Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | VIEIRA E CUNHA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO CULPA DO LESADO PERDA DE VEÍCULO SALVADOS EQUIDADE DANOS PATRIMONIAIS IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REGISTO AUTOMÓVEL PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE PRESUNÇÃO JURIS TANTUM NULIDADE DE ACÓRDÃO AMBIGUIDADE OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO | ||
Data do Acordão: | 09/08/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I – O que está em causa na indemnização do dano da privação do uso é o pagamento do valor necessário à aquisição de um veículo com características idênticas às do veículo destruído, pagamento que tanto é “necessário” antes, como após a venda do “salvado”, venda essa que apenas poderá minorar o dano da perda. II - Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado – reposta a situação anterior, cessa o dano da privação do uso. III – Se o lesado interpõe a acção, inexplicavelmente, apenas cerca de 2 anos depois de conhecer a resposta definitiva da 1ª Ré, no sentido de esta considerar o acidente simulado e se recusar a pagar qualquer indemnização, o específico dano ressarcido (a privação do uso) é passível de revelar indiferença perante esse seu próprio e referido prejuízo, indiferença contrária ao “padrão de uma normalidade interventora na zona dos danos patrimoniais”. IV – Todavia, a redução da indemnização, considerando apenas o tempo decorrido desde o acidente até à propositura da acção, deve ser desconsiderada, caso o tempo decorrido na pendência da acção venha a acrescer à referida indemnização (reduzida até à propositura da acção), em função do pedido formulado pela Autora. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça* As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo Sereia da Praia, Ldª, intentou a presente acção, com processo de declaração e forma comum, contra Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., e Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. Peticionou a condenação da 1ª Ré a pagar-lhe: a) € 89.217,67 pela perda total do veículo NL; b) € 60.180,00, a título de indemnização por privação do uso de veículo, desde a data do sinistro até à presente data; c) Indemnização pela privação do uso do veículo a ser contabilizada desde a presente data até ao efetivo e integral pagamento das quantias que se reclamam a título de perda total do veículo, no valor diário de € 60,00. A título subsidiário, caso se apure que a culpa pertence ao condutor do veículo da A. ou não sendo possível determinar qual dos veículos foi o culpado pela ocorrência do acidente, a condenação da 2ª Ré a pagar-lhe: a) € 70.708,00 pela perda total do veículo NL; b) € 60.180,00, a título de indemnização por privação do uso de veículo, desde a data do sinistro até à presente data; c) Indemnização pela privação do uso do veículo a ser contabilizada desde a presente data até ao efetivo e integral pagamento das quantias que se reclamam a título de perda total do veículo, no valor diário de €60,00. Ou caso se venha a apurar que ambos os condutores contribuíram com culpa para a produção do sinistro deverão as Rés serem condenadas na respectiva proporção. Mais peticionou que se condenem as Rés no pagamento de juros moratórios, contados à taxa legal em vigor, desde da data de citação até efectivo e integral pagamento. Alegou ser proprietária de um veículo da marca …, modelo … …., com matricula ....-NL-..., que foi interveniente em acidente de viação, em que interveio igualmente o veículo ligeiro de passageiros …, modelo …, com matricula ...-...-VF, segurado pela 1ª R., tendo sido este último a dar causa ao sinistro, posto que invadiu a hemifaixa de rodagem por onde circulava o veículo Audi, cujos danos próprios decorrentes da respectiva circulação foram segurados pela 2ª Ré. A R. Ocidental Companhia Portuguesa de Seguros SA. alegou, em virtude de averiguações efectuadas, ter concluído que os danos apresentados pelas viaturas não eram compatíveis com a dinâmica do acidente apresentada pelos condutores. Após peritagem dos serviços da Ré, o veículo foi considerado em perda total, posto que o valor previsto para a reparação era superior ao valor de mercado do veículo, já incluindo os extras que possuía. Perante uma situação de perda total não é devida reparação indemnizatória pela privação do uso. A Ré Allianz igualmente alegou ter declinado qualquer responsabilidade pelos danos reclamados pela Autora, sua segurada, porquanto concluiu, após verificação e análise dos danos e das circunstâncias participadas do acidente, que esses referidos danos não eram compatíveis com as circunstâncias alegadas. Atendendo ao valor de mercado do veículo e ao o valor estimado para a reparação, não era economicamente viável essa reparação, sucedendo no entanto que o valor do capital subscrito em 08.02.2013, de € 71.308,00, se mostra desadequado porque superior ao valor de mercado do NL à data do acidente, sendo que a obrigação de indemnizar, a existir, está limitada ao valor real do objecto seguro ao qual se deduz o valor do salvado e da franquia contratual. No que tange à indemnização pela privação de uso a existir reduz-se a mesma aos termos acordados no âmbito do contrato de seguro. As Decisões Judiciais Em 1ª instância, a acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré Ocidental Companhia de Seguros, S.A., condenada a pagar à A. Sereia da Praia, Ldª, a quantia de € 67.139,00, acrescida de juros calculados à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento. A quantia total referida proveio das seguintes parcelas - € 47 789,00, valor da perda total do veículo; € 19 350,00 – indemnização pela privação do uso. Recorreram de apelação a Ré Ocidental (recurso independente) e a Autora (recurso subordinado). Defendeu a Ré Ocidental que, desconhecendo-se até quando a Autora manteve a posse do veículo, se tinha imposto a condenação da Apelante numa indemnização pela privação do uso a apurar em sede de liquidação de sentença. A Autora defendeu que o período temporal a fixar para efeitos de indemnização pela privação de uso não deveria ter como limite a data da venda do salvado, mas sim a data do pagamento efectivo da indemnização devida pela perda total do veículo NL. O acórdão recorrido sustentou: “A ré Ocidental está obrigada a proceder à reparação integral dos danos sofridos pela autora, o que passa pela reparação da privação do uso do veículo desde a data do acidente até ao momento em que o pagamento da indemnização pela perda total do veículo deveria ter sido satisfeito, como forma de se alcançar ou de se aproximar da reconstituição natural da situação que existiria se acaso não tivesse ocorrido o acidente, nos termos do art.