instância (artigo 260.º do Código do Processo Civil) e a imparcialidade do julgador.

Na petição inicial, a ora recorrida limitou-se a formular um pedido específico de condenação das Rés no montante de €45.445,30, a título de indemnização pelos danos alegadamente sofridos pelas condutas (inexistentes) dos outrora Réus.

Em sede de apelação, a aqui Recorrida alterou substancialmente os limites objetivos do pedido inicialmente formulado, ao solicitar, além da quantia inicialmente peticionada:

a) Subsidiariamente, a condenação das Rés no que vier a ser liquidado em sentença;

b) E, sem prejuízo, a condenação imediata na quantia de 6.057,36€, alegadamente devidos pelas obras realizadas no imóvel.

Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 265.º do Código do Processo Civil, “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.”.

Nestes termos, as novas pretensões deduzidas pela Recorrida em sede de apelação configuram uma ampliação inadmissível do pedido.

O Tribunal a quo condenou a Recorrente no pagamento da quantia que vier a ser liquidada em sentença relativamente aos danos provocados nos tectos e paredes do locado.

O Acórdão recorrido extravasou, sem qualquer fundamento, os limites do pedido formulado em 1.ª instância, onde o quantum peticionado foi liquidado e fixado pela Autora, ora Recorrida.

Não tendo a Autora, atendendo ao seu petitório e à forma como expôs a a sua causa de pedir, dificuldades aparentes em quantificar o seu pedido, nunca tendo peticionado nos autos que o mesmo viesse a ser liquidado. É que a Autora não peticionou a simples reparação dos danos.

A Autora exigiu a condenação da Ré no pagamento de uma determinada quantia por si determinada.

Assim, ao decidir pela condenação da Ré – ora Recorrente -, no montante que viesse a ser liquidado como sendo o custo da reparação de tectos e paredes, em sede de liquidação de sentença, a Relação ao decidir nos termos que supra se relataram, infringiu o disposto nos artigos 3, n.º 1 e 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

E, por conseguinte, violou os ditames do princípio do pedido.

Encontra-se o Acórdão recorrido ferido de nulidade, por violação do disposto nos artigos 3, n. º1, 265, n. º2 e 609, n. º1 do Código de Processo Civil.

Apreciando:

Cumpre esclarecer, desde logo, que tendo a A. formulado um determinado pedido concreto – a condenação dos RR., solidariamente, no pagamento da quantia de € 45.445.30 -, esse montante comporta, quanto aos seus pressupostos, uma referência objectiva e inegável: reporta-se essencialmente ao valor pecuniário necessário para repor o espaço em causa no estado em que se encontrava antes da alegada intervenção lesiva determinada pelos demandados.

Ou seja, no fundo, em termos do que constitui o pedido, o que a A. pretende é obter dos RR. a verba necessária à reparação dos danos provocados no imóvel (seja ela já concretizada ou porventura determinável).

O que habilita a concluir que, não logrando a A. provar que os estragos provocados ascendem a esse exacto valor, por si quantificado (para a sua reparação por terceiros), cabe perfeitamente no âmbito do pedido formulado pela A. a condenação dos RR. no que se liquidar futuramente de forma a prosseguir e satisfazer na prática esse mesmo objectivo, respeitando, sempre e em qualquer caso, os limites que se prendem com a factualidade alegada pelo peticionante e que lhe está intrinsecamente subjacente.

De resto, respeitado o núcleo factual que constitui a causa de pedir e demonstrada a prática pela Ré do acto ilícito que provocou danos na esfera jurídica da lesada, ora A., a condenação no montante a apurar em liquidação, nos termos do artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, uma vez não provada a sua expressão pecuniária concreta, não constitui qualquer nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil, ou violação do princípio do pedido proibida no artigo 609º, nº 1, do mesmo diploma legal.

Neste sentido, vide, entre outra, a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 (relator João Cura Mariano), proferido no processo nº 879/17.7T8EVR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“A sentença da 1.ª instância considerou que, não tendo o Autor provado o período de tempo durante o qual esteve privado do uso do seu veículo, nem que tenha sofrido qualquer prejuízo com essa paralisação, não é possível concluir que ele seja titular de um direito a uma indemnização.

Já o Tribunal da Relação entendeu que a simples privação do uso do veículo é suficiente para que seja atribuída uma indemnização ao lesado, pelo que, não se tendo apurado a duração do período de tempo que o veículo esteve imobilizado para reparação, condenou a Ré a pagar uma indemnização ao Autor por este dano, a liquidar posteriormente.

(…) Os prejuízos podem ser de ordem patrimonial (acréscimo de despesas) ou de ordem não patrimonial (incómodos, sacrifícios, etc.) e, não sendo os mesmos concretamente apurados na fase declarativa, deve a respetiva indemnização ser remetida para posterior liquidação, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Em último caso, funcionará um juízo de equidade”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (relator Sousa Lameira), proferido no processo nº 879/17.7T8EVR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde é referido:

“(…) é manifesto que apenas é possível remeter para liquidação em execução de sentença o montante de danos que tenham sido efectivamente provados mas cujo valor concreto não foi possível determinar.

Como expressivamente se afirmava no Acórdão do STJ de 03.12.1998, BMJ 482-180, proferido ao abrigo da anterior legislação processual, mas que se mantém plenamente válido, “Do cotejo destes normativos resulta que só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove a sua existência, não existam os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade.

