Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | SUBTRACÇÃO DE MENOR SEQUESTRO AGRAVADO CONCURSO DE INFRACÇÕES INTERPRETAÇÃO DAS SENTENÇAS DIREITO AO SILÊNCIO DO ARGUIDO DOLO INDEMNIZAÇÃO MEDIDA DA PENA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA IMPOSIÇÃO DE DEVERES | ||
Nº do Documento: | SJ200801100032275 | ||
Data do Acordão: | 01/10/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DO ARGUIDO E PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Sumário : | 1 – A Relação, sendo um tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância ou por si, o que constitui igualmente matéria de facto. Essas conclusões ou ilações escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar. 2 – O direito ao silêncio por parte do arguido não é um direito ilimitado e que incide sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar, ou seja, abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito (a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e a questão da culpabilidade, que comporta excepções, como a resultante da al. b) do n.º 3 desse art. 61.º, e o, já referido, dever de responder com verdade às perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais. 3 – Tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio. 4 – Como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, a sentença judicial é ela também susceptível de ser interpretada com recurso às boas regras de hermenêutica, pois não obstante a sua característica de acto de autoridade, designadamente a sua parte decisória, é um acto jurídico declarativo e formal, dirigido às partes e, portanto, susceptível de interpretação, de harmonia com as regras, devidamente adaptadas, consignadas nos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil. 5 – Se no dispositivo do acórdão da 1.ª Instância se escreve que o colectivo de juízes decidiu absolver o arguido da prática como autor material de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1, al. c) do C. Penal, mas na fundamentação da decisão se tiverem por verificados dois crimes: de sequestro agravado e de subtracção de menor, em concurso aparente entre esses dois crimes e concluir neste último sentido, decidindo que o arguido seria só punido «pela prática do crime de sequestro sendo os restantes factos ponderados na determinação da medida concreta da pena, é esta luz que deve ser interpretado o dispositivo. 6 – E se o arguido ao recorrer para a Relação não impugnou a decisão da 1.ª instância quanto à verificação do crime de subtracção de menor, se vier a cair a condenação pelo crime de sequestro, desaparecendo o concurso de infracções, só resta determinar a pena a aplicar por aquele crime. 7 – Mostrando-se preenchidos os crimes de subtracção de menor e de sequestro, verifica-se um concurso aparente a punir no quadro do crime de sequestro. 8 – No crime de subtracção de menor censuram-se agressões ao legítimo exercício dos poderes legalmente definidos para o suprimento da incapacidade dos mesmos – poder paternal e tutela, estabelecendo-se uma dupla protecção: por um lado, em benefício do menor, para que permaneça dentro da sua família, e, por outro, em favor desta, com vista a conservá-lo no seu seio. 9 – Prevêem-se três situações delituosas: subtracção; determinação à fuga por meio de violência ou ameaça de mal importante; ou recusa de entrega do menor a quem esteja legitimamente confiado, isto é: sonegação ou retenção de menor a quem exerça o poder paternal, a tutela ou qualquer outro poder legítimo sobre ele. 10 – Há recusa na entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, por acção do agente sob cujo instável poder se encontra não regressa ao seu poder de direcção e guarda, residindo aqui a tónica criminosa, pois, na retenção sem justa causa. 11 – Estando assente que foi o arguido notificado da sentença judicial que regulou o exercício do poder paternal da menor e determinou, a atribuição ao assistente, pai desta, o desempenho do poder paternal e que, não obstante a interposição, por si, de recurso então não admitido, mas sempre com efeito meramente devolutivo, logo legal e imediatamente obrigatório (art. 185.º da O.T.M.), sempre se recusou a entregar a menor ao assistente, bem sabendo que a isso estava obrigado, verifica-se o crime de subtracção de menor. 12 – O Supremo Tribunal de Justiça, num caso semelhante (AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05), entendeu que se verificava, no caso, concurso aparente entre um crime de sequestro agravado e um crime de subtracção de menor a punir no quadro do crime de sequestro, com o dolo genérico, em relação a este último, a consciência e vontade de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.
19 – De acordo com a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro ao art.249.ºdo C. Penal, a conduta do arguido é hoje punível com prisão de 1 a 5 anos, mas de acordo com o disposto no n.º 4 do art.2.º do mesmo diploma, aplicar-se-á a pena prevista na redacção vigente à data da prática dos factos: prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
20 – Não é de optar pela pena de multa, dadas as circunstâncias do caso, o dolo intenso com que agiu o recorrente, a persistência na sua conduta, o desrespeito pelos interesses e direitos da menor e de seu pai, bem como pelo sistema legal e judicial, os danos presentes e futuros da sua conduta que não permitem concluir que a aplicação de uma pena de multa satisfaça as necessidades de prevenção geral de integração e de intimidação. E mesmo a prevenção especial, neste contexto em que o recorrente ainda não compreendeu o desvalor dos resultados da sua conduta, não se satisfaz com a aplicação de uma pena de multa.
21 – Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente: * Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, a quem compete decidir sobre a vida daquela, sabendo que esta não tem capacidade de decisão. * Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe. Sabia que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. | ||
Decisão Texto Integral: | 1. O Tribunal Colectivo de Torres Novas decidiu absolver o arguido AA da prática como autor material de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1 al. c) do C. Penal, mas condená-lo como autor material de um crime de sequestro do art. 158.º n.ºs 1 e 2 als. a) e e) do C. Penal, na pena de 6 anos de prisão e condená-lo no pagamento ao assistente da quantia de € 30.000 acrescida dos juros moratórios legais vencidos desde a notificação para contestação acrescida ainda da quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença devida por danos não patrimoniais ocorridos até à entrega efectiva da menor; bem como na quantia também a apurar em sede de liquidação de sentença devida para ressarcimento dos danos não patrimoniais causados à menor CC contados até à sua cessação. Dessa decisão recorreram para a Relação de Coimbra, o Ministério Público, sustentando a diminuição da pena para 4 anos de prisão e o arguido impugnando a matéria de facto apurada, a fundamentação da decisão e a condenação pelo crime referido. Aquele Tribunal Superior (proc. n.º n.º 317/04.5TATNV.C1) concedeu parcial provimento aos recursos e decidiu manter a decisão recorrida na parte em que condena o arguido como autor material do crime de sequestro dos art.º 158º, n.