º 562º do C. Civil (Ac. do STJ, de 13-07-2017, proc. 188/14.3T8PBL.C1.S1, relatora Maria da Graça Trigo, www.dgsi.pt, e Ac. do TRE, de 5-11-2020, proc. 795/18.5T8TNV.E1, relator Tomé Ramião, www.dgsi.pt).” “A autora peticionou a quantia de € 60.180,00, a título de indemnização por privação do uso de veículo, desde a data do sinistro até à presente data; bem como a partir desta data até ao efetivo e integral pagamento das quantias que reclama a título de perda total do veículo, no valor diário de €60,00.” “Como foi decidido no citado Acórdão do STJ, de 13-07-2017 “Compreendendo-se o período de privação do uso de veículo entre 4-01-2013 e a data da entrega efetiva da indemnização pela perda total do veículo (que se desconhece se já ocorreu), uma vez que o valor acumulado da indemnização pela privação de uso ascenderá presentemente a um nível extremamente elevado e desproporcionado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado, como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que o mesmo foi produzido, deve o valor da indemnização a atribuir ter como limite máximo este último valor”. “No caso concreto, até à presente data, a recorrente Ocidental não colocou à disposição da autora o pagamento da indemnização correspondente ao valor de perda total do veículo.” “Consequentemente, e na ausência de outros elementos de facto, não alegados, fazendo uso do princípio da equidade e de justiça, ínsito no art.º 566º/3 do C. Civil, e tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto, considera-se adequada uma indemnização que não deve ultrapassar o montante da indemnização atribuída pela perda total do veículo, ou seja, o valor de €47.789,00.” No dispositivo, foi julgado improcedente o recurso principal da recorrente Ocidental-Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., e parcialmente procedente o recurso subordinado da Sereia da Praia, Ld.ª, e, em consequência, revogou-se parcialmente a sentença recorrida, substituindo-a por outra que condenasse a ré Ocidental-Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. a pagar ao autor a quantia de € 95.578,00, mantendo-se o decidido quanto aos juros. Inconformada ainda, recorre de revista a Ré Ocidental: I. Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que revogou parcialmente a Sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca ...., substituindo-a por outra onde condenou a ora Recorrente numa indemnização pela privação de uso de veículo, no montante de € 47.789,00 (quarenta e sete mil setecentos e oitenta e nove euros), acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento. II. Ao contrário do Tribunal em 1.ª instância, entendeu o Tribunal «a quo» que o período a considerar para a determinação da indemnização respeitante à privação de uso de veículo não é a da venda do salvado, mas a do pagamento efectivo da indemnização devida pela perda total do veículo, o que não se pode aceitar. III. Com efeito, a aqui Recorrida, peticionou uma indemnização pela privação do uso do veículo a ser calculada num valor diário de € 60,00 (sessenta euros) desde a data do sinistro até integral pagamento, a apurar em sede de Incidente de Liquidação de Sentença, cfr. artigos 30.º e 31.º da Petição Inicial. IV. Acontece que, após ter sido notificada para vir aos Autos informar se o veículo tinha, entretanto, sido reparado e onde se encontrava, a ora Recorrida comunicou que o veículo em questão tinha sido vendido como salvado, cfr. Requerimento com a Referência n.º ...158. V. Bem como comunicou posteriormente que não tinha ficado com qualquer documento comprovativo da venda, cfr. Requerimento com a Referência n.º ...759. VI. Não obstante, através da informação da base de dados do Registo Automóvel, foi possível apurar que o registo seguinte, com data de apresentação em 26.03.2014, indicava como proprietário AA. VII. Pelo que, o Douto Tribunal Judicial da Comarca .... deu como provado que: «Do registo automóvel consta o registo do veículo ....-NL-... indicando como proprietário, Sereia da Praia Lda., com data de apresentação a registo de 13.03.2013; seguida da indicação como proprietário AA, com data de apresentação a registo de 26.03.2014; de seguida como proprietária figurando BB com apresentação a registo de 14.05.2014 e por último indicação como proprietário CC e como data de registo 06-04-2015.» (FACTO PROVADO em 35). Ora, VIII. A jurisprudência maioritária seguida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal em 1.ª instância «(…) reconhece o direito à indemnização pela privação de uso de veículo com fundamento na simples privação do uso normal do bem. A afirmação desta tese assenta, por isso, na constatação naturalística de que a privação do uso de uma coisa inibe o proprietário de sobre ela exercer os inerentes poderes de gozo, maxime, de uso e fruição, razão porque constitui por si só uma perda autónoma avaliável em dinheiro e, por conseguinte, susceptível de ser considerada. (…)», cfr. Sentença. IX. Neste seguimento, considerou o Douto Tribunal em 1.