O que é essencial é que esteja provada a existência dos danos, ficando dispensada apenas a prova do respectivo valor”.

Fundamental, requisito essencial para que o Tribunal possa remeter para liquidação em execução de sentença é, pois, que se prove a existência de danos (ainda que se desconheça o seu valor)”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 2025 (relatora Rosário Gonçalves), proferido no processo nº 6036/23.6T8GMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Mesmo perante o regime do anterior art. 661º do CPC., dizia Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, vol. 5 «O 2º período do art. 661º. prevê a hipótese de não haver elementos para se fixar o objeto ou a quantidade da condenação e prescreve que, em tal caso, a sentença condene no que se liquidar em execução.

O tribunal encontra-se perante esta situação: verificou que o réu deixou de cumprir determinada obrigação ou praticou certo facto ilícito; quer dizer, reconhece que tem de o condenar; mas o processo não lhe fornece elementos para determinar o objeto ou a quantidade da condenação. Em face destes factos, nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse à toa, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a de proferir condenação ilíquida».

Também no mesmo sentido, Código de Processo Civil Anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe de Sousa, vol. I, Almedina, pág. 729 «Mesmo em casos em que o autor tenha quantificado a sua pretensão, a ação pode culminar com uma sentença de teor genérico ou ilíquido desde que, sendo apurada a existência do direito e da correspondente obrigação, os elementos de facto se revelem insuficientes para a quantificação, mesmo com recurso à equidade.

Esta é uma posição que encontra na jurisprudência um larguíssimo consenso, rejeitando uma argumentação formal que valorizasse o facto de, assim, se conceder ao autor uma dupla oportunidade para o reconhecimento do mesmo direito. Tal não é verdade se considerarmos, como se impõe, que uma sentença de condenação ilíquida pressupõe a demonstração de que existe um direito que apenas carece de concretização suscetível de ser conseguida ainda através do subsequente incidente de liquidação»”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2017 (relator Hélder Roque), proferido no processo nº 685/03.6TBPRG.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se deixou consignado:

“se a impossibilidade de averiguação do valor real dos danos depende da falta de elementos, sendo certo que ainda não é determinável o seu montante, a opção entre o disposto no artigo 609º, nº 2, do CPC [liquidação posterior] e o artigo 566º, nº 3, do CC [julgamento equitativo desse valor], deriva do juízo que, face às circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade da futura determinação de tal valor, consistindo uma hipótese típica dessa não probabilidade a de se não vir a fazer na liquidação a prova do valor exato do dano, com prevalência da equidade, ou, na hipótese oposta, com preferência da liquidação posterior.

Encontrando-se acertada a existência de um dano indemnizável, mas não o montante exato do mesmo, a fixação da indemnização, segundo critérios de equidade, só será de excluir se não for possível ao tribunal, por total carência de elementos, determinar os limites dentro dos quais se deve fazer a avaliação, ou seja, quando o tribunal não puder estabelecer o exato montante do dano, sendo, no entanto, ainda possível que o autor possa avançar com outros elementos para esse fim, isto é, quando não esteja esgotada ou, razoavelmente, seja de prognosticar esse cenário, quanto ao apuramento dos elementos com base nos quais o seu montante haja de ser determinado, remetendo, então, o tribunal o autor para uma liquidação posterior para concretizar, definitivamente, a indemnização”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2023 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 1884/18.1T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“O facto de o autor não ter não formulado, neste ponto, um pedido genérico nos termos do disposto no artigo 556.º do CPC ou de não ter exercido expressamente a faculdade prevista no artigo 569.º do CC não inibe o tribunal de o fazer, estando a situação, justamente, prevista no artigo 609.º, n.º 2, do CPC (Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado)

Esta interpretação é perfilhada há tempo na doutrina e na jurisprudência.

Veja-se o que observa José Alberto dos Reis em comentário à norma 383.º do CPC de 1939 (homóloga da do artigo 358.º do CPC actual):

“A regra geral tem como destinatário o juiz; dirige-se ao julgador, e não às partes. Dá-se ao magistrado este comando: se não puder condenar em objecto ou quantidade líquido, condene em objecto ou quantidade ilíquido.

Eis o conteúdo e o sentido da norma referida, a qual tanto se aplica ao caso de se ter formulado pedido genérico, como ao de se ter formulado pedido específico, mas não se ter conseguido fazer a prova da especificação”.

Veja-se o que afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa:

“Mesmo em casos em que o autor tenha quantificado a sua pretensão, a ação pode culminar com uma sentença de teor genérico ou ilíquido desde que, sendo apurada a existência do direito e da correspondente obrigação, os elementos de facto se revelem insuficientes para a quantificação, mesmo com recurso à equidade.

Esta é, aliás, uma posição que encontra na jurisprudência um larguíssimo consenso, rejeitando uma argumentação formal que valorizasse o facto de, assim, se conceder ao autor uma dupla oportunidade para o reconhecimento do mesmo direito. Tal não é verdade se considerarmos, como se impõe, que uma sentença de condenação ilíquida pressupõe a demonstração de que existe um direito que apenas carece de concretização suscetível de ser conseguida ainda através do incidente de liquidação”5.

Veja-se o que se afirma, por exemplo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2014 (Proc. 593/09.7TTLSB.L1.S1).

“Em face da insuficiência de elementos para determinar o montante indemnizatório, nada obsta a que se profira condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência dos danos, mas apenas sobre o respetivo valor”.