ºs 1 e 2, als. a) e e)do C. Penal mas reduzindo a pena a 3 anos de prisão, suspensa por 5 anos na sua execução, com as condições de o arguido apresentar a menor aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, no prazo a fixar por estes, com vista a que estes técnicos promovam a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores, facto a ser certificado pelo IRS, que juntará, ao processo, relatório; apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença; cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal, tudo isto acompanhado e sob controlo do IRS. No mais foi mantida a sentença recorrida, designadamente quanto à condenação em indemnização. Inconformados, recorrem o arguido e o Ministério Público. O arguido suscita as seguintes questões: (i) erro notório na apreciação da prova (conclusão 1.ª); (ii) oposição entre os factos provados (conclusão 2.ª); (iii) nulidade do acórdão (conclusões 3.ª e 11.ª); (iv) inconstitucionalidade da interpretação feita da norma do n.º 1 do art. 343.º do CPP (conclusão 4.ª); (v) verificação do crime de sequestro (conclusões 5.ª a 20.ª); (vi) conflito de deveres (conclusão 21.ª); (vii) erro sobre a ilicitude (conclusões 22.ª e 23.ª); (viii) dolo (conclusões 24.ª e 25.ª); (ix) atenuação especial da pena (conclusão 26.ª); (x) medida concreta da pena (conclusões 27.ª a 29.ª) e (xi) condenação na indemnização civil (conclusões 30.ª a 32.ª) O assistente BB respondeu concluindo que não ocorreu qualquer nulidade, que foi cometido o crime de sequestro agravado, e que deve manter-se na íntegra o acórdão recorrido. Na sua resposta, o Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluiu que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, sem prejuízo do entendimento assumido no seu recurso e ser confirmado, quanto ao mais, o douto acórdão recorrido. Por sua vez, o Ministério Público pôs em causa, na motivação do seu recurso, a questão do objectivo fixado pelo Tribunal a quo para o dever de apresentação da menor imposto ao arguido. Distribuídos os autos neste Tribunal, teve vista o Ministério Público que, sem prejuízo de alegações orais, antecipou, no que respeita ao recurso do Ministério Público e pelos fundamentos dele constantes, que entende merecer o mesmo provimento, por não poder subsistir a condição de suspensão da execução da pena por duas razões: ao condicionar a suspensão à actividade de terceiros (pedopsiquiatras e IRS), impõe uma regra de conduta que não está na disponibilidade do condenado; caso se entenda que este segmento é uma ordem dirigida exclusivamente aos pedopsiquiatras e IRS, certo é, como consta da motivação do recurso, que a mesma pode colidir com a actividade que lhes for determinada na sede própria para defesa dos interesses da menor (regulação do poder paternal). Quanto ao recurso do arguido, acompanhou a resposta do Ministério Público na Relação (fls. 2299-2306), aditando que o pretendido reexame da matéria de facto, mormente a verificação dos vícios do art.º 410, n.ºs 1 e 2 do CPP, apreciados pela Relação, escapa aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal. Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência. Cumpre, pois, conhecer e decidir. 2.1. E conhecendo. As primeiras questões suscitadas pelo arguido prendem-se com a crítica da decisão tomada pelas instâncias quanto à questão de facto. 2.1.1. É jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal (cfr. v.g., o AcSTJ de 08/02/2007, proc. n.º 159/07-5, www.stj.pt) que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação. Mesmo em relação às decisões na al. d) do art. 432.º o âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal é fixado na própria alínea e não no art. 434.º do CPP, o que significa, que, mesmo relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito. Nos recursos interpostos da 1.ª Instância, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação, que, nos termos do art. 428.º, n.º 1 conhece de facto e de direito, e o recorrente já se dirigiu à Relação. Com efeito, e como este Tribunal tem insistentemente proclamado, em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação» (art. 427.º do CPP). E só excepcionalmente – em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» – é que é possível recorrer directamente para o STJ (art.ºs 432.º, d), e 434.º). Ora, como resulta do exposto, o presente recurso – proveniente da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo) – visa, no ponto em causa, fundamentalmente, o reexame de matéria de facto e não exclusivamente, o reexame da matéria de direito (art.º 434.º do CPP) que, no caso do Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação, se chamada a intervir) dos factos provados. E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recurso – manteve-os, definitivamente, no rol dos «factos provados». De resto, a revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do PP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»). Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1). Hoje, pretendendo-se impugnar um acórdão final do tribunal colectivo: – se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; – ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º). Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos. O que significa que está fora do âmbito legal do actual recurso a reapreciação da matéria de facto, mesmo com base em vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação. Para mais quando, como no caso, para além do objecto do recurso já apreciado pelo tribunal ora recorrido, não se vislumbram vícios a que fosse mister dar resposta. 2.1.2. Nulidade do acórdão recorrido e inconstitucionalidade da interpretação feita do art. 343.º, n.º 1 do CPP. Defende o arguido que o acórdão recorrido é nulo pois decidiu com base em matéria de facto que não está provada e não foi sequer incluída na acusação, sendo nulo por força do disposto no art. 379.°, n.º 1, al. b) do CPP (conclusão 3) e o condena com base em teorizações acerca da vida e da personalidade da menor que, não só não estão provadas como resulta dos autos, a sua desadequação à realidade (conclusão 11). Parte do seguinte trecho da decisão recorrida (fls. XL): «Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança» (fls. 2193). Vejamos, pois. Em primeiro lugar esse trecho tem de ser contextualizado. Situa-se na análise da culpa do arguido, e da sua pretensão de ter agido na defesa do interesse da menor, das razões que invocou para ter agido assim. Imediatamente antes escreveu-se: «O recorrente agiu com dolo intenso. O seu comportamento é passível de um forte juízo de censura (leia-se Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2/2006, in www.stj processo 05P3127 JST000) já que ao manter uma atitude de não entregar a menor, uma criança, agora já com cinco anos, privando-a do contacto com o pai, e até, em certo momento, com a mãe, não permitindo a convivência com a sua génese de sangue, não dando sequer qualquer informação sobre a mesma, deixando até a dúvida de como a criança se encontra física e psicologicamente, tendo este comportamento como de interesse para a criança, como se fosse do interesse de qualquer criança negar-lhe o acesso ao pai, despersonalizando a criança, mudando-lhe o nome, ocultando a origem, revelou um profundo desprezo por um ser humano completamente desprotegido e indefeso (confira Acórdão citado). E não se invoque quaisquer fundamentos sentimentais, morais ou emocionais, para justificar a conduta; acresce que para considerar a conduta do arguido semelhante à de pai teria de demonstrar que tinha o especial dever de zelar pelo bem-estar e segurança da menor. Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança» (realçado e sublinhado agora) Como diz o Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão citado) tem de se valorar o comportamento de não revelar o paradeiro da menor, mantendo-a privada da protecção e carinho paternos e causando sofrimento ao pai. E não valem aqui as teorias do enamoramento e do encantamento (leia Albertoni A Génese) para se criar uma figura, inexistente quer na fenomenologia natural quer no mundo do direito – o pai afectivo. As figuras do pensamento moral e emocional são valiosas mas fogem ao mundo do direito.» E continua a decisão recorrida por mais de 5 páginas, discorrendo sobre o que se deve entender pelo interesse da criança (fls. 2153 a 2158). Tinha, pois, a decisão recorrida que apreciar a alegação a propósito desenvolvida pelo recorrente na sua motivação de recurso (cfr. designadamente fls. 2116, dos autos – IV do acórdão), o que implicava apreciar e decidir sobre os motivos da sua conduta. Manteve-se, assim, o Tribunal recorrido nos limites do objecto do recurso, tal como foi configurado pelo próprio recorrente, pelo que, diferentemente do que sustenta o recorrente, não se socorreu de matéria de facto não provada, nem incluída na acusação. Socorreu-se tão só da matéria de facto dada como provada na 1.ª Instância, dentro do objecto da discussão da causa que é, não se esqueça, delimitada pelo n.º 4 do art. 339.º do CPP («4 - Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º.»). Por outro lado, a Relação, sendo um Tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância ou por si, o que constitui igualmente matéria de facto. Com efeito, vem entendendo este Supremo Tribunal de Justiça que essas conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto directamente provada, são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar (AcSTJ de 22/02/2007, proc. n.º 147/07-5. No mesmo sentido os AcSTJ de 30/11/2000, proc. n.º 2808/00-5, de 22/02/2001, proc. n.º 4129/00-5, de 05/04/2001, proc. n.º 961/01-5, de 11/10/2001, proc. n.º 2363/01-5, de 18/10/2001, proc. n.º 2147/01-5, de 16/05/2002, proc. n.º 1384/02-5, de 16/05/2002, proc. n.º 1382/02-5, de 12/12/2002, proc. n.º 3722/02-5 e de 16/01/2003, proc. n.º 3569/02-5, todos com o mesmo relator). Ora, não só não impugna o recorrente essas ilações, limitando-se a dizer que não é matéria provada, como não alega sequer que assim tenha sido alterada a matéria de facto directamente provada e não meramente desenvolvida, como é consentido. O que bastaria para afastar a sua crítica. Deve, no entanto, dizer-se que não vê este Supremo Tribunal de Justiça que, no caso, as afirmações da decisão recorrida a que se refere o recorrente, desenvolvimentos da matéria de facto directamente apurada, a alterem. Com efeito, vem, além do mais provado que: «59- A situação de afastamento, ocultação e recusa de entrega da menor é de tal modo prolongada, que a parte considerável e essencial da sua infância se está a desenvolver fora da convivência da família biológica desta. Entende o recorrente, já se disse, que essa interpretação viola o art. 32.° da Constituição, no sentido de o exercício do direito ao silêncio pelo arguido demonstrar “uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança” (conclusão 4). Mas não fundamenta essa posição, limitando a afirmar que esse trecho do acórdão se fundou no seu silêncio. Ora, a transcrição feita da decisão recorrida logo demonstra o infundado de tal arguição. Como se viu da contextualização feita, o acórdão recorrido não extrai a consideração dessa personalidade do recorrente do exercício do direito ao silêncio pelo arguido, mas sim, como é dito expressamente, da conduta do arguido, tal como resulta da matéria de facto provada. Com efeito, lembre-se que no trecho em causa se escreveu: «como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em…». (realçado e sublinhado agora) Ou seja, o juízo do Tribunal recorrido sobre a personalidade do arguido resultou da apreciação e interpretação das circunstâncias de facto provadas e não do facto de este ter feito uso do seu direito ao silêncio. Não vê aonde e como fez o Tribunal recorrido interpretação e aplicação inconstitucional da norma do art. 343.º n° 1 do CPP, desfavorecendo-o recorrente por ter optado por não prestar declarações em julgamento. Nem o recorrente nos elucida. O que, só por si, levaria a improcedência desta alegação. Diga-se, ainda, que a mesma alegação não levaria, em todo o caso ao efeito pretendido. Dispõe, com efeito, aquele n.º 1 que o presidente do tribunal informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecêlo. Mas já o art. 61.º do mesmo diploma elenca, entre os direitos do arguido o de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar [n.º 1, al. c)]. Mas logo limita esse direito ao prescrever o dever de responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais [n.º 3, al. b)]. De salientar, pois, que o direito ao silêncio por parte do arguido não é um direito ilimitado e que incide sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar, como dispõe a norma do n.º 1, al. c) do art. 61.º do CPP. Na verdade, também lembra o Tribunal Constitucional que o «direito ao silêncio» conhece, no domínio do Código de Processo Penal, algumas excepções, como a resultante da al. b) do n.º 3 do art. 61.º, e o, já referido, dever de responder com verdade às perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais. Acrescenta – AcTC n.º 695/95 de 05.12.1995 – «nestes termos e no seu recorte legal, o direito ao silêncio do arguido abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito (a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e sobre a questão da culpabilidade, deixando a lei, em princípio de fora, a questão da sua identidade e dos antecedentes criminais do arguido. (…) Consagra-se aqui o direito ao silêncio do arguido no que respeita aos factos que lhe são imputados e, bem assim, caso tenha feito quaisquer declarações sobre eles, silenciar posteriormente outras questões sobre o seu conteúdo. Este direito ao silêncio está directamente relacionado com o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2 da Constituição). Com efeito, o interrogatório do arguido – exceptuadas as declarações finais antes do encerramento da audiência de julgamento, em que é perguntado se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa (artigo 361º do CPP) – pode vir a ser utilizado como um meio de prova: as declarações do arguido podem constituir um importante meio de obter a verdade material dos factos, ponto é que se respeite a livre determinação da sua vontade.» E no AcTC n.º 127/07 de 27.2.2007, tratando das perguntas sobre a identidade e os antecedentes criminais, escreve-se «gozando o arguido do direito ao silêncio não só quanto aos factos que lhe forem imputados como também quanto ao conteúdo das declarações que sobre eles prestar, pode esta obrigatoriedade de responder às perguntas sobre a identificação e sobre os antecedentes criminais feitas nesta fase processual violar tal direito? A resposta não pode deixar de ser negativa. Em primeiro lugar, não pode aqui afirmar-se a violação da presunção de inocência do arguido: não se trata agora de utilizar as declarações deste como meio que pode influenciar a prova, o que sempre poderia afectar a sua dignidade pessoal, que o processo penal tem sempre de preservar, mas tão-somente de recolher elementos indispensáveis sobre a situação criminal do arguido, uma vez que o processo não está ainda em condições de ter adquirido tais elementos, na sua forma oficial, isto é, através da requisição do respectivo certificado de registo criminal.» (sublinhado agora) O mesmo Tribunal, ponderou o alcance desse direito, limitando-o, no caso de livre valoração e depoimentos indirectos e concluiu que o art. 129º, nº 1 (conjugado com o art. 128º, nº 1) do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional. (AcTC n.