ª instância e muito bem, que «(…) a viatura foi vendida pela A. a terceiro, logo no cálculo desta indemnização não se pode atender ao período temporal após a venda do veículo pela A. visto que os factores que serviram de suporte à atribuição de indemnização deixaram de verificar-se a partir desse momento (…)». X. Porquanto, após a venda do veículo pela A. agora Recorrida deixaram obviamente de se verificar os seus poderes de gozo, uso e fruição, cuja coarctação justificava a existência de um dano patrimonial indemnizável e a atribuição dessa indemnização sem necessidade de prova concreta da utilização do bem ou da existência de efectivos prejuízos de ordem patrimonial. XI. Muito embora estejamos perante uma situação considerada como «Perda Total» e, portanto, perante a venda de um salvado, na nossa modesta opinião, este caso não pode ser tratado diferentemente de qualquer outro em que o proprietário do veículo sinistrado fosse indemnizado pela sua paralisação até à entrega da viatura devidamente reparada ou de quantia substitutiva dessa reconstituição natural. XII. Até porque a ora Recorrida não estava impedida de diligenciar pela reparação do veículo, se assim o quisesse, como veio a fazer o terceiro que adquiriu o salvado, aliás, cfr. e-mail de AA de 08.10.2018 a fls…. XIII. Contudo, é certo que na hipótese do veículo sinistrado ser vendido a terceiro ainda por reparar, tal como sucedeu nos presentes Autos com o salvado, não haveria dúvidas em considerar o período de indemnização pela privação de uso de veículo somente até à data da sua venda e já não até à data em que se verificasse a reparação integral dos danos sofridos pelo lesado, pelo que não se logra compreender a posição tomada pelo Tribunal «a quo». XIV. Com o devido respeito, que é muito, o Douto Acórdão de que se Recorre padece assim, e desde logo, de uma contradição nos seus termos, pois não existe privação de uso de veículo se a Recorrida já não pode usá-lo, por não ser a sua legítima proprietária nem ter a sua posse. XV. O Douto Acórdão do Tribunal «a quo» é assim nulo, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Tanto mais que, XVI. Em nosso entendimento, ao seguir a posição jurisprudencial defendida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal em 1.ª instância nesta matéria e não alguma das outras teses expendidas na Sentença em questão, como parece, visto que desaplica a regra geral da teoria da diferença, teria o Tribunal «a quo» de concluir necessariamente da mesma forma, ou seja, que após a sua venda deixaram de se verificar os requisitos de atribuição de indemnização pela privação de uso de veículo à Recorrida, cessando inclusive a sua legitimidade para o efeito. XVII. Com o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal «a quo» não podia Decidir como Decidiu, com base na mesma corrente jurisprudencial seguida pelo Tribunal em 1.ª instância, cujas premissas assentam na violação do direito de propriedade, sob de pena de contradição, nos termos acima expostos. XVIII. Não se verificando já qualquer inibição aos poderes de gozo, uso e fruição da Recorrida que consubstancie um dano indemnizável per si, esta só teria direito à indemnização pela paralisação do veículo até à data do pagamento da indemnização pela «Perda Total» se provasse a existência de efectivos prejuízos de ordem patrimonial decorrentes do sinistro dos Autos após a venda do salvado, o que não logrou realizar. XIX. O Douto Tribunal «a quo» violou assim o disposto nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil, que devem ser interpretados no mesmo sentido dado pelo Tribunal em 1.ª instância e cuja interpretação a ora Recorrente não impugnou. XX. A Recorrente apenas recorreu da Sentença proferida em 1.ª instância por entender que mal andou esse Douto Tribunal ao Julgar que a indemnização pela privação de uso era devida até 26.03.2014, apenas por ser a data da apresentação a registo por parte do novo proprietário AA. XXI. Com o que continua a não concordar, pelos motivos que melhor se passarão a expor. XXII. Com todo o respeito, nesta parte, o Douto Tribunal em 1.ª instância não cuidou da devida valoração da prova documental produzida, nomeadamente no que respeita à informação prestada aos Autos por AA, em 08.10.2018. XXIII. Porquanto, muito embora não saiba identificar em concreto o vendedor, veio o mesmo afirmar que o veículo em questão foi adquirido pelo seu pai a um negociante de salvados em ..., cfr. e-mail de fls…. XXIV. Sendo que esta informação não foi impugnada pela Recorrida nem tão-pouco pela Recorrente que se limitou a impugnar a documentação junta com o e-mail enviado aos Autos pelo terceiro mas não o teor das suas declarações que, ainda que assim não fosse, seriam sempre de livre apreciação pelo Tribunal, cfr. Requerimento de 25.10.2018 a fls… XXV. Notificada para tanto, e apesar de ser uma sociedade comercial com contabilidade organizada, também a A. aqui Recorrida afirmou sempre não ter qualquer comprovativo da venda, não se lembrando a quem vendeu o salvado ou mesmo em que data o vendeu, cfr. Requerimento com a Referência n.º …548 a fls…. XXVI. Porquanto, em bom rigor, não resultaram provados nos Autos nem a identificação do comprador a quem a Recorrida vendeu o salvado nem a data concreta em que ocorreu essa venda. XXVII. O certo é que a Recorrida não vendeu o salvado directamente a AA mas a um negociante de salvados em ..., portanto, em data anterior a 26.03.2014. XXVIII. Também não foi possível apurar quanto tempo esteve o salvado na posse desse negociante de salvados antes de ser vendido a AA. XXIX. Ou mesmo quanto tempo esteve na posse deste antes de ser registado no seu nome, uma vez que, nos termos do disposto n.º 1 do artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, dispunha de 60 (sessenta) dias para o requerer. XXX. Como tal, e salvo melhor opinião, não se pode presumir a perda da posse do veículo por parte da Recorrida somente na data da apresentação a registo do proprietário seguinte. XXXI. Não podia a ora Recorrente ter sido condenada, como inicialmente o foi, numa indemnização pela privação de uso de veículo calculada até 26.03.2014, porquanto não tendo sido possível apurar em que data concreta é que a Recorrida vendeu o salvado, resulta da documentação junta aos Autos que foi em data anterior à assumida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal em 1.ª instância, nos termos supra expostos. XXXII. Desconhecendo-se até quando é que a Recorrida manteve a posse do veículo, impõe-se a condenação da Recorrente numa indemnização pela privação de uso a apurar em sede de liquidação de Sentença, sob pena de violação do disposto no n.º 2 do artigo 609.