Acrescenta-se aí, a título de justificação:

“Este entendimento é o mais consentâneo com o princípio da igualdade, uma vez que não se vislumbra fundamento material para tratar diferentemente aqueles que formulam ab initio um pedido genérico e os que apresentam, logo à partida, um pedido específico.

Por outro lado, como se refere no Ac. de 10-12-2013 deste Supremo [Proc. 12865/02.7TVLSB.L1.S1] , “não seria curial que, tendo a [parte em questão] provado a existência de uma situação de direito à reparação do dano – art. 562.º do CC –, apesar disso, a ação devesse ser julgada improcedente apenas porque se não provou o exato montante que se encontra, a esse título, em dívida”.

No que toca ao pedido de indemnização por despesas futuras, o Tribunal recorrido decidiu, conforme o autor pedia, remeter para incidente de liquidação, pelo que, ainda mais visivelmente, não há nenhuma desconformidade com o previsto naquelas normas ou noutra norma qualquer”.

Questão diversa tem a ver com o pedido (autónomo) na condenação no montante de € 6.057.36 relacionado com algumas obras que, na pendência dos autos, a A. levou a cabo, em 15 de Dezembro de 2021, para poder vender o imóvel, em condições minimamente aceitáveis, a terceiro interessado.

Tal pretensão foi apresentada em articulado superveniente e não se reporta directamente à factualidade ínsita na petição inicial.

De todo o modo, o acórdão recorrido não condenou a Ré nesse pagamento, pelo que tal matéria extravasa o âmbito do presente recurso de revista e, por isso mesmo, é desde logo absolutamente inútil o seu conhecimento.

Em suma, não assiste à Ré qualquer razão na invocação da nulidade por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, ou da violação do princípio do pedido ao abrigo do disposto no artigo 609º, nº 1, do mesmo diploma legal.

4 – Incorrecto exercício dos poderes de facto por parte do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil.

Sobre esta matéria, cumpre referir que o Tribunal da Relação de Coimbra se limitou a apreciar, dentro dos poderes que a lei processual lhe confere, a impugnação de facto apresentada pelo ora recorrida, ouvindo a gravação da prova e aquilatando criticamente todos os elementos probatórios em causa, para finalmente extrair o seu juízo de facto próprio e autónomo, o que levou à modificação de alguns pontos na decisão de facto.

Não se vê que no desenvolvimento desta sua actividade processual tenha o Tribunal da Relação de Coimbra incorrido em uso incorrecto dos seus poderes em matéria de facto, nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil.

A reapreciação da prova produzida em 1ª instância constituiu uma tarefa processual perfeitamente normal dentro dos poderes conferidos ao tribunal de 2ª instância, não estabelecendo a lei qualquer tipo de preferência ou predominância pelo juízo de facto dos julgadores que tiveram o contacto directo e imediato com os elementos probatórios que nesses termos limite a esfera de actuação do Tribunal da Relação, a quem compete precisamente, com liberdade de julgamento, proceder à sua superior sindicância.

Sobre o uso incorrecto dos poderes conferidos no artigo 662º do Código de Processo Civil e sua recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de12 de Novembro de 2024 (do mesmo relator que ora subscreve o presente acórdão) proferido no processo nº 992/21.6T8VIS-C1-A.S1, publicado in www.dgsi.pt:

“(…) cumpre notar que não é abrangido pela regra da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça prevista no 662º, nº 4, do Código de Processo Civil, o recurso de revista que verse sobre os pressupostos legais do exercício dos poderes funcionais por parte do Tribunal da Relação em matéria de facto, quando esteja em causa uma violação de normas processuais que subverta, por si só e em absoluto, as regras basilares sobre a definição dos factos a dar como provados e não provados.

(Vide sobre este o tema Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”, Almedina 2020, 2ª edição, a página 827 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 2023, proferido no processo nº 1088/12.7TYLSB-C.L1.S1 (relator Luís Espírito Santo), publicado in www.dgsi.pt.

Conforme escreve Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a página 363:

“Todavia, esta delimitação (do nº 4 do artigo 662º do Código de Processo Civil) não é totalmente rígida. Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da matéria de facto, máxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento dos deveres previstos no artigo 662º”.

No mesmo sentido, vide José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume III, Almedina 2022, 3ª edição, a página 177, onde enfatizam os autores que: “(…) a lógica do preceituado no nº 4 – o STJ tem a sua competência limitada às questões de direito – não impede que “seja admissível recurso de revista quando se suscitem questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo, conexas com a apreciação da impugnação da decisão de facto” (…). Trata-se de errores in procedendo, respeitantes ao desenvolvimento do procedimento probatório. Ao STJ é possível verificar se a Relação, ao apreciar a matéria de facto, respeitou as normas procedimentais dos nºs 1 a 3 do artigo 662º (…)”; João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in “Manual de Processo Civil”, Volume II, AAFDL 2022, a página 239, onde pode ler-se: “A irrecorribilidade estabelecida no artigo 662º, nº 4, não impede que o STJ possa controlar se a Relação usou os poderes que lhe são conferidos dentro da lei ou se os deixou de usar com violação da lei”.

É o que sucede designadamente quando o Tribunal da Relação ao sindicar a matéria de facto no âmbito da apreciação da impugnação a que alude o artigo 640º do Código de Processo Civil avoca indevidamente critérios de decisão não permitidos – e mesmo vedados - pela lei e que, nessa mesma medida, ofendem preceitos de natureza processual fundamentais.