º 440/99 de 8/7/1999) Ora, como se viu, o trecho do acórdão recorrido, de que parte o recorrente, não se prende com os factos de que é acusado ou declarações que prestou anteriormente sobre eles, núcleo essencial protegido pelo direito ao silêncio, mas sim sobre a sua personalidade. E situou-se o Tribunal recorrido na senda da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça de que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio (cfr. AcSTJ de 21/02/2006, Proc. º 260/06-5 e de 24/10/2001, Proc. nº 2762/01-3). Tem entendido, este Supremo Tribunal, que: – Na avaliação da personalidade não está em causa o direito ao silêncio, em ordem a extrair deste um juízo desfavorável relativamente àquela. Porém usando o arguido daquele direito, fica impedido o tribunal de se socorrer de elementos que poderiam levá-lo a uma atitude de compreensão em termos de culpa, susceptível de se repercutir na medida da pena e no prognóstico do seu comportamento futuro, com interesse para as exigências de prevenção especial e da própria necessidade da pena. (AcSTJ de 30/10/1996, Proc. nº 59/96) – Resultando da factualidade provada e respectiva motivação que o arguido, usando do direito ao silêncio, não prestou quaisquer declarações em julgamento, e não podendo, obviamente, ser prejudicado por isso, certo é que impediu, desse modo, que o tribunal tivesse um melhor acesso à sua personalidade, condições de vida sócio-familiares, e perspectivas de reinserção social. (AcSTJ de 10/03/2004, Proc. nº 258/04-3) É a seguinte a factualidade apurada (transcrição): Factos provados Condenação pelo crime de sequestro Alega o arguido que se não verifica o crime de sequestro, pois, a menor nunca foi impedida pelo recorrente de se movimentar livremente. O recorrente nunca confinou a menor a um determinado local, impedindo a sua locomoção. Não existe pois o elemento objectivo do tipo previsto no art. 158.º do C. Penal (conclusão 5). O bem jurídico protegido é a capacidade de cada um se fixar ou movimentar livremente no espaço físico, contra a ilícita restrição e não a “liberdade de querer”, como entendeu o acórdão recorrido (conclusão 6). O seu comportamento – diz – não preenche o tipo legal de crime de sequestro previsto e punido pelo art. 158° n.° 2 al. a) do C. Penal, pois apesar de a acusação afirmar (31) que: “os arguidos, ao agirem do modo acima descrito, previram e quiseram, ainda, animados da mesma resolução, em conjugação de esforços, na execução do plano congeminado por ambos, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente BB, seu pai, pelos seus próprios meios ficando onde os arguidos determinassem, nomeadamente em casa destes, ora em Torres Novas, ora no Entroncamento, com a intenção conseguida de contra a vontade da menor e do assistente, a quem a guarda e cuidados, fora atribuída, lhe coarctarem a sua liberdade de movimentação e que atenta a actuação dos arguidos AA e EE, o assistente estava impedido de se aproximar e de a levar para junto de si” foi considerado provado que: “31 - Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios, ficando onde o arguido determinasse, nomeadamente em casa deste, ora em Torres Novas, ora no Entroncamento. 32 - Com a intenção conseguida de, contra a vontade do assistente a quem a guarda e cuidados fora atribuída, lhe coarctarem a sua liberdade de movimentação”. Não se verificando, assim, que a menor se encontre privada de liberdade, contra a sua vontade. Sendo certo que a vontade presumível da menor aponta no sentido de permanecer com o arguido e sua mulher, que tem como pais (conclusão 7). A menor foi entregue pela progenitora ao recorrente e sua mulher, para adopção com 3 meses de idade, quando não tinha qualquer vínculo com o assistente, que nem sequer assumira a paternidade. Naquelas circunstâncias, de objectivo abandono, a menor era uma criança em risco, que carecia de quem dela cuidasse. Logo, a vontade presumida da menor não pode ser a de se opor a que o recorrente a acolhesse, por tal presunção não se coadunar com o bom senso e com as regras da experiência comum (conclusão 8). A vontade presumida e efectiva da menor era a de estar com quem lhe proporcionasse a satisfação das suas necessidades, tratando-a como filha. Os cuidados parentais desejados e imprescindíveis a uma criança de tenra idade foram prestados pelo recorrente e sua mulher (conclusão 9). Ao receber a menor de quem exercia em exclusivo o poder paternal, o recorrente não actuou ilicitamente. Naquele momento em que o progenitor era desconhecido, era irrelevante o desconhecimento da sua opinião quanto à entrega (conclusão 10). Não está demonstrado que o recorrente tenha preparado a menor “para a despersonalização”. Resulta dos factos provados a falta de fundamento de uma tal afirmação (conclusão 12). A mudança do nome próprio da menor quando ela tinha 3 meses não é a expressão de qualquer crime (conclusão 13). O recorrente agiu de modo lícito, designadamente em respeito pela Convenção sobre os Direitos da Criança, pela Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças, pelos artigos 1878.°, 1885°, 1915.°, 1918.°, 1974.° e 1978.° do Código Civil e pela Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (conclusão 14). Tendo concluído pela verificação dos pressupostos legais, o Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém intentou um pedido de confiança judicial da menor, a favor do recorrente e da sua mulher, muito antes de existir uma qualquer decisão no processo e Regulação do Poder Paternal, conforme facto provado 78. E, até hoje, nenhuma decisão existe que divirja da opinião dos técnicos (conclusão 15). Quem, como o recorrente, exerce a guarda de facto sobre uma criança, tem o dever especial de exercer, no interesse da menor, os poderes-deveres integrados no poder paternal (conclusão 16), enquanto que o crime é uma acção ilícita, culposa e típica, o que não acontece com a sua acção que não é típica, sempre foi lícita e não culposa, orientada à protecção daquela que desde os 3 meses tem como filha, falhando, por conseguinte, os pressupostos para que possa subsumir na tipicidade do crime de sequestro (conclusões 17, 19 e 20). No que se refere ao dolo, defende que não privando a menor da sua liberdade, antes dela cuidando e exercendo os poderes-deveres inerentes ao poder paternal, inexiste o elemento subjectivo do tipo legal de crime de sequestro (conclusão 18), mas sim o exercício da guarda de facto sobre a menor (conclusão 19), pois que tendo a guarda de facto da menor, tem o especial dever de dela cuidar (conclusão 20). Não tendo privado a menor de liberdade ambulatória, não representou que a sua conduta pudesse configurar um crime e nem agiu contra o Direito, voluntária e conscientemente (conclusão 24), e considerando o acórdão recorrido que a intenção de recorrente foi a de criar uma profunda relação de amor com a menor, não sendo admissível a ideia de um dolus in re ipso, é evidente a inexistência de dolo pelo recorrente (conclusão 25). Defende, depois, o recorrente que agiu no cumprimento do dever de proteger os superiores interesses da menor, pelo que se verifica a causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 36.° 1 do C. Penal (conclusão 21). Sustenta, finalmente, que sempre se deveria considerar que se estaria perante um erro sobre a ilicitude, que seria desculpável, no concretismo da acção, já que “age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável’ (art. 17° n.