º do Código de Processo Civil, por não existirem elementos suficientes nos Autos que permitam a fixação do montante indemnizatório pela privação de uso de veículo. XXXIII. Consequentemente, deve o Acórdão ora Recorrido ser revogado por outro que condene a Recorrente em conformidade. Não obstante, caso assim não se entenda, o que se alega sem contudo conceder, XXXIV. Não se pode perder de vista que a indemnização pela privação de uso de veículo tem por finalidade ressarcir a Recorrida dos eventuais prejuízos sofridos, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante, como sucede com a condenação proferida pelo Tribunal «a quo» no montante de € 47.789,00. XXXV. Pelos princípios que enformam o julgamento equitativo e bem assim atendendo à cláusula geral da boa-fé que impera no nosso sistema jurídico, haverá então que encontrar o justo equilíbrio, situado no recurso à equidade, nos termos estabelecidos no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, constituindo elemento a ponderar para a avaliação desse montante o momento em que a acção foi proposta à luz das circunstâncias concretas, apresentando-se como injustificável que a Seguradora deva responder pela totalidade desse dano. XXXVI. Como se alegou nos artigos 74.º e 75.º da Contestação da ora Recorrente, a lesada só porque o é não está isenta de toda a colaboração, sendo que, no presente caso, a inércia da Recorrida não encontra outra justificação que não a de procurar beneficiar de um montante excessivo à custa do mero decurso do tempo. Senão vejamos, XXXVII. A agora Recorrida sabia ou, pelo menos, tinha obrigação de saber que do protelamento da instauração da presente acção resultava o agravamento dos custos de privação em termos proporcionais ao tempo em que se dilataria a decisão da questão litigiosa da responsabilidade. XXXVIII. No entanto, apenas intentou a competente acção de indemnização quase 2 anos e 10 meses decorridos sobre o acidente em questão, sendo que estava na posse de todos os elementos de facto respeitantes ao sinistro, pelo menos desde que a Seguradora lhe comunicou através da G… – entidade contratada pela Recorrida – a não assunção da responsabilidade pelo mesmo, em 25.11.2013, cfr. artigos 13.º e 15.º da Petição Inicial e doc. n.º 5 junto com a mesma a fls…. XXXIX. Aliás, nesta data já se encontrava a correr uma acção de responsabilidade civil intentada pela proprietária do outro veículo interveniente no sinistro dos Autos contra a aqui Recorrente, a qual se iniciou logo em 29.10.2013, tendo sido proferida Sentença em 15.05.2015, ainda antes da propositura da presente acção pela Recorrida, cfr. doc. n.º 9 junto com a Petição Inicial a fls. Ora, XL. «E, se é verdade, (…) não impender sobre o lesado a obrigação de adoptar condutas destinadas à protecção de interesses do lesante ou da sua seguradora, de eliminação ou atenuação do dano, já parece de se lhe exigir, perante os concretos contornos da situação, para cuja ultrapassagem a Ré não tinha acção, que “actuasse com a diligência adequada a ver decidida a questão litigiosa” (Ac. STJ, de 29/11/2005 –CJ XIII-III-153). Postulavam-no as regras da boa-fé, atenta a posição do lesado, que sempre teria de tomar a iniciativa de agir judicialmente, sem que se vislumbre numa actuação mais precoce qualquer desprotecção dos seus interesses, apresentando-se, consequentemente, a sua passividade como irrazoável e “contrária ao padrão de uma normalidade interventora” a permitir “considerar «culposa» a inércia do lesado e defender uma autoresponsabilidade que, sendo actuada pela ponderação das duas condutas e pela consequente repartição do dano global, só logrará atingir o seu significado se o lesado vier a receber uma indemnização nunca superior àquela que receberia caso tivesse contido o dano” (BRANDÃO PROENÇA, “A Conduta Do Lesado…”, pg. 669; cfr., também, pg. 670 e sgs.).», vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 09.03.2010 no âmbito do Processo n.º 1247/07.4TJVNF.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt. XLI. «Movemo-nos, então, claramente no campo da redução do montante indemnizatório fundada no concurso de facto do lesado para o agravamento do dano de privação do uso, mediante o protelamento da manutenção da situação muito para além do razoável - por pura inércia ou por outra causa para que se não encontra justificação, mas lhe é imputável -, a solicitar a intervenção do regime jurídico previsto no art. 570º-1 C. Civil. Deve, por via disso, baixar-se o valor da indemnização para limites razoáveis por referência ao desnecessário e inadequado protelamento da instauração da acção, em repartição do dano global considerado, para cuja contenção o Autor se absteve de contribuir.», Idem. XLII. Em tal contexto não pode deixar de se concluir que a inércia da Recorrida, que deve ser considerada facto culposo, nos termos acima alegados, contribuiu para o agravamento dos danos que da paralisação advieram, havendo que situar o seu comportamento no âmbito do n.º 1 do artigo 570.º conjugado com o artigo 334.º, ambos do Código Civil, o que fundamenta a redução da quantia indemnizatória que, por força daquela paralisação, lhe deve ser atribuída. XLIII. «O protelamento da instauração da acção indemnizatória que importe agravamento dos custos por privação do uso, para além dum período de tempo razoável, face às regras da boa-fé, em termos de se considerar “culposa” a inércia do lesado, justifica uma repartição do dano global, com a inerente redução do respectivo montante indemnizatório, fundada no concurso de facto do lesado para o agravamento do dano.», Idem. XLIV. «Considera-se, em termos de normalidade e razoabilidade, aceitável, no máximo, um prazo que, incluindo o tempo decorrido até à decisão de não proceder à reparação – ou, no presente caso, de não assunção da responsabilidade pelo sinistro - não excedesse metade do prazo disponível para o exercício do direito de instauração do pleito destinado a pôr fim à situação litigiosa, prazo esse ultrapassado em outro tanto.», Idem. XLV. Assim, deverá subtrair-se o período de injustificada dilação, considerando-se um prazo máximo de 18 meses para efeitos de atribuição da indemnização pela privação de uso de veículo, a qual tendo por referência o valor diário de € 50,00 (cinquenta euros), deverá ser reduzida para € 27.375,00 (vinte e sete mil trezentos e setenta e cinco euros), quantia que se tem por mais justa e equilibrada. XLVI. Consequentemente, deve o Acórdão ora Recorrido ser revogado por outro que condene a Recorrente nesta quantia que, subsidiariamente, se aceita como a condenação máxima da Recorrente, a este título. Por contra-alegações, a Autora pugna pela negação da revista.