(Sobre esta matéria vide, entre outros - todos publicados in www.dgsi.pt -:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Tomé Gomes) proferido no processo nº 4016/13.9TBVNG.P1.S3;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2016 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 907/13.5TBPTG.E1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2019 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 156/16.0T8BCL.G1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Rijo Ferreira), proferido no processo nº 277/12.9.TBALJ-B.G1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2018 (relatora Rosa Ribeiro Coelho), proferido no processo nº 1295/11.0TBMCN.P1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2018 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 90/13.6TVPRT.P2-A.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2015 (relatora Prazeres Beleza), proferido no processo nº 284040/11.0YIPRT.G1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2020 (relatora Rosário Morgado), proferido no processo nº 2882/16.5T8LRA.C1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Setembro de 2022 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 3714/15.7T8CRA.C1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2022 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 400/18.0T8PVZ.P1.S1;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Junho de 2023 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 6132/18.1T8ALM.L1.S2;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2019 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo nº 431/14.9TVPRT.P1.S1.;

- acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 23 de Fevereiro de 2021 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 5503/17.5T8GMR.G1.S1;

- o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2020 (relator José Manso Rainho), proferido no processo nº 1863/16.3T8PNF.P1.S1;

- o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2020 (relator Ilídio Sacarrão Martins), proferido no processo nº 4794/16.3T8GMR.G1.S1;

- o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Bernardo Domingos), proferido no processo nº 877/15.5T8CSC.L1.S1;

- o acórdão 18 de Maio de 2017 (relatora Ana Luísa Geraldes), proferido no processo nº 4305/15.8SNT.L1.S1;

- o acórdão 29 de Novembro de 2016 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 2170/05.2TVLSB-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 2021 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 3277/12.5TBLLE-F.E2.S1)”.

Ora, na situação sub judice, os julgadores de 2ª instância não avocaram para o conhecimento da impugnação de facto qualquer critério que colocasse em crise os pressupostos legais do exercício dos poderes funcionais por parte do Tribunal da Relação em matéria de facto, nem incorreram na violação de normas processuais que subvertessem, por si só e em absoluto, as regras basilares sobre a definição dos factos a dar como provados e não provados.

Nada disso se verificou in casu.

Nem se compreende em que é que se materializará o dito (alegado) exercício discricionário e quiçá arbitrário por parte da 2ª instância, assente na referência à dita “desnecessidade da intervenção do Tribunal da Relação” para modificar o quadro factual definido no tribunal a quo, por alegadamente não imporem resposta diversa.

Mais uma vez o que sucede é que a Ré recorrente discorda do novo e superior juízo de facto emitida em sede de recurso de apelação, preferindo a intangibilidade e imodificabilidade daquele que fora fixado em 1ª instância e que era totalmente favorável aos seus interesses.

Tal não constitui razão válida para permitir a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça neste tocante.

Assim sendo, em termos de apreciação da matéria de facto o Tribunal da Relação constitui, em regra, a última e definitiva instância, salvo situações excepcionais que se prendem com a violação do direito probatório material, não competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, a não ser nesses casos pontuais, interferir e modificar o quadro factual que nesses termos se estabiliza.

Pelo que improcede igualmente a revista neste tocante.

5 – Indevida por ilegal utilização de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação. Invocada ilogicidade das presunções utilizados no acórdão recorrido.

Consta do acórdão recorrido, a este propósito:

“Da palavra da testemunha CC, trabalhador da 1ª R., contra o teor do auto de notícia, confirmado pelo sr. agente policial DD no seu depoimento, e que inclui a acareação, dá-se manifesta preferência probatória a este, por ser agente de autoridade e testemunha desinteressada e distante das partes.

Ao contrário do que os recorridos defendem nas suas contra-alegações, o auto de notícia não é nulo nos termos do art. 170º, nº 1, do Cód. Estrada, porque não estamos perante qualquer infração rodoviária (nem se alcança a invocação de tal diploma e artigo !?).

Desta sorte, acompanhando o raciocínio da A. recorrente, quase integralmente, diremos que se os bens pertença da 1ª R. já haviam sido retirados no dia 28, se foi dado como facto provado (factos 10. e 11.) que a destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado e os danos nos tetos e paredes foram provocado pelos dois ocupantes da carrinha branca, se esses ocupantes da carrinha branca foram ao local no dia 30, 2 dias depois da loja estar desapossada dos bens da 1ª R., numa carrinha igual à da frota de tal R., tendo já na sua posse umas chaves do locado, tendo a R. BB (funcionária da 1ª R.) ordenado à testemunha CC que entregasse aos mesmos 3 chaves do locado e 1 comando que ele tinha na sua posse, não se entende bem como não se dá como provado que os indivíduos referidos em 11. dos factos estavam ao serviço da 1 R.

O que é muito verosímil, num grau de alta probabilidade, é a resposta contrária, que tudo conjugando com os dados da intuição humana e as regras de experiência da vida, por presunção judicial, se pode extrair afirmativamente.

Assim (ao abrigo dos arts. 663º, nº 2, e 607º, nº 1, 1ª parte, do NCPC), deve ser alterada a matéria de facto dando-se se como provados os pontos 5. e 7. dos factos não provados, mas quanto a este excluída a parte final, pois nenhuma prova se fez nesse sentido.