º 1 do Código Penal), e não se podem censurar (conclusão 22). O arguido recebeu a menor da mãe, num momento em que era desconhecida a paternidade e sempre dela cuidou e bem tratou. Da conduta do arguido apenas resultou que a menor tivesse podido crescer em ambiente familiar normal. È inexistente o dolo na medida em que o arguido apenas visa proporcionar amor, lar e desenvolvimento harmonioso à menor “quis fazer nascer laços de amor” e visou “criar as condições para estabelecer uma profunda relação de amor da criança para com eles”. Verifica-se imediação entre a acção dos progenitores e a resolução do arguido. Logo, não tem qualquer justificação a condenação do recorrente por um crime que não cometeu (conclusão 23). Vejamos se lhe assiste razão. 2.3.2. Antes, importa relembrar as circunstâncias do caso, o âmbito do recurso e as suas possíveis consequências. É certo que, como se relatou, no dispositivo do acórdão da 1.ª Instância o colectivo de juízes decidiu «absolver o arguido AAda prática como autor material de um crime de subtracção de menor p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, al. c) do Código Penal.» Mas essa decisão, tal como acontece com os contratos e com as leis, deve ser interpretada no seu contexto legal e processual, na sua lógica e não apenas lida, tomando-se em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, factores básicos da sua estrutura, de acordo com as regras dos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil. Como vem entendendo pacificamente este Supremo Tribunal de Justiça, a sentença judicial é ela também susceptível de ser interpretada com recurso às boas regras de hermenêutica (AcSTJ de 28.6.1994, proc. n.º 85826, de 28.1.1997, proc. n.º 823/96, de 4.6.98, proc. n.º 367/98). «Não obstante a sua característica de acto de autoridade, a sentença, designadamente a sua parte decisória, é um acto jurídico declarativo e formal, dirigido às partes e, portanto, susceptível de interpretação, de harmonia com as regras, devidamente adaptadas, consignadas nos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil» (AcSTJ de 13-12-2000, proc. n.º 3459/00-7. No mesmo sentido, mais recentemente os AcSTJ de 24.1.2002, proc. n.º 3036/01-5, com o mesmo relator e de 29.7.2005, proc. n.º 2531/05-3). Ora, o arguido foi acusado pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de sequestro agravado do art. 158.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e e), do C. Penal e de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1, al. c) do C. Penal. E o acórdão de 1.ª Instância teve por verificados os dois crimes (sequestro agravado e subtracção de menor); pronunciando-se detalhadamente sobre o preenchimento dos elementos do tipo legal deste último (subtracção de menor – fls. 1622 a 1625) para entrar depois na questão de saber se se tratava de um concurso efectivo ou real ou de um concurso aparente entre esses dois crimes que teve por verificados, e concluir neste último sentido, decidindo que o arguido seria só punido «pela prática do crime de sequestro sendo os restantes factos ponderados na determinação da medida concreta da pena» (fls. 1625 a 1627). Com efeito, entendeu e decidiu a 1.ª Instância o seguinte: «Quanto ao imputado crime de subtracção de menor; Nos termos do disposto no artigo 249 1 als. a) e c): Comete o crime de subtracção de menor quem: – subtrair menor ( al. a); – se recusar a entregar menor à pessoa que sobre ele exercer o poder paternal ( al. c). Quanto a este crime diga-se o seguinte: Visa este artigo, mais do que a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menores, a própria protecção dos menores, na medida em que se entende ser a pessoa a quem é atribuído tal poder a mais capaz de o exercer, naquele interesse; Assim, este crime terá sempre por objecto um menor. A subtracção, por seu turno, consiste em retirar um menor do domínio de quem o tenha ou deva ter legitimamente a seu cargo. Por princípio significará isto uma separação espacial entre o menor e o titular dos poderes (embora não seja suficiente a verificação dessa separação, pois tem de acrescer, além disso, a impossibilidade do exercício dos poderes: Esta separação deve ainda durar há algum tempo”, pag.615 da mesma obra. Ora, a recusa de entrega de menor à pessoa que sobre ele exercer o poder paternal supõe que se verifique uma situação que consubstancie uma privação fáctica do exercício do poder paternal. Do que se trata, neste caso, é de garantir que a pessoa legitimada assuma o integral exercício dos seus poderes. Refira-se, ainda que este tipo legal de crime exige que o agente actue com dolo. Ora, a primeira questão que se suscitaria relativamente a este crime era a de saber se o assistente, à data da prática dos factos, era a titular do poder paternal da menor CC. Está assente que o arguido e esposa foram notificados da sentença que regulou o exercício do poder paternal da menor CC, datada de 13 de Julho de 2004 (Proc. n 1149/03. 3TBTNV, do 2° Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Novas) a qual determinou, a atribuição ao assistente BB, pai da menor CC, o desempenho do poder paternal e, como já anteriormente referido, não obstava a tal a interposição de recurso apresentado pelo arguido (indeferido por se entender não ter legitimidade para tal) devidamente esclarecido de que, a admitir-se tal recurso, sempre se teria efeito meramente devolutivo, porque legalmente obrigatório (art.º 185 da O.T.M.). E para que não se esqueça, diga-se que o conteúdo do poder paternal está definido no artigo l878.º do Código Civil o qual reza que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los ainda que nascituros e administrar os seus bens”. Daqui decorre que o poder paternal é um conjunto de poderes deveres conferidos ao pais para prosseguirem os interesses dos filhos aí se integrando a guarda ou custódia do menor e concluindo-se que tratando-se de um crime permanente, a consumação só termina com a possibilidade do assistente poder exercer o poder paternal, ou da menor atingir a maioridade. Nos autos, é manifesto que o arguido vem praticando factos do crime de que vem pronunciado. No entanto há que aferir se o concurso em causa é ou não aparente (…)» Assim, o acórdão da 1.ª Instância, apesar da redacção de parte do seu dispositivo, não pode deixar de ser interpretado de acordo com os seus fundamentos: teve aquele tribunal por preenchidos os dois tipos de crime (sequestro agravado e subtracção de menor), mas em concurso aparente e não efectivo, como constava da acusação, pelo que a punição só teria lugar pelo crime mais grave. Não se tomando, para já posição sobre o núcleo essencial do recurso do arguido: saber se se verifica o crime de sequestro agravado, deve notar-se que não merece censura a decisão da 1.ª Instância quando teve por verificado o crime de subtracção de menor e considerou que o concurso (a verificar-se) com o crime de sequestro, era aparente e não efectivo ou real, na senda do AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05, citado pelo acórdão da Relação de Coimbra (ver também na doutrina Leal-Henriques e Simas Santos, C. Penal, II, em anotação ao art. 249.º, M. Cobo del Rosal, L.C. Carbonell Mateu, Derecho Penal, Parte Especial, vol. II, pág. 52). Na verdade, no art. 249.º do C. Penal censuram-se agressões ao legítimo exercício dos poderes legalmente definidos para o suprimento da incapacidade dos mesmos – poder paternal e tutela. De harmonia com o preceituado no art.