São os Seguintes os Factos Apurados no Processo: 1 - No dia .../03/2013, ocorreu, na Estrada Nacional – …, no sentido …. – ..., ao km 31,200, um sinistro de viação, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros da marca …, modelo …. …, com matricula ....-NL-... e o veículo ligeiro de passageiros da marca …, modelo …, com matricula ...-...-VF. 2 - O veículo NL era na altura propriedade da A. Sereia da Praia, Lda. e encontrava-se à data segurado pela ora 2.ª R. Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., através da Apólice nº. …727, sendo que no momento da verificação do referido acidente era conduzido pelo Sr. DD. 3 - A A. é uma pessoa colectiva dedicada a actividades hoteleiras de restauração e similares, exploração de estabelecimento de bebidas, 4 - O veículo VF é, propriedade de EE e encontrava-se segurado pela 1.ª Ré Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros, S. A., mediante contrato titulado pela Apólice nº. …478. 5 - O condutor do veículo NL, motorista ao serviço da A. seguia a velocidade não superior a 50km/h, na sua faixa de rodagem, quando a viatura VF, que seguia na faixa de rodagem de sentido contrário, ultrapassou o eixo da via invadindo a faixa de rodagem onde o veículo NL se circulava. 6 - Ocorrendo a colisão entre a frente lateral esquerda do veículo NL e a frente lateral esquerda do veiculo VF. 7 - E guinando cada um dos condutores o volante da viatura para a sua direita, saindo ambos da faixa de rodagem e embatendo em árvores situadas na berma. 8 - A colisão verificou-se a 1,90m da berma do lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha ... – …, sendo que neste sentido de marcha, a estrada descreve uma curva para a esquerda e dispõe de 5,60m de largura. 9 - Era de noite, não havia iluminação e chuviscava. 10 - Quando o veículo NL foi retirado do local onde se imobilizou após o sinistro, o rebocador, da assistência em viagem contratada pela apólice da A. junto da 2ª Ré, ao pretender retirar o veículo, realizando várias manobras para o conseguir, deixou que o veículo caísse de novo dentro de uma vala. 11 - A A. efetuou a respetiva participação junto da 2.ª Ré, ao abrigo da cobertura de danos próprios (choque, colisão e capotamento), tendo a mesma declinado qualquer responsabilidade pelos danos reclamados, por entender que os danos do veículo não são compatíveis com as circunstâncias apresentadas do acidente, e que existia uma situação de sobresseguro. 12 - A A. reclamou o sinistro junto da 1ª Ré, sendo que a mesma veio a declinar o sinistro com fundamento em que o mesmo não ocorreu conforme participado. 13 - Face à posição assumida pelas RR., a A. socorreu-se dos serviços prestados pela empresa “G... – ..., Lda.”, que exerce a actividade de ..., no sentido de recolher elementos acerca da dinâmica do sinistro. 14 - A 1ª Ré na sequência da reclamação apresentada pela A. efectuou a correspondente peritagem ao veículo NL, tendo considerado o mesmo como perda total por a reparação se mostrar antieconómica, tendo informado que o mesmo tinha um valor venal de €55.000,00, avaliando o salvado em €7.211,00. 15 - A 2.ª R. avaliou o valor comercial do veículo no ano de 2008 em €58.000,00, e o valor estimado para reparação de viatura em € 55.882,07, e do salvado em €9.550,00. 16 - A 1ª Ré foi condenada, por sentença transitada em julgado, a indemnizar a sua segurada, proprietária do veículo VF, ao abrigo da cobertura de choque, capotamento ou colisão relativamente ao acidente ora em apreço. 17 - À data do sinistro o veículo da A. encontrava-se seguro junto da 2ª Ré pelo valor de € 71.308,00, com franquia de 600,00 Euros, para a cobertura de choque, capotamento ou colisão. 18 - A R. Ocidental-Companhia de Seguros SA solicitou à R… que diligenciasse no sentido de averiguar as circunstâncias em que o mesmo ocorreu. 19 - A R.… apresentou relatório à R. Ocidental fazendo constar que, tomando em consideração todos os elementos apurados, o «sinistro não aconteceu como participado, visto que a dinâmica do mesmo não se enquadra dentro das provas recolhidas». 20 - A viatura VF apresentava danos na carroçaria na frente esquerda, no painel da porta esquerda, na parte dianteira superior do capot e na frente direita do para-choques dianteiro. 21 - A viatura NL apresentava danos na carroçaria na parte dianteira inferior do painel da ilharga esquerda, nos painéis das portas esquerdas do condutor e passageiros, no para-choques dianteiro e no capot. 22 - Os danos verificados nas laterais esquerdas dos veículos eram superficiais. 23 - Os airbags dos veículos intervenientes no sinistro dos autos não dispararam; 24 - O pré-tensor do respectivo cinto de segurança do condutor do VF não foi activado. 25 - De acordo com a informação obtida junto da marca Audi, os airbags do NL apenas não são accionados em caso de embate oblíquo, embate perpendicular inferior a 14 km/h ou ausência de peso no banco respectivo. 26 - No seguimento da peritagem efectuada ao veículo da A. pelos serviços técnicos da GEP, a solicitação da R., o valor da respectiva reparação foi estimado em € 58.028,03 (sem desmontagens) 27 - Aquando da peritagem pela GEP em 12.03.2013 foi indicado no relatório de existências que a viatura de matricula …-NL-... tinha amplificador, conjunto de colunas, radio com leitor de Cds, caixa de Cds, DVD, GPS, telemóvel e TV. 28 - O valor de mercado do NL, à data do sinistro dos Autos, foi indicado pela GEP como € 55.000,00 e dos extras € 450,00. 29 - A melhor proposta para a aquisição do salvado foi apresentada por «M.…, Lda.» no montante de € 7.211,00. 30 - A R. Companhia de Seguros Allianz Portugal, através de um contrato de seguro celebrado com a Autora, com início em 8/2/13, assumiu, para além da responsabilidade civil obrigatória por danos causados a terceiros decorrente da circulação do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ....-NL-..., a cobertura facultativa de danos próprios por choque colisão e capotamento e a de privação de uso. 31 - O capital subscrito de danos próprios foi de € 71.308,00 com franquia contratual de € 600,00 e o de privação de uso foi de € 25,00 / dia. 32 - (…) ficando a responsabilidade da Ré, no que tange à privação de uso, limitada ao número de dias por anuidade, a 30 dias por ano, seguidos ou interpolados, não dando lugar a qualquer indemnização os dois primeiros dias de privação de uso após cada sinistro. 33 - Por carta de 14/3/13, a Ré solicitou à Autora a participação do acidente, a qual foi recebida em 26/3/13. 34 - A 2ª R. apurou um valor de mercado do veículo “NL”, ligeiro de passageiros do ano de 2008, entre os € 58.000,00/59.000,00, a estimativa da reparação era de € 55.882,07 (desconhecendo-se se havia danos na caixa de velocidades, porque bloqueada) e os salvados valiam € 9.550,00 (docs nº 7 e 8). 