Passarão, pois, tais factos a provados, sob os nºs 11-A. e 11-B., com a seguinte redacção (a negrito, ficando os anteriores não provados em letra minúscula):

11-A. Os indivíduos referidos em 11 dos factos provados estavam ao serviço da ré Emergeprestígio;

11-B. Foi a ré BB quem deu ordens ao funcionário da 1ª ré, de nome CC, para entregar as chaves do arrendado aos referidos indivíduos”.

Invoca agora a recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça deverá censurar o uso da referida presunção judicial.

Vejamos:

Afigura-se-nos que a utilização e a validade legal da presunção judicial extraída no acórdão recorrido não nos oferece qualquer tipo de reparo, não se verificando a sua invocada (pela recorrente) ilogicidade e não estando vedada por qualquer norma pertinente ao direito probatório material.

Cumpre salientar a este propósito que as presunções utilizadas pelo julgador não constituindo meios de prova mas simples ilações retiradas pelo julgador de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos, não são, via de regra, sindicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo os casos da sua manifesta ilogicidade ou existindo violação de qualquer regra do direito probatório material.

Sobre esta matéria vide, entre muitos outros:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 2012 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 1082/01.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salientou:

a função do Supremo Tribunal de Justiça circunscreve-se fundamentalmente à reponderação da resposta jurídica à realidade fáctica assumida pelas instâncias.

É verdade que a lei estabeleceu excepções a tal regra, como resulta do nº 3 do art. 722º. Todavia, a sua leitura não pode se distorcida a tal ponto que se qualifique como erro de direito aquilo que não excede os poderes de livre convicção atribuídos aos tribunais de instância relativamente às provas produzidas e às regras de experiência associadas.

O uso que por parte da Relação foi feito de presunções judiciais na formação da sua convicção acerca dos factos provados e não provados apenas seria de reavaliar se acaso, no desempenho dessa função, tivesse sido ofendida alguma regra jurídica que exigisse determinada espécie de prova ou que estabelecesse o valor de determinado meio de prova (art. 722º, nº 3).

Condensando o que pode considerar-se jurisprudência corrente, deste Supremo Tribunal sobre a matéria, refere-se no Ac. de 14-6-11, CJSTJ, tomo II, pág. 105 (citando outros arestos), que o STJ “não pode sindicar o juízo de facto formulado pela Relação para operar a ilação a que a lei se reporta, salvo se ocorrer a situação prevista na última parte do nº 2 do art. 722º do CPC”, ainda que deva ser considerada matéria de direito, sujeita, por isso, a revista “a admissibilidade ou não das referidas ilações”, designadamente através da “verificação do método discursivo do raciocínio que levou à ilação”. Doutrina que, além de outros, emana igualmente dos Acs. do STJ, de 9-12-04, CJSTJ, tomo III, pág. 144, 8-7-03, CJSTJ, tomo II, pág. 151, e de 23-9-03, CJSTJ, tomo III, pág. 43”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2014 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 299709/11.0YIPRT-P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se concluiu:

As presunções judiciais não são propriamente meios de prova, mas ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º do CC).

Constitui jurisprudência corrente que é lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la.

O Supremo só pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2021 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 2395/11.1TBFAF.G2.S1, publicado in www.dgsi.pt, que refere:

“Tem sido jurisprudência constante do STJ que, por via da válvula de escape residual de reapreciação da matéria de facto prevista no art. 674.º, n.º 3, 2.ª parte, amparada no art. 682.º, n.º 2, 2.ª parte, sempre do CPC, a revista possa servir legitimamente para controlar o uso da construção de presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, tendo em vista verificar a violação de norma legal (nomeadamente os arts. 349.º e 351.º do CC), a sua coerência lógica (ilogismo manifesto e evidente) e a fundamentação probatória de base quanto ao facto conhecido”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2021 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo nº 1724/15.3T8VRL.G2.S2, publicado in www.dgsi.pt, que refere:

“Entre os poderes do TR, na reapreciação e valoração dos meios de prova sujeitos à livre apreciação e na formação da sua convicção com autonomia do juízo efetuado pelo Tribunal de 1.ª Instância, encontra-se aquele de recorrer a presunções judiciais.

O STJ tem também poderes para sindicar o uso de presunções judiciais pelo TR no caso de ofensa de norma legal, de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

Na fixação da matéria de facto relevante para a solução do litígio, a última palavra compete ao TR, através do exercício dos poderes que lhe são legalmente conferidos (art. 662.º, n.os 1 e 2, do CPC).

A intervenção do STJ no apuramento da matéria de facto relevante reveste-se de caráter excecional e residual, porquanto se limita a controlar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da decisão de facto ou o suprimento de contradições na decisão sobre a matéria de facto (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC)”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2023 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 323/17.0T8VFR.P2.S2, publicado in www.dgsi.pt, que refere:

“O art. 674.º, n.º 3, do CPC implica que o STJ não possa pronunciar-se sobre o uso ou sobre o não uso de presunções judiciais pelos tribunais de 1.ª instância ou pelos tribunais da Relação.

Exceptuam-se, tão-só, os casos em que as presunções judiciais não sejam admitidas pela lei; em que, ainda que admitidas pela lei, sejam inferidas de factos não provados; ou em que, ainda que inferidas de factos provados, sejam manifestamente ilógicas”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2024 (relatora Rosário Gonçalves), proferido no processo nº 2638/21.3T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, que refere:

“As presunções judiciais inserem-se no contexto do apuramento da matéria de facto, e daí que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de escrutínio por parte do STJ, exceto se houver violação de norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou partirem de factos não provados”.