° 122.° do Código Civil é menor quem não quem tiver menos de 18 anos e que sofre, por via disso, de uma incapacidade legal, a chamada incapacidade por menoridade. A mesma lei civil, para obviar a essa insuficiência, reuniu um conjunto de normas destinadas a suprir tal incapacidade (art. 124.°): — directamente pelo poder paternal (art. 1877.° e ss do C. Civil); — subsidiariamente pela tutela (art. l 921.° e ss do C. Civil). Como referem Leal-Henriques e Simas Santos (loc. cit.) neste artigo estabelece-se uma dupla protecção: por um lado, em benefício do menor, para que permaneça dentro da sua família, e, por outro, em favor desta, com vista a conservá-lo no seu seio (no mesmo sentido, cfr. Cobo del Rosal…, loc. cit.). Das três situações delituosas previstas em tal normativo: subtracção; determinação à fuga por meio de violência ou ameaça de mal importante; ou recusa de entrega do menor a quem esteja legitimamente confiado (isto é: sonegação ou retenção de menor a quem exerça o poder paternal, a tutela ou qualquer outro poder legítimo sobre ele), verifica-se, no caso, a recusa de entrega de menor. Com efeito, como referem os BB citados, «há recusa na entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, por acção do agente sob cujo instável poder se encontra não regressa ao seu poder de direcção e guarda. A tónica criminosa reside aqui, pois, na retenção sem justa causa.» Sujeitos passivos são, assim, os pais, tutores e os que tem a guarda de facto (Cobo del Rosal, … loc. cit.). Mesmo que se entendesse que só podia ser sujeito activo deste crime, quem tivesse uma relação com o menor, não se podia esquecer que, como resulta da matéria de facto, o arguido tinha a guarda de facto da menor, tida em conta, aliás, pelo Tribunal Constitucional, ao reconhecer-lhe legitimidade para recorrer da decisão proferida no processo de regulação do poder paternal (AcTC n.º 52/2007 de 30.1.2007, proc. n.º 134/05) E está assente que foi o arguido notificado da sentença de 13.7.2004 que regulou o exercício do poder paternal da menor CC (proc. n.º 1149/03. 3TBTNV, do 2° Juízo do Tribunal de Torres Novas) e determinou, a atribuição ao assistente BB, pai da menor CC, o desempenho do poder paternal e que, não obstante a interposição, por si, de recurso então não admitido, mas sempre com efeito meramente devolutivo, logo legal e imediatamente obrigatório (art. 185.º da O.T.M.), sempre se recusou a entregar a menor ao assistente. Mas, de todo o modo, deve salientar-se que o recorrente, no seu recurso para a Relação de Coimbra, não impugnou este entendimento e decisão da 1.ª Instância, com ele se conformando. Com efeito, só discordou da condenação como autor do crime de sequestro, do qual pediu para ser absolvido (conclusão 14 da sua motivação). Daí que a Relação se tenha limitado a apreciar a questão que lhe fora posta: saber se o arguido cometera ou não o crime de sequestro agravado pelo qual fora condenado, sem, adequadamente, apreciar a parte restante dessa mesma decisão. 2.3.3. Isto posto, importa abordar a questão de saber se deve manter-se a condenação do arguido pelo crime de sequestro agravado, tal como o entenderam as Instâncias. A questão já foi posta perante este Supremo Tribunal de Justiça, num caso semelhante (AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05). Aí se entendeu, de acordo com o sumário publicado (proc. n.º 05P3127 em http://www.stj.pt) que: «(III) A circunstância de a vítima do sequestro ser um menor não obsta à verificação do crime, por razões de protecção da sua dignidade de pessoa humana, que não pode ser instrumentalizada e tratada como coisa. (IV) Assim, é de presumir que o incapaz, se já possuísse a capacidade de efectivar a sua liberdade de deslocação, se oporia ao acto de impedimento da sua locomoção por terceiro. (V) Tratando-se de progenitores não unidos pelo matrimónio que não vivam maritalmente verifica-se a presunção legal de que a mãe tem a guarda do menor – art. 1911.º, n.º 2, do CC. (VI) No caso de concurso aparente, havendo várias normas punitivas, terá de prevalecer uma delas, excluindo a outra ou outras, através, designadamente, dos princípios da especialidade e da consumpção. (VII) O crime de sequestro consome o de subtracção de menor, na medida em que a incriminação da privação da liberdade abarca a lesão do interesse do menor ao ser retirado da pessoa dele encarregada.» Ou seja, entendeu-se que se verificavam, em concurso aparente, os crimes de subtracção de menor e de sequestro, a punir no quadro do crime de sequestro. Mas, tendo presente a jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal de Justiça importa ver se se verificam, no caso, os elementos do tipo legal do crime de sequestro. Escreveu-se na decisão recorrida, além do mais, o seguinte: «OS ELEMENTOS TÍPICOS DO CRIME DE SEQUESTRO Afastada a prática do crime de sequestro por não verificado o elemento subjectivo, afastado fica o concurso aparente, pelo que a conduta do recorrente continua punível, mas agora no quadro exclusivo do crime de subtracção de menor, pelo que haverá que, mais adiante, individualizar judicialmente a pena. Sempre com relação ao mesmo crime de sequestro, e para além das questões já referidas respeitantes à causa de exclusão da ilicitude do art. 36.° 1 do C. Penal (conclusão 21), do erro desculpável sobre a ilicitude (conclusão 22), suscitou ainda as seguintes questões: Atenuação especial da pena (conclusão 26.ª – o recorrente agiu determinado por motivo honroso: a salvaguarda do interesse da menor. Assim, seria aplicável o art. 72.° do C. Penal que prevê a atenuação especial da pena, e que o Tribunal a quo descurou). Medida concreta da pena [o Tribunal a quo errou na determinação da medida concreta da pena, por não ter atendido à moldura penal abstractamente aplicável – 4 meses a 6 anos e 7 meses –, quer por não ter considerado o modo de execução, os sentimentos manifestados e a conduta anterior e posterior do recorrente (conclusão 27); não foi causador de qualquer “sofrimento” pelo assistente, se sofre tal é-lhe imputável em exclusivo, pois não assumiu a paternidade da menor e não requereu o processo de regulação do poder paternal sobre a menor (conclusão 28), como teria feito o homem médio colocado na sua posição (conclusão 29)]. Mas o conhecimento de tais questões fica prejudicado pela posição que se tomou quanto à prática do crime de sequestro. 2.3.5. Indemnização civil Sustenta o arguido que a sua actuação não causou danos à menor, que tem uma boa saúde física e mental, conforme atestaram os técnicos que tiveram intervenção neste processo, e que está bem inserida na família do recorrente, tendo sido essa conduta que supriu as faltas dos progenitores e evitou que a menor sofresse com o abandono de que foi alvo (conclusão 30). Defende que não actuou ilicitamente, não causou danos, não teve intenção ou consciência de os causar e nem é imputável à sua conduta de bom samaritano e de pai extremoso qualquer sofrimento do assistente ou da menor, pelo que não há fundamento para a condenação do recorrente no pagamento de qualquer indemnização (conclusão 31), pelo que deverá ser absolvido do crime de sequestro e, consequentemente, deverá o pedido de indemnização civil ser julgado improcedente por não provado (conclusão 32). No entanto, esta tese não procede. Desde logo, como se viu o recorrente, se bem que deva ser absolvido da prática do crime de sequestro agravado, por virtude do provimento parcial do seu recurso, agiu ilicitamente praticando um crime de subtracção de menor. Ora, na essência, a sua pretensão depende da sua pretensão de não haver agido ilicitamente. Depois, a sua alegação não se revê na matéria de facto provada. Continua o recorrente a não querer compreender que a sua persistência na manutenção de uma situação de facto, que vem prolongado no tempo, se traduziu e traduzirá em problemas e danos presentes e futuros para o assistente e para a menor, independentemente da intenção com que agiu, mas que, como se afirma na decisão recorrida, teve e tem em conta essencialmente a sua vontade de integrar a menor na sua família, como se fosse sua filha, sem curar da sua verdadeira identidade pessoal e familiar e dos seus verdadeiros interesses definidos pelo seu pai. Sempre impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultando o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência. Pretendeu não entregar a menor ao pai que sabia ter juridicamente a sua guarda e direcção, a quem sabia que incumbia educar e tratar e com quem aquela deveria viver, não permitindo que a menor pudesse viver com o assistente, privando pai e filha da companhia um do outro. Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, como bem entende, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, seu representante legal e a quem compete decidir sobre a vida daquela e contra a vontade presumida da menor. E fá-lo bem sabendo que esta não tem capacidade de decisão quanto à sua permanência num lugar ou à mudança para outro lugar, impedindo-a de ser deslocada para onde o seu pai bem entende em conformidade com os interesses da filha. Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe (facto n.º 63). Privou-a de frequentar um infantário, com o propósito de obstar a que a menor fosse entregue ao Progenitor, como era já exigível, face à idade que tem, de lhe ser propiciado o convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação (facto n.º 65). Sabe que quanto mais prolongarem no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso será para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. 2.4. Recurso do Ministério Público Sustenta o Ministério Público que o acórdão recorrido, ao subordinar a suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão ao dever de o arguido apresentar a menor aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo (conclusão 1ª), estabelecendo como objectivo desse dever o de aqueles técnicos promoverem a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores (conclusão 2ª), integrou no âmbito daquele dever de apresentação uma obrigação que se não mostra adequada ás finalidades da punição e cujo cumprimento não é razoável que se exija ao condenado - art°s 50° n°2 e 51° n°2 do Código Penal (conclusão 3ª). Tanto mais que está ainda pendente um processo de regulação do poder paternal relativo à menor e os procedimentos apropriados à defesa e prossecução do superior interesse daquela deverão ser equacionados e decididos pelo magistrado competente para conhecer daquele processo (conclusão 4ª). Correctamente bastaria a imposição ao arguido do dever de apresentar a menor aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS nos termos ordenados pelo juiz competente, sem a fixação de qualquer objectivo, no presente processo, à actuação daqueles técnicos (conclusão 5ª). O Ministério Público neste Tribunal acompanhou este entendimento, como se relatou. Importa começar por contextualizar a determinação da impugnada condição de suspensão da execução da pena. «Considerando o disposto no artigo 71 ° do Código Penal, e atendendo a que as exigências de prevenção especial e geral são particularmente fortes, tender-se-ia a ter por adequada, por primeira e inusitada adesão, a pena de 6 anos de prisão, aplicada na 1ª instância, douta e explicitamente fundamentada (Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2/2006, in www.stj.pt processo 05P3127 JSTJ000) Mas se tal pena, no jogo das finalidades da sanção é a adequada, tudo muda de figura quando entra no cenário a vítima, neste caso uma menor de cinco anos de idade. O clamado interesse superior da criança não pode ser indiferente, aqui no processo-crime, designadamente para a fixação da pena. Como se foi dizendo o arguido, com a sua mulher, criaram um estágio de ruptura, na ficção de um estágio de enamoramento, que visa a sua satisfação pessoal, o seu desejo de serem pais. Não agiram no interesse da criança pois, como se disse, no momento em que a criança se encontrar consigo mesma terá consciência de que nada do que a rodeava era verdadeiro, nem sequer o próprio nome. Impõe-se, por isso, repor o estado de encantamento, retirar o cenário de ilusão criado, para se colocar a menor na realidade, causando o menor dano na sua personalidade. Para tal, a menor precisa de ter acesso não só aos personagens da sua vida real (o seu pai e a sua mãe) como aqueles outros (o arguido e a sua mulher) que aleitaram o mundo onde ela se foi criando, até agora. O arguido foi actor-encenador privilegiado do teatro da vida da criança-vítima e, por tal, tem de fazer parte da nova cena onde a vida, tal como é na realidade, vai irromper no ser da criança-vítima. O interesse superior da criança impõe-se neste momento obrigando a que a pena a aplicar ao arguido não seja impeditiva da reposição do estágio de encantamento, mas, outrossim, seja garantia de que ele, o arguido, terá um papel primordial nessa reposição. A pena a aplicar será de tal modo que por um lado garanta as necessidades de punição e prevenção e, por outro, acautelem o papel do arguido na passagem da criança para esse estágio de encantamento. Não cabe neste processo estabelecer-se qualquer tipo de regulamentação do exercício do poder paternal, nem ter em conta quaisquer aspectos emocionais ou morais que tal situação envolva. Aqui a pena terá em vista fazer cessar o sequestro, sem deixar impune o arguido, autor do crime. Assim, o arguido terá de deixar a prisão para participar na recuperação da menor – a pena a aplicar será suspensa por isso, e certos de que a ameaça da pena é capaz de garantir os objectivos da punição, pois que não se conhece outra deformação da personalidade ao arguido, se não esta que conduziu o arguido a um conflito profundo com o direito e à prática de um crime vitimizador de uma criança, roubando-lhe uma infância vivida na normalidade. Para a pena ser suspensa não poderá ser superior a três anos – artigo 50º do Código Penal. Mas a suspensão visa garantir a realização do interesse superior da criança-vítima e, por isso, estará sujeita a condições que permitam o fim das situações fictícias alimentadoras do crime. Nestes termos o arguido, terá de: 1 – Apresentar, a criança-vítima aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, para que estes, definam o melhor momento em que promovam a explicação á menor acerca da sua real identidade (que ela é a CC e não a ficcionada A...F...) e a dos seus progenitores (que o pai, é o aqui assistente) de modo a que, procurando minimizar os traumas causados á menor pelo mundo ficcionado pelo arguido, a coloque no seu real mundo. Sendo obrigação do arguido apresentar a criança logo que os pedopsiquiatras e técnicos exigirem, estará a violar uma das condições da suspensão da pena, se não o fizer. Os pedopsiquiatras e técnicos do IRS terão de informar o Tribunal da data que indicaram ao arguido para a realização da diligência e apresentar relatório com o resultado da explicação. 2 – Apresentar a criança vítima nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença. 3 (4, por lapso material do acórdão recorrido) – Cumprir todas as decisões que envolvam a criança-vítima que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal. Tudo isto acompanhado e sob controlo do IRS.» Dispõe o art. 51.