35 - Do registo automóvel consta o registo do veiculo ....-NL-... indicando como proprietário, Sereia da Praia Lda., com data de apresentação a registo de 13.03.2013; seguida da indicação como proprietário AA, com data de apresentação a registo de 26.03.2014; de seguida como proprietária figurando BB com apresentação a registo de 14.05.2014 e por último indicação como proprietário CC e como data de registo 06-04-2015. E os seguintes os Factos Não Provados: - o veiculo VF despistou-se sem qualquer razão aparente, guinando a direcção, de forma repentina e brusca para a esquerda, - a A. necessitava do veiculo NL diariamente para as deslocações dos seus colaboradores, com vista à prossecução do seu objecto social; - a A. viu-se obrigada a recorrer a outras vias de modo a prosseguir com as deslocações diárias dos colaboradores ao seu serviço, - o valor real do veículo NL considerando os extras é de € 89.217,67, - o veículo NL para além do equipamento de série, possuía como extras: a) Adaptive Light – inclui faróis de xenon plus e lav no valor de 1.785,12 €; b) Alarme volumétrico com protecção contra engate no valor de 136,86 €; c) Alavanca da caixa de velocidades em madeira no valor de 121,01 €; d) Almofada para apoio de cabeça traseira (2 unidades) no valor de 373,88 €; e) Aplicações de alumínio no valor de 494,88 €; f) Apoio de braço dianteiro duplo no valor de 242,98 €; g) Apoio lombar eletrico no banco traseiro no valor de 434,38 €; h) Apoios cabeça confort no valor de 267,77 €; i) Pintura metalizada no valor de 1.204,96 €; j) Volante de direcção multifuncional em couro com …., no valor de 358,02 €; k) Bancos dianteiros e traseiros ventilados com massagem no valor de 9.371,90 €; l) Banco desportivo com memória em alcântara/couro no valor de 1.472,72 €; m) Sensores de estacionamento atrás e à frente com câmara no valor de 580,16€; n) Assistente para mudar de pista e aviso de saída de pista (audi side assist e audi lane assist) no valor de 1.264,46 €; o) Sistema de som bose surround no valor de 1.274,38 €; p) Banco traseiro 2 lugares com regulação electrónica no valor de 3.560,33 €; q) Advanced Key – acesso à viatura sem chave no valor de 1.371,56 €; r) Ar condicionado banco traseiro – 4 zonas no valor de 746,77 €; s) Receptor de TV analógico e digital DAB no valor de 2.231,40 €; t) Sistema de regulação de velocidade cruise control no valor de 2.491,24 €; u) Sistema de navegação plus com TV no valor de 3.741,82 €; v) Leitor de DVD integrado para bancos traseiros no valor de 1900,00 €; w) Multimédia na parte traseira do veículo no valor de 550,00 €; x) Caixa de 6 cds no tablier no valor de 481,00 €; y) Telefone com auscultadores sem fio com sistema bluet no valor de 1.071,07€; z) Modificações/equipamentos especiais no valor de 900,00 €; a. frigorífico no valor global de extras de 38.428,67 € (trinta e oito mil quatrocentos e vinte e oito euros e sessenta e sete cêntimos).
Conhecendo:
I Portanto, a revista coloca as seguintes questões: - saber se, ao igual do decidido em 1ª instância, o período de indemnização pela privação do uso apenas deve ser considerado até à data da venda do veículo (e não até à data da reparação do dano) – não existe privação do uso se o veículo não se encontra em condições de ser usado (o que aliás seja fundamento de nulidade do acórdão – artº 615º nº 1 al. c) CPCiv) e cessando inclusive, a partir dessa data, legitimidade para o pedido indemnizatório; de resto, a partir dessa data, não vêm provados efectivos prejuízos de ordem patrimonial; - a data fixada para a venda do veículo não atendeu à prova documental produzida em 8/10/2018, da qual resulta que a Autora não vendeu o salvado em 26/3/2014 (data do registo a favor do novo proprietário), mas a um negociante de salvados, e em data anterior; facto que deveria importar a condenação da Recorrente em indemnização no que se viesse a apurar em liquidação de sentença; - cabendo à Autora ter, no que releva da respectiva responsabilidade, contido o dano que peticiona, verifica-se que a presente acção de natureza indemnizatória apenas foi intentada quase 2 anos e 10 meses decorridos sobre o acidente, pelo que deverá agora responder a Autora nos termos do disposto no artº 570º nº 1 CCiv; considerando-se justificada uma dilação de 18 meses (metade do prazo disponível para o exercício do direito), deverá a indemnização ser reduzida para € 27 375,00, atendendo ao valor diário, não impugnado, de € 50,00.
II Saliente-se desde já, e por clareza de raciocínio, que não se encontra em causa na revista o direito da Autora a ser indemnizada pela privação do uso do seu veículo, indemnização a cargo da ora Recorrente. Esclareça-se pois que, salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artº 46º LOSJ) - como tribunal de revista, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artº 682º nº 1 CPCiv). Excepcionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artºs 674º nº 2 e 682º nº 2 CCiv). Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto quando o tribunal recorrido deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico. Mas cabe salientar que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não se encontra sujeito a forma especial (artºs 219º e 875º CCiv). Tendo em conta o mencionado quadro legal, não pode assim o STJ sindicar o juízo de prova operado na Relação quanto aos factos que considerou provados e não provados, designadamente a circunstância relativa à data da transferência da propriedade do veículo. Quanto à consideração da data do registo da alienação do veículo, nota-se que o registo vale para o direito como acto declarativo, pois que através do acto de registo, aquele que procede ao registo do direito apenas confere publicidade a um direito já constituído na esfera jurídica do registante, através de um negócio jurídico anterior (assim, Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, 1983, pgs. 19/20). Desta forma, o registo cria uma presunção de que o direito registado, na amplitude e com o conteúdo em que o foi, existe na titularidade do sujeito que consta do registo e a presunção derivada do registo automóvel, decorrente das disposições conjugadas do artº 7º CRPred ex vi artº 29º D-L nº54/75, de 12/2, constitui-se como uma presunção juristantum, cujo valor pode ser infirmado e elidido mediante prova em contrário, prova essa que onera a parte que não beneficia do registo. Olhando ao caso concreto, a prova da transferência da propriedade do veículo da Autora acha-se feita pela presunção do registo, não resultando a contraprova de qualquer outro facto fixado nas instâncias (apenas existe a referência a uma “proposta de aquisição” – facto 29). É assim a data constante da descrição registral que deve valer como única data comprovada da alienação do veículo da Autora.