Na situação sub judice, o recurso à dita presunção judicial pelo tribunal a quo traduziu-se no seguinte percurso intelectual:

Estando demonstrado (na convicção dos julgadores de 2ª instância) que:

- os bens pertença da 1ª R. já haviam sido retirados no dia 28 de Junho;

- a destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado e os danos nos tetos e paredes foram provocado pelos dois indivíduos que utilizaram uma carrinha branca;

- os mesmos foram ao local no dia 30 seguinte, isto é, dois depois da loja estar desapossada dos bens da 1ª R.;

- a carrinha branca em referência é semelhante à da frota da 1ªR.;

- a Ré tinha na sua posse umas chaves do locado;

- a R. BB (funcionária da 1ª R.) ordenou à testemunha CC que entregasse a dois indivíduos três chaves do locado e um comando.

Então, tendo em conta estes concretos acontecimentos que o Tribunal da Relação aceitou, no seu legítimo convencimento, como verdadeiros e demonstrados, impõe-se concluir, por presunção judicial ou norma decorrente da experiência da vida, que os mesmos ditos indivíduos estavam ao serviço da 1ª R. e actuaram prosseguindo a vontade e o interesse desta.

Ora, embora se possa naturalmente discutir o grau de fiabilidade e segurança deste mesmo raciocínio, não se vislumbra que o mesmo padeça de qualquer vício, e, muito menos, que seja absolutamente manifesta a sua falta de lógica.

O que significa que não compete ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar, neste caso particular, a utilização, em termos de juízo de facto, desta mesma presunção judicial.

Trata-se exclusivamente de uma questão de matéria de facto definitivamente resolvida pelo Tribunal da Relação.

Pelo que improcede a revista neste tocante.

6 – Violação do princípio do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes.

Alega a recorrente a este respeito:

Os ditos princípios processuais manifestam-se, para o que releva in casu, na incumbência que recai sobre as partes de alegarem os factos que sustentam as respetivas pretensões ou meios de defesa, nos termos do disposto no n. º1 do artigo 5.º do Código do Processo Civil.

Por inerência, estão as partes igualmente oneradas de carrear para o processo os meios probatórios necessários à demonstração da veracidade dos factos que alegam, nos termos prescritos nos artigos 342.º e seguintes do Código Civil.

Nestes termos, encontrava-se o Tribunal a quo impedido de se substituir à Recorrida na produção de prova que esta não logrou produzir.

O desfecho da lide está necessária e intrinsecamente ligado com a diligência com que as partes cumpremosseusónus processuais, não olvidando, claro está, a sua harmonização com o princípio do inquisitório.

Face à inércia da Recorrida evidenciada ao longo dos presentes autos em fazer prova necessária e adequada à factualidade que alegou, a aplicação do direito nos termos da decisão advinda do Acórdão recorrida significa “colocar em cheque” toda a génese do nosso direito adjetivo, em claro prejuízo de quem exerce o direito constitucionalmente consagrado de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, nos termos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

O pedido genérico só é admissível em situações de impossibilidade objetiva de determinação da quantia devida no momento da formulação do pedido.

A verdade é que, no caso concreto, a Recorrida teria à sua disposição todos os elementos necessários para demonstrar e quantificar os danos que ela própria diz ter sofrido.

Não o tendo feito, não cabia ao douto Tribunal a quo determinar a condenação na quantia que se vier a liquidar em sentença.

É irrefutável que cabia à Recorrida o ónus de o ónus de demonstrar, com rigor e exatidão, os danos efetivamente sofridos, bem como a sua extensão.

E tal prova poderia ter sido feita de forma objetiva e clara, desse modo permitindo ao Tribunal recorrido aferir do montante da reparação alegadamente devida.

O Tribunal a quo considerou como provados os danos verificados nos tectos e nas paredes do locado.

Recorrida alegou a necessidade da realização de obras para a reposição do locado no seu estado primitivo.

Ainda assim, a Recorrida não quantificou os custos efetivos necessários à reparação dos danos ocasionados, limitando-se a uma alegação genérica sobre a necessidade de reparações no locado.

A Recorrida afirmou ter realizado as reparações necessárias.

A Recorrida mais declarou e comprovou que vendeu o imóvel outrora locado à aqui Recorrente.

Estava perfeitamente munida dos elementos necessários para a determinação do montante necessário à reparação efectiva dos danos causados nos tectos e paredes do locado.

É inegável que tal determinação, uma vez possível, era obrigação da Recorrida.

Ao ter procedido nos termos supra referidos, veio, novamente, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra desconsiderar a importância do cumprimento dos ónus processuais que recaem sobre as partes em juízo.

Incorrendo, assim, também, numa violação do disposto no n. º2 do artigo 609.º do Código do Processo Civil, na medida em que deferiu um pedido genérico indevidamente formulado.

E, mais uma vez, substituindo-se à Recorrida, como foi apanágio dos presentes autos em 2.ª instância, ao remeter a quantificação dos danos para liquidação, em nova violação dos princípios do dispositivo e autorresponsabilidade das partes.