º do C. Penal que a suspensão da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, indicando exemplificativamente alguns desses deveres (n.º 1) e estabelecendo impositivamente que esses deveres não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir (n.º 2). Começando por esta última exigência, não se vê que a mesma seja desrespeitada pelo dever imposto ao recorrente de apresentar, a criança-vítima aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, o único segmento do dever se se dirige àquele. Situam-se no mesmo nível dos restantes deveres de apresentação da criança e cumprimento das decisões proferidas pelo tribunal que regula o exercício do poder paternal e que não foram impugnadas pelo Ministério Público. Deveres “reforçados” pela sua natureza de condições de suspensão da execução da pena. Mas abordando directamente o objectivo que foi fixados àquelas apresentação: «para que estes, definam o melhor momento em que promovam a explicação à menor acerca da sua real identidade (que ela é a CC e não a ficcionada A...F...) e a dos seus progenitores (que o pai, é o aqui assistente) de modo a que, procurando minimizar os traumas causados à menor pelo mundo ficcionado pelo arguido, a coloque no seu real mundo» e que o Ministério Público impugna, importa reconhecer que o mesmo foi estabelecido, explicitamente como forma de “minimizar os traumas causados à menor pelo mundo ficcionado pelo arguido, a coloque no seu real mundo”, ou seja, como um dever destinado a reparar o mal do crime. Como referem Leal-Henriques e Simas Santos (op. cit. I, pág. 686) «através dos deveres e regras de conduta que são impostos para reparar o mal do crime e facilitar a reintegração do condenado na sociedade contribui-se para que ele observe uma conduta correcta durante o período da suspensão, evitando-se, ao mesmo tempo, os danos causados pelo cumprimento de uma pena privativa da liberdade. » «Por outro lado, com a imposição de certas obrigações que servem para reparar o mal do crime pode compensar-se a situação de favor em que se traduz a não execução da pena privativa da liberdade.» «Aos deveres previstos neste artigo [51.º] (destinados a reparar o mal do crime) e às regras de conduta previstas no art. 52.° (destinadas â facilitar a reintegração do condenado na sociedade), podem acrescer as obrigações previstas no n.” 2 do art. 54.° (que interessem ao plano de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado), sempre que seja imposto o regime de prova.» No caso, como se viu, o Tribunal recorrido teve este dever como muito importante na reparação do mal do crime e a colaboração do recorrente nele como importante na ultrapassagem dos danos e dificuldades que causou à menor com o seu comportamento. Tão importante que, começando por entender que, em princípio, a pena de prisão efectiva cominada na 1.ª Instância se mostrava justa e adequada, a modificou na sua medida para permitir a sua suspensão e assim a colaboração do recorrente. Moveu-se, assim, a Secção Criminal da Relação de Coimbra no âmbito das suas competências penais, tanto mais que salvaguardou nas restantes condições a supremacia das decisões tomadas no foro da regulação do poder paternal. No entanto, os desenvolvimentos posteriores do processo de regulação de poder paternal, que se mostram documentados nestes autos, com as dificuldades sentidas pela competente Secção Cível da Relação de Coimbra na definição precisa do tempo e modo da aproximação da menor ao assistente seu pai, prejudicam a manutenção desse dever que iria interferir no procedimento que vem sendo seguido no processo de regulação do poder paternal. Daí que não devesse manter-se esse dever, como pretende o Ministério Público, mas por razões diversas. De todo o modo, tendo este Supremo Tribunal de Justiça entendido que se não verifica o crime de sequestro agravado, tem-se por prejudicada esta questão, uma vez que não subsiste a pena aplicada pelas instâncias, havendo que estabelecer agora a pena pelo crime de subtracção de menor. 2.5. Dispunha o artigo 249.º do C. Penal (subtracção de menor), à data da prática dos factos, que quem se recusasse a entregar menor à pessoa que sobre ele exercer poder paternal ou tutela, ou a quem ele esteja legitimamente confiado era punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias [n.º 1 al. c)]. Agora, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a pena passou a ser de prisão de 1 a 5 anos [n.º 1 al. c)], salvo se o agente for ascendente, adoptante ou tiver exercido a tutela sobre o menor, caso em que continua a ser de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias (n.º 2). Não cabendo o recorrente na previsão do actual n.º 2 do art. 249.º do C. Penal, a pena aplicável, de acordo com a nova redacção desse artigo, seria a de prisão de 1 a 5 anos. Em obediência à regra prescrita no art. 2.º, n.º 4 do C. Penal, sem necessidade de estabelecer os cômputos penais, de acordo com ambas as redacções do art. 249.º do mesmo diploma, se aplicará a lei vigente à data da prática dos factos, por dela resultar necessariamente um regime mais favorável ao agente. A primeira operação consiste na escolha da pena cominada para o crime de subtracção de menor, cometido pelo recorrente: prisão ou multa: Prevê-se no art. 70.º do C. Penal que, sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Essas finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal). Ora, as circunstâncias do caso, o dolo intenso com que agiu o recorrente, a persistência na sua conduta, o desrespeito pelos interesses e direitos da menor e de seu pai, bem como pelo sistema legal e judicial, os danos presentes e futuros da sua conduta não permitem concluir que a aplicação de uma pena de multa satisfaça as necessidades de prevenção geral de integração e de intimidação. E mesmo a prevenção especial, neste contexto em que o recorrente ainda não compreendeu o desvalor dos resultados da sua conduta não se satisfaz com a aplicação de uma pena de multa. Impõe-se, assim, a opção pela pena de prisão. A pena aplicável é a de prisão até 2 anos. Impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultado o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência, apesar de saber que este tinha juridicamente a sua guarda e direcção, e que lhe incumbia educar e tratar a filha, com quem deveria viver, privando pai e filha da companhia um do outro. Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, a quem compete decidir sobre a vida daquela, sabendo que esta não tem capacidade de decisão. Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe. Privou-a de frequentar um infantário, com o consequente convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação, sabendo que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. Com efeito, tem entendido, este Supremo Tribunal de Justiça que em recurso só trazido pelo arguido, este não pode ser penalizado mais gravemente do que na decisão recorrida, por virtude do princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP, tal como vem entendendo (ver, por todos, no mesmo sentido, para o caso de anulação de julgamento, o AcSTJ de 15.11.2007, proc. n.º 3761/07-5, com o mesmo relator e o Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 236/07 e 502/07, julgando inconstitucional, por violação do art. 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do art. 409.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo arguido). |