III Saber agora se o período de indemnização pela privação do uso apenas deve ser considerado até à data da venda da venda do veículo (e não até à data da reparação do dano). Como é sabido, é encargo do lesante promover a reparação dos danos que causou e que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (artº 564º nº 1 CCiv). Tais danos resultaram na consideração de uma comprovada e, nesta altura, pacífica “perda total” do veículo. Em conformidade, a Autora procedeu, em determinada data, à venda do veículo como “salvado”. Ora, o que está em causa na indemnização do dano emergente da privação do uso não é a reparação ou indemnização pelos estragos materiais correspondentes à perda total do veículo, mas antes o pagamento do valor necessário à aquisição de um veículo com características idênticas às do veículo destruído. E tal pagamento tanto é “necessário” antes, como após a venda do “salvado”, venda essa que apenas poderá minorar (e, no caso, minorar numa pequena percentagem) o dano da perda. Na inexistência desse ressarcimento apenas se avoluma a situação lesiva da “privação do uso”. Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado – reposta a situação anterior, cessa o dano da privação do uso. Trata-se de um dano paralelo ao da perda do veículo, isto é, só a reparação do dano da perda do veículo é prejudicial ou retira causalidade ao dano do respectivo uso. Como se escreveu no Ac. S.T.J. 3/11/2011, pº 2618/05.06TBOVR.P1 – Nuno Cameira, “o que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir”. No sentido que aqui propugnamos, veja-se Ac. S.T.J. 08/11/2018, pº 1069/16.1T8PVZ.P1.S1 – Oliveira Abreu. Mostra-se assim inexistir qualquer ambiguidade decisória no acórdão recorrido, ou contradição dos fundamentos com a decisão – artº 615º nº 1 al. c) CPCiv.
IV Saber finalmente se, cabendo à Autora ter, no que releva da respectiva responsabilidade, contido o dano que peticiona, verifica-se que a presente acção de natureza indemnizatória apenas foi intentada quase 2 anos e 10 meses decorridos sobre o acidente, pelo que deverá agora responder a Autora nos termos do disposto no artº 570º nº 1 CCiv. A Recorrente cita, para o efeito, o discorrido no Ac. S.T.J. 9/3/2010, pº 1247/07.4TJVNF.P1.S1, onde se escreveu: “O Autor, desde sempre conhecedor da posição da Ré quanto à recusa de aceitação da imputação da responsabilidade pela produção dos danos ao condutor seu segurado, e da substituição da restauração natural pela sua conversão em indemnização em dinheiro, dispunha, ao que se sabe, desde Junho de 2004, de todos os elementos para instaurar a acção destinada a convencer a Ré da responsabilidade do seu segurado.” “Apesar disso, fê-lo apenas em 28 de Março de 2007, lançando mesmo mão do pedido de citação prévia a fim de evitar a prescrição do direito à indemnização.” “Reclamou e obteve indemnização pela privação do uso da viatura fixada em relação a todo esse período, sendo efectivamente certo que a privação do uso só cessa quando recebida a acordada e reconhecida indemnização por equivalente.” “Ora, perante o circunstancialismo que os autos reflectem, não pode deixar de considerar-se que o A. sabia ou, pelo menos, tinha obrigação de saber que do protelamento da instauração da acção resultava o agravamento dos custos de privação em termos proporcionais ao tempo que em que se dilataria a decisão da questão litigiosa da responsabilidade.” “E, se é verdade, como já atrás se deixou dito, não impender sobre o lesado a obrigação de adoptar condutas destinadas à protecção de interesses do lesante ou da sua seguradora, de eliminação ou atenuação do dano, já parece de se lhe exigir, perante os concretos contornos da situação, para cuja ultrapassagem a Ré não tinha acção, que “actuasse com a diligência adequada a ver decidida a questão litigiosa” (ac. STJ, de 29/11/2005 – CJ XIII-III-153).” “Postulavam-no as regras da boa fé, atenta a posição do lesado, que sempre teria de tomar a iniciativa de agir judicialmente, sem que se vislumbre numa actuação mais precoce qualquer desprotecção dos seus interesses, apresentando-se, consequentemente, a sua passividade como irrazoável e “contrária ao padrão de uma normalidade interventora” a permitir “considerar «culposa» a inércia do lesado e defender uma autoresponsabilidade que, sendo actuada pela ponderação das duas condutas e pela consequente repartição do dano global, só logrará atingir o seu significado se o lesado vier a receber uma indemnização nunca superior àquela que receberia caso tivesse contido o dano” (BRANDÃO PROENÇA, “A Conduta Do Lesado…”, pg. 669; cfr., também, pg. 670 e sgs.).” “Movemo-nos, então, claramente no campo da redução do montante indemnizatório fundada no concurso de facto do lesado para o agravamento do dano de privação do uso, mediante o protelamento da manutenção da situação muito para além do razoável - por pura inércia ou por outra causa para que se não encontra justificação, mas lhe é imputável -, a solicitar a intervenção do regime jurídico previsto no art. 570º-1 C. Civil.” “Deve, por via disso, baixar-se o valor da indemnização para limites razoáveis por referência ao desnecessário e inadequado protelamento da instauração da acção, em repartição do dano global considerado, para cuja contenção o Autor se absteve de contribuir.” “Considera-se, em termos de normalidade e razoabilidade, aceitável, no máximo, um prazo que, incluindo o tempo decorrido até à decisão de não proceder á reparação, não excedesse metade do prazo disponível para o exercício do direito de instauração do pleito destinado a pôr fim à situação litigiosa, prazo esse ultrapassado em outro tanto.”