Apreciando:

Conforme foi sublinhado supra, resultando os danos ocorridos na fracção da A. da actuação de dois indivíduos actuando a mando da Ré e que os vieram a provocar, a ausência de demonstração da sua exacta expressão pecuniária não obsta à condenação desta no que for liquidado em processo subsequente, nos termos gerais do artigo 609º, nº 2 do Código de Processo Civil.

Neste âmbito, não se compreende como se possa afirmar seriamente que o tribunal se tenha substituído à parte onerada com o ónus de prova previsto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil, ao remeter a quantificação dos danos para liquidação futura.

Todos os factos constitutivos da obrigação de indemnizar foram alegados pela A. e foi esta exclusivamente quem desenvolveu a actividade processual conducente à sua demonstração em juízo.

A condenação proferida pelo tribunal teve unicamente em consideração dos factos trazidos aos autos pelas partes, os quais mereceram a detalhada análise crítica de que se deu nota.

Não há, por conseguinte, qualquer tipo de violação dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, como se nos afigura evidente, não merecendo a questão sequer qualquer outro tipo de desenvolvimento.

Pelo que não assiste razão à Ré neste particular.

7 – Natureza da responsabilidade assacada no acórdão recorrido aos RR. Ausência de verificação dos requisitos da responsabilidade extracontratual. Ausência de nexo de causalidade entre os factos e o dano. Necessidade de ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Alega a Ré a este propósito:

A recorrente não alcança se a responsabilidade civil que lhe é imputada pelo douto acórdão recorrido, alegadamente geradora do dever de indemnizar, tem natureza contratual ou extracontratual,

Era imperativo que o douto acórdão recorrido tendo em conta os factos provados e não provados, se pronunciasse acerca de qual das duas modalidades de responsabilidade civil imputava à recorrente, de modo a definir sobre quem recaía o ónus de efetuar a devida prova da lesão do direito de que se arroga a recorrida.

Tanto mais que ilibando a recorrente dos demais danos causados no interior do imóvel, esta ficou sem saber a que título os mesmos eram imputados, tendo em conta o alegado no artigo 10 dos factos provados onde se refere:

“A destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho do ar condicionado provocaram danos nos tectos e paredes do locado”. (sublinhado nosso).

A ser assim, igualmente não se compreende como foi a recorrente condenada a indemnizar a recorrida pelos danos causados nas paredes e nos tetos, e absolvida da responsabilidade resultante da invocada destruição e subtração da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado, que alegadamente deu causa aos danos invocados!

Uma vez que o texto do Acórdão recorrido, refere no ponto 7 dos factos provados, que:

“O referido imóvel esteve arrendado à Ré, EmergePrestígio até ao dia 30 de junho de 2021, data em que, na sequência da transação efetuada na ação de despejo que correu termos neste juízo local cível, o contrato foi revogado pela Autora e pela identificada Ré;”

“-o locado foi entregue pela 1.ª Ré à autora em 30-06-2021, deixando aquela de ter qualquer acesso ao mesmo, a partir dessa data”. Facto provado nº 13

Pelos factos dados como provados pelo Acórdão recorrido, e que acima se transcreveram, não subsistem dúvidas de que os danos geradores de responsabilidade cuja autoria é imputada à recorrente, ocorreram após a cessação do contrato de arrendamento, ou seja, ocorreram no lapso temporal que decorre entre a celebração da transação judicial e a entrega das chaves naquele dia 30 de junho de 2021, com a transmissão da posse, e a constatação dos mesmos pelo legal representante da Autora, aquando a sua deslocação ao imóvel no dia 02 de julho de 2021.

A imputar-se alguma responsabilidade à recorrente, o que não se concede, esta situar-se-ia no domínio da responsabilidade civil extracontratual, uma vez que o contrato de arrendamento já havia cessado no dia 30 de junho de 2021, mediante a restituição da posse do estabelecimento comercial, através da entrega das chaves, e da cessação do arrendamento concretizada pela transação judicial celebrada no âmbito da ação de despejo.

No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, era sobre a recorrida que impendia o dever de fazer prova da lesão do seu direito, e provar que essa lesão havia sido causada pela recorrente, desiderato que não logrou alcançar.

Residindo o inconformismo da recorrente na inversão do ónus da prova que o Acórdão recorrido faz, ao transferir para a recorrente o ónus de provar que a mesma não causou os danos que lhe são imputados, tendo em conta que estamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual.

A recorrida não fez qualquer prova de que tais danos foram causados pela recorrente, tal como lhe era devido.

Mais insólito ainda, e inalcançável, é o facto de o Acordão recorrido, imputar a autoria dos danos nas paredes e nos tetos da fração à retirada e destruição da estrutura do piso superior da escadaria e do aparelho de ar condicionado, e absolver a recorrente dessa mesma subtração e destruição da estrutura do piso superior da escadaria e do aparelho de ar condicionado, mas condená-la ao pagamento dos danos nas paredes e tetos que essas manobras causaram!

O douto Acórdão recorrido não estabelece o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

De acordo com o facto provado 10 da decisão recorrida, o dano nas paredes e teto, da responsabilidade da recorrente, foi causado pela subtração e retirada da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado que deacordocom adouta decisãorecorrida,não foramdaautoria da recorrente!

O douto acórdão recorrido padece não só de insuficiência de fundamentação, mas também de ininteligibilidade.

Para que o facto ilícito seja efetivamente gerador de responsabilidade civil, é indispensável que se conclua pela observância de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano alegadamente ocasionado.

Cumprido o supra referido desígnio, fica o agente obrigado a indemnizar o lesado por todos os danos que, com um razoável grau de probabilidade, não teriam sido ocasionados na sua esfera jurídica, não fosse a conduta do agente.

No que ao presente caso respeita, analisando o preenchimento do requisito do nexo causal e tendo por referência o regime da causalidade, consagrado no artigo 563.º do Código Civil, é por demais evidente que inexiste a obrigação de ressarcir qualquer dano, in casu.

Dúvidas inexistem quanto à ausência da obrigação de indemnizar a cargo da Recorrente.

Apreciando:

A responsabilidade ora imputada à Ré só pode ter lugar no âmbito da responsabilidade extracontratual, na medida em que todos os factos em apreço e relativos à constituição da obrigação de indemnizar foram praticados quando já se extinguira o vínculo contratual que uniria a senhoria à arrendatária.

Ou seja, não há que falar em responsabilidade contratual quando o vínculo negocial se extinguiu antes do cometimento de qualquer acto ilícito, o qual foi absolutamente alheio e autónomo relativamente à relação contratual antes mantida entre as partes.

Assim sendo, a Ré só pode ser responsável perante a A. nos termos gerais do artigo 483º, nº 1, do Código Civil, não fazendo sentido a alusão à sua responsabilidade no âmbito contratual.

Provou-se nos autos (por via da procedência da impugnação de facto apresentada pela apelante) que a Ré, ex-arrendatária, mandou outrem, a quem facultou as chaves do espaço que antes lhe esteve arrendado, para aí se introduzir e dele retirar determinado conjunto de bens.

Em virtude dessa mesma actuação invasiva de retirada de bens (a mando da Ré e não autorizada pela A., ex-senhoria) verificaram-se causalmente “danos nos tectos e paredes do locado”, resultado igualmente da destruição e subtracção da estrutura do piso superior, da escadaria e do aparelho de ar condicionado.

Logo, será Ré – segundo os factos que foram dados como provados e que não compete ao Supremo Tribunal de Justiça alterar – responsável, nos termos gerais do artigo 483º, nº 1, do Código Civil, por haver incumbido alguém de entrar no imóvel quando ao mesmo não deveria ter acesso por não dispor de título algum que tal permitisse, e daí haver retirado um determinado conjunto de bens, provocando como consequência desta sua não autorizada e clandestina actividade os danos em causa (nos tectos e paredes).

É, portanto, completamente irrelevante saber a razão pela qual o acórdão recorrido não procedeu a qualquer outra condenação da Ré, uma vez que a A., prejudicada com tal delimitação condenatória, não a impugnou, conformando-se com o decidido na parte que lhe foi desfavorável.

Logo, será evidentemente a Ré recorrente responsável pela quantia a liquidar e correspondente à expressão monetária desses mesmos estragos, acrescida de juros.

Sobre isso não pode restar qualquer tipo de dúvida.

Porém, cumpre referir que em parte alguma dos autos a A. concretizou verdadeiramente em que se traduzia, no plano estritamente factual, o conceito amplo, vago e genérico de “extensos danos nos tectos e nas paredes” que utilizou no artigo 9º da petição inicial.

O que significa que formulada nestes termos abstractos a referência factual aos danos sofridos pela A., não será sequer viável proceder conscienciosamente à sua quantificação em sede de futura liquidação.

Basicamente não se saberá, nem será possível saber, no processo de liquidação subsequente, quais foram afinal os exactos e concretos danos nos tectos e nas paredes, a sua natureza, características e extensão, que constituem a referência essencial com base na qual se apurará o quantum indemnizatório devido.

Tudo está, neste momento e a este respeito, completamente indefinido, não havendo possibilidades, em termos sérios e rigorosos, de quantificar futuramente um conceito totalmente em aberto, onde teoricamente tudo e o seu contrário pode caber.

Será, portanto, necessário, por imprescindível, saber previamente em que é que consistiram os tais “extensos danos em tectos e paredes” para após isso se averiguar em que consiste a respectiva expressão pecuniária para efeitos indemnizatórios.

Assim sendo, e ao abrigo do disposto no artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil, deverá ser ampliada a matéria de facto de modo a apurar-se, em termos rigorosos e concretizados, em que é que consistiram os danos em tectos e paredes aceites como demonstrados tanto na decisão de 1ª instância, como no acórdão recorrido (vide ponto 10 dos factos dados como provados).

A revista será apenas procedente nestes termos.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível) conceder provimento à revista apenas no sentido de determinar, ao abrigo do disposto no artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil, a ampliação da matéria de facto de modo a apurar-se, em termos rigorosos e concretizados, em que é que consistiram os danos em tectos e paredes aceites como demonstrados tanto na decisão de 1ª instância, como no acórdão recorrido (ponto 10 dos factos dados como provados).

Custas da revista pela recorrida.

Lisboa, 13 de Maio de 2025.

Luís Espírito Santo (relator)

Anabela Luna de Carvalho

Luís Correia de Mendonça (vencido)

Vencido pelas seguintes razões:

Não acompanho o acórdão, apenas no que toca ao ponto 5 da fundamentação, porquanto em estudo recente («A sindicância pelo Supremo Tribunal de Justiça da violação do contraditório nas presunções judiciais». O Direito, Ano 157 (2025-I)), para o qual remeto, defendi posição oposta).

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.