V Nos presentes autos, a Ré/Recorrente não se disponibilizou, desde o início (evento lesivo e participação à seguradora), a aceitar quaisquer consequências indemnizatórias do acidente em questão, reservando-se o direito de averiguar as circunstâncias em que o acidente ocorreu. Efectuadas as averiguações necessárias, a Ré entendeu que o acidente não poderia ter ocorrido nas circunstâncias descritas na participação (entendia tratar-se de um acidente simulado), pelo que, em decorrência, nunca antes ou depois da presente acção intentada se disponibilizou a indemnizar a Autora por qualquer dano por esta invocado maxime o da privação do uso. A comunicação da posição assumida pela Ré, na pessoa do averiguador de sinistros de que, pela sua parte, a Autora se socorreu, foi datada de 25/11/2013. A presente acção foi intentada em 2/12/2015, tendo o aqui comprovado acidente ocorrido em 4/3/2013. A efectiva ocorrência do acidente foi antes judicialmente declarada na sentença proferida em 15/5/2015, por acção intentada pela proprietária do outro veículo interveniente (VF), contra a 1ª Ré, por via de seguro de danos próprios. Nos presentes autos, para além da ocorrência do acidente, mais se declarou a responsabilidade do condutor do veículo VF pela referida ocorrência e danos subsequentes. Mas a presente acção nada tinha que ver com a acção intentada pela proprietária do VF, por força do seguro de danos próprios do VF. A presente acção foi intentada quer contra a 1ª Ré (que segurava a responsabilidade por danos causados a terceiros na circulação do VF), quer contra a 2ª Ré – que segurava o dano próprio do veículo da Autora (NL). Como referido no Ac. S.T.J. 28/11/2013, pº 161/09.3TBGDM.P2.S1 (Salazar Casanova), é necessário proceder com prudência na aplicação do artº 570º nº 1 CCiv aos casos em que a acção é proposta algum tempo depois do sinistro, reclamando-se danos pela privação do uso. Na verdade, a considerar-se, sem mais, que o pedido de indemnização deduzido algum tempo depois do sinistro constitui facto culposo do lesado, estaríamos a introduzir uma presunção de culpa que a lei não admite. Mas o específico dano ressarcido (no caso, a privação do uso) pode ser passível de revelar a indiferença do lesado perante esse seu próprio e referido prejuízo, indiferença contrária ao “padrão de uma normalidade interventora na zona dos danos patrimoniais” (J. C. Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério do Dano Extracontratual, 2007, pg. 669), quando interpõe a acção cerca de 2 anos depois de conhecer a resposta definitiva da 1ª Ré, no sentido de esta considerar o acidente simulado e se recusar a pagar qualquer indemnização. O acórdão recorrido encontrou o limite indemnizatório “fazendo uso de um princípio de equidade e de justiça, ínsito no artº 566º nº 3 CCiv, e tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto”, considerando adequada uma indemnização não devendo ultrapassar o montante da indemnização atribuída pela perda total do veículo, ou seja, o valor de € 47 789,00. Para o efeito fez uso da doutrina do Ac.S.T.J. 13/7/2017, pº 188/14.3T8PBL.C1.S1 (Maria da Graça Trigo). Já a revista entende que a indemnização se deverá reduzir ao valor de € 27 375,00 (um valor situado entre o achado em 1ª instância - € 19 350,00 – e o valor atribuído na decisão recorrida - € 47 789,00). Os factos dos autos, designadamente a demonstração de a Autora ter, inexplicavelmente, aguardado 2 anos depois da resposta da Ré para intentar a acção, conjugado com a natureza do dano (o qual, tomado abstractamente, funcionaria como que em “taxímetro”, na expressão do Ac. S.T.J. 28/11/2013 cit.), poderiam levar-nos a considerar: - tanto demonstrada culposa a inércia do lesado, ao abrigo da norma do artº 570º nº 1 CCiv; - como ainda possível a redução da indemnização pela equidade, que atingisse um valor inferior ao citado valor do veículo (€ 47 789,00), por aplicação do disposto no artº 566º nº 3 CCiv. Esta simples posição, porém, conduziria a ignorar que a indemnização pela privação do uso engloba necessariamente todo o período compreendido entre o acidente e a data da entrega de veículo de substituição ou o pagamento da indemnização ou a reparação do veículo, só nesta última circunstância se verificando a indemnização do dano sofrido (veja-se, a título meramente exemplificativo, Acs. S.T.J. 17/1/2013, pº 2395/06.3TJVNF.P1.S1 – João Trindade, S.T.J. 8/5/2013, pº 3036/04.9TBVLG.P1.S1 – Maria dos Prazeres Beleza, e Ac. R.C. 16/3/2016, pº 288/14.0T8LRA.C1 – Carlos Moreira). Ora, quer o pedido formulado na acção, quer o pedido formulado na apelação subordinada da Autora não prescindiram de colocar à apreciação das instâncias a questão de que “o período temporal a fixar para efeitos de indemnização pela privação de uso não deveria ter como limite a data da venda do salvado, mas sim a data do pagamento efectivo da indemnização devida pela perda total do veículo NL”. E assim, ainda que se considerasse reduzir a indemnização fixada, considerando a inércia do lesado (artº 570º nº 1 CCiv), bem como a equidade prevista no artº 566º nº 3 CCiv, a verdade é que o tempo entretanto decorrido desde a propositura da acção compensa flagrantemente qualquer aproximação ao montante propugnado na revista (de € 27 375,00), pelo que o montante fixado em apelação (de € 47.789,00) se revela francamente equitativo e merece confirmação. Concluindo: I – O que está em causa na indemnização do dano da privação do uso é o pagamento do valor necessário à aquisição de um veículo com características idênticas às do veículo destruído, pagamento que tanto é “necessário” antes, como após a venda do “salvado”, venda essa que apenas poderá minorar o dano da perda. II - Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado – reposta a situação anterior, cessa o dano da privação do uso. III – Se o lesado interpõe a acção, inexplicavelmente, apenas cerca de 2 anos depois de conhecer a resposta definitiva da 1ª Ré, no sentido de esta considerar o acidente simulado e se recusar a pagar qualquer indemnização, o específico dano ressarcido (a privação do uso) é passível de revelar indiferença perante esse seu próprio e referido prejuízo, indiferença contrária ao “padrão de uma normalidade interventora na zona dos danos patrimoniais”. IV – Todavia, a redução da indemnização, considerando apenas o tempo decorrido desde o acidente até à propositura da acção, deve ser desconsiderada, caso o tempo decorrido na pendência da acção venha a acrescer à referida indemnização (reduzida até à propositura da acção), em função do pedido formulado pela Autora.
Decisão: Nega-se a revista. Custas pela Recorrente. STJ, 08/09/2021 Vieira e Cunha (relatora) Abrantes Geraldes Tomé Gomes Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Exmº Conselheiro António Abrantes Geraldes e do Exmº Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, que compõem este coletivo. _______ · Rec. 10192/15.9T8STB.E1.S1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Exmºs Conselheiros António Santos Abrantes Geraldes e Manuel Tomé Soares Gomes. |